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Expansão da radiodifusão: uma análise da política de outorgas do governo Bolsonaro

Expansion of broadcasting: an analysis of the granting policy of Bolsonaro government

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar a política de outorgas do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), com base em um levantamento, feito pelo autor, dos atos relativos às 5.072 novas estações, publicados nas edições do Diário Oficial da União (DOU) nesse período. Por meio dessa base de dados, que teve como referência fonte primária, verificou-se (a) a necessidade de avanços em critérios objetivos para novas outorgas; (b) a preponderância de novas estações relacionadas ao processo de digitalização da TV; (c) o aumento significativo de consignações da União; e (d) a pouca ênfase dada aos serviços de radiodifusão comunitária e educativa.

Palavras-chave
radiodifusão; outorgas; governo Bolsonaro; TV digital

Abstract

The objective of this paper is to analyze the granting policy of the Jair Bolsonaro’s government (2019-2022), based on a survey, carried out by this paper’s author, about the acts related to the 5,072 new stations, published in the editions of the Diário Oficial da União (DOU) in this period. Based on this database, which had a primary source as a reference, it was noticed (a) a need for advances in objective criteria for new grants; (b) a preponderance of new stations related to the TV digitization process; (c) a significant increase in grants for the State; and (d) a lack of emphasis given to community and educational broadcasting services.

Keywords
broadcasting; grants; Bolsonaro government; digital TV

Introdução

Caso vencesse a eleição presidencial em 2018, Jair Bolsonaro declarou que governaria com no máximo 15 ministérios (G1, 2018G1. Bolsonaro diz que eventual governo terá ‘no máximo’ 15 ministérios. G1, 5 out. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/05/bolsonaro-diz-que-eventual-governo-tera-no-maximo-15-ministerios.ghtml>. Acesso em: 11 jan. 2023.
https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2...
), escolhidos por critérios técnicos (JORNAL NACIONAL, 2018JORNAL NACIONAL. Bolsonaro diz que, se eleito, a escolha de ministros seguirá critérios técnicos. G1, 20 out. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/20/jair-bolsonaro-defende-reforma-politica-e-fim-da-reeleicao.ghtml>. Acesso em: 11 jan. 2023.
https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2...
). Quatro anos depois, declarou que a alma do governo federal “não tem indicação política para ministérios, bancos oficiais e estatais” (GAZETA DO POVO, 2022GAZETA DO POVO. Bolsonaro diz que “alma” do governo “não tem indicação política” para ministérios e estatais. Gazeta do Povo, 26 ago. 2022. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/bolsonaro-alma-do-governo-nao-tem-indicacao-politica-ministerios/>. Acesso em: 10 jan. 2023.
https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes...
).

A promessa de poucos ministérios significou, no campo das comunicações, a manutenção da estrutura herdada do governo anterior, ou seja, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), coabitado por áreas diversas. Assumiu-o Marcos Pontes, primeiro (e único até aqui) astronauta brasileiro, candidato a mandatos eletivos anteriormente e, em 2022, eleito senador da República pelo estado de São Paulo.

Em 10 de junho de 2020 — cerca de um ano e meio depois do início de seu governo —, Bolsonaro anunciou a recriação do Ministério das Comunicações (MC), desmembrando-o do MCTIC. Até o fim de 2022, permaneceu como titular do cargo Fábio Faria, deputado federal em seu quarto mandato (no momento da escolha, pelo PSD e, depois, pelo PP) e membro de tradicional família no cenário político do Rio Grande do Norte. Na época da sua nomeação, parte da imprensa apresentou-o como genro de Silvio Santos, dono do SBT, e apontou, ainda, a relação do novo ministro com emissoras de rádio controladas por parentes (FRAZÃO, 2020FRAZÃO, F. Na herança familiar de Fábio Faria, rádios e política. Estadão, 12 jun. 2020. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/politica/na-heranca-familiar-de-fabio-faria-radios-e-politica/>. Acesso em: 11 jan. 2023.
https://www.estadao.com.br/politica/na-h...
).

Assim, durante os quatro anos do governo Bolsonaro, a radiodifusão foi setor acompanhado ora pelo MCTIC, ora pelo MC recriado. Esse acompanhamento diz respeito a uma série de atividades, entre as quais outorgar novas estações, competência associada a uma possível ampliação da diversidade e do pluralismo na comunicação de massa.

Este artigo objetiva analisar a política de outorgas de radiodifusão do governo Bolsonaro, com base em levantamento feito pelo autor das publicações realizadas nas edições regulares do Diário Oficial da União em cada dia desse período. A leitura de cada edição, dia após dia, foi necessária (a) porque toda nova outorga deve ser publicada no DOU para ter validade; (b) para se constituir base de dados fidedigna por meio de fonte primária de registros oficiais; e (c) porque o MC não reúne, em seu site, de forma consolidada, a lista de todas as outorgas do período com todas as informações necessárias à análise aqui desenvolvida. Acompanhei as publicações de novas outorgas até a primeira quinzena de 2023, já que alguns atos praticados ainda durante o governo Bolsonaro poderiam ser publicados nos primeiros dias do novo governo.

Como a própria expressão evidencia, novas outorgas são atos por meio dos quais o Poder Executivo federal reconhece uma nova entidade apta a prestar determinado serviço de radiodifusão. Importante reconhecer que esse recorte exclui, portanto, dois atos corriqueiros do MC. O primeiro é a oficialização de emissoras já outorgadas para operação na faixa de onda média e aptas a migrar para a frequência modulada, procedimento conhecido como migração AM/FM e regulamentado pelo decreto nº 8.139, de 7 de novembro de 2013, e instrumentos normativos subsequentes. O segundo, conhecido por consignação de par digital, é o ato por meio do qual o MC reconhece que dada geradora ou retransmissora de TV analógica pode iniciar sua operação na plataforma digital.

Além da introdução e da conclusão, este artigo divide-se em duas seções. Na próxima, serão abordados o que identifiquei como elementos centrais à política de outorgas de radiodifusão no governo Bolsonaro. Depois, será avaliado o quadro geral das outorgas, com base no levantamento já mencionado e nos elementos anteriormente debatidos.

Elementos centrais da política de outorgas do período

É possível refletir sobre a política de outorgas do governo Bolsonaro com base em três elementos centrais: (a) tensão entre discricionariedade e objetividade; (b) (falta de) estímulo à diversidade, aqui recortada exclusivamente como a abertura do segmento de radiodifusão a novos atores; e (c) digitalização da TV.

Ao longo das últimas décadas, diversos estudos apontaram a discricionariedade nas outorgas de radiodifusão como elemento central à conquista de apoio a propostas do governo federal. Já se revelou que, durante a Assembleia Nacional Constituinte, 91 parlamentares receberam outorgas de radiodifusão, dos quais 90% votaram a favor de um mandato de cinco anos para o então presidente da República e da adoção do regime presidencialista (MOTTER, 1994MOTTER, P. O uso político das concessões das emissoras de rádio e televisão no governo Sarney. Comunicação & política, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 89-116, 1994.). Às vésperas da votação da emenda constitucional que garantiu a possibilidade de reeleição do presidente da República, já na década de 1990, houve um aumento substancial de outorgas de retransmissoras de TV (RTV), que teriam contemplado principalmente 25 parlamentares; prefeituras administradas em grande parte por partidos da base aliada; e redes de TV religiosas. Os parlamentares votaram a favor da emenda constitucional mencionada (COSTA; BRENER, 1997COSTA, S.; BRENER, J. Coronelismo eletrônico: o governo Fernando Henrique e o novo capítulo de uma velha história. Comunicação & política, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 29-53, 1997.). Mais recentemente, verificou-se aumento no volume de outorgas, durante o governo Temer, às vésperas da apreciação pela Câmara dos Deputados da possibilidade de abertura de processo que poderia ter culminado em seu impeachment (PIERANTI, 2019______. Expansão da radiodifusão: uma análise das 1.833 outorgas do governo Temer. Galáxia, v. 42, p. 202-215, 2019.).

Além dessas, pesquisas diversas já apontaram que a discricionariedade na decisão sobre outorgas é prática que percorre indistintamente a história da radiodifusão no país (HERZ, 1988HERZ, D. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Tchê! Editora Ltda., 1988.; CAPARELLI, 1989CAPARELLI, S. Ditaduras e indústrias culturais no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai (1964-1984). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1989.; JAMBEIRO, 2002JAMBEIRO, O. A TV no Brasil do século XX. Salvador: EdUFBA, 2002.; MATTOS, 2002MATTOS, S. História da televisão brasileira: Uma visão econômica, social e política. 2. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.; RAMOS, 2005RAMOS, M. C. A força de um aparelho privado de hegemonia. In: BRITTOS, V. C.; BOLAÑO, C. R. S. (orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. são Paulo: Paulus, 2005. p. 57-76.). Mais recentemente, novo estudo considerou que quase 70% dos decretos editados durante o governo Bolsonaro sobre a radiodifusão poderiam ser enquadrados como medidas de “fortalecimento e modernização da radiodifusão empresarial” (SOUTO; DEL BIANCO, 2022SOUTO, A. C. M.; DEL BIANCO, N. R. Política para a radiodifusão no governo Jair Bolsonaro: do discurso liberal aos indícios de captura do Estado. RuMoRes, v. 16, n. 32, p. 107-128, dez. 2022. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/200122/190080>. Acesso em: 11 jan. 2023.
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, p. 13).

A discricionariedade tradicional nesse setor começou a ser limitada a partir de 2011, quando, durante o governo de Dilma Rousseff, foram editados regulamentos que estabeleceram a obrigatoriedade de realização de processos seletivos e definiram critérios objetivos para a decisão desses processos no caso de novas emissoras de radiodifusão educativa e de retransmissoras de TV, além de terem redefinido os critérios para outorga de radiodifusão comunitária (PIERANTI, 2017PIERANTI, O. P. políticas Públicas de Radiodifusão no Governo Dilma. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Comunicação, 2017. Disponível em: <https://faclivros.files.wordpress.com/2017/09/faclivros_politicasradiodifusaogovdilma.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2023.
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). Desde então, novos regulamentos desses serviços continuaram prevendo os processos seletivos e critérios objetivos para a definição das entidades contempladas.

Há, porém, problemas relacionados a essas dinâmicas. Um deles diz respeito à fixação de critérios para definir quais municípios serão contemplados nos processos seletivos — ou seja, onde haverá novas emissoras ou retransmissoras. Essa definição ainda é pautada pela subjetividade. Cite-se o exemplo, no último ano do governo Bolsonaro, de outorgas para retransmissoras de TV. Vale lembrar que esse serviço é conferido por meio de outorga precária e gratuita e objetiva apenas a retransmissão de programações (salvo na Amazônia Legal e em Fernando de Noronha, onde é possível inserir parte de conteúdo localmente). Em 31 de janeiro de 2022, o Ministério das Comunicações publicou aviso de chamamento público contemplando a possibilidade de novas RTVs em oito municípios, dos quais três capitais de estados, Rio Branco, Teresina e São Luís; um segundo edital, publicado em 13 de dezembro, incluiu cinco municípios em nova lista, entre eles São Paulo. Este segundo chama ainda mais atenção por ter sido publicado no fim do ano, sem qualquer urgência e já sendo conhecido o resultado eleitoral que provavelmente promoveria mudanças nas políticas públicas para a radiodifusão.

Mesmo sob a perspectiva dessas, a decisão do ministério é passível de questionamentos e críticas. O órgão poderia ter reservado os canais disponíveis para outorgas de emissoras de TV educativa, conferindo maior capilaridade a esse serviço. Ou poderia ter optado por promover licitações onerosas para novas geradoras de TV privadas — quanto teria rendido à União uma nova outorga de TV em São Paulo, município brasileiro mais populoso? No entanto, o Ministério das Comunicações, a despeito de provável viabilidade econômica para licitação de novas estações em todos esses municípios, optou por um serviço com outorga precária, gratuita e que apenas retransmite programações. Por quê?

Outro problema, neste caso, são os próprios critérios objetivos fixados para a definição dos vencedores nesses processos seletivos. Caso haja mais de uma entidade concorrente e todas apresentem documentação regular, o primeiro critério de desempate favorece a estação que tiver o mesmo canal do edital atribuído a ela como canal de rede no estado. Conforme o decreto nº 10.401, de 17 de junho de 2020, para ter um canal de rede reconhecido pelo ministério, a entidade deve deter pelo menos três outorgas de geradora ou de RTV operando no mesmo canal no mesmo estado. Ou seja: o primeiro critério de desempate nos processos seletivos pode ser reconhecido como um prêmio à concentração, já que prestigia entidades cuja rede já está minimamente formada no próprio estado contemplado.

O segundo elemento mencionado no início desta seção é o estímulo à diversidade. Também no governo de Dilma Rousseff, o Ministério das Comunicações passou a publicar Planos Nacionais de Outorgas (PNOs), que são listas com o conjunto de municípios que seriam contemplados, ao longo dos meses ou anos seguintes, com processos seletivos para novas outorgas de radiodifusão educativa e comunitária. Esses documentos são um compromisso público do governo federal com a possibilidade de novas outorgas e uma importante referência em termos de transparência e previsibilidade para entidades que porventura tenham interesse em prestar esses serviços nos municípios onde estão localizadas.

De 2011 a 2013, o Ministério das Comunicações, em dois PNOs para o serviço de radiodifusão comunitária, prometeu contemplar (e contemplou) 1.858 municípios em novos editais a serem publicados em três anos (PIERANTI, 2017PIERANTI, O. P. políticas Públicas de Radiodifusão no Governo Dilma. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Comunicação, 2017. Disponível em: <https://faclivros.files.wordpress.com/2017/09/faclivros_politicasradiodifusaogovdilma.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2023.
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). De 2018 a 2022, o mesmo órgão comprometeu-se com a inclusão de apenas 1.128 municípios em período maior — quatro anos —, ou seja, uma queda de aproximadamente 40%. O cenário da radiodifusão educativa (TV e rádio), por sua vez, é desolador: desde 2016, o Ministério das Comunicações não publicou um único edital sequer para novas outorgas desse serviço; os processos ainda em curso no órgão referem-se a processos seletivos iniciados no governo Dilma (PIERANTI, 2017PIERANTI, O. P. políticas Públicas de Radiodifusão no Governo Dilma. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Comunicação, 2017. Disponível em: <https://faclivros.files.wordpress.com/2017/09/faclivros_politicasradiodifusaogovdilma.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2023.
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).

O governo Bolsonaro optou, portanto, por restringir as possibilidades de diversidade no segmento de radiodifusão ao impossibilitar (no caso da radiodifusão educativa) ou limitar (radiodifusão comunitária) novas emissoras. Mais que isso, essa decisão gera consequências para o governo Lula, iniciado em janeiro de 2023. Afinal, como há menos processos seletivos em curso, tendem a existir poucas novas outorgas nos primeiros anos deste governo.

Por fim, o terceiro elemento central à política de outorgas do governo Bolsonaro diz respeito à digitalização da TV no Brasil. Essa política pública foi delineada em 2014, também no governo Dilma. Em suma, parte dos recursos dispendidos pelas maiores prestadoras de serviços de telecomunicações para uso da faixa de 700 MHz para oferta de internet móvel 4G foi reservada para a digitalização da TV. Foi constituída uma instância de governança, composta de representantes do ministério, da Anatel, das prestadoras e das entidades representativas da radiodifusão. Também foi criada uma entidade executiva, responsável pela gestão dos recursos utilizados para o fornecimento de equipamentos para as novas estações de TV que, antes, operavam na faixa de 700 MHz e de conversores para a recepção do sinal digital pela população mais pobre. A migração é considerada um caso de sucesso internacional, considerando-se, ao longo do tempo, a inexistência de problemas significativos tanto na transmissão, quanto na recepção dos sinais (UIT, 2019UIT. Report ITU-R BT.2140-12. 07/2019. Anex 1 – 2. Brazil, p. 173-181. Disponível em: <https://www.itu.int/dms_pub/itu-r/opb/rep/R-REP-BT.2140-12-2019-PDF-E.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2022.
https://www.itu.int/dms_pub/itu-r/opb/re...
).

Desde então, diferentes gestões mantiveram a implementação dessa política tal como definida anteriormente. Durante o governo Bolsonaro, houve uma inovação significativa: a criação do Programa Digitaliza Brasil, por meio da Portaria nº 2.524, de 4 de maio de 2021. Aproveitando recursos ainda disponíveis, o objetivo da iniciativa é promover a digitalização nos municípios que dispunham apenas de sinais analógicos, sem qualquer estação digital. Tratava-se, à época, de 1.638 municípios de pequeno porte, que juntos reúnem menos de 15% da população brasileira, onde provavelmente não haveria disponibilidade e/ou interesse financeiro de empresas e prefeituras para a digitalização dos sinais. Nesses casos, as prefeituras podiam se candidatar à parceria e, comprometendo-se com o fornecimento de terreno apropriado e alguns custos operacionais, receberiam uma estrutura de operação compartilhada para até oito canais digitais.

Pode-se argumentar que recursos públicos (provenientes de fontes privadas na licitação para uso de frequências, recurso escasso gerido pelo Estado) estão sendo utilizados para garantir a capilaridade de redes de emissoras de TV privadas. Por outro lado, entre esses canais, são reservados, em cada município, um para a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e outro para a Câmara dos Deputados, para que, caso queiram, possam expandir a cobertura respectivamente da TV Brasil e da Rede Legislativa.

No âmbito do objeto de estudo deste artigo, o Programa Digitaliza Brasil implicou em 4.445 novas outorgas, 87,5% de todas as expedidas no governo Bolsonaro, considerando-se todos os serviços de radiodifusão. A concepção do programa previa um rito acelerado de outorgas, tratadas em bloco. Na próxima seção deste artigo, em que será feita a análise das outorgas do período, dado o volume representado por esse programa, optou-se por destacar essa porcentagem.

Análise de outorgas do governo Bolsonaro

O governo Bolsonaro expediu 5.079 outorgas de serviços de radiodifusão, das quais 4.445 são retransmissoras de TV e consignações da União no âmbito do Digitaliza Brasil (87,5%) e outras 634 (12,5%) que não se enquadram neste programa. Destas, 91 foram expedidas pelo MCTIC e 543, pelo MC, depois da separação dos ministérios. Na tabela abaixo é apresentada a média diária de outorgas de radiodifusão, que permite uma comparação do governo Bolsonaro com a gestão anterior, bem como entre as diferentes fases desse governo:

Tabela 1
Média de outorgas de serviços de radiodifusão por dia.

A tabela revela mais uma evidência de como o Programa Digitaliza Brasil foi decisivo para uma altíssima média de outorgas diárias por parte do MC. Por outro lado, quando considerados apenas os processos de outorga que tramitam segundo ritos tradicionais, verifica-se como a média diária foi bem inferior — quase 25% da observada durante o governo Temer.

Além disso, verifica-se também que uma estrutura mais complexa, responsável por mais temas, o MCTIC, viveu dois momentos distintos. No primeiro, durante o governo Temer, ela foi responsável por média de outorgas bem superior ao observado na segunda metade do governo Bolsonaro, quando o Ministério das Comunicações voltou a ganhar autonomia. Por outro lado, com isso, o ministério superou a média de outorgas do MCTIC nos primeiros meses do mesmo governo. Assim, não é possível associar, na presente avaliação, a autonomia do órgão e a celeridade na tramitação de pleitos de outorga.

Passa-se agora a examinar as outorgas por serviços. Entre as expedidas no âmbito do Programa Digitaliza Brasil, 3.226 foram consignações da União (geradoras e retransmissoras de TV para a Câmara dos Deputados e EBC) e 1.219 foram retransmissoras de TV de outras entidades. Ainda nesta seção, serão tecidos comentários sobre as consignações da União. Pela dimensão desses números, optou-se por excluir as outorgas provenientes do Digitaliza Brasil do gráfico abaixo, destinado a permitir exame das outorgas decorrentes de procedimentos regulares do Ministério das Comunicações:

O serviço de retransmissão de TV foi o contemplado com maior número de outorgas, mesma situação observada no governo Temer (PIERANTI, 2019______. Expansão da radiodifusão: uma análise das 1.833 outorgas do governo Temer. Galáxia, v. 42, p. 202-215, 2019.). Há, porém, uma inversão importante: neste, o número de outorgas de RTVs secundárias (1.539) foi muito maior que o de primárias (85) e, agora, a relação se inverteu (14 x 172). Para o telespectador, não há diferença entre uma e outra; já para as entidades, a RTV secundária pode ser considerada outorga ainda mais precária que a primária.

Gráfico 1
Novas outorgas por serviço de radiodifusão – 2019-2022 (excluídas as outorgas decorrentes do Programa Digitaliza Brasil).

Há outra diferença mais importante para efeito deste artigo: como disposto na Portaria nº 141, de 22 de julho de 2020, RTVs primárias estão sujeitas a um processo seletivo com critérios de desempate estabelecidos. Já foram feitas críticas, neste artigo, aos critérios definidos, bem como à forma de escolha dos municípios. Ainda assim, a simples existência de critérios, regras e processo seletivo gera mais transparência e previsibilidade e diminui a incidência de discricionariedade por parte do ministério. A outorga de RTVs secundárias, por outro lado, é discricionária, observadas algumas condições simples. A inversão na relação entre outorgas de RTVs primárias e secundárias é, portanto, um avanço.

Também se observa um número relevante de autorizações (105) para retransmissoras de rádio (RTR). Trata-se de serviço razoavelmente recente, criado pela Lei nº 13.649, de 11 de abril de 2018, em moldes semelhantes aos da RTV. Destina-se principalmente a retransmitir programações e permite a inserção local de poucas horas de programação. Diferentemente do serviço anterior, porém, RTR restringe-se à Amazônia Legal e apenas pode ser outorgado no interior para a retransmissão de programações provenientes da capital do mesmo estado.

Somados, os serviços de retransmissão respondem por 291 novas outorgas, equivalentes a 45,9% do total. Permitem a expansão das redes existentes e, com isso, o acesso às programações por um maior número de cidadãos. Por outro lado, não representam avanço para a abertura do setor a novos atores e, nesse sentido, estimulam a concentração de mercado.

O Ministério das Comunicações, nos últimos quatro anos, outorgou também permissões de emissoras FM (12) e concessão de estação OM (1) privada. São frutos de licitações iniciadas antes de 2010 e, desde esse ano, o órgão não publicou nenhuma nova licitação para esses serviços. O número dessas outorgas não é expressivo se comparado com o total, mas é importante ressaltá-las para evidenciar a enorme demora para a conclusão desses processos.

É necessário refletir, ainda, sobre as outorgas expedidas para serviços que podem ser considerados integrantes do sistema público de radiodifusão. O total de outorgas de radiodifusão educativa dos governos Temer e Bolsonaro equipara-se (respectivamente 30 e 26). Em quatro anos, o governo Bolsonaro outorgou mais rádios comunitárias (191) que o governo Temer (130), porém, considerando-se a duração de cada um, isso equivale a uma média semestral inferior por parte da gestão mais recente. O total nos dois casos é muito menor que o observado no governo Dilma (582) (PIERANTI, 2019______. Expansão da radiodifusão: uma análise das 1.833 outorgas do governo Temer. Galáxia, v. 42, p. 202-215, 2019.).

Uma explicação parcial para esse resultado ruim pode ser a diminuição do número de municípios contemplados nos PNOs. Com menos processos seletivos, tende a ser menor o número de outorgas. Como diminuíram no governo Temer, gera-se impacto no governo Bolsonaro; como também foram poucos no governo Bolsonaro, possivelmente existirá impacto sobre as outorgas nos primeiros anos do governo Lula. Isso é ainda mais grave no caso da radiodifusão educativa, já que não se publicaram PNOs nos últimos anos para esses serviços, conforme mencionado anteriormente. Vale lembrar, aliás, que o governo Temer optou por não implementar dois PNOs de radiodifusão comunitária e um de educativa, lançados no fim do governo Dilma, que poderiam ter alterado esse panorama.

Essa, porém, é uma explicação parcial. Há indícios de que os serviços de radiodifusão comunitária e educativa simplesmente não eram prioridade do Ministério das Comunicações na gestão ora estudada. Por exemplo: quando o órgão foi recriado, a estrutura aprovada por decreto não previu área específica (uma coordenação-geral, por exemplo) para a análise dos processos de outorga desses serviços. Tampouco houve qualquer movimento público por parte do órgão no sentido de buscar soluções, no âmbito legislativo, para antigas demandas das entidades que atuam nesses segmentos.

Esta análise das outorgas por serviço de radiodifusão deve tratar, ainda, das consignações da União. De início, é preciso apontar uma imprecisão técnica: outorga é o ato pelo qual a União reconhece que uma entidade presta o serviço, ao passo que consignação é o reconhecimento de que a prestação está sendo realizada pela própria União (a EBC se equipara à União, nesse caso, por previsão legal). Em outras palavras, consignação não é outorga, mas, dada a inexistência de termo que abranja ambas, por vezes, a segunda tem servido como termo genérico (e impreciso). Dito isso, verifica-se que, no governo Bolsonaro, o ministério proporcionou uma expansão considerável à rede legislativa e à EBC, porém, a um preço alto, conforme trataremos daqui a alguns parágrafos; antes, cabe examinar os números.

Foram expedidas 3.332 consignações de TV e rádio, o que representa impressionantes 65,7% de todas as 5.072 outorgas (e consignações). Excluídas as relativas ao Programa Digitaliza Brasil, as 112 consignações da União equivalem a 17,6% das 634. Por óbvio, esse percentual é bem menor, porém, ainda assim, expressivo: o governo Temer expediu apenas 39 consignações, 2,1% do total.

Entre as 112 consignações da União durante o governo Bolsonaro, 62 delas foram expedidas para a EBC (55,3%); 41 para a Câmara dos Deputados, responsável pela rede legislativa (36,6%); e as demais para o Ministério da Defesa e para a Marinha. A expansão da EBC chama especial atenção por ser bem maior que nos anos anteriores. Várias dessas consignações foram expedidas para municípios de pequeno e médio porte e no interior do Amazonas, onde não há disputa intensa por frequências, mas, graças a outras, a empresa pode instalar novas estações de TV em nove capitais e de rádio em quatro, incluindo São Paulo.

Quando o Ministério das Comunicações foi separado do MCTIC, passou a incorporar a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, à qual estava vinculada a EBC. Com isso, a empresa passou a ser vinculada ao Ministério das Comunicações, órgão responsável por recurso essencial à expansão de suas atividades — as consignações. Assim, pode ser formulada a hipótese de que a vinculação da EBC ao Ministério das Comunicações facilitou o estabelecimento de uma parceria estratégica crucial para a expansão da primeira, o que não ocorreu em gestões anteriores.

A que preço? Desde o início do governo Bolsonaro, sinalizou-se que a EBC seria privatizada (HOMERO, 2020HOMERO, V. Governo quer privatizar Correios e EBC até janeiro de 2022. Poder 360, 29 jan. 2020. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/economia/governo-quer-privatizar-correios-e-ebc-ate-janeiro--de-2022>. Acesso em: 16 dez. 2020.
https://www.poder360.com.br/economia/gov...
; LIS, 2021LIS, L. Governo inclui EBC em plano de desestatização, primeiro passo para privatizar a empresa. G1, 16 mar. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/16/governo-inclui-ebc-em-plano-de-desestatizacao-primeiro-passo-para-privatizar-a-empresa.ghtml>. Acesso em: 24 abr. 2021.
https://g1.globo.com/economia/noticia/20...
). Em paralelo, o governo federal defendeu e promoveu, em pouco tempo, a junção das programações da TV Brasil, considerada cerne da comunicação pública, e da NBr, voltada à comunicação institucional do governo. Com isso, destruiu barreira conceitual essencial à comunicação pública, que é sua autonomia frente a governos e ao mercado. À época, a imprensa tradicional parece não ter considerado essa situação um problema, pouco discutindo a decisão (RANZANI; PIERANTI, 2021RANZANI, L.H. A.; PIERANTI, O. P. A repercussão da fusão entre a TV Brasil e a NBR nos jornais de grande circulação. Comunicação & Informação, v. 24, p. 1, 2021.). Em pesquisas acadêmicas recentes, por outro lado, essa opção foi prontamente criticada. Em poucos meses, apontou-se que “no governo atual, o sistema público está ameaçado com o aprofundamento de uma política que não o distingue do estatal” (CASTILHO, 2020CASTILHO, M. S. O sistema de radiodifusão nos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro. Compolítica, v. 10, n. 1, p. 87-108, 2020. Disponível em: <http://www.compolitica.org/revista/index.php/revista/article/download/292/261>. Acesso em: 10 jan. 2023.
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). Também se mencionou que “somaram-se inúmeras intervenções na própria programação e conteúdos veiculados pela emissora, desviada de seu caráter público [...]” (PINHEIRO, 2021PINHEIRO, E. B. As ações do (des)governo Bolsonaro contra a Empresa Brasil de Comunicação. Compolítica, v. 11, n. 2, p. 81-106, 2021. Disponível em: <http://compolitica.org/revista/index.php/revista/article/view/535/305>. Acesso em: 11 jan. 2023.
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).

Quando o governo Bolsonaro terminou, a EBC havia obtido consignações para sua expansão em municípios importantes. As programações da antiga emissora pública e do canal institucional do governo permaneciam fundidas. Já a privatização da empresa não foi realizada; na verdade, sequer foram concluídos os estudos formais, que são a primeira etapa do processo de desestatização de uma empresa pública.

É razoável supor que a privatização não ocorreu e, em direção oposta, a empresa se expandiu de forma considerável justamente porque a comunicação institucional de governo ganhou relevância nos principais meios de comunicação da empresa. Assim, o alto preço pago pela sobrevivência da EBC e por sua expansão (em um governo que rapidamente anunciara intenção de privatizá-la) pode ter sido o papel secundário conferido à comunicação pública.

Cabe, agora, tecer alguns comentários sobre a divisão das outorgas por estado. Mais uma vez, optou-se por considerar o grupo das que não se vinculam ao Programa Digitaliza Brasil. Como os municípios contemplados, neste caso, foram escolhidos de antemão em razão da inexistência de emissoras já digitalizadas, considerar essas outorgas enviesaria a análise a ser feita:

Tabela 2
Outorgas por UF (excluídas as do Programa Digitaliza Brasil).

A primeira observação diz respeito à concentração geográfica das outorgas. Seis estados, que reúnem cerca de 48% da população brasileira, foram contemplados com 352 estações, 55,4% do total.

Quatro desses estados estão entre os mais populosos e com mais outorgas do país (São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). Chamam atenção os outros dois casos. A inclusão do Amazonas (AM) nessa lista decorre principalmente de um número elevado de consignações de emissoras em FM e de RTVs para a EBC (41 no total) e de 71 outorgas de RTR, fruto de processos seletivos. As entidades mais contempladas foram Fundação Boas Novas (36); Rádio Baré (13); e Sociedade de Televisão Manauara (12).

Já no Mato Grosso do Sul (MS), prevaleceram outorgas de RTV primárias — 27 do total de 32. As principais contempladas foram Sociedade Campograndense de Televisão (12); Rede Centro Oeste de Rádio e Televisão (8); e Televisão Cidade Modelo (5). Vale lembrar que a legislação não prevê limites de outorgas de RTV e RTR por entidade.

Por fim, passa-se a uma análise sobre como as outorgas se distribuíram ao longo do tempo no governo Bolsonaro, conforme a data de publicação dos atos. O próximo gráfico examina essa situação ano a ano:

Gráfico 2
Outorgas de serviços de radiodifusão por ano (excluídas as outorgas decorrentes do Programa Digitaliza Brasil).

No ano em que o Ministério das Comunicações foi recriado, houve uma queda no total de outorgas em relação ao ano anterior (de 72 para 54). A partir daí, observam-se expressivos aumentos: em 2021, o total mais que triplicou (177), em relação ao ano anterior e, depois, aumentou para 83% (324) em 2022.

Assim, o recorde de outorgas na gestão foi atingido no ano das eleições. Vale lembrar que o pleito foi o mais disputado da história brasileira desde a redemocratização política e que o governo federal, às vésperas da votação, implementou diversas ações polêmicas, tendo em vista seu possível impacto eleitoral, como: possibilidade de crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil; anúncio de benefícios extras para taxistas e caminhoneiros; e lançamento de programa de renegociação de dívidas (FOLHA DE S. PAULO, 2022FOLHA DE S. PAULO. Governo Bolsonaro já tomou 18 iniciativas que usam estrutura estatal e dão vantagem eleitoral; veja. Folha de S. Paulo, 21 out. 2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/governo-bolsonaro-ja-tomou-18-iniciativas-que-usam-estrutura-estatal-e-dao-vantagem-eleitoral-veja.shtml>. Acesso em: 12 jan. 2023.
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). Dado o histórico do setor, abordado no início deste artigo, de expedição de outorgas para garantir o apoio político, seria razoável supor que isso possa ter acontecido também no período eleitoral? Nesse sentido, vale examinar o volume de outorgas mensais no ano de 2022:

Gráfico 3
Outorgas de serviço de radiodifusão por mês em 2022 (excluídas as outorgas decorrentes do Programa Digitaliza Brasil).

No primeiro semestre do ano, o Ministério das Comunicações expediu 107 outorgas e, no segundo, outras 217 — um aumento de 102,8%. A partir de junho e durante todos os meses que antecederam o das eleições, observa- se também um aumento expressivo: duas outorgas em junho; 19 em julho; 45 em agosto; e 58 em setembro. Esse número, mês a mês, é incomum e chama atenção por ter ocorrido logo antes do pleito. Por outro lado, no mês de outubro, derradeiro para as eleições, houve uma queda expressiva, com apenas 14 outorgas, e o ápice no ano ocorreu em dezembro, com 73 novas outorgas, quando o pleito estava decidido e Lula preparava-se para assumir a Presidência da República. Entende-se, assim, que é possível falar em indícios significativos para confirmar a hipótese, porém não se pode afirmar categoricamente, de que houve um aumento das outorgas com o intuito de assegurar apoio eleitoral.

Considerações finais

Este artigo teve por objetivo analisar a política de outorgas de serviços de radiodifusão no governo Bolsonaro. Para isso, acompanhou-se cada edição regular do Diário Oficial da União durante os quatro anos do período, reunindo-se, em uma base de dados, as portarias de outorga nele publicadas. Foram listadas 5.079 outorgas e consignações da União.

A literatura acadêmica brasileira registra, na história da radiodifusão, diversos episódios de favorecimento de entidades em troca de vantagens políticas. Acredita-se que a margem para esse tipo de prática diminuiu com o tempo, por meio da adoção de medidas, no governo Dilma, voltadas à criação de processos seletivos e critérios de desempate entre os concorrentes, entre outras. Ainda assim, chamou-se atenção para o fato de que é possível e necessário avançar em outras definições importantes para restringir a discricionariedade e tornar mais objetivos os processos de outorga. Esse é o caso, por exemplo, das regras que o Ministério das Comunicações deve observar para definir quais municípios poderão receber novas estações.

No que tange à diversidade, o governo Bolsonaro manteve tendência herdada da gestão Temer de restringir em demasia novas outorgas para serviços que podem ser considerados integrantes do sistema público de radiodifusão. Isso se fez com severa diminuição de processos seletivos, no âmbito dos Planos Nacionais de Outorgas (PNOs), quando comparados aos observados durante o governo Dilma. Essa opção implica em consequências para o futuro, já que, com menos processos seletivos em curso, é provável que o governo Lula, em seu início, também não consiga ampliar de forma significativa as outorgas para esses serviços.

Também foi destacado o impacto do Programa Digitaliza Brasil no total de outorgas. Criado para garantir a digitalização da TV em municípios ainda sem acesso à TV digital, que eram os pequenos e com limitada capacidade de investimento, o programa respondeu por 4.445 outorgas e consignações da União, ou seja, 87,5% do total.

Excluídas as provenientes desse programa, pode-se dizer que o Ministério das Comunicações expediu poucas outorgas, se a referência para comparação for o governo anterior. A timidez está relacionada à supressão ou à redução dos Planos Nacionais de Outorgas (e consequentemente aos processos seletivos neles previstos), a depender do serviço, mas não se restringe a isso. Parece ter existido opção deliberada por prestigiar retransmissoras de TV no âmbito do Programa Digitaliza Brasil e por limitar outorgas de radiodifusão educativa e comunitária. Evidência da perda de relevância, nesses casos, foi a supressão de áreas, na estrutura organizacional do ministério, que lidavam especificamente com processos relacionados a esses serviços (que passaram a ser tratados em áreas que abordam todos os serviços simultaneamente).

Chama atenção, ainda, o tratamento conferido à EBC. Depois de um início de governo em que se prometia a rápida privatização da empresa, essa ideia foi descartada e a ela foram atribuídas consignações não apenas nos pequenos municípios contemplados no programa mencionado, mas também em grandes cidades e capitais. A partir dessas consignações, nos próximos anos, se a EBC dispuser de orçamento para esse fim, deverá se expandir de forma considerável. Pode-se supor que esse apoio do ministério à empresa decorre do fato de esta ter sido a ele vinculada por parte considerável do período, bem como de uma tentativa de se expandir a comunicação institucional de governo. Nesse sentido, é importante lembrar que as programações da TV Brasil e da NBr se fundiram, rompendo-se uma separação conceitualmente importante para se caracterizar a comunicação pública. Se interpretado dessa forma, o preço da expansão foi, portanto, a fragilização da comunicação pública.

Verificou-se, ainda, que, entre os seis estados contemplados com mais outorgas, quatro deles estão entre os mais populosos do Brasil. Os outros dois — AM e MS ? surpreendem, sendo distintas as explicações para esse resultado nesses casos. Além disso, ressaltou-se um aumento expressivo de outorgas no segundo semestre de 2022, quando ocorreu a eleição para presidente da República.

Cabe destacar ainda que o governo Lula será condicionado, no seu início, pelos processos seletivos para novas estações iniciados no governo Bolsonaro. Com isso, não tendem a ser expressivos os resultados nesse âmbito nos primeiros anos do novo governo. Avanços na política de outorgas devem passar pela publicação de PNOs mais abrangentes, pela retomada da ênfase nos serviços integrantes do sistema público e pela revisão da estrutura organizacional do Ministério das Comunicações, conferindo à análise dos processos seletivos a prioridade merecida.

Por fim, cabe ressaltar que uma agenda de pesquisa futura no campo da comunicação, tendo como objeto políticas públicas para radiodifusão, pode passar pelos seguintes temas: (a) acompanhamento das outorgas no governo Lula e subsequentes, tal como aqui realizado em relação ao período anterior; (b) análise da real implementação das estações que foram objeto de outorga no período aqui analisado; e (c) impacto dessas emissoras em suas localidades com base em estudos de caso. Em específico, em relação ao período aqui estudado, também merece acompanhamento a implementação do Programa Digitaliza Brasil. Como apresentado, ele tem potencial para mudar profundamente a penetração da radiodifusão nos menores municípios do país, no entanto, existem desafios, de cunho operacional e orçamentário, para que as novas estações viabilizadas sejam mantidas em funcionamento ao longo dos próximos anos.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    09 Maio 2023
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