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O audiovisual e suas tensões: uma historiografia do telejornalismo brasileiro

The audiovisual construction of reality: a historiography of audio and video journalistic narratives

BECKER, B. A construção audiovisual da realidade:. uma historiografia das narrativas jornalísticas em áudio e vídeo.Rio de Janeiro, RJ: Mauad X, 2022. 160 p.

Resumo

A professora Beatriz Becker, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), elabora um estudo historiográfico das narrativas jornalísticas em áudio e vídeo no Brasil, do seu início, na primeira metade do século XX, à atualidade. Para isso, a autora recupera os primórdios da história do cinema e do audiovisual, desde a compreensão da sétima arte como um entretenimento circense até o uso político dos cinejornais, a partir da Primeira Guerra Mundial, passando pela popularização da televisão como principal meio de comunicação no Brasil, pelos desafios da era digital, e conclui debruçando-se sobre os efeitos da pandemia de covid-19. A obra permite refletir acerca do desenvolvimento da linguagem jornalística em áudio e vídeo com embasamento histórico, sem nunca se desviar das responsabilidades sociais e éticas que entrecortam o ofício da tradução dos principais eventos da realidade do país e do mundo.

Palavras-chave
jornalismo audiovisual; história do jornalismo; educomunicação

Abstract

UFRJ professor Beatriz Becker elaborates a historiographical study of journalistic narratives in audio and video in Brazil, from its beginning in the first half of the 20th century to the present day. The author initiates her analysis on the early days of cinema and audiovisual history, from the understanding of the seventh art as a circus entertainment to the political use of newsreels in World War I, towards the popularization of television as the most important communication media in Brazil and the challenges of the digital age, concluding by looking at the effects of the covid-19 pandemic. The work makes it possible to reflect on the development of journalistic language in audio and video with a historical perspective, without ever deviating from the social and ethical responsibilities that intersect the job of translating the main events of the reality of the country and the world.

Keywords
audiovisual journalism; history of journalism; media literacy

Nenhuma imagem é impessoal. Seja pelo enquadramento, pela iluminação ou pela escolha do que de fato é enquadrado, todas as imagens, incluindo as em movimento, carregam discurso, que se multiplica com a interpretação de diversos receptores. Mais do que isso, como a autora traz em Chartier: “o real e o discurso são associados, não opostos” (CHARTIER, 2017CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.) e, assim, a representação e a realidade são indissociáveis. Sob essa premissa, Beatriz Becker, professora de Comunicação Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresenta uma historiografia do jornalismo audiovisual brasileiro em um recorte dos seus últimos cem anos, desde os primórdios da imagem em movimento, passando pela popularização dos cinejornais até os últimos desafios trazidos pela pandemia e pelo governo de Jair Bolsonaro.

A pesquisa começa nas origens do audiovisual, quando a separação entre entretenimento, relato e documentarização não existia. A projeção de imagens em movimento causou grande fascínio na transição do século XIX para o XX. Era então impossível de se compreender que, ao que se assistia, não era a realidade, mas a sua representação, através de um meio com suas próprias regras e linguagem. Tal mudança de percepção apenas foi possível quando os filmes de não ficção tiveram um crescimento acentuado na produção, especialmente à medida que os Estados percebiam a potência do cinema como um instrumento político, a partir da Primeira Guerra Mundial (1914–1918). Os cinejornais (exibidos nos cinematógrafos antes das obras de entretenimento) ao relatar os eventos da guerra traziam informações de amplo interesse público sobre o que há de mais duro na realidade - sendo impossível confundi-los com puro entretenimento. Por outro lado, não se contentavam em relatar os detalhes de batalhas ou acordos políticos, mas em narrá-los em concordância com a ótica do Estado: qualificando personagens, elegendo heróis e definindo um tom para se ler tal realidade.

Essa vocação política do cinema foi explorada posteriormente no Brasil, em sua plenitude, por Getúlio Vargas, que usou o meio para garantir a manutenção da imagem de político capaz de servir tanto a elite quanto o povo. O controle das imagens era uma arma tão importante que foi durante o seu governo que nasceu o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

Nesse sentido, a professora e autora traz ótimos exemplos de como a gramática audiovisual serviu aos propósitos da ditadura varguista, na tentativa de articular o maior número de camadas sociais. Entre eles estão filmes que mostravam os laços de Getúlio com diversas pessoas, desde os mais influentes até os mais marginalizados, ainda que apenas os membros da elite fossem nomeados. Curiosamente, esse foi um acordo reproduzido no telejornalismo durante anos.

Nos cinejornais do período populista apenas os patrões e os líderes tinham rosto, ou seja, apenas eles tinham o privilégio de merecer o primeiro plano. A massa popular era uma massa amorfa, focalizada sempre em planos abertos.

(MACHADO, 2006MACHADO, A. Os anos de chumbo. Porto Alegre: Sulina, 2006., p. 18).

Portanto, desde o início, Beatriz Becker elabora a discussão, a sua visão historiográfica do jornalismo, sobre duas bases: a narrativa e a política. Para além das limitações que o audiovisual impõe ao que busca representar, a autora chama a atenção para as limitações e para a linguagem do telejornalismo como gênero narrativo em si. A partir dos anos 1960, a televisão se tornou o principal canal de notícias do Brasil, estabelecendo-se então uma gramática própria, pautada por um compromisso ético da representação da realidade, em contraste com as liberdades permitidas à representação audiovisual, até mesmo no documentário: o telejornalismo deveria ser o gênero que mais se ateria aos fatos. Entretanto, ela questiona como uma representação pode ser fidedigna se está preenchida pela subjetividade do repórter, do redator, do canal, além de marcas patrocinadoras e, é claro, do Estado.

O processo de modernização do jornalismo impulsionou a incorporação da mítica da neutralidade e da objetividade do discurso jornalístico e buscou apagar a sua vinculação ao campo político. A imprensa e os próprios jornalistas legitimaram a autoridade do jornalismo para enunciar as verdades dos acontecimentos, atrelada a uma pretensa fidelidade aos fatos reconhecida pelo público.

(BECKER, 2022BECKER, B. A construção audiovisual da realidade: uma historiografia das narrativas jornalísticas em áudio e vídeo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022., p. 62).

Colocando-se acima de disputas políticas e assumindo uma representação imparcial, o telejornalismo tentou construir um campo em que a objetividade reinaria para além dos interesses que infectam todo e qualquer relato. Contudo, essa missão falhou, como identifica a autora. Uma vez que as intenções da comunicação se evidenciam até pelas que o interlocutor escolhe — bem como as que exclui, entendeu-se que o melhor a fazer seria assumir o viés do jornal e, afinal, manter-se coerente à linha editorial. Assim, o que o público esperaria do telejornalismo seria uma representação próxima da realidade, com a interferência apenas da ideologia do seu meio. Essa mudança de paradigma foi só o início de uma transformação ainda mais profunda.

Afinal, mexer com as subjetividades que a dialogia social presentifica faz vir à tona tanto a visão de mundo do interlocutor quanto a visão de mundo do comunicador.

(MEDINA, 2003MEDINA, C. A arte de tecer o presente, narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus, 2003., p. 79).

A era digital trouxe uma proliferação de fontes de notícia. Além da concorrência, cresceu também o modo como se poderia contar as histórias do cotidiano, com a necessidade de cada canal encontrar o seu nicho. Contudo, nos últimos anos, o sistema do telejornalismo como um todo entrou em uma crise que veio questionar o seu lugar essencial na comunicação.

Aqui é preciso lembrar a ressalva que Beatriz Becker sempre faz em seu trabalho, a de que nenhuma mudança tecnológica é importante por si só: trata-se de um derivado de demandas sociais latentes. É esse tipo de consideração que eleva o texto e nos relembra do caráter pedagógico de sua obra.

A crise da informação não se deu apenas com a chegada da internet e a expansão de canais informais, como as redes sociais. É resultado também da desconfiança da mídia tradicional, que cresceu continuamente ao longo das décadas. Os primeiros efeitos ficaram evidentes nas manifestações de 2013, em que a Mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) divulgou informações fora do eixo tradicional e serviu como foco organizacional para uma mobilização popular. Só que essa divergência do discurso dominante do telejornalismo registrou efeitos perversos a partir das eleições de 2018.

O jornalismo buscou reafirmar a sua vocação de informar a sociedade e combater as fake news, afastando a rejeição à imprensa mainstream, esboçada nas coberturas dos protestos de junho em 2013 e do impeachment de Dilma Rousseff e no tratamento acrítico de informações e vazamentos da Lava Jato.

(BECKER, 2022BECKER, B. A construção audiovisual da realidade: uma historiografia das narrativas jornalísticas em áudio e vídeo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022., p. 105).

A manobra do telejornalismo foi dupla. A primeira, mais óbvia e direta, foi lutar para se certificar como centro de informações confiáveis, em que a cadeia de processos de checagem é extensa e garante a autenticidade na representação da realidade. A segunda foi mais uma vez desafiar a noção de objetividade que caracterizou a imprensa por tanto tempo, em que se deseja diluir ao máximo qualquer subjetividade na transmissão dos eventos. Agora, expressar emoções, permitir interações e interjeições dos repórteres, âncoras, etc, não é só esperado, mas desejado.

Mas grande parte do trabalho jornalístico passou a ser produzida remotamente, impondo uma adaptação de linguagem radical aos programas telejornalísticos. Foram conformadas novas formas de fazer reportagens e matérias, de representar a realidade e a população brasileira e de engajar os espectadores, integrando testemunhos de cidadãos anônimos e pessoas famosas, imagens de profissionais e amadores, captadas por videoconferências e dispositivos móveis, como foi possível identificar na Análise Televisual de 14 edições do Fantástico, veiculadas de 1º de março a 31 de maio de 2020 e visualizadas na plataforma Globoplay.

(BECKER, 2021______. Reconfigurações do jornalismo audiovisual: um estudo da cobertura do Fantástico da pandemia da covid-19. Revista Lumina, UFJF, v. 15, n. 3, p. 6-22, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br /index.php/lumina/article/view/35300/23823. Acesso em: 10 mar. 2023.
https://periodicos.ufjf.br /index.php/lu...
).

Esses são apenas alguns tópicos que Beatriz Becker desenvolve em seu livro. Ainda que sempre fundamente todas as afirmações e análises sócio-históricas, alternando entre teóricos da comunicação, do cinema, do jornalismo e dos estudos culturais, o texto nunca parece um apanhado de referências e apresenta uma leitura fácil para todas as pessoas interessadas no mercado da informação e das narrativas audiovisuais em seu sentido mais amplo. Tudo isso envelopado pela missão não só da pesquisa, mas também docente da autora, como ela enuncia no seu último capítulo, o porvir. Beatriz nos lembra de que o real desafio não está em lidar ou superar a desinformação, mas em pensar um futuro coletivo em que os indivíduos estejam conectados para além da tecnologia.

Que as imagens da nossa diversidade cultural, identitária, geográfica e ambiental possam transbordar as múltiplas telas, permeadas pela solidariedade e a superação das diferenças, e as narrativas jornalísticas audiovisuais elucidem injustiças, preconceitos e problemas sociais na tradução da experiência cotidiana, valorizando a ciência, a vida de todos e a natureza, conformando novos imaginários e promovendo um projeto de futuro democrático e sustentável para o país.

(BECKER, 2022BECKER, B. A construção audiovisual da realidade: uma historiografia das narrativas jornalísticas em áudio e vídeo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022., p. 135-136).

Referências

  • BECKER, B. A construção audiovisual da realidade: uma historiografia das narrativas jornalísticas em áudio e vídeo. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022.
  • ______. Reconfigurações do jornalismo audiovisual: um estudo da cobertura do Fantástico da pandemia da covid-19. Revista Lumina, UFJF, v. 15, n. 3, p. 6-22, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br /index.php/lumina/article/view/35300/23823 Acesso em: 10 mar. 2023.
    » https://periodicos.ufjf.br /index.php/lumina/article/view/35300/23823
  • CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
  • MACHADO, A. Os anos de chumbo Porto Alegre: Sulina, 2006.
  • MEDINA, C. A arte de tecer o presente, narrativa e cotidiano São Paulo: Summus, 2003.
  • Resenha recebida em 10/03/2023 e aprovada em 14/03/2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2023
  • Aceito
    14 Mar 2023
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