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O cemitério das almas perdidas: como uma imagem de horror reconta a história e redescobre o Brasil

The cemetery of lost souls: how an image of horror retells history and rediscovers Brazil

Resumo

Neste texto discutimos uma passagem do filme O cemitério das almas perdidas (2020), de Rodrigo Aragão, como uma imagem de horror que pode desmontar a história (DIDI-HUBERMAN, 2015) e redescobrir a ideia de nação com base cinema de horror brasileiro contemporâneo. Para isto, partimos da noção de imagem dialética benjaminiana proposta por Didi-Huberman (2015) contrapondo o trecho do filme de Aragão com outras imagens que retratam o mesmo momento histórico em diferentes períodos, como: A primeira missa no Brasil (1859-1861), de Victor Meirelles, O descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Notamos reincidências e rupturas nos modos estéticos de tratar o mesmo tema, priorizando ora o naturalismo, ora a alegoria. Nesta perspectiva, o filme de Aragão se estabelece como uma nova chave de leitura para este momento histórico, privilegiando o horror e o conflito para pensar a história do país e o contexto atual.

Palavras-Chave
filme O cemitério das almas perdidas; desmontar a imagem; cinema de horror; A primeira missa no Brasil ; história da arte

Abstract

In this paper, we discuss a segment of the movie The cemetery of lost souls (2020), by Rodrigo Aragão, as an image of horror that can “disassemble the history”(DIDI-HUBERMAN, 2015) and rediscover the idea of a nation through contemporary Brazilian horror cinema. We start with the notion of Benjaminian dialectical image proposed by Didi-Huberman (2015) contrasting the segment of Aragão’s movie with other images that portray the same historic moment at different periods, such as: The first mass in Brazil (1859-1861), by Victor Meirelles, The discovery of Brazil (1937), by Humberto Mauro, and Terra em transe (1967), by Glauber Rocha. We have noticed recurrences and ruptures in the aesthetic modes of portraying the same subject, prioritizing sometimes the naturalism and other times the allegory. From this perspective, Aragão’s movie establishes itself as a new method of reading this historic moment, privileging horror and conflict in order to think about the history of the country and its current context.

Keywords
film The cemetery of lost souls; disassembling images; horror cinema; The first mass in Brazil ; art history

Introdução

Lançado em 2020, O cemitério das almas perdidas propõe um olhar singular para a história do Brasil colonial. Na trama, escrita e dirigida por Rodrigo Aragão, acompanhamos um jesuíta que, corrompido pelo livro de São Cipriano, inicia uma trilha de sangue com seus seguidores até ser amaldiçoado e preso em um cemitério. Advindo do gênero horror, acreditamos que esse filme possa oferecer uma nova abordagem para se pensar as imagens do ideal de nação, por meio do horror, mas também pelo conflito e violência a fim de narrar esse período da história nacional.

Desta feita, acreditamos que uma breve passagem da obra dialoga com A primeira missa no Brasil (1859-1861), do pintor Victor Meirelles, e funciona como uma imagem em que a história se desmonta (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.)1 1 Trabalharemos aqui com o conceito de desmontar (démonter) de Didi-Huberman (2015) para pensar as imagens e suas relações com a história. Aprofundaremos o conceito durante o texto, mas, de antemão, gostaríamos de esclarecer algumas coisas, de modo a facilitar a leitura e não causar confusões ao leitor. Primeiro, o termo serve para pensar um jogo duplo, num sentido em que as imagens desmontam a história, como num quebra-cabeça que está sempre a se atualizar, em que a ação parte das imagens, tomando a história como objeto; em outros momentos, porém, é a história que propõe a ação sobre si e sobre as imagens, desmontando-se e reconfigurando-se. Outro ponto importante é que esse conceito não tem valor ético, ou seja, não devemos pensá-lo no sentido que correntemente se pensa atualmente o desmonte da educação ou o desmonte da ciência, por exemplo. Desmontar aqui é uma estratégia metodológica para se pensar a relação entre imagens e história. . Com base nessa inquietação, abrimos a possibilidade de repensar o mito fundacional brasileiro e seus conflitos que persistem no âmbito social do país, retornando a diferentes imagens, como nos filmes O descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Nossa proposta, então, é explorar fragmentos desses filmes para entender como se articulam em diferentes momentos da história do país, priorizando suas reincidências, mas principalmente suas especificidades estéticas.

Ao seguir essa noção de imagem que desmonta a história, a passagem de O cemitério das almas perdidas nos parece também centralizar, por meio de estética e proposta narrativa singulares, o modo como o cinema de horror brasileiro contemporâneo pensa a construção do Brasil. Para dar conta dessa abordagem, no final do artigo articulamos os conceitos de horror militante e horror social propostos por Cánepa (2016)CÁNEPA, L. L. Configurações do horror cinematográfico brasileiro nos anos 2000: continuidades e inovações. In: CARDOSO, J. B. F.; SANTOS, R. E. (orgs.). Miradas sobre o cinema ibero latino-americano contemporâneo. São Caetano do Sul: USCS, 2016. p. 121-144., buscando atualizar a perspectiva que se estabelece no corrente momento político do país.

A imagem que desmonta a história

Há uma imagem que passa muito rapidamente em O cemitério das almas perdidas, quase imperceptível (figura 1). Nela, temos o encontro dos invasores portugueses com os indígenas locais, em tempos de descoberta da América pelos europeus. O encontro mostrado por Aragão é violento, com um massacre indígena conduzido durante a noite. No centro da imagem temos uma espada que faz as vezes de cruz, cravada no peito de um indígena. Apesar de sua potência, é uma imagem escura, que dura muito pouco. Muitos poderiam questionar então por que olhar para ela? Que importância tem uma imagem que dura não mais do que dois segundos dentro de um filme de 94 minutos? Por que escrever sobre uma imagem que, ao que parece num primeiro momento, representaria tão pouco dentro do enredo da obra? O motivo de nossa inquietação inicial é que, estranhamente, essa imagem relembra a célebre pintura A primeira missa no Brasil (1859-1861), de Victor Meirelles (figura 2). Acreditamos então que a passagem de O cemitério das almas perdidas tenha o poder de desmontar a história, como descreve Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., em referência às teses de Walter Benjamin (2012)BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. sobre o conceito de história.

Figura 1
O cemitério das almas perdidas
Figura 2
A primeira missa no Brasil, Victor Meirelles, 1859-1861. Óleo sobre tela, 268 x 356 cm.

No texto “A imagem-malícia — História da arte e quebra-cabeça do tempo”, Didi-Huberman (2015) propõe uma leitura das imagens e da história da arte com base em Walter Benjamin e em sua dialética das imagens. Segundo o francês, Benjamin trouxe uma abordagem a se contrapor ao esquema positivista, que pensava a história em forma de progresso e causalidade. A imagem dialética de Benjamin é a maneira de indicar uma nova possibilidade de leitura das imagens, visto que, para o filósofo alemão, a história deve ser lida a contrapelo: “É preciso compreender, a partir de então, em quê o passado vem ao historiador e, de certa maneira, como o encontra no seu presente, entendido então como presente reminiscente” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 115). Tal modelo dialético indica então a leitura em movimento, que se livra das amarras do passado fixo. Como destaca Didi-Huberman, o passado vem até nós através de suas reminiscências; não somos nós que vamos até o passado para descobri-lo. Afinal, nem tudo está disponível, temos que nos contentar com os restos que chegam ao presente.

Nesse sentido, o modelo dialético benjaminiano é completamente diferente do hegeliano. Se Hegel (2009)HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. pensa uma dialética da história da arte que se move num processo histórico progressivo, Benjamin (2012) articula uma dialética que é resultado da visão do presente em relação ao passado, ou seja, de um movimento contrário, que está sempre se atualizando, pois a história é constantemente remontada e essa remontagem se dá por meio das imagens. Nesse sentido, Didi-Huberman (2015, p. 127)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. afirma que “[...] a imagem autêntica será, portanto, pensada como uma imagem dialética”, ou seja, uma imagem constantemente permeada por esse choque entre passado e presente.

Só que essas imagens que nos encontram em fulguração são sempre fugidias, como relâmpagos. Ou seja, assim como aparecem, se vão. Isso implica, segundo Didi-Huberman (2015, p. 128)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., que “a história da arte está sempre por recomeçar”. Assim, a dialética desse encontro entre o nós (agora) e as imagens (do passado) traz o movimento que sempre modifica essas imagens. Afinal, os contextos mudam e as leituras diferem. Isso não se dá apenas por uma mudança pessoal, mas também em âmbito histórico e social: as sociedades olham de modo diferente as imagens a cada momento. Sobre isso, o próprio Benjamin (2012, p. 11)BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. adverte em uma de suas teses: “A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento”. Como Mate (2011, p. 143)MATE, R. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história. 1. ed. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2011. assinala: “O que se quer dizer é que a realidade do passado se manifesta ao contemporâneo da mesma maneira que o sentido de um texto se manifesta ao leitor presente: graças à intervenção ativa do sujeito atual”. Encontrar esse passado exige uma participação ativa do pesquisador atual. O encontro entre esse passado vivo e esse presente ativo, Benjamin (2012, p. 182)BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. define como “imagem dialética”.

Tais concepções podem parecer demasiado abstratas num primeiro momento, porém são fundamentais para se notar algo muito simples: o passado é vivo porque estamos sempre redescobrindo-o, ressuscitando-o. É a isso que se refere Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. quando diz que a história da arte está sempre por recomeçar, e é a esse jogo que Benjamin (2012)BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. fala em suas teses sobre o conceito de história2 2 É precisamente essa a análise que Benjamin (2012) faz da obra Angelus novus, de Paul Klee, na nona tese: o anjo da história que olha com horror os destroços do passado ao mesmo tempo que é impelido pelo sopro do progresso em direção ao futuro. . Isso implica que as imagens estão sempre sendo montadas e remontadas, como num quebra-cabeça que constantemente se modifica, com novas peças recém-encontradas e peças que se modificam e mudam de perspectiva. Pensar nesse constante movimento é fundamental, pois, como frisa Benjamin (2012)BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012., tudo se dá no movimento desse encontro.

Sendo assim, as imagens estão no centro da história, “Porque a história se desagrega em imagens e não em histórias”, afirma Benjamin. Porque, na imagem, todos os tempos dos quais é feita a história “se telescopam e disjuntam” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 130). Cabe destacar também que essas imagens não são o particular que carrega a totalidade, como seria a visão de um ponto de vista hegeliano, mas sim fragmentos e restos dispersos que desmontam a história. As imagens tornam a história visível ao mesmo tempo que a reconstroem:

Ritmo curioso, de fato: um regime sempre duplicado. Nada o expressa melhor, talvez, do que o verbo desmontar [démonter]. Poder-se-ia-se dizer que a imagem desmonta a história assim como o raio desmonta o cavaleiro, o faz cair de seu cavalo. Nesse sentido, o ato de desmontar supõe o desconcerto, a queda: a palavra “sintoma” não está muito distante. Uma imagem que me desmontará é uma imagem que me interrompe, me interpela, uma imagem que me deixa confuso, privando-me momentaneamente de meus recursos, me faz perder o chão

(DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 131).

O autor destaca que, além dessa concepção, devemos entender a imagem que desmonta a história também como aquela que desmonta um relógio. Ou seja, como uma imagem que paralisa o tempo. Abrimos então o objeto e separamos seus mecanismos. Podemos assim analisar demoradamente cada peça, entender seu funcionamento, antes de remontá-lo novamente. “Esse é o duplo regime descrito pelo verbo desmontar: de um lado, a queda turbilhonante, de outro, o discernimento, a desconstrução estrutural” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 131).

Acreditamos que essa imagem (figura 1) de O cemitério das almas perdidas seja uma dessas imagens que desmontam a história. Ao olhar para ela, percebemos seu potencial turbilhonante e desconstrutivo, sua capacidade de atingir como um raio. Tal imagem desmonta a história porque abre espaço para perceber suas intermitências, suas origens e seus retornos. Essa imagem desmonta a história porque remete a outras imagens da história brasileira que se apresentam de modo intermitente. A espada no centro da tela, iluminada em meio à violência do massacre indígena, nos atinge como um raio, ao mesmo tempo que nos convida a repensar outras imagens semelhantes que contaram essa história. Referimo-nos aqui, prioritariamente, à pintura A primeira missa no Brasil (1859-1861), de Victor Meirelles, e às passagens dos filmes O descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, mas também a outras obras que recolhemos ao longo desse olhar ao passado.

A primeira missa no Brasil

A cruz se ergue sob um céu azul e ilumina o segundo plano, um pouco à esquerda do centro, deixando os indígenas no primeiro plano, à direita, nas sombras. Curvados em interesse, eles olham Frei Henrique de Coimbra erguer um cálice diante da cruz. A primeira missa no Brasil foi pintada entre 1859 e 1861, por Victor Meirelles, durante sua estada na França. Desde 1853, Meirelles esteve na Europa, em diferentes redutos artísticos, financiado por uma bolsa do governo imperial brasileiro, conseguida na Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) do Rio de Janeiro (COUTO, 2008COUTO, M. F. M. Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 17, p. 159-171, jul.-dez. 2008.).

O tema da obra se baseia no relato da carta de Pero Vaz de Caminha na ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500. A sugestão temática para o quadro de Meirelles foi de Manuel Araújo Porto-Alegre, diretor da Aiba, que se preocupava em exaltar a nação brasileira que estava se constituindo e havia autorizado a permanência de Meirelles na Europa além do prazo inicial de sua bolsa (GATTI, 1997GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997.). A primeira missa no Brasil foi exposta no Salão Oficial de Paris, em 1861, sendo a primeira obra de um brasileiro a ser exposta no exterior (COUTO, 2008COUTO, M. F. M. Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 17, p. 159-171, jul.-dez. 2008.). Era a coroação do investimento imperial na Aiba, símbolo da educação cultural pretendida por d. Pedro I e d. Pedro II3 3 A Academia Imperial de Belas Artes foi criada em 1826, quando o Império estava sob o comando de d. Pedro I. Todavia, só começou a funcionar regularmente a partir de d. Pedro II, que assumiu em 1831 (SCHWARCZ; STARLING, 2018). . De modo acrítico e romântico, a tela destaca a união dos povos sob a égide do cristianismo.

A Aiba se liga à chegada de um grupo de artistas franceses ao Brasil, em 1816, que visava implementar uma cultura neoclássica e calcada nas Belas Artes. Dessa intentona, Jean-Baptiste Debret é o pintor mais célebre. Discípulo de David, pintor da Revolução Francesa (1789), Debret desenvolveu em terras brasileiras sua pintura histórica, a mais alta na hierarquia do gênero. Neste tipo, o autor demonstrava sua destreza, compondo telas grandiosas inspiradas pela história, mas também influenciadas pela mitologia, por passagens bíblicas e por motivos já celebrados em outros quadros (TREVISAN, 2011TREVISAN, A. R. Velhas imagens, novos problemas: a redescoberta de Debret no Brasil modernista (1930-1945). 2011, 386 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.). Nas décadas seguintes, a Aiba se colocou como a produtora de imagens oficiais do Império, ditando o estilo neoclássico (que se contrapunha ao barroco do período colonial) e os principais temas, como o retrato da família real, a paisagem tropical e bela do país e o indigenismo histórico. “Em boa parte produzidas no exterior, tais obras apresentavam uma idealização da paisagem e da população, coerente com o olhar de quem descreve ao longe a realidade” (SCHWARCZ; STARLING, 2018SCHWARCZ, L.; STARLING, H. Brasil: uma biografia. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 289). O indígena surgia como símbolo dessa nação, destemido e puro, bem relacionado com o português colonizador e salvador cristão. Como demonstram Schwarcz e Starling (2018), esse movimento romântico não foi apenas estético, mas também cultural e político, ligado ao ideal de nação. Durante o século XIX tivemos ainda um forte movimento indigenista na literatura, capitaneado por José de Alencar, que lançou os romances Iracema e O guarani, este último publicado inicialmente em folhetim de jornal. Desprendidas dos cânones literários portugueses, as obras contavam com paisagens tropicais, sincretismo religioso, línguas diversas e mistura de povos, simbolizando a nação.

A primeira missa se insere então nesse contexto, em busca de uma origem para a nação brasileira. Mais do que isso, ela está no centro dessa história, pois, como aponta Didi-Huberman (2015, p. 130)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., “na imagem todos os tempos dos quais é feita a história ‘se telescopam’ e disjuntam”. Todavia, isso não quer dizer que A primeira missa é um retrato daquilo que ela representa — a saber, o encontro entre portugueses cristãos e indígenas pagãos —, mas sim que ela cristaliza as histórias que se dispersam ao redor dela naquele momento histórico e o modo de conceber uma busca para a origem de uma nação. Sendo assim, devemos nos perguntar o que levou a retratar aquela passagem da história do Brasil naquele momento e como essa imagem está no centro de outros movimentos históricos que nela se telescopam. Como vimos, A primeira missa não está sozinha nem foi pintada por acaso. Ela é o encontro pacífico do colonizador e seu estilo europeu com a inocência indígena e a paisagem tropical. A própria carta de Caminha se junta ao sentido dado a essa origem procurada, afinal, a missiva ficou perdida por quase três séculos nos arquivos da Torre do Tombo, em Portugal, tendo sido descoberta apenas em 1773 e publicada somente em 1817 (GATTI, 1997GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997.).

Sendo assim, A primeira missa no Brasil é a primeira imagem que fulgura nessa pequena genealogia proposta para pensar a passagem de O cemitério das almas perdidas. Esta funcionará como um contraponto à imagem de Rodrigo Aragão. Como um texto intermitente, a imagem de A primeira missa ressurge, no final da década de 1930, no filme de Humberto Mauro, O descobrimento do Brasil, desta vez se propondo a narrar toda a correspondência de Caminha.

O descobrimento do Brasil

O descobrimento do Brasil foi lançado em 1937, por encomenda do Instituto do Cacau da Bahia, e contou com apoio do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince). Dirigido e roteirizado por Humberto Mauro, o longa teve trilha-sonora de Heitor Villa-Lobos e assessoria de Afonso de Taunay, Edgard Roquette Pinto e Bernardino José de Souza, historiadores e antropólogos. O descobrimento do Brasil seguiu a toada de filmes educativos e históricos, que se pretendiam realistas e científicos, dispostos a falar de modo isento sobre determinado assunto. Busca reconstruir a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil tendo como norteadora a carta de Caminha ao rei de Portugal, Dom Manuel (LINO, 2001LINO, S. C. A história no cinema de Humberto Mauro: uma análise do filme “O descobrimento do Brasil” – 1937. In: Locus: Revista de História, v. 1, n. 7, p. 27-41, 2001. Disponível em: <https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20527.>. Acesso em: 15 set. 2021.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/loc...
).

Morettin (1999, p. 175)MORETTIN, E. V. Uma análise do filme Descobrimento do Brasil. In: Revista de História, n. 141, p. 175-178, 1999. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/18891>. Acesso em: 15 set. 2021.
https://www.revistas.usp.br/revhistoria/...
comenta que o filme de Mauro não pode ser visto apenas como uma peça de propaganda do governo de Getúlio Vargas, todavia, a obra “faz parte de um amplo cenário cultural que buscava legitimar simbolicamente o regime de Getúlio Vargas, visto como responsável pela consolidação do Estado Nacional”. Assim como a obra de Meirelles reúne o imaginário de um tempo que buscava construir uma origem harmoniosa e rica para a nação brasileira, o filme de Mauro funciona na mesma óptica na década de 1930, destacando a recepção calorosa dos indígenas às caravelas portuguesas, bem como a chegada da ciência e da fé cristã ao território americano, pontos bem demarcados pelas cenas do longa, que priorizam sempre a imagem de portugueses compenetrados com bússolas e tecnologias navais, ao mesmo tempo que se mostram devotos dedicados e com fé.

Assim como no caso de A primeira missa, o tema nacionalista que se desenvolve em O descobrimento do Brasil não se deve apenas ao período político, mas também cultural e artístico. Se, por um lado, o filme é lançado na mesma época em que os livros Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, que animam o debate acadêmico em torno dessa temática; por outro, O descobrimento do Brasil acompanha a movimentação modernista, que se consolidava na mesma década, propondo uma nova estética para a arte brasileira. Como propõe Trevisan (2011)TREVISAN, A. R. Velhas imagens, novos problemas: a redescoberta de Debret no Brasil modernista (1930-1945). 2011, 386 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., o modernismo brasileiro se afinava com o avanço industrial do país, ao contrário dos movimentos de vanguarda europeus, que negavam a arte do passado, ele buscava nesta uma coesão para a arte nacional. Não por acaso, como Trevisan (2011)TREVISAN, A. R. Velhas imagens, novos problemas: a redescoberta de Debret no Brasil modernista (1930-1945). 2011, 386 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. percebe em sua tese, é nesse período que a arte de Jean-Baptiste Debret é redescoberta4 4 Trevisan (2011) demonstra que o trabalho de Jean-Baptiste Debret ficou por muito tempo sem obter sucesso, nem no Brasil (país onde morou por muito tempo e ao qual dedicou suas pinturas) nem na França (sua terra de origem e onde lançou o livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, contendo suas pinturas sobre o país e sua sociedade). Debret foi esquecido até ser, aos poucos, recuperado no começo do século XX, culminando em seu grande resgate na década de 1930. .

Assim como os modernistas buscaram em Debret e na arte indigenista do século XIX suas inspirações para o ideal de nação, Mauro buscou em Meirelles e Caminha a rota de composição e narrativa para seu O descobrimento do Brasil. Nesse sentido, “antigas verdades históricas ajudarão a cristalizar novas verdades” (LINO, 2001LINO, S. C. A história no cinema de Humberto Mauro: uma análise do filme “O descobrimento do Brasil” – 1937. In: Locus: Revista de História, v. 1, n. 7, p. 27-41, 2001. Disponível em: <https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20527.>. Acesso em: 15 set. 2021.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/loc...
, p. 40), como a ideia de descobrimento como ato fundador da nação e unificador dos povos por meio da cristianização e da colonização portuguesa.

É próximo ao final do filme que, após tanta preparação, a cruz é erguida, em retrato produzido em homenagem direta a Meirelles (Figura 3). Mais de 75 anos depois, as imagens de Meirelles ganharam vida pelo movimento de Mauro.

Figura 3
O descobrimento do Brasil

A busca pela origem retorna, porém, em contexto diferente, como assinala Lino (2001)LINO, S. C. A história no cinema de Humberto Mauro: uma análise do filme “O descobrimento do Brasil” – 1937. In: Locus: Revista de História, v. 1, n. 7, p. 27-41, 2001. Disponível em: <https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20527.>. Acesso em: 15 set. 2021.
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, criando novas verdades históricas para aquele período. Todavia, arriscaríamos dizer que a imagem de Mauro não desmonta a história. Não porque não seja crítica, mas porque sua repetição é demasiado próxima da imagem de Meirelles, colocando-se apenas como uma curiosidade em movimento da obra de 1861. Esse retorno acaba reafirmando a potência de relâmpago do quadro de Meirelles, que ilumina aquele momento, mas não desmonta a história. Ao contrário dos modernistas, a visão de Mauro é demasiadamente calcada no século XIX. Sintomática é a recepção da obra na ocasião de seu lançamento, pouco celebrada no Brasil e muito elogiada em Portugal (SCHVARZMAN, 2000SCHVARZMAN, S. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. 2000, 481 p. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.).

Nesse sentido, os retornos desse tema na própria arte parecem mais interessantes. A começar por A primeira missa no Brasil, de Cândido Portinari, produzida em 1948 (figura 4). Couto (2008)COUTO, M. F. M. Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 17, p. 159-171, jul.-dez. 2008. destaca que Portinari via a arte como instrumento educativo, questão que percebemos ser recorrente nos movimentos aqui citados. Todavia, Portinari produz sua obra adotando soluções antinaturalistas, com formas abstratas. Ao contrário de Meirelles, em sua missa não há índios, apenas europeus.

Figura 4
A primeira missa no Brasil

Terra em transe

Curiosamente, Portinari parece ter indicado o caminho para uma imagem que desmonta a história por meio da forma. Ao mesmo tempo que se afastou do naturalismo, o pintor apresentou sua arte modernista que demonstrava uma primeira missa composta de europeus. Foi o que notou o crítico Mário Pedrosa, em sua coluna no jornal Correio da Manhã:

Enquanto a versão de Vitor Meirelles [era] nitidamente naturalística, subordinada à realidade histórica, a detalhes pitorescos da natureza, com índios espantados em volta […] em Portinari, essa suposta realidade histórica não existe. Tampouco preocupa-se ele com as descrições da carta de Pero Vaz, com o pitoresco intrínseco à cena, paisagens e personagens coloridas, mataria tropical densa, selvagens nus ou seminus, de cocares e penas, bichos

(PEDROSA in COUTO, 2008COUTO, M. F. M. Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 17, p. 159-171, jul.-dez. 2008., p. 166).

O artista catarinense Glauco Rodrigues trabalhou em sentido parecido na sua obra de 1971. Em Carta de Pero Vaz de Caminha - 26 de abril de 1500, assim como Humberto Mauro, ele seguiu o relato português, porém dividindo-o em 26 partes, cada uma dedicada a um momento da correspondência. À sua maneira, Rodrigues tensionou essa percepção da ideia de nação, com pinturas misturando elementos e linguagens artísticas. Em sua versão de A Primeira Missa (figura 5), vemos indígenas desinteressados em primeiro plano, com portugueses alheios ao longe. Glauco transporta também para o quadro colagens de cartões-postais brasileiros da época e a imagem de uma mulher negra retirada de uma gravura de Debret. Todos esses elementos ganham contornos da arte pop em voga nos Estados Unidos (COUTO, 2008COUTO, M. F. M. Imagens eloquentes: a primeira missa no Brasil. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 17, p. 159-171, jul.-dez. 2008.).

Figura 5
Carta de Pero Vaz de Caminha – 26 de abril de 1500

O contexto de Rodrigues é outro e ele ataca por ouro lado. Estamos agora na ditadura civil-militar (1964-1985), que, a seu modo, novamente tenta encontrar um ideal de nação para o país. Os cartões-postais com índios eram comuns, na tentativa de vender ao exterior um Brasil coeso e que respeitava seus povos originários. Assim, os artistas dessa época buscavam repensar a posição da arte em relação ao imaginário da brasilidade, projeto que, como vimos, se estruturava no imaginário do país desde o século XIX, até o pensamento conservador que culminou no golpe militar de 1964.

No cinema, a imagem de A primeira missa no Brasil retorna através das lentes de Glauber Rocha, em seu Terra em transe, de 1967 (figura 6). No filme, acompanhamos fragmentos subjetivos das lembranças de Paulo, um jornalista que apoia o candidato progressista Vieira, que, depois de eleito, se mostra fraco e controlado por poderes econômicos que financiaram sua campanha. Desiludido, Paulo quer partir para a luta armada, porém não encontra apoio para tal. Lançado às portas do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o filme debate a crise da esquerda brasileira, de mãos atadas ao avanço nacionalista e militar.

Figura 6
Terra em transe

Ismail Xavier (2012) coloca Terra em transe como expressão da crise da teleologia do cinema de Glauber Rocha. Ou seja, se em Deus e o diabo na terra do sol, o cineasta enxergava no processo de reconhecimento de seu passado por parte do povo brasileiro a chave para construir um movimento de libertação em direção ao futuro, a decepção com o golpe, a imobilidade da esquerda e o aumento da repressão militar ecoam em Terra em transe como uma negação radical dessa teleologia. Poderíamos dizer então que Rocha deixa uma teleologia hegeliana de influência marxista — ou seja, um processo dialético que olha para a história pensando na construção de um movimento em direção ao futuro — para se aproximar de uma dialética da imagem benjaminiana, priorizando o choque entre passado e presente. Afinal, a imagem que o diretor busca de A primeira missa prioriza a dialética desse encontro, apresentado de modo irônico a desmontar a história por meio de sua alegoria carnavalesca.

Gatti (1997, p. 140), notou que esse filme se coloca em uma perspectiva diferente acerca da carta de Caminha, fato comum no cinema do autor: “O cinema de Glauber pode ser visto como um desafio a essa estética naturalista. A representação de eventos históricos em seus filmes expõe a montagem de fontes e leituras diferentes da história”. Aqui, as opções narrativas e estéticas se afastam do naturalismo para mostrar outra perspectiva dessa história. Constata-se que nesse movimento a contrapelo, a proposta estética se distancia do quadro de Meirelles, como se, para direcionar o olhar para outra perspectiva, fossem necessárias uma linguagem distinta e uma estética específica.

Na cena de Glauber, temos o político conservador Porfírio Díaz (Paulo Autran) carregando a cruz solenemente e realizando a missa. Ele está acompanhado por um padre e um navegador português, carregando uma bandeira preta. Eles se encontram então com um índio vestido de modo carnavalesco — e não nu, como se lia na carta de Caminha e se via no quadro de Meirelles (GATTI, 1997GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997.) — e celebram a missa. A mistura das roupas evidencia esse encontro entre diferentes imagens e tempos da história. Além disso, é Díaz quem ergue o cálice e bebe o vinho diante da cruz, representando a tomada de poder dos poderosos conservadores capitalistas em detrimento de seus representantes do passado, o padre e o navegador, figuras centrais no filme de Humberto Mauro. Como Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997. conclui, “A Terra em Transe de Glauber questiona a Carta de Caminha, rejeita a Missa de Meirelles e abre um outro modo de fazer cinema e história”, ou seja, desmonta a história por meio da imagem aqui colocada. Essa mudança de perspectiva, que rejeita uma teleologia e o nacionalismo cinemanovista (XAVIER, 2012XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. 1. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.), é fundamental, a nosso ver, para uma proposta dialética de leitura da história e das imagens do passado.

Enquanto as propostas estéticas buscavam corroborar uma narrativa que desse coesão à ideia de nação, o tom naturalista ajudava a criar uma história e uma origem fantasiosa. Em contraponto, a partir do momento em que esses cânones passaram a ser questionados, as imagens criadas para essas novas origens mudaram, como aponta Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997. em relação ao cinema de Glauber Rocha. Uma nova história precisa de uma nova imagem.

Esta reinterpretação alegórica/histórica de Terra em Transe está também distante da revisão promovida por autores progressistas, que têm se aplicado na reescritura da história do Brasil não mais como o ponto de vista das autoridades coloniais ou a presente classe dominante, mas como o resultado da dominação econômica e das lutas políticas. Daí a mudança de tom narrativo, no sentido de fazer ouvir vozes relegadas à subalternidade. Mas são poucos os trabalhos que têm proposto alternativas para os formatos convencionais e lineares das narrativas cronológicas da academia

(GATTI, 1997GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997., p. 141).

As imagens de Meirelles e Mauro são produzidas pelo pacto entre intelectuais e Estado, artistas e governos na busca por um ideal de nação e por meio de uma suposta orientação educativa. A diretora cinematográfica Ana Carolina abordou frontalmente essas problemáticas em seu filme A primeira missa ou tristes tropeços, enganos e urucum (2014), que tem como enredo uma equipe que tenta fazer um filme com base no quadro de Meirelles, mas se vê constantemente impedida por executivos e funcionários do Estado, que se intrometem para redefinir os rumos da história. Dessa forma, A primeira missa se coloca de certo modo como um filme impossível, focado na comédia absurda de algumas situações — intromissões de funcionários do governo na produção da obra, atores brancos fazendo papéis de indígenas, executivos estrangeiros querendo que o filme seja feito no exterior etc. Portanto, a afirmação de Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997., de que são poucas as alternativas propostas até então para se reinterpretar essas histórias, encontrou a resposta de Ana Carolina anos depois. A diretora demonstra que é possível reinterpretar esse momento de modo alternativo, com novas possibilidades narrativas e críticas. Todavia, seu estudo metalinguístico dá ainda mais fôlego à questão, visto que, na trama, A primeira missa se torna esse filme constantemente sabotado. Com base nisso, nos perguntamos: a imagem de horror pode ser um contraponto às imagens até então apresentadas como representantes do descobrimento do Brasil e da ideia de nação? Teriam elas essa potência de desmontar a história, como nos questionamos no começo deste artigo? Ana Carolina se junta a Glauber Rocha para apontar o caminho: é pela alegoria, pela fantasia e pelo absurdo que essa história pode ser recontada. É justamente no irreal que podemos evidenciar a atualização da história, ou seja, algo que se contrapõe diretamente à estética naturalista5 5 A primeira missa ou tristes tropeços, enganos e urucum se passa todo em um cenário de estúdio, onde o falso se destaca, sem nenhum compromisso com o naturalismo. . Aragão propõe, então, as imagens do horror, que apontam perspectivas distintas da história sob outra forma.

O cemitério das almas perdidas

A primeira questão que deve ser elucidada é quanto à forma. Apesar de não trabalhar de maneira alegórica como Rocha, O cemitério das almas perdidas tem uma narrativa não linear, que salta no tempo, apresentando imagens intermitentes ligadas pelos sonhos do protagonista Jorge (Diego Garcias), que tem sua linha narrativa no presente, com Ayra (Allana Lopes), indígena sequestrada pelos portugueses na linha narrativa do passado. Sendo assim, o filme parte sempre das imagens, do movimento dialético entre presente e passado, para conceber seus fragmentos de imagens intermitentes. No texto já aqui citado, Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. defende que a teoria da história de Benjamin alcança ainda pontos não explorados por outros historiadores que negaram o progresso histórico e o positivismo (Marc Bloch é o exemplo), justamente por trazer ao jogo a memória e o inconsciente. Se modificamos o ponto de olhar e priorizamos o encontro subjetivo com os restos do passado que vem até nós não podemos lançar mão da memória e do inconsciente. Nesse sentido, Didi-Huberman descreve rapidamente a rede, exemplo freudiano que sintetiza a ideia de que, ao acordarmos de um sonho, recolhemos apenas algumas lembranças dele, na medida em que outras nos fogem. Do mesmo modo, ao lançar uma rede no mar, pescamos peixes e os trazemos até nós, porém a água do mar se esvai e se afasta6 6 O autor se detém mais especificamente nessa alegoria em Diante da imagem (2013, p. 222-223). . Aragão repete esse processo em seu filme: Ayra é o passado que vem ao encontro de Jorge no presente por meio de seus sonhos. E é por meio dessas imagens, que centralizam a história, que conhecemos os restos que até nós chegaram.

Todavia, o principal contraponto ao naturalismo proposto por Aragão é justamente a escolha pelo gênero do horror para se trabalhar. Sendo assim, o conteúdo narrativo distingue-se do naturalismo de Mauro e da alegoria de Rocha de diferentes modos para redescobrir a história da chegada dos portugueses ao Brasil e o encontro entre diferentes povos e credos.

Nesse sentido, podemos aprofundar ainda mais a inquietação de Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997. com base nas considerações de Cánepa (2016)CÁNEPA, L. L. Configurações do horror cinematográfico brasileiro nos anos 2000: continuidades e inovações. In: CARDOSO, J. B. F.; SANTOS, R. E. (orgs.). Miradas sobre o cinema ibero latino-americano contemporâneo. São Caetano do Sul: USCS, 2016. p. 121-144. acerca do cinema de horror brasileiro contemporâneo. Em seu texto sobre esse panorama, a autora estabelece duas categorias que norteiam o gênero a partir da metade final da década de 1990. O horror militante, que começa a se desenvolver a partir dos anos 2000, e o horror social, que tem seu advento na década de 2010. O primeiro seria aquele feito de modo independente, produzido por fãs do gênero e voltado para pequenos nichos. Esses filmes se destacam pela baixa produção e contraposição ao cinema mainstream, priorizando uma estética do excesso e com baixíssimos orçamentos. Militante aqui se refere então à militância pelo gênero do horror como um cinema de borda. São exemplos dessa categoria: Entrei em pânico ao saber o que vocês fizeram na sexta-feira 13 do verão passado (2001), de Felipe Guerra; Mangue negro (2008), do próprio Rodrigo Aragão; e O monstro legume do espaço (1995), de Petter Baiestorf. Este último é um dos principais produtores do movimento, tendo inclusive escrito Manifesto canibal7 7 Nesse manifesto, Baiestorf se coloca contra o cinema financiado pelos cofres públicos e por aqueles que detêm o capital. Além disso, advoga por uma “estética do caos para, finalmente, poder flertar com a estética da falta de estética. Leia-se aqui: A opção por destruir todos os valores estéticos”, o uso de câmeras e atores amadores, bem como cenários e maquiagem caseiros ou conseguidos do lixo, além da distribuição e exibição da obra em quaisquer locais disponíveis e fora do eixo convencional. Disponível em: <https://canibuk.wordpress.com/2012/02/21/manifesto-canibal/>. Acesso em: 22 set. 2021. , defendendo novos valores estéticos e políticos dentro da produção, distribuição e exibição de filmes.

O horror militante se coloca como uma proposta estética que se contrapõe ao cinema comercial. Nele, a liberdade criativa é elevada ao máximo, com a proposta de “fazer qualquer filme/música/arte que sua criatividade permitir” (BAIESTORF, 2002BAIESTORF, P. Manifesto Canibal. Canibuk, 2002. Disponível em: <https://canibuk.wordpress.com/2012/02/21/manifesto-canibal/>. Acesso em: 22 set. 2021.
https://canibuk.wordpress.com/2012/02/21...
) com elementos amadores em contraponto aos cânones cinematográficos. Mangue negro é talvez o filme mais famoso desse filão, mas, como relembra Caetano (2019)CAETANO, L. P. A dança dos monstros em areias movediças: breve panorama do cinema de horror brasileiro nos anos 2010. In: Zanzalá, Revista Brasileira de Estudos de Ficção Científica, Juiz de Fora, v. 4, n. 1, p. 63-74, 2019., o realizador capixaba rejeita esse rótulo de cinema de guerrilha8 8 Cinema feito com poucos recursos e que pensa estratégias para a maximização destes na produção. . Não à toa, buscou editais e parcerias para fazer filmes com investimentos cada vez maiores. Todavia, apesar de se afastar um pouco mais a cada filme do horror militante, em O cemitério das almas perdidas, Aragão ainda permanece com uma estética do excesso, com diversas cenas gore, atores que o acompanham desde seus primeiros filmes9 9 A atriz Carol Aragão está em todos os filmes do diretor. e maquiagem desenvolvida pelo próprio diretor.

O horror social é aquele que pensa questões do cotidiano e embates sociais, políticos, trabalhistas e de classe. Quando escreveu seu texto em 2016, Cánepa fazia uma espécie de aposta que se confirmou nos anos seguintes. Para ela, o cinema de horror parecia ser a nova chave de leitura das tensões sociais da colonização brasileira, muito debatidas em outros momentos por meio de narrativas cômicas, policialescas, carnavalescas etc. Nos últimos anos, foram lançados diversos filmes do chamado horror social10 10 Depois desse apontamento de Cánepa (2016), foram lançados diferentes filmes que podem ser inseridos nessa categoria, tendo eles relativa repercussão entre público, críticas positivas e participações em festivais nacionais e internacionais. Alguns exemplos mais conhecidos são: As boas maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra; O animal cordial (2018), de Gabriela Amaral Almeida; Morto não fala (2019), de Dennison Ramalho; e O clube dos canibais (2019), de Guto Parente. Além destes, lançados posteriormente ao texto de Cánepa, a autora aponta A menina do algodão (2003), de Kléber Mendonça Filho; Trabalhar cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra; Quando eu era vivo (2014), de Marco Dutra. No mesmo ano do texto de Cánepa, Souto (2016) publicou sua tese “Infiltrados e invasores: uma perspectiva comparada sobre as relações de classe no cinema brasileiro contemporâneo”, que apresenta uma visão parecida sobre esse cinema de horror social no capítulo “Os invasores”, em que Souto analisa Trabalhar cansa e os conflitos de classe que ensejam narrativas sobrenaturais para pensar os medos que acompanham a classe média brasileira. , sendo O cemitério das almas perdidas, ao nosso ver, o encontro entre esse tipo de horror e o horror militante11 11 Em seu texto, Cánepa (2016) coloca o curta-metragem Ninjas (2010), de Dennison Ramalho, como uma síntese entre o horror militante e o horror social, justamente por trazer elementos das duas categorias. Acreditamos que O cemitério das almas perdidas siga o mesmo caminho, pelos motivos apontados no texto. . Por um lado, o filme se utiliza de uma estética do excesso, com cenas gore e narrativa que se coloca inteiramente no campo do horror. Ao mesmo tempo, trabalha a formação do Brasil por meio desses encontros violentos. Na linha do tempo de Ayra, temos o extermínio dos povos indígenas na formação do país e o apagamento de sua cultura por meio da catequização. De modo semelhante, na linha do tempo de Jorge temos a continuação desses conflitos. O protagonista e seus colegas de trabalho chegam a uma cidadezinha em sua caravana circense. No local, deparam com um grupo de religiosos fanáticos que os acusam de serem servos do demônio, sequestrando-os e levando-os ao cemitério que dá nome ao filme, onde os espíritos da primeira linha do tempo estão presos e demandam sacrifícios. Assim, o longa trabalha com a permanência dos conflitos religiosos e culturais, da violência contra o outro e da desconfiança com o diferente, além de reforçar o conflito de classe e as tensões sociais.

Diante do que é proposto por Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997., O cemitério das almas perdidas parece ser uma nova chave de leitura importante para se pensar as imagens dos eventos históricos. O filme de Aragão se contrapõe frontalmente às imagens de Meirelles e de Mauro na cena que destacamos aqui. Tal passagem é rápida, quase imperceptível, ao contrário das composições do pintor do século XIX e do cineasta da década de 1930. Enquanto Meirelles usa o naturalismo e a luz para construir uma imagem de esplendor do momento em que Frei Henrique de Coimbra ergue seu cálice diante da cruz e, Mauro prepara todo seu filme para o momento em que repetirá a pintura de Meirelles, dessa vez em movimento, a imagem de Aragão age como uma pequena fissura que danifica o fulgor das poderosas imagens anteriores. Sua escolha é pelo gesto escamoteado, no escuro, ao contrário da iluminação do sol a pino. Agora é a espada que faz as vezes da cruz. Ela está enterrada no corpo de um indígena, atacado de surpresa durante a noite por portugueses que tomam de assalto seu território. Do mesmo modo, essa imagem se contrapõe à A primeira missa porque busca iluminar o canto escuro do quadro, o dos indígenas. Benjamin alertava que a imagem que vem até nós como relâmpago ilumina o centro e cria sombras fugidias nas bordas (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.). É preciso então fazer o jogo duplo proposto por Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.. Se a imagem que desmonta nos tira o chão, nos atinge como um relâmpago atinge o cavaleiro, é preciso desmontar o tempo em outro sentido, ou seja, pará-lo, abrir o relógio e entender os mecanismos que o norteiam. É precisamente o que Aragão faz. Se em A primeira missa o sol ilumina o centro do quadro, a cruz e a figura de Frei Henrique a levantar o cálice enquanto os índios estão à sombra, a passagem de Aragão busca essa imagem a contrapelo, inserindo sua ação na noite, nas sombras, transformando a cruz em espada cravada no peito de um indígena. Ao apontar sua câmera para as sombras do quadro de Meirelles, Aragão encontrou as imagens eclipsadas dessa história.

Ao mesmo tempo, esse novo retorno da imagem de A primeira missa difere das propostas feitas durante a ditadura civil-militar apresentadas aqui, visto que não trabalha a alegoria e o carnavalesco. A perspectiva agora é outra, por se dar por meio do gênero do horror, que, atualmente, se apresenta como mais uma forma de se pensar as relações na construção do país (CÁNEPA, 2016CÁNEPA, L. L. Configurações do horror cinematográfico brasileiro nos anos 2000: continuidades e inovações. In: CARDOSO, J. B. F.; SANTOS, R. E. (orgs.). Miradas sobre o cinema ibero latino-americano contemporâneo. São Caetano do Sul: USCS, 2016. p. 121-144.; SOUTO, 2016SOUTO, M. Infiltrados e invasores: uma perspectiva comparada sobre as relações de classe no cinema brasileiro contemporâneo. 2016, 208 p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.). No caso de Aragão, tais questões são constantemente entrecruzadas pela cultura popular brasileira. Ao mesmo tempo que seu cinema é político, focado em críticas sociais e ambientais, ele se passa em regiões específicas da geografia brasileira, como o mangue e a floresta tropical. Como percebeu Lima (2019)LIMA, R. G. O terror no cinema brasileiro contemporâneo: uma abordagem monadológica de Trabalhar cansa e Mangue negro. 2019, 148 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2019., o diretor constrói uma brasilidade por meio de seus personagens, que funcionam como construtos de personas tipicamente brasileiras, como o pescador do mangue, ao mesmo tempo que trabalha com essas regiões muito específicas, além de povoados e lendas locais. Sendo assim, O cemitério das almas perdidas funciona também como um ponto de virada na filmografia do diretor capixaba, visto que ele deixa suas narrativas centradas em localidades e com foco em lendas e personagens regionais para pensar a ideia de nação brasileira.

Desta feita, o filme é sintomático, pois representa o encontro dessas duas vertentes estéticas, narrativas e políticas do cinema de horror brasileiro atual. Ao mesmo tempo, sua imagem desmonta a história, pois surge em outro momento da história da (des)unificação de nossa nação. Enquanto A primeira missa no Brasil e O descobrimento do Brasil buscavam a redenção de uma origem fantasiosa para o país, Terra em transe mostra-se como contraponto alegórico e carnavalesco para a ruptura violenta do pacto democrático. No mesmo sentido, O cemitério das almas perdidas demonstra a falha da conciliação promovida pelos recentes governos de centro-esquerda com o golpe de 2016, que ensejou o conflito que culmina nos tempos atuais. Com um projeto de nação que falhou mais uma vez, o olhar se volta para o horror e para o conflito. Entre a cruz e a espada, o cinema de horror oferece um novo olhar.

Considerações finais

Neste texto buscamos demonstrar como a imagem de horror de O cemitério das almas perdidas pode ser uma nova forma de leitura para se entender os conflitos históricos e sociais do Brasil. Por meio de uma pequena passagem do filme, utilizamos como base a noção de Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. de imagem que desmonta a história, proposta por uma prerrogativa benjaminiana, para abrir o debate sobre as diferentes representações históricas e artísticas da imagem da primeira missa no Brasil.

Nesse sentido, cremos haver dois grupos diferentes. No primeiro, enquadram-se a pintura A primeira missa no Brasil (1859-1861), de Victor Meirelles, e o filme O descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. Ambos trazem imagens que constroem e reafirmam o ideal de nação buscado pelo governo do Segundo Reinado do século XIX e pelo nacionalismo getulista da década de 1930, respectivamente. Nessas obras, percebemos que o naturalismo é a opção estética escolhida para buscar essa origem idealizada da nação. Do mesmo modo, são imagens que condensam, por meio de parcerias com projetos políticos de educação, momentos históricos que buscavam uma coesão nacional.

No segundo grupo, com base em Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997., identificamos em Terra em transe a mudança de abordagem da primeira missa. Ao rejeitar a obra de Meirelles e ironizar os retratos de Caminha e Mauro, o diretor cinemanovista estabelece, por meio da alegoria, uma nova abordagem dessas imagens e processos históricos, seguida por Ana Carolina, que aposta na metalinguagem e na comédia absurda para retratar o ideal construído de nação. Assim como eles, o artista plástico Glauco Rodrigues, em sua Carta de Pero Vaz de Caminha – 26 de abril de 1500, de 1971, propõe outra versão da primeira missa, destacando as contradições desse ideal de nação.

Com base na afirmação de Gatti (1997)GATTI, J. (Re)Descobrimento do Brasil. In: Revista Famecos, Porto Alegre, n. 7, p. 134-141, nov. 1997. de que, além de Glauber, são poucas as alternativas propostas até então para se reinterpretar essas histórias, identificamos no movimento cinematográfico de horror uma nova possibilidade, centralizada na imagem de O cemitério das almas perdidas, que desmonta a história, afinal, ao mesmo tempo que questiona as imagens de outrora, propõe iluminar questões ainda não resolvidas do passado brasileiro, ressoando no momento de conflitos sociais e políticos em que o filme é produzido.

  • 1
    Trabalharemos aqui com o conceito de desmontar (démonter) de Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. para pensar as imagens e suas relações com a história. Aprofundaremos o conceito durante o texto, mas, de antemão, gostaríamos de esclarecer algumas coisas, de modo a facilitar a leitura e não causar confusões ao leitor. Primeiro, o termo serve para pensar um jogo duplo, num sentido em que as imagens desmontam a história, como num quebra-cabeça que está sempre a se atualizar, em que a ação parte das imagens, tomando a história como objeto; em outros momentos, porém, é a história que propõe a ação sobre si e sobre as imagens, desmontando-se e reconfigurando-se. Outro ponto importante é que esse conceito não tem valor ético, ou seja, não devemos pensá-lo no sentido que correntemente se pensa atualmente o desmonte da educação ou o desmonte da ciência, por exemplo. Desmontar aqui é uma estratégia metodológica para se pensar a relação entre imagens e história.
  • 2
    É precisamente essa a análise que Benjamin (2012)BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. faz da obra Angelus novus, de Paul Klee, na nona tese: o anjo da história que olha com horror os destroços do passado ao mesmo tempo que é impelido pelo sopro do progresso em direção ao futuro.
  • 3
    A Academia Imperial de Belas Artes foi criada em 1826, quando o Império estava sob o comando de d. Pedro I. Todavia, só começou a funcionar regularmente a partir de d. Pedro II, que assumiu em 1831 (SCHWARCZ; STARLING, 2018SCHWARCZ, L.; STARLING, H. Brasil: uma biografia. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.).
  • 4
    Trevisan (2011)TREVISAN, A. R. Velhas imagens, novos problemas: a redescoberta de Debret no Brasil modernista (1930-1945). 2011, 386 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. demonstra que o trabalho de Jean-Baptiste Debret ficou por muito tempo sem obter sucesso, nem no Brasil (país onde morou por muito tempo e ao qual dedicou suas pinturas) nem na França (sua terra de origem e onde lançou o livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, contendo suas pinturas sobre o país e sua sociedade). Debret foi esquecido até ser, aos poucos, recuperado no começo do século XX, culminando em seu grande resgate na década de 1930.
  • 5
    A primeira missa ou tristes tropeços, enganos e urucum se passa todo em um cenário de estúdio, onde o falso se destaca, sem nenhum compromisso com o naturalismo.
  • 6
    O autor se detém mais especificamente nessa alegoria em Diante da imagem (2013, p. 222-223)______. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2013..
  • 7
    Nesse manifesto, Baiestorf se coloca contra o cinema financiado pelos cofres públicos e por aqueles que detêm o capital. Além disso, advoga por uma “estética do caos para, finalmente, poder flertar com a estética da falta de estética. Leia-se aqui: A opção por destruir todos os valores estéticos”, o uso de câmeras e atores amadores, bem como cenários e maquiagem caseiros ou conseguidos do lixo, além da distribuição e exibição da obra em quaisquer locais disponíveis e fora do eixo convencional. Disponível em: <https://canibuk.wordpress.com/2012/02/21/manifesto-canibal/>. Acesso em: 22 set. 2021.
  • 8
    Cinema feito com poucos recursos e que pensa estratégias para a maximização destes na produção.
  • 9
    A atriz Carol Aragão está em todos os filmes do diretor.
  • 10
    Depois desse apontamento de Cánepa (2016)CÁNEPA, L. L. Configurações do horror cinematográfico brasileiro nos anos 2000: continuidades e inovações. In: CARDOSO, J. B. F.; SANTOS, R. E. (orgs.). Miradas sobre o cinema ibero latino-americano contemporâneo. São Caetano do Sul: USCS, 2016. p. 121-144., foram lançados diferentes filmes que podem ser inseridos nessa categoria, tendo eles relativa repercussão entre público, críticas positivas e participações em festivais nacionais e internacionais. Alguns exemplos mais conhecidos são: As boas maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra; O animal cordial (2018), de Gabriela Amaral Almeida; Morto não fala (2019), de Dennison Ramalho; e O clube dos canibais (2019), de Guto Parente. Além destes, lançados posteriormente ao texto de Cánepa, a autora aponta A menina do algodão (2003), de Kléber Mendonça Filho; Trabalhar cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra; Quando eu era vivo (2014), de Marco Dutra. No mesmo ano do texto de Cánepa, Souto (2016)SOUTO, M. Infiltrados e invasores: uma perspectiva comparada sobre as relações de classe no cinema brasileiro contemporâneo. 2016, 208 p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. publicou sua tese “Infiltrados e invasores: uma perspectiva comparada sobre as relações de classe no cinema brasileiro contemporâneo”, que apresenta uma visão parecida sobre esse cinema de horror social no capítulo “Os invasores”, em que Souto analisa Trabalhar cansa e os conflitos de classe que ensejam narrativas sobrenaturais para pensar os medos que acompanham a classe média brasileira.
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    Em seu texto, Cánepa (2016)CÁNEPA, L. L. Configurações do horror cinematográfico brasileiro nos anos 2000: continuidades e inovações. In: CARDOSO, J. B. F.; SANTOS, R. E. (orgs.). Miradas sobre o cinema ibero latino-americano contemporâneo. São Caetano do Sul: USCS, 2016. p. 121-144. coloca o curta-metragem Ninjas (2010), de Dennison Ramalho, como uma síntese entre o horror militante e o horror social, justamente por trazer elementos das duas categorias. Acreditamos que O cemitério das almas perdidas siga o mesmo caminho, pelos motivos apontados no texto.

Referências

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  • CÁNEPA, L. L. Configurações do horror cinematográfico brasileiro nos anos 2000: continuidades e inovações. In: CARDOSO, J. B. F.; SANTOS, R. E. (orgs.). Miradas sobre o cinema ibero latino-americano contemporâneo São Caetano do Sul: USCS, 2016. p. 121-144.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2022
  • Aceito
    17 Jul 2022
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