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“Pare de sofrer!”: os discursos da Igreja Universal sobre depressão na pandemia da covid-19

“Stop suffering!”: Universal Church discourses on depression through the covid-19 pandemic

Resumo

A proposta deste trabalho é compreender como a depressão durante a pandemia da covid-19 tem sido discursivizada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Busca-se identificar quais compreensões sobre a depressão e a cura emergem nesses discursos. Para tanto, tomamos como objeto de análise os textos da seção Notícias do portal da IURD. O levantamento e o tratamento do corpus valeram-se de procedimentos da análise de conteúdo proposta por Bardin, para que, em seguida, a amostra fosse analisada discursivamente. A análise se apoiou em estudos de Dunker acerca do sofrimento psíquico na atualidade e de sua relação com o neoliberalismo (DARDOT, LAVAL, 2021). Os resultados apontam que a depressão é discursivizada pela IURD como um problema espiritual, que tem sua cura através da fé, endossando a responsabilidade de si como imperativo da obtenção de resultados, alinhando-se a certos discursos neoliberais.

Palavras-chave
Igreja Universal; depressão; sofrimento psíquico; neoliberalismo; covid-19

Abstract

The purpose of this paper is to understand how depression during the covid-19 pandemic has been discoursed by the Universal Church of the Kingdom of God (IURD, in portuguese). It seeks to identify which understandings about depression and cure emerge in these discourses. For this purpose, we took as object of analysis the texts from the News section of the IURD portal. For the survey and analysis of the corpus, we used procedures from the content analysis proposed by Bardin (1977), so that the sample was then analyzed discursively (FOUCAULT, 1971, 2008, 2010). The analysis was based on studies by Dunker (2021) about current psychic suffering and its relationship with neoliberalism (DARDOT, LAVAL, 2016; BROWN, 2019). The results indicate that depression is discussed by the IURD as a spiritual problem, which is cured through faith, endorsing self-responsibility as an imperative to obtain results, in line with certain neoliberal discourses.

Keywords
Universal Church; depression; psychic suffering; neoliberalism; covid-19

Introdução

Conhecida a partir de 2019, a covid-19 (Coronavirus Disease 2019) impulsionou que protocolos de segurança fossem seguidos em todo o mundo, como o distanciamento e o isolamento social. Isso reconfigurou a vida das pessoas, que precisaram se adaptar a essa nova realidade. Neste contexto de restrição do convívio social, a saúde mental emergiu como um tema de grande relevância, sendo o aumento do número de casos de depressão durante o período um fenômeno que ganhou a atenção da mídia e da sociedade.

Segundo a versão mais atualizada do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV), a depressão é um transtorno caracterizado pela fadiga, perda ou ganho de peso por dificuldades alimentares, insônia, anedonia, sentimento de culpa, entre outros sintomas (APA, 2013AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-V). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.). O Manual também associa quadros depressivos a fatores genéticos, psicológicos e ambientais, classificando a depressão em: a) depressão maior; b) distimia (ou depressão persistente); c) transtorno disfórico pré-menstrual; d) transtorno disruptivo da desregulação de humor; e) depressão induzida por substância /medicamento; f) depressão devido a outra condição médica (Ibidem). A depressão aparece pela primeira vez no documento em 1968, na segunda edição do Manual, atrelada a outras neuroses, e, em 1980, ganha autonomia em relação a estas. A partir de então, são criados subtipos do transtorno, até se chegar aos seis supracitados.

A depressão como consequência da pandemia foi um tema de destaque em várias esferas sociais, inclusive a religiosa. Na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), o assunto se sobressaiu especialmente na ocasião de discussão sobre a manutenção da abertura das instituições e dos estabelecimentos categorizados como serviço essencial. A saúde mental — destacadamente o combate à depressão — esteve no centro dos discursos da IURD em defesa da abertura dos templos no período da pandemia.

No decreto federal 10.329, de 28 de abril de 2020, responsável por alterar o decreto 10.282, que regulamenta a Lei nº 13.979, instituições religiosas não são consideradas atividades essenciais. Em decisão publicada em 3 de abril de 2021, o ministro Kassio Nunes Marques, indicado, em 2020, ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo presidente da República Jair Bolsonaro, “concedeu a liminar em uma ação da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), que contestava decretos estaduais e municipais que limitavam cultos e celebrações religiosas”1 1 Disponível em: <http://bit.ly/conjurlink>. Acesso em: 23 abr. 2021. , alegando que “foi ferido o direito fundamental à liberdade religiosa e o princípio da laicidade estatal”.2 2 Disponível em: <http://bit.ly/decisaonunes>. Acesso em: 23 abr. 2021. A liminar, questionada por uma série de autoridades sanitárias, políticas e jurídicas do país, foi derrubada poucos dias depois, em decisão majoritária pelo STF, que considerou improcedente a ação.

A Igreja Universal não aceitou a decisão e passou a denunciar as ações dos poderes públicos como “politicagem” e “perseguição” ao povo de Deus3 3 Disponível em: <https://bit.ly/futurocomerciantes> e em <https://bit.ly/perseguicaocristaos>. Acesso em: 23 abr. 2021. . Entendendo-se como um agente social indispensável, a IURD e seus seguidores têm embasado sua defesa da abertura dos templos com o argumento, entre outros, de que “a igreja é um hospital espiritual que não nos deixa entrar em desespero. Tem gente entrando em depressão”4 4 Disponível em: <https://bit.ly/cerimoniapresencial>. Acesso em: 23 abril. /2021. (publicado em 7 de abril de 2021). Ao se autoinserir na categoria de atividade essencial, a instituição coloca-se em paridade de importância com hospitais e farmácias, por exemplo, e se apropria de significantes jurídicos, com liberdade religiosa e laicidade, e sanitários para defender esse posicionamento.

Assim, nossa proposta visa justamente compreender como a depressão durante a pandemia é discursivizada pela IURD, identificando quais compreensões sobre o transtorno e a cura emergem nos discursos da Igreja. Para tanto, tomamos como objeto de análise os textos da seção Notícias do portal da Igreja Universal, uma vez que, sendo seu principal canal institucional, reúne um grande volume de informações sobre a IURD e nos ajuda a compreendê-la como ator político de grande relevância na política institucional atual. O corpus totalizou 108 notícias publicadas no período de 12 de março de 2020 a 12 de abril de 2021, do início da pandemia até a produção deste trabalho. Para filtrar as notícias de interesse para o artigo, utilizamos como critério de seleção, em um primeiro momento, as seguintes palavras-chave: pandemia; coronavírus; covid-19; saúde mental; depressão; ansiedade. Em um segundo momento, refinamos a busca considerando apenas as notícias sobre depressão durante a pandemia. A escolha do objeto se deu pelo destaque dos segmentos evangélicos nas disputas políticas partidárias nos últimos anos, especialmente durante a pandemia. Nesse âmbito, a Universal ganha evidência considerável, apesar de não ser a única instituição religiosa a reivindicar espaços de autoridade na política institucional. Sua centralidade em torno dessas disputas por hegemonia está associada ao fato de ela ser tributária de um grande poderio político e midiático no Brasil, especialmente no governo Bolsonaro, que foi amplamente apoiado por Edir Macedo5 5 Disponível em: <http://bit.ly/apoiobolso>. Acesso em: 23 abr 2021. , líder da instituição e acionista majoritário da Rede Record de televisão.

Esta investigação surge de discussões realizadas no Programa de Pós-Gradu-ação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, no contexto da pandemia, a partir da intersecção de temas de pesquisa de cada autora, a saber: mídia, religião, depressão e felicidade. Nossa análise também se apoia nos estudos de Dunker sobre sofrimento psiquíco na atualidade e nas discussões de Dardot e Laval (2016)DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. e Brown (2018BROWN, W. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Tradução: Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018., 2019)______. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019. sobre neoliberalismo, que, como veremos, articulam-se com alguns dos resultados encontrados.

Sacrifício e cura pela fé: a Igreja Universal e as disputas de sentido em torno da cura

Fundada em 1977 por Edir Macedo em parceria com R. R. Soares e os irmãos Coutinho, a Igreja Universal inaugurou a terceira onda do movimento pentecostal no Brasil (FRESTON, 1993FRESTON, P. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Campinas, SP, 1993.), o neopentecostalismo. Além das características comuns à primeira e à segunda ondas pentecostais, como uso expressivo da mídia, práticas de proselitismo, participação política e cura divina, Mariano (2005, p. 36MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Loyola, 2005.) aponta também para: “1) exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo e seu séquito de anjos decaídos; 2) pregação enfática da Teologia da Prosperidade; 3) liberalização dos estereotipados usos e costumes de santidade”, podendo-se acrescentar a estas, eventualmente, uma organização empresarial, conforme explica o autor.

Seu sistema de pensamento está ancorado na Teologia da Prosperidade (TP), doutrina de acomodação do mundo que, de acordo com Mariano (2005MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Loyola, 2005., p. 158, grifo do autor), “valoriza a fé em Deus como meio de obter saúde, riqueza, felicidade, sucesso e poder terrenos”. Com certa ênfase no enriquecimento material, afirma que “a pobreza significa falta de fé, algo que desqualifica qualquer postulante à salvação” (Ibidem, p. 159). Um aspecto importante de sua configuração discursiva é o lugar de destaque ocupado pelas práticas de sacrifício, tomando a história de Jesus Cristo como maior exemplo. Adequando-se à realidade de nosso tempo, a TP estimula seus seguidores a observarem as “leis” da prosperidade em um sentido muito próximo, de acordo com o autor, ao princípio de reciprocidade observado por Mauss, “popularmente conhecido no Brasil pela expressão ‘é dando que se recebe’” (Ibidem, p. 154).

Por se tratar de uma doutrina estruturada sobre alguns princípios do liberalismo, isto é, direito natural, liberdade de comércio e de expressão, mercado como fonte de desenvolvimento e de equilíbrio social (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.), para citar alguns deles, a TP não só estimula o enriquecimento material como afirma ser esse um direito do crente. Com a crise do liberalismo (Ibidem) e a emergência de uma outra forma de governo, o neoliberalismo — que se vale constantemente de categorias morais e psicológicas, em detrimento da justiça social legislada, para atingir objetivos econômicos —, essa teologia se adapta a uma nova realidade, focando ainda mais na responsabilidade individual como condição de sobrevivência e forma legítima de se alcançar o sucesso e a graça divina. Dessa forma, as causas para qualquer infortúnio são apontadas como de inteira responsabilidade individual. A fé em Deus, medida através de investimentos de tempo e dinheiro, apresenta-se nessa teologia como o meio para alcançar o sucesso em todas as esferas da vida. Os ideais postulados pela TP se estruturam sobre as práticas da confissão positiva, uma conduta para com o divino que consiste, grosso modo, em declarar o que se almeja alcançar como forma de realizar seus desejos, acreditando que as palavras têm poder. Ela se associa à concepção de fé racional proposta por Edir Macedo (2010, p. 54)MACEDO, E. Fé racional. Rio de Janeiro: Unipro, 2010., que se baseia na inteligência e “envolve não somente a meditação e a prática da Palavra de Deus, mas também o cumprimento de Suas Promessas”, capacitando o fiel a “conferir a finalidade da própria fé”.

Os testemunhos possuem aqui um papel fundamental. Trata-se de narrativas de vida que, no âmbito do cristianismo — e mais enfaticamente no neopentecostalismo —, têm como função contar uma história cujo acontecimento central é o processo de conversão do fiel, que se inicia comumente com relatos de sofrimento e acaba com a superação de dificuldades. Eles têm apelo importante na propagação da doutrina das igrejas desta corrente. Através deles, podemos observar a materialização dos postulados da TP, cuja sistematização, associada à confissão positiva, é atribuída a Hagin (1983)HAGIN, K. Compreendendo a unção. Tradução: Gordon Chown. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1983., criador da fórmula: 1) “Diga a coisa”; 2) “Faça a coisa”; 3) “Receba a coisa”; e 4) “Comente a coisa”. É neste último passo que se localizam os testemunhos como um aspecto fundamental da comunicação e propagação da TP e, mais precisamente, da Igreja Universal.

O sofrimento tem um apelo importante no que Gomes (2011)GOMES, E. A era das catedrais: a autenticidade em exibição: uma etnografia. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. aponta como fundamental para compreender a estruturação dos testemunhos iurdianos, o circuito da conquista: perseguição, revolta, sacrifício e conquista. A narrativa de superação que organiza esse circuito e o modus operandi desses testemunhos estão diretamente relacionados à cura espiritual da depressão, uma vez que ela é tratada como um problema espiritual, uma doença da alma. Como, na concepção de fé inteligente de Macedo (2010, p. 52)MACEDO, E. Fé racional. Rio de Janeiro: Unipro, 2010., “se não houver sacrifício, não haverá conquista”, a Igreja condiciona, através de sua retórica da conquista, a superação dos problemas a atitudes individuais, isso é, adaptado a diferentes situações da vida cotidiana. A conquista de uma saúde plena, assim, estaria ligada a uma atitude para com o divino, expressa em práticas de sacrifício, condição para o exercício da fé racional e inteligente.

A depressão, que é um tema usual nas pregações da Igreja Universal, especialmente aquelas vinculadas às reuniões da Sessão Espiritual do Descarrego e da Corrente dos 70 (dias da cura), é um objeto de disputa política importante para a instituição. A IURD também oferece serviços de escuta através de seus pastores. Afirmando que “você não precisa continuar sofrendo assim”6 6 Disponível em: <http://bit.ly/pastonline>. Acesso em: 23 abr. 2021. , em referência ao seu slogan tradicional “pare de sofrer!”, a instituição criou uma central de atendimento voluntário e gratuito para apoio emocional e espiritual. Entre os principais problemas que se propõe a ajudar, estão: depressão, relacionamento, financeiro e saúde, prometendo solucioná-los conforme os postulados da TP e da confissão positiva.

Na IURD, as rupturas e os rearranjos com os discursos científico e especializado são operados em conformidade com muitos dos valores seculares da lei e da ordem, reivindicando a aceitação de suas práticas em termos de liberdade religiosa e de pensamento. Para tanto, apropria-se muitas vezes de uma linguagem jurídica e secular para defender não só suas ações, mas também sua própria existência. Foi isso que ocorreu na pandemia, quando os poderes públicos determinaram o fechamento de templos para evitar aglomerações e conter o avanço da covid-19, cuja resposta da IURD foi afirmar que os cristãos estavam sendo perseguidos, defendendo a manutenção da abertura das igrejas como atividade essencial.

Percurso metodológico: enquadramentos da depressão nos discursos da Igreja Universal na pandemia

Partindo de preceitos metodológicos da análise de conteúdo de Bardin (1977)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Alceu Antero Rego e Augusto Pinheiro. São Paulo, Edições 70, 1977., o primeiro momento da pesquisa foi dividido em três etapas: (1) pré-análise; (2) exploração do material; e (3) tratamento dos dados, inferência e categorização. A pré-análise se desenvolveu em quatro fases: (a) começamos por uma leitura flutuante de notícias publicadas pela instituição que abordassem o tema da depressão no contexto da pandemia; (b) em seguida, definimos o modo, o espaço e os termos de busca das notícias dentro de um período limitado; (c) a constituição do corpus foi feita a partir da busca por palavras- chave que remetem tanto ao universo da saúde mental quanto ao recorte temporal do presente estudo, 12 de março de 2020 (início da pandemia) a 12 de abril de 2021 (início do desenvolvimento deste trabalho). Assim, as palavras-chave que nortearam a seleção das notícias foram: pandemia; coronavírus; covid-19; saúde mental; depressão; ansiedade7 7 Considerando alguns problemas de programação que identificamos no site da Universal, realizamos o levantamento pela plataforma de buscas do Google com os seguintes termos e operadores: “(pandemia OR coronavírus OR “covid-19”) AND (“saúde mental” OR depressão OR ansiedade) site: <https://www.universal.org/noticias>. (esses três últimos são termos recorrentes nos discursos da IURD sobre problemas espirituais e cura); (d) por fim, organizamos o material em planilha para tratamento dos dados, realizando o cruzamento de palavras-chave e tags — criadas por nós com o objetivo de identificar temas e subtemas abordados em cada notícia.

Na tabulação, partimos dos cruzamentos de dados para estabelecer conexões iniciais entre as matérias, focando nas que citaram diretamente a palavra-chave depressão. Das 108 notícias encontradas segundo esses parâmetros, 81,5% falavam de algum modo sobre depressão, relacionando-a diretamente à pandemia, seja como tema central ou apenas citando o termo. Podemos observar, na Figura 1, como se dá a distribuição de matérias por conjunto de palavras-chave associadas ao termo depressão, que é uma categoria importante para essa análise. O cruzamento de dados nos permitiu organizar o conteúdo em eixos temáticos para o tratamento posterior dos resultados.

Figura 1
Gráfico de distribuição de textos por conjunto de palavras-chave8 8 A palavra “apenas” indica a exclusão de outras palavras-chave em cada grupo. e por categorias. Levantamento de publicações na seção Notícias do Portal IURD — 12 de mar. 2020 a 12 de abr. 2021 — a partir das palavras-chave indicadas. Total absoluto de matérias: 108; 88.

No segundo momento, a partir dos resultados encontrados pela AC, empreendemos uma análise discursiva. O processamento de dados por meio de tabulação nos permitiu construir categorizações para as notícias que interseccionam os temas pandemia e depressão. Feito isso, realizamos uma descrição do conteúdo dos textos, destacando trechos que evidenciam a depressão como categoria fundamental para a compreensão de cura espiritual da IURD.

Identificamos sete macrocategorias (Fig. 1): Projetos e ações sociais (24,1%), Estilo de vida (18,5%), Saúde mental (14,8%), Eventos (13,9%), Histórias de superação (13,0%), Igreja como atividade essencial (10,2%) e Educação (5,6%). A recorrência de notícias de cada categoria muda bastante ao longo do período analisado (ver figuras 2 e 3).8 8 A palavra “apenas” indica a exclusão de outras palavras-chave em cada grupo.

Figura 2
Gráfico de distribuição de textos ao longo do período pesquisado. Levantamento de publicações na seção Notícias do Portal IURD — 12 de mar. 2020 a 12 de abr. 2021 — a partir das palavras-chave indicadas. Total absoluto dos gráficos: 108; 88.
Figura 3
Linha do tempo: conteúdos e ações da IURD na pandemia.

Os textos que delimitam essas categorias não se restringem unicamente a um tema, pois há um natural desencadeamento do conteúdo em abordagens secundárias. Entretanto, entendemos que há sempre um eixo temático principal — que tanto a manchete quanto o subtítulo denunciam — se apresentando como fio condutor de cada texto. Esse eixo temático principal norteou a categorização proposta no presente trabalho, que abordaremos a seguir.

A construção discursiva da depressão pela Igreja Universal em seu portal on-line

Em nosso levantamento, algumas categorias se sobressaíram, tanto em termos percentuais como pelo modo como articulavam os significantes da depressão em torno de questões particulares ao sistema de pensamento iurdiano. A categoria Projetos e ações sociais foi a mais relevante quantitativamente, reunindo 24,1% de um total de 108 matérias do corpus. Foram encontradas notícias sobre iniciativas sociais da IURD e atuações da instituição junto aos fiéis e seguidores, mas também à sociedade como um todo.

É evidente, nos textos, a importância de divulgar as práticas filantrópicas iurdianas através de projetos sociais, não apenas para credibilizar a Universal como instituição de impacto social, mas também para atrair mais seguidores. Há textos que associam as ações que beneficiam a sociedade — como doações de alimentos e kits de higiene ou ações de conscientização a respeito da depressão — ao amparo espiritual por meio de mensagens com fins de divulgação da palavra de Deus, como se pode ver no excerto retirado de notícia publicada em 2 de abril de 2020, da categoria em questão: “O Bispo Marcelo Pires inclusive fez um apelo nas redes sociais, para que todos que puderem doar alimentos, os tragam nas sedes regionais e estaduais do país. Todas as precauções de higienização serão tomadas para que não haja contaminação”9 9 Disponível em: <http://bit.ly/voluntariosiurd>. Acesso em: 30 abr. 2021. .

Os textos desta categoria usam recorrentemente termos como combater, lutar, vencer, resgatar, conquistar. Esse léxico referente tanto ao universo bélico quanto ao esportivo produz efeitos de sentido coerentes com a racionalidade neoliberal da disputa e da competitividade. A racionalidade diz respeito a um programa que opera tanto nas instituições como orienta a conduta dos indivíduos, nos domínios das práticas tanto do saber quanto das relações políticas, influenciando o que pensamos, fazemos e somos (FOUCAULT, 2006______. Ditos & Escritos: Ética, estratégia, poder-saber. Vol. 4. Organização e seleção de textos: Manoel Barros Motta. 2 ed. Tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.). Para Foucault, a razão está comprometida com as condições históricas e tem implicações na construção das subjetividades. Fica claro, portanto, o vínculo entre racionalidade e exercício do poder, que sistematiza e orienta modos de ação, no interior de um campo de possibilidades, para a máxima eficácia e estabilidade (FOUCAULT, 2014______. Ditos & Escritos: Genealogia da ética, Subjetividade e Sexualidade. Vol. 9. Organização e seleção de textos: Manoel Barros Motta. Rio de Janeiro. Forense universitária, 2014.). As notícias que apresentam as ações da IURD no combate à depressão, por exemplo, desenham um cenário de guerra em que a instituição atua ao lado do bem. Expressões como “combatendo o Coronavírus”, “resgate de vidas”, “combate ao suicídio”, “luta contra a depressão”, “combate à depressão” são recorrentes nas matérias da Universal que convocam os indivíduos à adesão às práticas iurdianas. Contudo, a depressão em si não seria um inimigo, mas um problema espiritual que poderia acarretar descaminhos. O inimigo seria o Mal, simbolizado tanto nas alegorias cristãs do demônio, quanto em personagens terrenos como os vícios, os opositores, a homossexualidade, entre outros.

A divulgação da atuação dos grupos voluntários convoca, principalmente, a ampla audiência a aderir à proposta da Universal e reclama o retorno daqueles que se desvincularam dela, pois, segundo trecho de matéria publicada em 25 de abril de 2020: “Jesus não quer que a sua alma pereça no inferno”10 10 Disponível em: <http://bit.ly/resgatevidaslares>. Acesso em: 01 mai. 2021 . A desvinculação do fiel é vista como abertura para o sofrimento, como se busca mostrar a partir de testemunhos como este, que consta na publicação supracitada: “Quando me afastei, sofri muito. Era angustiada, só chorava e meu único desejo era morrer. Nessa época tive depressão e me automutilava”. O vínculo com a IURD mostra-se como garantia de não sofrimento, ratificando o compromisso e lema da própria Igreja: “Pare de sofrer”.

Ao falar em nome de Deus, o Bispo, como outras lideranças da IURD, assume uma função paternalista, cara não apenas ao discurso religioso, mas também ao discurso neoliberal, que, ao reduzir a responsabilidade do Estado social, transfere-a às famílias, especialmente aos indivíduos masculinos. A eles, segundo a reforma neoliberal do bem-estar social, cabe a provisão e cuidado de seus dependentes (BROWN, 2019______. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.). Na IURD, especificamente, o paternalismo se evidencia quando a Igreja se apresenta como uma instituição fora do Estado, capaz de promover o bem comum através de práticas privadas de assistencialismo e de uma pedagogia que ensina às pessoas a serem responsáveis pelas mudanças sociais, começando por elas mesmas.

A segunda categoria em volume de textos foi Estilo de Vida, com 18,5%. Esse grupo versa sobre hábitos e mudanças de comportamento durante a pandemia da covid-19 que geram impacto na vida das pessoas. Nas notícias desta categoria, muitas vezes saúde mental e depressão aparecem apenas como menções no texto. Majoritariamente, as matérias abordam modos de vida condizentes com os preceitos da IURD que, por sua vez, vão ao encontro das formas de vida neoliberais — com destaque para os valores familiares, a autonomia e responsabilidade de si, produtividade etc.

Consumo de notícias, higiene pessoal e do sono, alimentação e convivência familiar foram alguns dos assuntos recorrentes nas matérias da categoria supracitada. Os hábitos e comportamentos individuais, dessa forma, são centrais nesses textos, já que se apresentam como técnicas de si (FOUCAULT, 1983FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 18. ed. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009a.) que incorporam ditames da racionalidade neoliberal. No excerto a seguir, de matéria de 6 de abril de 2020, essa relação se evidencia na própria definição de transtorno:

O que diferencia a ansiedade normal de um transtorno? A especialista [a psiquiatra Denise Gobo] explica que os transtornos envolvem prejuízos na vida pessoal e profissional. “Um transtorno é quando a pessoa desenvolve uma disfuncionalidade que leva a prejuízos sociais, na convivência com a família, no trabalho e no autocuidado”.11 11 Disponível em: <https://bit.ly/comolidartranstornos>. Acesso em: 01 mai. 2021

(grifos nossos)

No trecho, disfuncionalidade é um termo-chave na compreensão dos transtornos mentais e sugere a necessidade de uma readequação ao funcional, ou seja, a um estado que possibilite o bom funcionamento das relações sociais, com a família e consigo mesmo. Em outras palavras, o sujeito saudável deve ser funcional dentro de determinada ordem social, que prevê produtividade no campo do trabalho, mas também na vida privada e familiar. E, nesse sentido, é fundamental compreender duas características da racionalidade neoliberal que se dissociam do liberalismo econômico clássico: “a elaboração de princípios de mercado como princípios de governo onipresentes e o próprio governo reformatado para servir aos mercados” (BROWN, 2019______. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 30). Isto é, a governamentalidade neoliberal atua “empreendedorizando o sujeito, convertendo trabalho em capital humano” (Ibidem). Assim, para além de uma reconfiguração do capitalismo, o neoliberalismo e a razão neoliberal promovem uma mudança substancial dos valores e principalmente nas condutas (DARDOT, LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.).

Nesta categoria, foram identificados discursos que vincularam a saúde mental aos divórcios e aos problemas de convívio familiar durante a pandemia, incluindo casos de violência doméstica. Questões que abalam o ideal da família tradicional e patriarcal. Para a resolução de problemas como esses, a IURD propõe o exercício da fé racional associado às práticas de aconselhamentos elaboradas pela Organização Mundial de Saúde (OMS): uma convivência familiar harmônica a partir do estabelecimento de uma rotina de horário de trabalho bem delimitado, da divisão de tarefas no cuidado com a casa, na aproximação com seus familiares, no estabelecimento de momentos em família, entre outros12 12 Disponível em: <http://bit.ly/prontosos>. Acesso em: 26 abr. 2021. . A estratégia de intercalar vozes de autoridade, como psicólogos, médicos e a própria OMS, com as de liderança da Igreja, confere ao discurso da Universal legitimidade, como se pode ver no trecho da notícia publicada em 13 de junho de 2020:

Cristiane reforça que os cônjuges que se evitavam antes agora são obrigados a conviver. “Muitos casais tinham a oportunidade de ter mais tempo juntos e a evitavam porque não sabem ficar juntos. O casamento saudável faz tudo mais saudável e o infeliz faz tudo na vida ser mais complicado.”

A psicóloga especialista em neuropsicologia Amanda Bastos concorda com essa afirmação e acrescenta que a raiz de muitos problemas familiares é a falta de comunicação. “Muitos estavam acostumados a estar na companhia um do outro no máximo três ou quatro horas só no final do dia ou nos finais de semanas. Atualmente, o tempo de convivência aumentou muito, assim como o estresse social atrelado a questões financeiras, políticas e de saúde. Isso causa a redução da tolerância em casa e desencadeia atritos.”13 13 Disponível em: <http://bit.ly/quarentenalaços>. Acesso em: 30 abr.2021

A depressão, nesses casos, aparece tanto como consequência do confinamento imposto pelo distanciamento social, que implica em danos à saúde mental, como também de laços familiares mal engendrados.

O que se evidencia nesta categoria são as formas de vida promovidas pela IURD porque a elas estão atrelados princípios e valores da instituição e de sua teologia de resultados. A partir do momento em que há uma incorporação dessas diretrizes, o iurdiano passa a promover, através da introjeção da responsabilidade de si como forma de gestão da própria vida, uma autocoerção que o disciplina e governa. Essa forma de gerenciamento baseada no governo de condutas (FOUCAULT, 2008______. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., 2010______. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) é o que está por trás do êxito do neoliberalismo enquanto sistema de natureza disciplinar que não se utiliza de forças coercivas, mas que se vale de categorias morais e psicológicas como “pressupostos silenciosos da ação econômica” (SAFATLE, SILVA JUNIOR, DUNKER, 2020SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020c., p. 9).

Saúde Mental foi a categoria que reuniu 14,8% do total de notícias e representa o universo de textos que mais focalizou a depressão e a saúde mental como temas centrais. Esses temas eram comumente atravessados por subeixos temáticos como medicalização, vícios, desemprego, cura pela fé, solidão, luto, isolamento social, entre outros. Majoritariamente, as notícias destacam a importância da ajuda espiritual para a manutenção da saúde mental, bem como para o tratamento de transtornos, como por exemplo a depressão e a ansiedade. Em matéria de 6 de abril de 2020, a Universal cita a fala da psiquiatra Denise Cogo, que reforça cuidados com a manutenção de tratamento de pacientes psiquiátricos: “O Conselho Federal de Medicina autorizou o uso de telemedicina para todas as especialidades médicas durante este período [...]. Quanto aos pacientes, é importante que continuem tomando os remédios indicados e fazendo o acompanhamento médico”14 14 Disponível em: <http://bit.ly/comolidartranstornos>. Acesso em: 30 abr. 2021 . Em outra matéria, de 20 de julho de 2020, temos: “a depressão, o estresse, a ansiedade, entre outros males emocionais, são doenças originadas na alma da pessoa” e, ainda, “Os medicamentos atuam na parte física, portanto, eles não são capazes de atuar no vazio interior que a pessoa sente. Por isso, é necessário que a pessoa busque também por ajuda espiritual”. Isto é, enquanto a medicina, amparada no DSM-V, compreende a depressão como um transtorno mental que necessita de tratamento médico — por vezes medicamentoso —, a Universal categoriza a condição como um problema espiritual, que necessita de uma atenção que vai além dos cuidados preconizados pela medicina.

A tendência crescente à medicalização com base em categorias clínicas tem suscitado várias discussões e críticas entre estudiosos (DUNKER, 2020aDUNKER, C. A hipótese depressiva. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR; N.; DUNKER, C. (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020a, p. 177-282.; SAFATLE, 2020; ORTEGA, 2008ORTEGA, F. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.). Um dado relevante para essa discussão é que o surgimento do neoliberalismo, nos anos 1970, esteve acompanhado por uma substancial reformulação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), edição III, no qual a depressão ganha autonomia em relação às neuroses, sinalizando o contexto de queda da psicanálise como horizonte fundamental de referência clínica até aquele momento (SAFATLE, SILVA JUNIOR, DUNKER, 2020SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020c.). Entendendo que uma materialidade discursiva depende de suas condições históricas de possibilidade (FOUCAULT, 2012______. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.), a reedição do documento não é fruto do acaso. Se antes se entendia o sofrimento psíquico — e a depressão — como uma expressão de sistemas de conflitos e contradições tanto a nível individual como nos processos de socialização, denunciando problemas nas estruturas de nossas instituições, a partir da edição III do Manual, a depressão é definida como um transtorno mental de ordem cerebral e bioquímica. Essa mudança transfere a responsabilidade pelo transtorno ao indivíduo e causa um apagamento das questões políticas que envolvem o diagnóstico, o que sugere um alinhamento com preceitos neoliberais.

Para a IURD, um aspecto fundamental para validar sua atuação na sociedade é a exposição e celebração dos resultados adquiridos a partir de seus projetos e ações. Assim, a categoria Eventos (13,9%) reúne textos de divulgação de reuniões e cultos, representando o impacto da Universal como instituição social. Entre as abordagens destacadas na categoria estão saúde mental e programas e projetos sociais. A categoria Eventos se diferencia de Projetos e ações sociais devido ao foco discursivo. Os eventos se caracterizam por serem oportunidades de transformação das pessoas e celebração das conquistas.

Chama a atenção na categoria como as questões políticas do país são instrumentalizadas no discurso iurdiano. Em matéria publicada em 6 de abril de 2020, por exemplo, de divulgação do Programa Entrelinhas, a IURD convoca o público a descobrir “quem são os interessados no colapso do país”15 15 Disponível em: <http://bit.ly/brasilcolapso>. Acesso em: 23 abr. 2021. , referindo-se à discussão sobre a abertura dos estabelecimentos comerciais e o retorno dos indivíduos ao trabalho durante a pandemia da covid-19. No texto, a Universal defende a reabertura do comércio e das igrejas, alegando que, “com inteligência e bom senso”, é possível tomar as medidas certas.

As notícias que marcam a celebração de conquistas dos seguidores normalmente contam com testemunhos como ferramentas de validação do “circuito da conquista”. Para Bianca de Jesus, 25 anos — voz convocada ao discurso iurdiano na matéria publicada em 4 de abril de 2021 —, após passar por inúmeras dificuldades emocionais, psicológicas e financeiras por estar há dez anos longe da fé, o retorno à IURD representou a possibilidade de superar seus problemas: “Hoje tenho tudo”16 16 Disponível em: <http://bit.ly/arosaquetodos>. Acesso em: 30 abr. 2021 . Na mesma matéria, ela acrescenta que, após duas tentativas de suicídio, impulsionadas pela depressão, o apoio da Igreja foi fundamental para sua libertação: “Essa reunião, porém, só fez efeito na minha vida quando realmente entendi que meu maior problema era espiritual”. Histórias como essa são o foco temático da categoria Histórias de Superação (13%), que reuniu textos que utilizaram testemunhos como ferramentas de sustentação do discurso de que é possível ser feliz.

Através de histórias de sucesso, a Universal se apresenta como a mediação entre o sujeito e a felicidade, como se pode ver no trecho a seguir, de matéria publicada em 28 de março de 2021: “Marília Lopes, de 35 anos, afirma que hoje é feliz, mas nem sempre foi assim. Segundo explica, apesar de servir a Deus antes mesmo de chegar à Universal, ela era uma pessoa deprimida, cheia de complexos e chorava muito”17 17 Disponível em: <http://bit.ly/espiritointerior>. Acesso em: 24 abr. 2021. . Em matéria de 6 de abril de 2021, outro depoimento chama a atenção: “Se a igreja não estivesse com as portas abertas, eu tinha [sic] matado os meus pais e tiraria minha vida em seguida… Hoje estou aqui livre de toda depressão e sofrimento!!!! As pessoas precisam buscar a Deus”18 18 Disponível em: <http://bit.ly/igrejaaberta>. Acesso em: 24 abr. 2021. . Para muitos iurdianos, a felicidade é vista como um sentimento de paz, tranquilidade, libertação da depressão e outros transtornos mentais: “Na primeira vez eu já senti uma paz e o meu medo passou. Foram sete sextas-feiras e, nesse período, eu me senti livre da depressão. Ouvi e acreditei na Palavra que vinha do Altar”19 19 Disponível em: <http://bit.ly/fimdotunel>. Acesso em: 24 abr. 2021. .

Em uma sociedade em que as pessoas são vistas como capital humano, consequência de um processo de economização (BROWN, 2018BROWN, W. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Tradução: Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.), tudo se torna “gerenciável”, inclusive a própria felicidade. O discurso empreendedor está presente em diferentes esferas da vida, inclusive a religiosa. Em testemunhos, nas matérias analisadas, o termo “vencer”, associado tanto ao esporte quanto ao empreendedorismo, foi utilizado para ressaltar a conquista da cura da depressão, como pode ser visto neste trecho da matéria publicada em 10 de Setembro de 2020: “Hoje, ser capaz de olhar nos olhos de uma pessoa depressiva, que acha que não tem mais jeito e dizer ‘eu venci, você também pode vencer’, é algo muito forte”20 20 Disponível em: <http://bit.ly/setembroamarelocampanha>. Acesso em: 30 abr. 2021. . A divisão da sociedade entre vencedores e perdedores também é bastante presente nos discursos neoliberais e repercute na compreensão que se tem da depressão, que é vista como “parte da normatividade como elemento negativo desta última” (DARDOT, LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 366-267). Aquele que não suporta a concorrência é dito “fraco, dependente, que se suspeita não estar ‘a altura do desafio’” (Idem, p. 367).

Na categoria Igreja como atividade essencial (10,2%), temos uma série de notícias que defendem a manutenção da abertura de igrejas no período da pandemia. As matérias se apropriam de vários recursos discursivos para demonstrar a essencialidade das atividades da Universal, principalmente a partir da evocação da liberdade religiosa e laicidade como princípios constitucionais, a aproximação de suas práticas com o universo da medicina, a recorrente expressão “pronto-socorro espiritualNenhum”Nenhum21 21 Disponível em: <http://bit.ly/prontosos>. Acesso em: 30 abr. 2021 , oferecendo uma cura para os males da alma. Com a decisão do STF pela manutenção do fechamento de igrejas durante o período mais crítico da pandemia, nos primeiros meses de 2021, várias instituições e lideranças se pronunciaram. A decisão foi recebida com indignação pela Igreja Universal, que questionou em vídeo publicado no Facebook em 11 de abril de 2021: “até quando as ideologias e interesses políticos vão ficar acima da necessidade do povo?”22 22 Disponível em: <http://bit.ly/nemesqnemdir>. Acesso em: 30 abr. 2021.

Segundo o bispo Renato Cardoso, genro de Edir Macedo, no mesmo vídeo, “esses absurdos que temos acompanhado desde o início da pandemia mostram que, aparentemente, a última preocupação de muitas autoridades é realmente o bem-estar e a saúde das pessoas”. Sua fala nos permite observar como a manutenção de reuniões presenciais da igreja vai sendo articulada aos significantes em torno da saúde, mais precisamente a mental, e da política. As notícias da categoria Igreja como atividade essencial defendem o papel estratégico dos pastores na gestão do sofrimento, entendido como uma “carência emocional e espiritual”23 23 Disponível em: <https://bit.ly/voluntariosiurd>. Acesso em: 01 mai. 2021 .A mesma matéria, do dia 2 de abril de 2020, afirma que “a ajuda espiritual é essencial” e que, no período da pandemia, “mesmo com as portas das igrejas fechadas, as pessoas podem contar com o amparo dos pastores e esposas por meio de telefonemas, mensagens e vídeo chamadas”. Títulos das notícias da categoria em questão deixam evidente como a reabertura das igrejas foi pauta das matérias do Portal da Universal: “Fechar uma igreja é como fechar um hospital”24 24 Disponível em: <http://bit.ly/fecharumaigreja>. Acesso em: 01 mai. 2021 , “Portas abertas, saúde em dia”25 25 Disponível em: <http://bit.ly/portasabertassaude>. Acesso em: 01 mai. 2021 , “Único grupo com melhora na saúde mental durante a pandemia: pessoas que frequentam uma igreja semanalmente”26 26 Disponível em: <http://bit.ly/unicogrupo>. Acesso em: 01 mai. 2021 , entre outros.

A última categoria, Educação (5,6%), abarcou os textos em que a articulação Família-Educação foi tema central, especialmente no que se refere à orientação dos jovens aos valores familiares. Destacou-se o uso de tecnologia em excesso durante a pandemia, especialmente a exposição às telas como fator de impacto na saúde física e mental das crianças. As matérias contaram com vozes de especialistas, inclusive da Sociedade Brasileira de Pediatria, alertando sobre os perigos da chamada hiperconexão, que pode, segundo trecho da matéria publicada no dia 19 de dezembro de 2020, acarretar “queda do rendimento escolar, ansiedade, insônia, depressão e sedentarismo”27 27 Disponível em: <http://bit.ly/excessodetela>. Acesso em: 30 abr. 2021 . A tecnologia, nesses textos, é apresentada como uma ferramenta que tanto pode ser facilitadora das relações, como desencadeadora de desequilíbrios pessoais e interpessoais. Nesse sentido, a IURD, alinhando-se com o modelo empresarial de gestão da sociedade, orienta os membros da família a agirem como empresários de si, definindo suas condutas e suas ações segundo a lógica de investimento versus retorno (FOUCAULT, 2008______. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

Fé, sofrimento e cura nos discursos da IURD sobre depressão

Como forma de vida, o neoliberalismo diz respeito tanto aos modos de gestão pública da sociedade como a uma produção de subjetividades ancoradas em racionalidades políticas do mercado. A razão neoliberal concebe mercado e moral como elementos indissociáveis na provisão de recursos para os indivíduos (BROWN, 2019______. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.). Para Foucault (2008)______. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., o neoliberalismo é uma “reprogramação do liberalismo” na medida em que configura uma outra racionalidade política, que não se limita ao fortalecimento do capital, mas atua, através dos princípios de governo aplicados pelo Estado, em toda a sociedade. O indivíduo passa do “sujeito da troca e da satisfação das necessidades (liberalismo clássico)” (BROWN, 2019______. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 30) a um “sujeito da competição e do aprimoramento do capital humano (neoliberalismo)” (Ibidem). Um salto diferencial empreendido pelo neoliberalismo — que justifica o prefixo que o acompanha — é o entendimento da necessidade de uma política de sociedade que estabelecesse e garantisse as condições para a concorrência e competitividade.

Nesse discurso gerencial, o bom desempenho torna-se um dever, a fim de entrar no jogo concorrencial que tem como horizonte o imperativo do gozo (DARDOT, LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.). Ao propor um modelo de felicidade, o neoliberalismo inevitavelmente produz formas de sofrimento. E, no contexto iurdiano, a felicidade está estritamente associada à concretização do “circuito da conquista”.

O sofrimento — incluindo a depressão — para a IURD deve ser superado pela prática de uma fé racional, e não apenas administrado ou tamponado (DUNKER, 2020DUNKER, C.; PAULON, C.; SANCHES, D.; LANA, H.; LIMA, R. A.; BAZZO, R. Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR; Nelson; DUNKER, C. (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020b, p. 215-254.), como parecem sugerir as propostas das intervenções medicamentosas, que se alinham mais a uma perspectiva adaptativa dos sujeitos. Por esse motivo, o sofrimento é uma categoria estruturante das narrativas de superação produzidas pela Igreja, seja por meio das falas dos agentes institucionais ou de seguidores.

Os depoimentos apresentados nas análises deste trabalho reforçam que os testemunhos são um recurso importante para promover a metanoia e a conversão, interpelando os relatos de outros sujeitos através de uma pedagogia de uma fé inteligente promovida pela IURD, que tem sua tônica na Teologia da Prosperidade alicerçada nos pilares da racionalidade neoliberal. Baseando-se nos princípios da confissão positiva, tais narrativas se mostram produtivas na constituição de uma subjetividade política, pois postulam modos de conduta e formas de vida possíveis dentro desse aparato ético. São ferramentas que reforçam o modelo de sujeito neoliberal, capaz de conquistar a felicidade por si só através da cura espiritual.

No contexto do capitalismo contemporâneo, o sacrifício pode ser transposto para a compreensão de um sacrifício compartilhado da cidadania (BROWN, 2018BROWN, W. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Tradução: Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.) por meio de processos de despolitização generalizada e responsabilização individual por problemas que são da ordem coletiva, o que desvela a dimensão teológica própria desse capitalismo. É o que se expressa nos discursos da IURD sobre a depressão durante a pandemia quando o assunto é levantado e instrumentalizado em meio a uma crise sanitária e econômica cuja solução, para a instituição, seria a flexibilização de medidas restritivas, tais como o fechamento temporário de instituições e estabelecimentos de serviços tidos como não essenciais.

Considerações finais

Ao denominar a depressão como carência espiritual, o discurso da IURD propõe um novo sentido a esse significante, que foge do escopo dos campos da medicina e da psicologia. Esse posicionamento, recorrente nas notícias analisadas, não condiz com a definição clínica preconizada pelo DSM-V, conforme visto, e revela uma disputa discursiva pela depressão. Se, por um lado, o transtorno é reconhecido e legitimado pela ciência médica, por outro, a compreensão iurdiana da depressão extrapola essa definição, a entendendo como um problema espiritual. E essa diferença repercute, necessariamente, nas práticas dos sujeitos. Entretanto, analisando profundamente os discursos iurdianos, foi possível identificar que estes remetem a um processo mais geral de despolitização, que promove o apagamento das condições sociais em que os sujeitos estão inseridos e a adequação desses à ordem social. Nesse sentido, a Universal vai ao encontro do DSM-V, que, ao privilegiar a dimensão bioquímica e cerebral ao definir a depressão, mesmo que por um caminho diferente, ignora o transtorno como uma expressão de sistemas de conflitos e de contradições nos processos de socialização e despolitiza também o diagnóstico.

Como saída para a depressão, a IURD elenca uma série de ações sociais protagonizadas pela instituição e afirma o tratamento espiritual como indispensável para a cura efetiva do depressivo, sendo esta entendida como possível somente pelo exercício da fé, que pressupõe sacrifícios individuais, não apenas de dízimos e ofertas, mas de tudo aquilo que possa afetar — fazer falta — a vida desses sujeitos.

A individualização da salvação se alinha a uma lógica de resultados, em que o investimento na fé, tendo na Universal um suporte mediador, é a única maneira de alcançar a cura. Os procedimentos de renúncia e sacrifício, nessa trajetória, são uma sintaxe diretamente vinculada à gramática do sofrimento, mas também à transformação. Assim, o neopentecostalismo, no qual se insere a IURD, alinha-se as mesmas prerrogativas e atua segundo os mesmos imperativos da ordem social neoliberal.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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