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A desobediência civil como um direito de defesa em Rawls e uma tentativa de resposta à crítica de Raz

Civil disobedience as a right of defense in Rawls and an attempt to respond to Raz’s criticism

RESUMO

O texto expõe, em traços gerais, a teoria da desobediência civil de Rawls, com a finalidade de destacar a definição da desobediência civil como sendo um direito. Pretende-se mostrar que se trata de um direito individual, ainda que seu exercício possa também apresentar traços políticos. Em seguida, apresenta a teoria de Raz no sentido da negativa de que a desobediência civil seja um direito. Ad argumentandum tantum, toma-se como procedente a objeção de Raz, com a finalidade de escrutinar algumas consequências que uma tal formulação acarretaria para a teoria de Rawls, especificamente no que diz respeito à fundamentação da desobediência civil, como sendo um direito. Por fim, analisa possíveis respostas que poderiam ser ofertadas a Raz, a partir especialmente da perspectiva de Rawls. Defende-se que isso implica a necessidade de reconstruir a teoria da desobediência de Rawls, como teoria da resistência.

Palavras-chave:
desobediência civil; direito; Rawls; Raz

ABSTRACT

The text exposes, in general terms, Rawls’ theory of civil disobedience, in order to highlight the definition of civil disobedience as a right. It is intended to show that it is an individual right, although its exercise may also present political traits. Next, it presents Raz’s theory in the sense of denying that civil disobedience is a right. Ad argumentandum tantum, Raz’s objection is taken as well-founded, in order to scrutinize some consequences that such a formulation have for Rawls’ theory, specifically regarding the justification of civil disobedience as a right. Finally, it scrutinizes possible responses that could be offered in response to Raz, especially from Rawls’ perspective. It is argued that this implies the need for a reconstruction of Rawls’ theory of disobedience as a theory of resistance.

Keywords:
civil disobedience; right; Rawls; Raz

1 Introdução

A desobediência civil é tratada por Rawls tendo em vista a sua justificação em relação aos produtos resultantes dos procedimentos democráticos majoritários, especialmente, as leis. Principalmente, a desobediência civil é também compreendida por Rawls como um direito de defesa. É precisamente neste último particular que o tema carece de um melhor esclarecimento em relação aos fundamentos desse direito, bem como em relação à natureza e ao escopo do mesmo.

Nessa perspectiva, Raz objeta que a desobediência civil não é um direito. Pretende-se levar a sério a formulação de Raz, no sentido de escrutinar algumas consequências que uma tal formulação acarretaria sobre a teoria de Rawls, especificamente no que diz respeito à fundamentação do direito à desobediência civil.

A desobediência civil está na penumbra entre a legalidade e a ilegalidade. Habermas caracteriza os desobedientes como “dissidentes ambivalentes” ( Habermas, 2004HABERMAS, J. 2004. Religious Tolerance - The Pacemaker for Cultural Rights. Philosophy. 79 (1): p. 5-18., p. 9), isso porque ela seria um ato político que, ao mesmo tempo, desafiaria e se submeteria à legalidade. Exemplar desse caráter ambíguo é a distinção de Moraro entre respeitar e obedecer à lei. 1 1 “The duty to respect the law, however, does not entail a duty to obey it” ( Moraro, 2018, p. 513>. Isso implica, para ele, que não se deve punir os desobedientes, já que os seus atos comportariam respeito à lei. Deveras, a desobediência civil é distinta da resistência, esta ilegal de forma cristalina, bem como da objeção de consciência, legalmente reconhecida por muitos sistemas jurídicos. Essa ambivalência da desobediência civil lhe confere um caráter problemático no sentido da sua possível justificação e da sua relação com a autoridade democrática, o que tem desafiado a filosofia pelo menos desde Sócrates.

Segundo Scheuerman, haveria quatro modelos de desobediência: um modelo religioso, ao qual pertenceriam Gandhi e King; um modelo liberal, como o de Rawls; um modelo democrático, como o de Arendt e o de Habermas, e um modelo anarquista, como o de Simmons. Essa classificação é didática por ofertar uma visão mais geral da justificação e dos fundamentos da desobediência civil. Nesse diapasão, o problemático no primeiro modelo seria o seu fundamento espiritual, em face de perspectivas plurais não religiosas. Já, a segunda conduziria a um reformismo tímido. O último modelo, por seu turno, desafiaria a premissa estatista ( Wolff, 1998WOLFF, R. P. 1998. In Defense of Anarchism. Berkeley: University of California Press.) dos modelos anteriores, no que é acompanhado pela esquerda anticapitalista e pela direita libertária ( Scheuerman, 2018SCHEUERMAN, W. E. 2018. Civil Disobedience. Cambridge: Polity Press., p. 82. Pretende-se destacar que a crítica de Raz atinge especialmente o modelo democrático e o modelo liberal.

Por ora, o liberalismo é tomado como uma posição que dá uma certa prioridade aos direitos individuais 2 2 É o que Rawls nomeia uma inviolabilidade da pessoa ( Rawls, 1999a, p. 3, 442, 513). , formalmente iguais, sobre outros direitos, inclusive sobre os direitos políticos ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 3, 202, 442, 513; Habermas, 2007HABERMAS, J. 2007. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. [F. B. Siebeneichler: Zwischen Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro ., p. 301). Por seu turno, a democracia é tomado como sendo um sistema político que considera o princípio da participação política ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., §36). Ambos os termos estão em uma certa tensão, já que há autores que defendem não haver conexão necessária entre liberdade individual e democracia: “não há conexão necessária entre liberdade individual e governo democrático” (Berlin, 2002, p. 177).

Arendt e Rawls, ao mesmo tempo em que divorciam a objeção de consciência e a desobediência civil, dão a esta última um viés mais político, ainda que ambos cheguem a resultados sensivelmente diferentes. Arendt desconecta bastante a desobediência civil de fundamentos morais, entendendo a moral como algo eminentemente privado, como reclama Scheuerman (2018SCHEUERMAN, W. E. 2018. Civil Disobedience. Cambridge: Polity Press., p. 67), e conecta fortemente a desobediência civil à política. Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .), sem desfazer o viés político, formula a desobediência civil por referência às bases morais da democracia, nos termos de um conflito de deveres: entre o dever de obediência às leis emitidas segundo o procedimento ditado pela Constituição e o dever de se opor à injustiça, sem contar o conflito entre o mencionado dever de obediência e o direito de defesa das liberdades pessoais (p. 319).

Não obstante, será destacado no presente estudo a caracterização da desobediência civil como um direito. A desobediência civil envolve mais do que a ação de falar. Segundo Arendt (1972ARENDT, H. 1972. Civil Disobedience. In Crises of the Republic. New York: Harcourt.), envolve a conduta (p. 83). Ou seja, a desobediência civil envolve mais do que um ato de fala, envolve uma ação política para além do ato de falar. Como mencionado há pouco, Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) afirma que a desobediência civil é um direito a atos de defesa, com certa conexão com a liberdade de expressão (p. 321).

Raz desafia esta interpretação da desobediência civil como um direito. Primeiro, para ele, caso ela fosse um dever, não seria necessário justificá-la como um direito e caso ela fosse um direito, não precisaria justificá-la como um dever moral. Considerando que Rawls aceita a penalização dos desobedientes, para Raz, isso soa incoerente em todos os sentidos, pois se fosse um dever, não se justificaria a punição, e muito menos se fosse um direito. Para ele, portanto, em sociedades nas quais há um direito político vigente, não há direito à desobediência, e muito menos um dever de desobediência.

2 Rawls: a desobediência civil como direito de defesa

Em A Theory of Justice, Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) apresenta um diagrama mostrando a operação do raciocínio prático como equidade na determinação do correto (rightness as fairness) ou, mais especificamente, apresenta a justiça como equidade (justice as fairness) (p. 93-5). Tomando o raciocínio prático no sentido da posição original, no que diz respeito ao conceito de correto (concept of right), ter-se-ia a seguinte ordem na qual os princípios seriam escolhidos: princípios para os sistemas sociais, princípios para os indivíduos e princípios para o direito dos povos (law of nations). Nesse sentido, os princípios de justiça viriam antes daqueles aplicados aos indivíduos, o que implica a conexão dos mesmos com práticas sociais que seriam anteriores ao indivíduo ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 95), bem como mostraria a incompletude dos deveres e das obrigações dos indivíduos, os quais seriam dependentes de instituições sociais justas. Mui provavelmente Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) teve em vista o papel que o equilíbrio reflexivo e a posição original desempenhariam no esclarecimento de princípios partilhados de forma generalizada (p. 18).

Em relação aos indivíduos, o princípio da equidade aplicar-se-ia às obrigações deles para com as instituições. Com efeito, para que vínculos obrigacionais sejam gerados, tal princípio estatui duas condições: a justiça da instituição obrigante e a aceitação voluntária dos benefícios dela ou do proveito das vantagens que a instituição oferece para promover os interesses das pessoas obrigadas ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 96). Em outras palavras, Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) une o argumento de que a instituição tem que ser justa ao argumento do fair-play, o qual cobra uma obrigação em função do benefício auferido. Portanto, vínculos obrigacionais pressupõem instituições justas (p. 302).

Sem embargo, Ralws destaca que essa noção de obrigação não responde adequadamente pelos vínculos políticos da média dos cidadãos, por exemplo, para os que não ocupam cargos no serviço público. Em relação a estes é que ele afirma não haver obrigação política: “There is, I believe, no political obligation, strictly speaking, for citizens generally” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 98). Vale registrar, a resposta para os fundamentos dos deveres políticos é importante, senão por outro motivo, ao menos em razão de as instituições políticas se aplicarem inevitavelmente às pessoas, seja pelo nascimento ou por outro fator importante para tal ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 302), ofertando, desse modo, uma resposta ao problema da segurança, o qual pressupõe uma instância capaz de garantir expectativas recíprocas de comportamento.

É precisamente em tal direção que, diferentemente das obrigações que pressupõem um ato voluntário, os deveres naturais se aplicam, independentemente de um ato voluntário. Ora, um dos deveres naturais mais importantes é justamente aquele de obedecer às instituições que sejam justas, para além de qualquer ato voluntário ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 99). Desse modo, há pelo menos duas maneiras de conceber os vínculos (bound) com as instituições políticas: eles podem ser obrigacionais ou podem ser de dever natural. Não obstante, a vinculação pelo dever natural é a mais importante, já que atinge a todos, independentemente de ato voluntário, ao passo que o princípio da equidade somente obriga aos que assumem cargos públicos, justamente porque, neste caso, há ato voluntário a criar a vinculação. Precisamente por essa importância política é que o dever natural de justiça seria escolhido na posição original, logo depois dos princípios de justiça, para assegurar a estabilidade das instituições justas, removendo tentações. 3 3 ( Rawls, 1999, p. 295-6). Os deveres naturais não exigem atos supererrogatórios, atos de heroísmo e de sacrifício. Tais ações são boas, mas não são deveres ou obrigações. Esse ponto é importante para um dos objetivos centrais de Rawls (1999), qual seja, aquele de apresentar a sua concepção de justiça como alternativa ao utilitarismo (p. XI), já que este pareceria demandar certos atos para o bem dos outros, a despeito dos seus custos para o indivíduo (p. 100). Sobre esse ponto ver Volpato Dutra (2018, p. 385-408). Portanto, seria racional a escolha do princípio da equidade na posição original, em função de ele potencializar as vantagens mútuas, ou seja, o interesse comum do sistema de cooperação com base na liberdade de escolha ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 306). A título de esclarecimento, vale lembrar que aqueles que têm vínculos obrigacionais para com as instituições políticas, derivados do princípio da equidade, em razão das vantagens que usufruem, têm também uma ligação mais forte do que aqueles vinculados pelo dever natural e que não aproveitam diretamente das vantagens do sistema, ainda que a natureza de ambos os vínculos seja moral ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 97, 303).

Até o momento tudo parece funcionar bem, pois as “obrigações” devidas em razão do princípio da equidade e do dever natural estão relacionadas com instituições justas que emitem normas justas. O problemático ocorre quando a norma emitida por tais instituições for injusta. Trata-se do que Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) chama de teoria da obrigação (compliance) parcial, a qual versa sobre como se deve tratar (to deal) a injustiça (p. 8), o que inclui as questões da punição, da justiça compensatória, da guerra justa, da objeção de consciência, da desobediência civil e da resistência militante (p. 309). A objeção de consciência e a desobediência civil são discutidas por Rawls na obra em comento, ao passo que a guerra justa e a resistência militante são tratadas com mais vagar em The Law of Peoples. Em relação àquelas, opera o conceito de razoabilidade, que responde pelo limite da injustiça, pressupondo-se uma justiça processual imperfeita, o que remete à regra da maioria, necessária, mas falha ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 311), isso porque, do processo deliberativo, nem sempre resultará uma decisão justa (p. 314). Nesse particular, cabe discussão em relação ao sucesso de tal procedimento no que concerne aos resultados serem considerados justos, legítimos, razoáveis, decentes ou mesmo racionais. Rawls não parece aderir à versão epistêmica otimista do teorema de Condorcet. Para ele, o correto, o justo, pode ou não se realizar via procedimentos democráticos majoritários ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 315), ainda que não sejam as mesmas chances de jogar uma moeda para cima.

Não obstante, o risco de tais falhas pode ser aceito, desde que os resultados injustos decorrentes das imperfeições do procedimento majoritário sejam partilhados equitativamente ou não sobrecarreguem um grupo mais do que outro. É a civilidade que ordena a aceitação dos defeitos das instituições ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 312). Dito claramente, “Reasoning is not closed once and for all in public reason any more than it is closed in any form of reasoning” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 170). Por isso mesmo, Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) distingue a submissão da conduta à autoridade democrática e a submissão do julgamento a tal autoridade: “It suffices to note that while citizens normally submit their conduct to democratic authority, that is, recognize the outcome of a vote as establishing a binding rule, other things equal, they do not submit their judgment to it” (p. 313-314). 4 4 Ênfase acrescentada. A assertiva rawlsiana bem relembra um ponto de Kant a respeito da mais inofensiva das liberdades: “Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!” [WA, AA 08: 36-37]. De acordo com Estlund (1997), Rousseau seria de outra cepa: “Since the minority voter is expected to conclude that she is mistaken, the initial acceptance of majority rule is an agreement to surrender one’s judgment on the general will to the procedure” (p. 199, ênfase acrescentada).

De qualquer modo, se a sociedade for quase justa, ela será democrática, o que conduzirá, também, a procedimentos majoritários, mais por razões pragmáticas, como a estabilidade, do que por razões epistêmicas. Justamente por isso, a regra da maioria acaba sendo aceita sob duas reservas, a da sua limitação pelo direito de defesa das próprias liberdades e pelo dever de se opor à injustiça ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 319), reservas, aliás, que traduzem as bases morais da democracia.

Esse é o ponto em que o tratamento da desobediência toma corpo, no sentido da sua definição, da sua justificação e do seu papel. Sabidamente, Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .), no §55, define a desobediência civil como um ato político, público, não violento, consciente, com a finalidade de mudar a lei ou políticas do governo (p. 320). Ela é tratada exclusivamente em conexão com o dever de justiça (Rawls, 1999a, p. 331).

De se destacar que a desobediência civil porta semelhança com a objeção de consciência, tanto que, tradicionalmente, ambas foram tratadas de forma conexa, pois a desobediência foi pensada em relação com razões de consciência, como exemplarmente teria sido o caso de Thoreau. Nesse particular, Rawls e Arendt muito contribuíram para a distinção desses dois conceitos.

Seja como for, para Rawls, a objeção de consciência não é um ato que desafie precipuamente a injustiça. Com efeito, ela pode ser baseada em outros fundamentos que não princípios políticos, como os religiosos. Um pacifista dificilmente desafiaria a justificação da guerra justa, como aquela promovida em autodefesa, de tal modo que a sua motivação não poderia ser política. Aliás, como justificar essa imunidade que o pacifista reivindica no caso de a guerra ser justa? Nesse sentido, há limites à objeção de consciência, como a proibição de sacrifícios humanos, no mínimo. A objeção de consciência pareceria não desempenhar um papel importante, no entanto, ela deve ser mantida, pois, quando em conexão com princípios de justiça, “a general willingness to resist the state’s claims is all the more necessary” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 335), de tal forma que, muito embora ela seja uma das espécies de oposição a regimes injustos, não parece desempenhar aquela função estabilizadora cometida à desobediência civil.

Nos termos do §57, a justificação da desobediência opera sob uma tríplice condição. A primeira condição é a sua restrição a casos importantes e claros referentes ao primeiro princípio de justiça, ou seja, à igual liberdade, e à segunda parte do segundo princípio de justiça, a igualdade equitativa de oportunidade. A segunda condição é que devem ser superados os caminhos políticos e jurídicos oficiais de contestação da injustiça e só no caso desses caminhos normais falharem é que se poderá apelar à desobediência como último recurso [last resort]. A terceira condição é ditada pelo respeito ao dever natural de justiça que ordena considerar e restringir a magnitude da desordem que a desobediência poderá causar ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 326-328).

Finalmente, será justamente no papel, na função, que a desobediência mostrará conexões fortes com a democracia, já que ela só faz sentido em uma sociedade democrática. O papel básico que a desobediência desempenha é o de ser um dispositivo derradeiro de estabilização da democracia, ainda que ilegal ou no limite da legalidade, mas com pedigree moral. Isso porque ela fortalece a autoestima e desestimula a rebelião que corta os laços comunitários ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 336-337). Analogamente, isso valeria para a objeção de consciência.

Outro aspecto importante a ser mencionado diz respeito à manutenção da ordem pública. Com efeito, um ponto de destaque para a estabilidade de qualquer sociedade é que haja instâncias aceitas de resolução de conflitos. É da própria pena de Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) o seguinte registro: “Up to a certain point it is better that the law and its interpretation be settled than that it be settled rightly” (p. 341). Dito claramente, Rawls leva muito a sério a estabilidade política, tanto que a sua justificativa da mesma avança para além das obrigações políticas, em direção clara a um dever natural ordenado pela razão e escolhido na posição original.

Sem embargo do afirmado há pouco, a concepção de Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) parece ter germes anárquicos, visto que, para ele, “Numa sociedade democrática [...] O tribunal de última instância não é o judiciário, nem o executivo, nem o legislativo, mas sim o eleitorado com um todo” (p. 342). Contudo, a sua resposta à possibilidade de anarquia consiste em destacar que o consenso sobreposto referente aos princípios de justiça seria suficiente para evitar tal risco de anarquia, sem contar que a ameaça dos desobedientes para a concórdia pública deveria ser, no mínimo, dividida também com os que abusam da autoridade e do poder, senão imputada somente a estes, já que haveria um direito de resistir contra o emprego do aparato coercitivo do Estado para manter instituições manifestamente injustas, por se constituir em um uso ilegítimo da força ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 342).

Somado tudo isso tem-se que

“The problem of civil disobedience, as I shall interpret it, arises only within a more or less just democratic state for those citizens who recognize and accept the legitimacy of the constitution. The difficulty is one of a conflict of duties. At what point does the duty to comply with laws enacted by a legislative majority (or with executive acts supported by such a majority) cease to be binding in view of the right to defend one’s liberties and the duty to oppose injustice? This question involves the nature and limits of majority rule. For this reason the problem of civil disobedience is a crucial test case for any theory of the moral basis of democracy” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 319, ênfase acrescentada).

Contra o questionamento de a concepção de desobediência defendida por ele ser não realista, em função da necessária pressuposição da efetividade de um senso de justiça, para o qual os desobedientes apelariam, Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .) adianta algo que só se tornará explícito mais tarde em sua obra, no sentido de que para que tal senso se constitua não se faz necessário um consenso estrito, mas é suficiente um consenso por sobreposição (overlapping rather than strict consensus) (p. 340).

Ao final de um movimento que envolve a desobediência civil, caso a lei questionada venha a ser declarada nula ou venha a ser modificada, resta a questão de decidir se os atos de desobediência deveriam ser considerados ilegais ou não ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 321). De acordo com Rawls (1999a), como a desobediência operaria nos limites da fidelidade à lei, essa fidelidade seria demonstrada pelo seu caráter público, não violento e pela disposição de aceitar a punição, pois, especialmente este último ponto, seria uma expressão da sinceridade em relação aos motivos do questionamento da lei (p. 322). 5 5 Habermas, também, acompanhará essa linha de raciocínio: “Se todo risco pessoal desaparece, o fundamento moral do protesto que infringe as regras torna-se questionável; também se desvaloriza o seu efeito de apelo” ( Habermas, 2015, p. 143).

O direito de autopreservação entra em cena, na obra, como parte da resposta concernente aos limites da tolerância dos intolerantes ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 192). Tudo indica que é esse mesmo direito que foi chamado para impor um limite à vontade majoritária, agora como direito de defesa contra certos produtos dessa maioria, direito este que configura também uma certa prioridade das liberdades básicas sobre as de participação 6 6 “One of the tenets of classical liberalism is that the political liberties are of less intrinsic importance than liberty of conscience and freedom of the person. Should one be forced to choose between the political liberties and all the others, the governance of a good sovereign who recognized the latter and who upheld the rule of law would be far preferable. […] The priority of liberty does not exclude marginal exchanges within the system of freedom. Moreover, it allows although it does not require that some liberties, say those covered by the principle of participation, are less essential in that their main role is to protect the remaining freedoms” ( Rawls, 1999, p. 201-2, ênfase acrescentada). Se a primeira parte da citação é referente ao liberalismo clássico, a segunda parece ser a convicção do texto. Em suma, ao que parece, ele também honra essas máximas do liberalismo, nas duas obras, aos menos de maneira parcial, pois parece permitir [allows] que o princípio da participação possa ser considerado menos essencial, na medida em que seu papel pode ser considerado como aquele de proteger as outras liberdades. Mais que isso, em ponto algum ele diz o contrário, ou seja, que as liberdades liberais teriam valor instrumental em relação às liberdades políticas, como, ao menos, em parte, parece ser o caso de Habermas. Há como que uma subprioridade dentro da prioridade da liberdade, ou seja, dentro de P1 haveria uma prioridade das liberdades individuais sobre as políticas. Então, elas teriam valor não só instrumental, mas em si mesmas, mas no cotejo com a liberdades individuais, cederiam o passo. , o que implica uma maior preocupação com relação aos produtos do procedimento democrático do que com o próprio procedimento: “The fundamental criterion for judging any procedure is the justice of its likely results. [...] Everything depends on the probable justice of the outcome” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., §37, p. 202-3). Vale o registro de que isso é afirmado no §37, que trata das limitações ao princípio da participação.

Esse posicionamento parece conduzir a um grau indevido de tolerância à injustiça, já que as infrações [infringements] ao primeiro princípio de justiça teriam que ser sérias, substanciais, claras e as violações em relação à segunda parte do segundo princípio de justiça precisariam ser graves, flagrantes [blatant] ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 326-7). Nas palavras do comentador,

“citizens must comply with deliberative democratic decisions that are unjust within the limits set by the duty of civility. In other words, citizens have a standing reason to comply in circumstances where democratic majorities enact legislation that is unjust but can be defended in terms that are reasonable” ( Smith, 2013 SMITH, W. 2013. Civil Disobedience and Deliberative Democracy. New York: Routledge. , p. 29).

Isso deixaria em aberto um espectro bastante amplo de injustiças que não estariam em contradição explícita com a razoabilidade.

3 Raz: a desobediência civil não é um direito

A posição de Rawls foi criticada de diversos modos. Para alguns, ela se ressente de um déficit democrático, como alegam Cohen & Arato (1992COHEN, J. L.; ARATO, A. 1992. Civil Society and Political Theory. Cambridge: MIT Press., p. 574). Para outros, ela implicaria aceitar uma dose muito alta de injustiça, como defendido por Smith (2013SMITH, W. 2013. Civil Disobedience and Deliberative Democracy. New York: Routledge., p. 37, 39, 41). Há ainda os que criticam os elementos característicos da desobediência, como aquele da não violência, da publicidade, da agenda limitada ( Smith, 20SMITH, W. 2013. Civil Disobedience and Deliberative Democracy. New York: Routledge.13, p. 37, 39, 47; Celikates, 2021), o que inclusive clamaria por uma nova forma de desobediência, não mais civil ( Delmas, 2021DELMAS, C. 2018. A Duty to Resist: When Disobedience Should Be Uncivil. New York: Oxford University Press.). Finalmente, há a crítica de que a desobediência civil não seria um direito, pelo menos não um direito no sentido jurídico, como sustenta Raz. O presente estudo se limita a esta última crítica.

Raz tece as seguintes objeções à tese de que a desobediência civil seria um direito. Para ele, caso ela fosse um direito, não seria excepcional, não proibiria a violência, não estaria limitada à justiça da causa e não poderia ser apenada. Em resumo, para ele, em uma sociedade democrática, a desobediência civil não seria um direito, visto os seus defensores, em geral, pensaram-na como excepcional, não violenta, limitada à justiça da causa e penalizável.

Na parte IV do seu livro The Authority of Law, Raz trata das atitudes morais em relação ao direito, as quais dizem respeito à obrigação de obedecer e ao respeito devido às leis. Por oportuno, trata, também, de um direito de dissenso, especificamente, trata da desobediência civil e da objeção de consciência. Raz (1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon .) assume, como tese do texto, que não há um dever moral de obedecer às leis jurídicas (p. 268). Para ele, há que se ter respeito pela lei. A bem da verdade, Raz acaba por defender um caráter duplo para o direito, como fato social e como norma. Neste último caso, sim, poderia guiar a conduta no sentido de uma obrigação com um viés moral ( Raz, 2009RAZ, J. 2009. Between Authority and Interpretation: On the Theory of Law and Practical Reason. Oxford: Oxford University Press ., p. 344-5).

O problemático, de acordo com ele, não seria propriamente a justificação da desobediência por razões políticas ou morais ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 262), como, aliás, defendem Arendt, Rawls, Dworkin, Habermas, mas, sim, concluir que tal justificativa implicaria um direito de desobedecer: “If civil disobedience is justified then there is a right to it” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 268). Raz (1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon .) aponta para uma precisão conceitual que diferencia entre asserir que a desobediência civil é correta [is right] e ter um direito à [right to] desobediência civil (p. 267). Para se compreender tal distinção é necessário apontar para a natureza dos direitos. Nesse particular, para ele, ter um direito implica uma liberdade de fazer que inclui também poder agir de forma errada ou imoral. Ele exemplifica isso com o direito à liberdade de expressão, o qual permite a alguém dizer até mesmo algo que não se deveria expressar. 7 7 “Freedom of expression is denied […] not because one cannot express true beliefs but because one cannot express false ones, beliefs which one should not have nor express. This and nothing less is implied by the common observation that the freedom is to express any view one wishes (subject to a certain small number of restrictions such as that against libel)” ( Raz, 1979, p. 266). De acordo com Raz, não seria necessário ser portador de um direito para poder fazer a coisa certa. Para tal, seria suficiente que a ação fosse considerada correta:

“At first blush it may be thought surprising that one should have a right to do that which one ought not. Is it not better to confine rights to that which it is right or at least permissible to do? But to say this is to misunderstand the nature of rights. One needs no right to be entitled to do the right thing. That it is right gives one all the title one needs. But one needs a right to be entitled to do that which one should not. It is an essential element of rights to action that they entitle one to do that which one should not. To say this is not, of course, to say that the purpose or justification of rights of action is to increase wrongdoing. Their purpose is to develop and protect the autonomy of the agent. They entitle him to choose for himself rightly or wrongly. But they cannot do that unless they entitle him to choose wrongly” ( Raz, 1979 RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon . , p. 266-267, ênfase acrescentada ).

Como bem se vê, um dos fundamentos dos direitos é a promoção da autonomia ou da liberdade. 8 8 “The right-holder’s interest in freedom is part of the justification of most rights and is the central element in the justification of some” ( Raz, 1996, p. 49) Coerente com o seu liberalismo perfeccionista, para alguém poder realmente escolher algo por si mesmo teria que ser possível eleger também o que seria errado. Uma consequência disso é que se a desobediência civil fosse um direito, então, não se poderia proibir o seu uso também para fins considerados errados, já que se trataria de um direito no sentido declinado por Raz. Como ele bem registra, “Those who hold that there is a right to civil disobedience are committed to the view that in general the rightness of the cause contributes not at all to the justification of civil disobedience” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 268), ou seja, a desobediência civil não dependeria da justiça da causa ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 269). Para se compreender melhor a lógica do raciocínio de Raz basta observar um direito análogo à desobediência civil, como o direito à ação política. A ação política não resta limitada pela justiça da causa que defende: “People may support political aims of all complexions” ( 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 268). Ao contrário, a ação política pode mesmo ser mobilizada para fins que uma parte substantiva da sociedade considera errada, como ter posse ou porte de armas de fogo, ou, de forma mais radical, há sociedades democráticas que toleram até mesmo a existência de partidos políticos com plataformas nazistas ou fundamentalistas. 9 9 Um modelo mais amplo de liberdade política foi adotado pelos Estados Unidos, configurado pela Suprema Corte no caso Skokie (National Socialist Party of America v. Village of Skokie, 432 U.S. 43 (1977)), pelo qual os nazistas foram permitidos de se agruparem e manifestarem publicamente o seu ideário. A decisão parece sufragar o Federalista 10, no sentido de que não se deve remover as causas das facções, mormente a liberdade, mas controlar os seus efeitos (Hamilton, 2008, p. 49). A corte disse que poderia haver proibição de palavras obscenas, difamatórias e de luta [aquelas com a única finalidade de causar injúria ou violência, mas isso não incluiria tumulto verbal, discórdia e frases ofensivas]. Mais que isso, segundo a decisão, as reações do público, de raiva ou ressentimento, não poderiam ser razão para a sua proibição. Em relação à suástica, “Court found that the swastika did not constitute fighting words.” [https://www.mtsu.edu/first-amendment/article/728/village-of-skokie-v-national-socialist-party-of-america-ill]. Um modelo mais restrito foi seguido por países como a Alemanha, que interdita tais manifestações. O Brasil adotou este último modelo, configurado pelo STF no caso Ellwanger [BRASIL. STF. HC 82424. HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. [...] . (HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)]. Poder-se-ia acalentar a hipótese de que Rawls acataria o modelo mais amplo da tradição constitucional americana e Habermas o modelo mais restrito do constitucionalismo alemão ( Solum, 1989). Desse modo, se fosse comparado o direito à ação política com o suposto direito à desobediência civil, ver-se-ia as inconsistências desta última quando entendida como um direito. Caso a desobediência civil fosse um direito, argumenta Raz (1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon .), não caberia a proibição, ao menos de forma absoluta, de possíveis consequências violentas, até porque muitos outros atos políticos, como uma greve de motoristas de ambulâncias, poderiam ter consequências graves, por exemplo, no caso em tela, para alguém necessitado de socorro médico (p. 267).

Para Raz, o caráter excepcional, de ultima ratio, atribuído à desobediência civil por Rawls e também por Habermas, é inconsistente. Algo não poderia ser concebido como um direito e ao mesmo tempo como algo excepcional que se justificaria pela importância da causa que defenderia, no caso de Rawls, liberdades básicas definidoras da justiça, no caso de Habermas, o Estado de direito ou o procedimento democrático. Para ele, na verdade, a desobediência civil é um tipo de ação política a que não se tem direito. Seria isso que explicaria a sua verdadeira natureza de excepcionalidade: “Its exceptional character lies precisely in the reverse of this claim, in the fact that it is (in liberal states) one type of political action to which one has no right” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 275). Querer justificá-la como excepcional, como último recurso, ao mesmo tempo em que se a concebe como um direito, seria, portanto, inconsistente.

Por isso, ele se propõe a tomar uma outra direção, qual seja, operar a partir da distinção entre sociedades que têm um direito de participação política e sociedades que não o têm. Nesse sentido, a participação política seria um princípio liberal, não necessariamente democrático, já que a configuração do direito à participação política não precisaria ser necessariamente democrática ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 271). Disso se segue a sua tese principal: em sociedades liberais não haveria o direito à desobediência civil ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 272). Seria justamente o caráter não liberal de uma sociedade, por encolher de tal forma o direito de participação política, que implicaria, como uma espécie de contrapartida, a liberdade de desobedecer como parte do direito moral à participação política, não realizado juridicamente em tal sociedade. Nas sociedades liberais, a participação política, se adequadamente protegida pela lei, nunca [never] albergaria o direito de desobedecer à lei ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 273).

De todo modo, poderia haver desobediência civil em um Estado liberal, tal qual por ele definido? Sim, mas ela não seria um direito. Isso decorreria, como já mencionado, de haver dois argumentos para o convencimento de que alguém pode [is entitled] fazer um certo ato: ou mostrar que o ato é correto [is right] ou mostrar que se tem um direito [has a right to] de fazê-lo ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 274). Como já apontado, se alguém tem um direito, ele pode fazer incluso o que for errado. Ora, para Raz, não há um tal direito nos Estados liberais. Restaria, portanto, a primeira alternativa. Em sendo assim, quais consequências seguir-se-iam para a análise da desobediência civil? A primeira delas é que as autoridades podem impedir os atos de desobediência civil, bem como podem puni-los, pois ultrapassam os limites da tolerância no exercício dos direitos políticos. Veja-se que, nesse ponto, ele se põe no sentido oposto àquele de Dworkin, bem como, de algum modo, em sentido diverso de Arendt, Rawls e Habermas, dentre outros, que tentam afastar a desobediência civil de seu tratamento como crime. Para ele, certamente, seria um ilícito.

Ademais, é justamente o fato de a desobediência civil não ser um direito que explicaria, para ele, parte de sua definição. Por exemplo, a sua excepcionalidade adviria de ela não ser um direito, mas uma ação que se justificaria em razão de ser uma ação política correta, em função da justiça da sua causa. Sem embargo, ela estaria para além do tolerável em uma comunidade que assegurasse legalmente direitos morais políticos, pois, justamente, desafiaria a regulamentação jurídica do direito de participação política que, de fato, a proíbe ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 275). Muito embora seja excepcional nesse sentido, não significa que seja justificada só como um último recurso, como pensam Rawls e Habermas. Não, às vezes, ela poderia ser menos danosa e mais efetiva do que o exercício de um direito legal. Para voltar ao exemplo da greve dos motoristas de ambulâncias, uma greve legal dos mesmos, dentro dos limites da lei, poderia ser mais longa, menos eficaz e com mais consequências danosas do que uma ação de desobediência civil indireta, como o bloqueio de uma via pública 10 10 “Art. 95. Nenhuma obra ou evento que possa perturbar ou interromper a livre circulação de veículos e pedestres, ou colocar em risco sua segurança, será iniciada sem permissão prévia do órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via. [...] § 3º O descumprimento do disposto neste artigo será punido com multa de R$ 81,35 (oitenta e um reais e trinta e cinco centavos) a R$ 488,10 (quatrocentos e oitenta e oito reais e dez centavos), independentemente das cominações cíveis e penais cabíveis, além de multa diária no mesmo valor até a regularização da situação, a partir do prazo final concedido pela autoridade de trânsito, levando-se em consideração a dimensão da obra ou do evento e o prejuízo causado ao trânsito» [ BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o código de trânsito brasileiro]. ou a ocupação de um prédio, o que, nestes últimos casos, implica, amiúde, uma boa dose de violência, pois pode causar, e em geral causa, prejuízos às pessoas e a seus bens ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 275). A sua posição é a de que tanto uma ação lícita, como uma greve, quanto uma ação ilícita, como o bloqueio de uma via pública, podem conduzir a atos de violência, de tal modo que não se poderia afirmar que a sua justificação ocorreria somente quando fosse não violenta.

De outro lado, Raz chega a uma conclusão bem diferente em relação à objeção de consciência. Esta é um ato de afirmação da imunidade de um indivíduo “from public interference in matters which he regards as private to himself” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 276). Segundo ele, trata-se de um direito que reside no coração do liberalismo: “a state is liberal only if it includes laws to the effect that no man shall be liable for breach of duty if his breach is committed because he thinks that it is morally wrong for him to obey the law on the ground that it is morally bad or wrong totally or in part” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 276). A aplicação ao caso do pacifista ajuda a compreender melhor a natureza desse direito. Se a guerra for justificada de algum modo, como se pensa que seja, por exemplo, em autodefesa, então, pode-se bem vislumbrar a dificuldade envolvida na justificação da objeção de consciência do pacifista: “It involves showing that a person is entitled not to do what it would otherwise be his moral duty to do simply because he wrongly believes that it is wrong for him to do so” (Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., 277). Portanto, o argumento precisa demonstrar que se trata de um direito de fazer o que é errado:

“Therefore, the argument must proceed on the assumption that the law is morally valid and that one should (morally) comply with it. The conscientious objector, it will be assumed, proposes to act wrongly. […] The fact that he prizes highly what we do not does not weaken his case. It is precisely this fact that lies at the heart of the principle of conscientious objection” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon . , 278).

O direito de fazer o errado reside no cerne do liberalismo perfeccionista, tal qual Raz o defende. O liberalismo é caracterizado, primeiro, pela autonomia pessoal e, segundo, pelo pluralismo. Este último tem dois aspectos, o desenvolvimento de talentos e de gostos. Isso implica que seja franqueado buscar os mesmos do modo que cada um achar melhor, ainda que sob as limitações da necessidade de cooperação social e da igualdade de oportunidades. Ora, é deste aspecto da busca dos talentos e gostos do modo que cada um achar melhor que advém a força do argumento em favor do direito à objeção de consciência: “It concerns people with formed moral views and it claims their right to be faithful to them even if they are misguided” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., 280). O direito não poderia coagir uma pessoa a fazer o que ela considera moralmente errado, como lutar em uma guerra.

Cabe observar que em razão da sua teoria normativa, Raz prefere um tratamento da objeção de consciência mais em termos do grupo a que os desobedientes pertencem do que nos termos de um indivíduo isolado.

Dois pontos ainda merecem destaque em relação à argumentação de Raz. O primeiro é aquele de um superdimensionamento da legalidade, especificamente da legislação que realiza os direitos políticos, status que Raz atenua em relação aos produtos de tal legalidade, já que estes, sim, podem ser desobedecidos sob o pálio do direito à objeção de consciência. Com isso, há como que uma assimetria. Por um lado, ele parece dar mais solidez à realização jurídica dos direitos políticos, haja vista a desobediência civil não se configurar como um direito, mas se configurar somente como um ato ilegal, ainda que com pedigree moral, por outro lado, ele parece aliviar o peso dos produtos resultantes de tal legislação, via o direito à objeção de consciência.

O segundo ponto diz respeito à natureza dos direitos. A proposta de Raz de compreender a natureza dos direitos como a liberdade de fazer algo errado, imoral, importa uma problemática que os comentadores não deixaram de registrar. Pareceria haver um tipo de inconsistência em sustentar um direito moral de fazer algo moralmente errado. Waldron nomina a posição de Mackie como exemplar daquela que sustentaria a inconsistência de um direito moral de fazer algo moralmente errado. 11 11 ( Waldron, 1981, p. 24). O artigo de Mackie referido por Waldron é de 1978. Por outro lado, autores como Lefkowitz, Raz, Dworkin, Brownlee 12 12 Por um lado, Brownlee (2012) sustenta uma perspectiva bastante ampliada de não punição dos desobedientes, que inclui mesmo manifestações nazistas (p. 163, 266). Por outro lado, o direito de desobedecer, que decorre do princípio humanístico do respeito pela autonomia e pela dignidade, não é absoluto, mas encontra vários limites processuais, o que restringiria bastante as possibilidades de desobediência civil de um nazista [p. 163]. , defendem justamente a tese contrária, à qual, com muitas restrições, se alinham Quong 13 13 Quong (2011) distingue o incorreto e o não razoável [wrongness and unreasonableness] para também proibir a fala nazista (p. 309). e o próprio Waldron. 14 14 Segundo Waldron (1993), a fala nazista seria acometida por um tipo de inconsistência que justificaria o banimento de sua fala (p. 223). Dworkin é exemplar dessa posição em sua maior amplitude. A proibição de falas odiosas, racistas, para Dworkin (2011DWORKIN, R. 2011. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press.), feriria a liberdade positiva de tentar agrupar outros ao redor das próprias ideias, como feriria a liberdade ética de mostrar as próprias convicções políticas, ainda que erradas (p. 373). Para ele, as falas odiosas, por si mesmas, não teriam o condão de causar dano à igualdade de todos ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 366).

Há que se registrar que a concepção de direito defendida por Raz não significa que ele seja ilimitado. Nem a desobediência tem escopo ilimitado, nem a ação política. Deveras, Raz (1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon .) admite limitações. “Liberal states do not make the legitimacy of political action dependent on the cause it is meant to serve. […] But the right to political action is circumscribed in such states by limitations as to the form of the permissible actions” (p. 268). Porém a compreensão dessas limitações pressupõe que se distinga, com mais precisão, na ação política, os meios e os objetivos políticos, ou seja, tratar-se-ia mais da questão do tipo de ação escolhida, dos meios, do que do objetivo político:

“It is clear, nevertheless, that the right to political participation is limited. It is limited because of the need to respect the same right in others and because the right to political participation is neither the only nor an absolute value and it has to be limited in order to safeguard other values. […] limitations on the right are independent of the political objectives the right is used to support, they must inevitably turn on the means used to support such objectives. It must be a right confined to certain forms of action and not to others. […] the law should set limits to one’s legal right to political activity and these should coincide with those which are right on moral and political grounds” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 271-2, ênfase acrescentada).

O mesmo vale em relação à objeção de consciência, a qual pode ser limitada em favor de outros objetivos: “The case is, however, merely a prima facie case. It may be right to compromise and override it in favour of other goals” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 289).

Esta distinção entre objetivos e meios está em consonância com a forma jurídica, já que a lei jurídica não toca nos aspectos subjetivos envolvidos, como o julgamento, o juízo ou os objetivos que se possa ter. As limitações que a lei impõe dizem respeito à ação, aos meios efetivos, ou seja, são determinados atos que são excluídos: “Wolff is wrong in saying that accepting authority involves giving up the right or the attempt to form a judgment on the balance of reasons. Only action on that judgment is excluded (if it involves relying on excluded reasons which are not overridden)” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., 1979, p. 26, nota 25, ênfase acrescentada).

As limitações pensadas por Raz não implicam uma subordinação do direito à moral, como parece sugerido ao final de uma das citações feitas há pouco (em itálico). Deveras, nem se poderia esperar uma posição como essa do positivista Raz, contudo, tomada isoladamente, o final da citação parece sugerir justamente tal assertiva, o que é improcedente, pois, da afirmativa da citação, não se segue que o limite moral não seja ele próprio afetado pela lei positiva: “To say this is not to imply that the extent of the moral right should affect but not itself be affected by legal rules” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 272). Isso não só porque há muitas alternativas de limitação disponíveis para serem escolhidas, como é desejável que tal limite seja pública e abertamente explicitado. Inclusive, de acordo com Raz (1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon .), se a regulação jurídica for razoável, ela se torna moralmente vinculante “[...] makes them morally binding” (p. 272), mesmo em face de uma regulamentação melhor, mas não positivada, de tal forma que “In this way the law affects one’s moral right to political action. But principally it should be moulded by it” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 272). Entre um arranjo razoável bom, mas sem o direito à desobediência civil, e um arranjo melhor, mas com o direito à desobediência civil, dever-se-ia preferir o primeiro, mesmo sob um ponto de vista moral. Talvez, isso possa explicar o superdimensionamento que Raz opera do aparato legal concernente ao direito político. O traçado jurídico do mesmo parece pô-lo acima de qualquer outra modelagem, ainda que outro traçado pudesse realizar melhor o direito de participação política. Justamente, esse enclausuramento legal total é o que buscam evitar os defensores do direito à desobediência civil. Habermas seria exemplar dessa posição, já que, para ele, a legitimidade dependeria de fontes indisponíveis para o direito.

4 Impactos sobre a teoria rawlsiana da desobediência civil e tentativa de resposta

Raz parece ter razão no sentido de que as características declinadas por Rawls para a desobediência civil não são consistentes com ela ser considerada um direito. Por isso, para responder à objeção de Raz, propõe-se reconstruir a desobediência de A Theory of Justice em conexão com violações dos direitos humanos, tais quais definidos em The Law of Peoples e, como consequência, reconstruí-la como uma teoria da resistência em bases morais, considerando que os direitos humanos não paroquiais de Rawls são um mínimo moral que pode responder pelo núcleo normativo essencial albergado em P1 e de P2.

Trata-se de uma proposta de reconstrução do direito à desobediência civil que tem como finalidade ofertar uma resposta à objeção de Raz. Neste particular, escrutina-se os possíveis efeitos sobre a proposta de Rawls, que acabam por ter implicações para outras teorias que concebem a desobediência civil como um direito. No ponto principal, articula uma reconstrução 15 15 Usa-se reconstrução de modo semelhante ao sugerido por Habermas (2016): “ Reconstrução, em nosso contexto significa que uma teoria é decomposta e recomposta em uma nova forma para que possa assim atingir o fim que ela mesma se pôs: esse é um modo normal de se relacionar com uma teoria que, sob diversos aspectos, precisa de revisão, mas cujo potencial de estímulo (ainda) não se esgotou” (p. 25). cuja finalidade é menos a de apresentar uma interpretação do que Rawls teria feito, a despeito do que ele próprio afirmou ter feito, ainda que possa haver indícios nessa direção, e mais uma reconstrução que aproveita dos termos nos quais o direito à desobediência civil foi articulada por autores como Rawls. No limite, pretende-se repensar os impactos da tese de Raz sobre Rawls, tendo em vista a rearticulação que a sua teoria parece sofrer em The Law of Peoples.

Sabidamente, a razoabilidade é central para o argumento de Rawls (1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press .) na posição original, pois ela conduz à ideia de reciprocidade (p. 28), a qual se diferencia tanto da imparcialidade quanto do autointeresse exclusivo ( Rawls, 1996RAWLS, J. 1996. Political Liberalism. New York: Columbia University Press., p. 50). Na posição original não se pode esperar uma vantagem especial para si mesmo, pois não seria razoável esperar para si mais do que o igual, como também não seria racional concordar com menos do que o igual. Dito claramente, a razoabilidade consiste em considerar que os outros são racionais, ou seja, no sentido de que não aceitarão uma desvantagem, por exemplo, o racismo contra si, que seria não só irracional, mas também injusto ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 129). Vê-se, então, que a razoabilidade de alguém consiste em estender para os outros a própria racionalidade que não aceita uma desvantagem para si. Portanto, parece se tratar de algo muito próximo da regra de ouro. 16 16 Sabidamente, -- Rawls (1996) teceu uma crítica a essa forma de raciocinar com base em uma teoria da escolha racional (p. 53, nota 7). Se alguém não aceita uma desvantagem para si em relação aos outros, a razoabilidade convoca a precisamente em fazer essa mesma imputação aos demais. Por isso, do princípio da razoabilidade, em conjunção com a racionalidade, só poderá resultar a igualdade. 17 17 “Now consider the point of view of anyone in the original position. There is no way for him to win special advantages for himself. Nor, on the other hand, are there grounds for his acquiescing in special disadvantages. Since it is not reasonable for him to expect more than an equal share in the division of social primary goods, and since it is not rational for him to agree to less, the sensible thing is to acknowledge as the first step a principle of justice requiring an equal distribution. Indeed, this principle is so obvious given the symmetry of the parties that it would occur to everyone immediately. Thus the parties start with a principle requiring equal basic liberties for all, as well as fair equality of opportunity and equal division of income and wealth” ( Rawls, 1999, p. 130). A razoabilidade, portanto, pode ser definida como uma disposição de propor o que os outros poderiam endossar 18 18 “a willingness to propose fair terms of social cooperation that others as free and equal also might endorse” ( Rawls, 2005, p. 375). , bem como, considerando os limites do julgamento, uma disposição de ser tolerante.

Como dito, a ideia de razoabilidade conduz à ideia de reciprocidade e, por consequência, aparentemente, a uma sociedade democrática, haja vista ninguém estar disposto a ter uma situação desfavorecida em relação aos direitos políticos. A exigência da democracia, Rawls a conecta com uma sociedade quase justa. 19 19 Rawls, 1999b, p. 319, 335. Em sentido análogo, Habermas (1997) defende uma conexão necessária entre Estado de direito e democracia: “A argumentação no livro visou essencialmente provar a existência de um nexo conceitual ou interno entre Estado de direito e democracia, o qual não é meramente histórico ou casual” (p. 310; ver também Volpato Dutra (2018). Porém, em The Law of Peoples, faz-se uma distinção entre povos liberais razoáveis e povos decentes. Não obstante, na obra tardia, ele não torna a democracia um requisito indispensável para a decência de uma sociedade, sob o ponto de vista dos direitos humanos. Destarte, uma sociedade decente não precisa ser democrática, ou seja, não precisa atribuir às pessoas o status de cidadãs. Prescinde, portanto, do conceito de cidadania: “A decent hierarchical society’s conception of the person [...] does not require acceptance of the liberal idea that persons are citizens first and have equal basic rights as equal citizens. Rather it views persons as responsible and cooperating members of their respective groups” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 66 ). A decência é mais estrita, no sentido de que só exige o conceito de pessoa, não o de cidadão. 20 20 “The criterion of reciprocity is normally violated whenever basic liberties are denied. For what reasons can both satisfy the criterion of reciprocity and justify denying to some persons religious liberty, holding others as slaves, imposing a property qualification on the right to vote, or denying the right of suffrage to women?” ( Rawls, 1999b, p. 138).

Ainda que para uma sociedade ser decente basta o conceito de pessoa, não sendo necessário dar efetividade ao conceito de cidadania, uma tal sociedade pode ter uma estrutura de consulta, por exemplo, como aquela pensada por Hegel: “a decent hierarchical society might hold a view similar to Hegel’s” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 72). Os povos decentes poderiam não ser democráticos, em vez disso, poderiam adotar alguma estrutura de consulta pública alternativa à democrática, mesmo que, vale bem destacar, Ralws ( 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press .) deixe em aberto outras possibilidades de povos decentes que não se ajustariam a tal critério (p. 4). Soa como se a estrutura de consulta fosse uma condição não necessária, ao passo que os direitos humanos seriam não só necessários, mas suficientes para o cumprimento do requisito da decência. Como se verá a seguir, os quatro direitos humanos definidos por Rawls não mencionam a exigência necessária de consulta alguma.

Justamente, essas outras possibilidades de povos decentes merecem ser mais bem exploradas. Quando Rawls caracteriza uma sociedade decente não liberal, ele formula o exemplo de um país chamado Kazanistan, cuja decência seria medida por três critérios: não agressividade, respeito aos direitos humanos, estrutura de consulta hierárquica. 21 21 “[…] is not aggressive against other peoples and accepts and follows the Law of Peoples; it honors and respects human rights; and its basic structure contains a decent consultation hierarchy, the features of which I describe” ( Rawls, 1999b, p. 5). No entanto, quando ele estabelece os dois critérios para sociedades decentes hierárquicas o terceiro aspecto não desaparece propriamente ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 65), mas tem um status menor. Senão veja-se. O primeiro critério é justamente aquele da não agressividade, ao passo que o segundo critério tem três partes:

(a) A primeira parte consiste em assegurar os direitos humanos para todos os membros do povo. Entre os direitos humanos ele destaca quatro deles: direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade formal. Nas suas palavras:

“Entre os direitos humanos estão o direito à vida (aos meios de subsistência e segurança); à liberdade (da escravidão, da servidão, da ocupação forçada e a uma medida suficiente de liberdade de consciência que assegure liberdade religiosa e de pensamento); à propriedade (propriedade pessoal); e à igualdade formal como expresso pelas regras da justiça natural (isto é, que casos similares sejam tratados similarmente). Direito humanos, assim entendidos, não podem ser rejeitados por serem peculiares do liberalismo ou especiais para a tradição ocidental. Eles não são politicamente paroquiais.” 22 22 Rawls, 1999b, p. 65. De se destacar o aspecto fundamental do direito à propriedade de bens pessoais como necessário à liberdade: “[…] a right to personal property as necessary for citizens’ independence and integrity […]” ( Rawls, 1999a, p. XVI).

Tais direitos estabelecem não só limites ao pluralismo, como excluem a possibilidade de intervenção internacional: “Human rights set a necessary, though not sufficient, standard for the decency of domestic political and social institutions. In doing so they limit admissible domestic law of societies [...]”. 23 23 Rawls, 1999b, p. 80. Não é uma condição também suficiente porque teria ainda que ser cumprida a primeira condição, bem como as partes 2 e 3 da segunda condição. Isso implica, por exemplo, a proibição da tortura, mesmo em caso de guerra ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 98). Os direitos humanos são um critério necessário, mas não suficiente, pois deve-se ajuntar, ainda, no mínimo, a não agressividade, senão também uma estrutura de consulta, ainda que hierárquica.

A segunda e a terceira partes dizem respeito ao direito tal qual ele foi entendido por Hart, muito embora Ralws não aponte para isso.

(b) Na segunda parte, a decência requer um sistema jurídico que não seja composto de meros comandos coercitivamente impostos, mas que dê espaço para deveres morais e obrigações a todos os seus membros ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 65-6), o que “does not require acceptance of the liberal idea that persons are citizens first and have equal basic rights as equal citizens. Rather it views persons as responsible and cooperating members of their respective groups” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 66, ênfase acrescentada). Em termos hartianos, deveria ser possível mudar da perspectiva de um sistema de comandos coercitivos para a perspectiva do seguimento de regras como guias, as quais implicam um ponto de vista interno, a partir da perspectiva do participante. Vale anotar que, para Rawls, o principal fundamento da obediência política é um dever natural com base moral, o qual, por certo, não poderia sufragar um regime político fundamentalmente injusto no sentido declinado pelo autor de A Theory of Justice. Até poder-se-ia alegar que o conceito de justiça se diz de maneira fundamentalmente diferente, por exemplo, nesse sentido preciso, seria possível dizer que o regime nazista também teria tido a sua concepção de justiça. Não obstante, com certeza, uma tal sociedade não passaria pelo teste da posição original de Rawls, quiçá, nem pelo teste do equilíbrio reflexivo e nem do consenso sobreposto, bem como, certamente, não passaria pelo critério da decência. Desse modo, em algum momento, um tal sistema restaria mantido por puros dispositivos de força. 24 24 “There are in fact two basic legal techniques, two ways in which the law serves its functions (there may also be further minor techniques). One is the provision of reasons for compliance through the stipulation of sanctions. The other is the marking, in a publicly ascertainable way, of standards required by the organized society” ( Raz, 1979, p. 246). “The upshot of the discussion in this section is that the law is good if it provides prudential reasons for action where and when this is advisable and if it marks out certain standards as socially required where it is appropriate to do so. If the law does so properly then it reinforces protection of morally valuable possibilities and interests and encourages and supports worthwhile forms of social co-operation. But neither of these legal techniques even when admirably used gives rise to an obligation to obey the law. It makes sense to judge the law as a useful and important social institution and to judge a legal system good or even perfect while denying that there is an obligation to obey its laws” ( Raz, 1979, p. 249). Na linguagem de Hart, sistemas assim seriam viáveis, mas não estáveis.

(c) A terceira parte é dirigida às autoridades no sentido de que “there must be a sincere and not unreasonable belief on the part of judges and other officials who administer the legal system that the law is indeed guided by a common good idea of justice. Laws supported merely by force are grounds for rebellion and resistance” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 66, 88). O bom de uma boa ideia comum de justiça está justamente nos direitos humanos de todos os membros do povo. Desse modo, não está em questão ser ou não ser uma sociedade bem-ordenada ou quase justa. Também não está em questão ser uma sociedade injusta. Os direitos humanos são a expressão da decência e impedem, normativamente, a rebelião, a resistência. 25 25 Hart teoriza algo semelhante quando instancia o conteúdo mínimo do direito ( Hart, 1994, Cap. IX).

O ponto que se quer destacar é que a descrição feita por Rawls não inclui que haja participação política no sentido de um papel significativo por parte do povo na tomada de decisão política, por exemplo, via algum tipo de consulta. Este seria justamente o caso das sociedades que Rawls (1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press .) nomina absolutismos benevolentes: “While a benevolent absolutism does respect and honor human rights, it is not a well-ordered society, since it does not give its members a meaningful role in making political decisions” (p. 92). Ainda assim, um tal sistema poderia ser caracterizado como decente.

Desse modo, seriam decentes mesmo as sociedades nas quais o povo não desempenhasse papel significativo na tomada de decisão política, tanto é verdade que, em razão disso, Rawls (1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press .) lhes concede o direito de autodefesa na lei internacional: “But any society that is nonaggressive and that honors human rights has the right of self-defense. Its level of spiritual life and culture may not be high in our eyes, but it always has the right to defend itself against invasion of its territory” (p. 92). A base para esses critérios é a decência: “Just as with the idea of the reasonable in political liberalism, there is no definition of decency from which the two criteria can be deduced. […] I think of decency as a normative idea of the same kind as reasonableness, though weaker (that is, it covers less than reasonableness does)” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 67, ênfase acrescentada). Essa noção de decência declinada pelos dois critérios mencionados são um equivalente da razoabilidade. É uma espécie de justiça mínima como condição de uma sociedade cooperativa para a qual não opera a noção de cidadania, bastando a de pessoa humana. Caso essas condições não fossem preenchidas, ter-se-ia comando pela força, não cooperação ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 68). Por exemplo, uma sociedade escravista não poderia ser cooperativa. 26 26 “A slave society lacks a decent system of law, as its slave economy is driven by a scheme of commands imposed by force. It lacks the idea of social cooperation” ( Rawls, 1999b, p. 65). A condição mínima de vigência do dever natural é definida pela decência da sociedade, o que poderia também ser reconstruída segundo uma versão naturalizada, como no caso de Hobbes (1979): “porque esses homens (geralmente chamados escravos) não têm obrigação alguma, e podem, sem injustiça, destruir suas cadeias ou prisão, e matar ou levar cativo seu senhor; por servo, entende-se alguém a quem se permite a liberdade corpórea e que, após prometer não fugir nem praticar violência contra seu senhor, recebe a confiança deste último. [...] Sua vida só se encontra em segurança, e sua servidão só se torna uma obrigação, depois de o vencedor lhe ter outorgado sua liberdade corpórea. Porque os escravos que trabalham nas prisões ou amarrados por cadeias não o fazem por dever, mas para evitar a crueldade de seus guardas” (cap. XX). Ela seria, portanto, mantida pela força.

A reconstrução proposta vai no sentido de rearticular o direito de defesa, do qual a desobediência civil poderia ser considerada uma espécie, no contexto de A Theory of Justice, no sentido do enfrentamento das sociedades indecentes, ou seja, daquelas que não respeitam os direitos humanos tais quais definidos por Rawls. Neste caso, tratar-se-ia, rigorosamente, de um direito de defesa, inclusive no que concerne ao uso da violência. Isso tornaria coerente o direito de defesa articulado em A Theory of Justice, em resposta às críticas endereçadas a Rawls, haja vista tal direito de defesa não ficar adstrito à desobediência civil, mas também autorizar atos de força contra leis injustas. Vale lembrar que, no contexto da mencionada obra, as injustiças que autorizariam a desobediência civil teriam que ser gritantes. 27 27 Um tal direito, até Kant parece admitir, seja na forma do ius necessitatis, seja na forma da autodefesa. Segundo ele, o destronamento de um monarca teria a seu favor a “[...] desculpa do direito de necessidade (casus necessitatis) [...] Mesmo o assassinato do monarca não é ainda o pior dos horrores de uma revolução política, pois então pode-se representar que ele se dê pelo povo por medo de que pudesse se reerguer, caso ficasse vivo, e fazer o povo sentir o merecido castigo, não pretendendo, pois, ser uma medida da justiça penal, mas meramente da autopreservação” (RL, AA 06: 321, nota). Kant não diz das razões, mas, tanto o estado de necessidade, quanto autopreservação, pressupõem ameaças à vida, de tal forma que estariam albergadas no primeiro direito humano de Rawls, no mínimo.

A teoria da desobediência precisa ser reconstruída, portanto, a partir do conceito de sociedades decentes e indecentes, tal qual estabelecido em The Law of Peoples. Sociedades decentes são aquelas que não realizam de forma adequada o princípio da participação política. Tais sociedades, muito embora vedem a resistência, desafiam a desobediência civil, como a luta pela democracia, na busca da construção de uma sociedade justa e bem-ordenada. Já, as sociedades indecentes, por violarem os direitos humanos não paroquiais, desafiariam a resistência.

Esse aspecto abre para uma típica na qual está inscrita o direito de defesa, já que, para Rawls, a desobediência civil é um direito de defesa, o qual parece estar incluído no primeiro princípio de justiça. Com efeito, o mencionado princípio comporta um amálgama de direitos e de princípios:

“Now it is essential to observe that the basic liberties are given by a list of such liberties. Important among these are political liberty (the right to vote and to hold public office) and freedom of speech and assembly; liberty of conscience and freedom of thought; freedom of the person, which includes freedom from psychological oppression and physical assault and dismemberment (integrity of the person); the right to hold personal property and freedom from arbitrary arrest and seizure as defined by the concept of the rule of law. These liberties are to be equal by the first principle” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 53).

Vale destacar, em apertada síntese: o princípio da igual liberdade de consciência ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 181), o direito de autopreservação ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 192) e o princípio da participação 28 28 “The principle of equal liberty, when applied to the political procedure defined by the constitution, I shall refer to as the principle of (equal) participation” ( Rawls, 1999a, p. 194). , bem como a relativa prioridade das liberdades básicas sobre o princípio da participação 29 29 “The priority of liberty […] allows although it does not require that some liberties, say those covered by the principle of participation, are less essential in that their main role is to protect the remaining freedoms” ( Rawls, 1999a, p. 202). , com o qual se introduz o tratamento do Estado de direito: “Now the rule of law is obviously closely related to liberty” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 207).

Como visto, o direito de autopreservação entrou em cena, na obra, como parte da resposta concernente aos limites da tolerância dos intolerantes. Tudo indica que é esse mesmo direito que foi chamado para impor um limite à vontade majoritária, agora como direito de defesa contra certos produtos dessa maioria, direito este que configura também uma certa prioridade das liberdades básicas sobre as de participação 30 30 “One of the tenets of classical liberalism is that the political liberties are of less intrinsic importance than liberty of conscience and freedom of the person. Should one be forced to choose between the political liberties and all the others, the governance of a good sovereign who recognized the latter and who upheld the rule of law would be far preferable. […] The priority of liberty does not exclude marginal exchanges within the system of freedom. Moreover, it allows although it does not require that some liberties, say those covered by the principle of participation, are less essential in that their main role is to protect the remaining freedoms” ( Rawls, 1999a, p. 202-2). Se a primeira parte da citação é referente ao liberalismo clássico, a segunda parece ser a convicção do texto. Em suma, pelo indicado, ele também honra essas máximas do liberalismo, nas duas obras, aos menos de maneira parcial, pois, pelo menos, parece permitir [allows] que o princípio da participação possa ser considerado menos essencial, na medida em que seu papel pode ser pensado como aquele de proteger as outras liberdades. Mais que isso, em ponto algum ele diz o contrário, ou seja, que as liberdades liberais tenham valor instrumentais em relação às liberdades políticas, como, ao menos em parte, parece ser o caso de Habermas. Há como que uma subprioridade dentro da prioridade da liberdade, ou seja, dentro de P1, uma prioridade das liberdades individuais sobre as políticas. Então, elas teriam valor não só instrumental, mas em si mesmas, mas no cotejo com a liberdades políticas, estas perderiam o passo. A desobediência é um direito de defesa contra qualquer governo, inclusive contra os democráticos. , o que implica uma maior preocupação com relação aos produtos do procedimento democrático do que com o próprio procedimento: “The fundamental criterion for judging any procedure is the justice of its likely results. [...] Everything depends on the probable justice of the outcome” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 202-203).

Postos em tais termos, a teoria da desobediência civil apresentada por Rawls pode ser reconstruída como direito de resistência em sociedades não decentes, entendidas aquelas que não respeitam os direitos humanos. Ao configurar a desobediência civil como um direito de defesa contra injustiças gravíssimas, Rawls acabou por defender algo mais musculado do que a desobediência civil, a saber, a resistência. No entanto, esta só estaria franqueada para o caso de sociedades indecentes. Certamente, cabe resistência para qualquer elemento indecente de qualquer sociedade, inclusive de uma sociedade bem-ordenada, se ela ferir os direitos humanos. Direitos humanos são a condição de qualquer obediência voluntária ao direito, cujo desrespeito desafia a sua resistência. Os direitos humanos não paroquiais são a condição mínima de qualquer obediência voluntária à lei, de tal forma que a sua não efetivação, em um sistema político ou jurídico, implica um sistema que se sustenta meramente pela força. Como afirmado acima, “Laws supported merely by force are grounds for rebellion and resistance” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 66, 88).

Desse modo, parte do que Rawls, e outros autores como Habermas, alocam no âmbito da desobediência civil é, a bem da verdade, ponto a desafiar a resistência, exemplarmente, para o caso de Rawls, alguns direitos incluídos no primeiro princípio de justiça e, no caso de Habermas, os direitos de número 1, 2 e 3, tais quais definidos em Facticidade e validade. Como pontua Estlund (2008ESTLUND, D. 2008. Democratic Authority: A Philosophical Framework. Princeton: Princeton University Press.) “There will also be the intermediate cases of unjust laws that, while not so heinous as to silence any suggestion of authority or legitimacy, warrant disobedience of a conscientious or demonstrative kind” (p. 111). Destaca-se a sugestão de injustiças capazes de silenciar qualquer sugestão de autoridade ou legitimidade, caso em que seria desafiada a resistência. Postos nesses termos, parece possível uma resposta à crítica endereçada a Rawls de não ter ofertado uma justificativa de por que a reação não poderia ser violenta, considerada a gravidade da injustiça. Só que não seria uma reação sob o pálio da desobediência, mas da resistência.

Na presente reconstrução, se for correta a interpretação de que a desobediência civil é um direito de defesa, Rawls tê-la-ia alocado entre as liberdades e direitos básicos que teriam prioridade sobre os de participação, o que implicaria a possibilidade deste direito de defesa ser reconstruído como direito de resistência, em nome da autopreservação, porque estariam em causa os quatro direitos humanos não paroquiais de Rawls, condições necessárias para uma sociedade decente. Talvez, o tipo de causa que mobilizou King pudesse ser classificada desse modo. Com efeito, é o próprio Rawls quem afirma no §55 de A Theory of Justice que a violação deliberada e persistente, especialmente das liberdades fundamentais iguais, “invites either submission or resistance.” De fato, Rawls parece tratar de causas que se não atendidas desafiariam a não civilidade dos atos: “forceful resistance may later be entertained”, afirma ele. Poder-se-ia dizer que um sistema que cometesse o tipo de lei ou ato que desafiasse a desobediência nos termos de um direito de defesa, seria um sistema tal que se afastaria amplamente [departs widely] da justiça ou que é uma concepção completamente equivocada de justiça [a mistaken conception of justice altogether].

Nesse sentido, até poder-se-ia conceder, contra Rawls e a favor de Raz, que em uma sociedade quase justa, que seria necessariamente democrática, não haveria o direito de desobedecer, visto que os canais de mudança da lei deveriam estar sempre abertos, sendo essa a essência mesma de uma sociedade democrática, ao menos nos termos da democracia deliberativa. Dito claramente, não haveria solução de continuidade entre democracia e desobediência, inclusive por um argumento que poderia ser extorquido do próprio Rawls: se todos os votantes têm vínculos políticos de dever natural, e nas democracias todos podem votar, logo, onde a democracia se põe, não há direito de desobediência, de tal modo que desobedecer seria um tipo de crime e deveria ser punido.

Porém, contra Raz e a favor de Rawls, muito embora se concedesse a Raz o seu argumento em relação à desobediência, sempre restaria o direito de resistir, tanto em uma sociedade quase-justa, quanto em uma sociedade decente, e, claro, muito mais em uma sociedade injusta ou indecente. No entanto, o fundamento desse direito não seriam os procedimentos democráticos, mas os direitos humanos, ou seja, não seria a razoabilidade, mas a decência. Nesse particular, a desobediência até poderia ser utilizada, mas como uma espécie de resistência, pacífica, ou como uma das possibilidades mais brandas na escalada da resistência não civil.

Ainda assim, essa reconstrução deixaria um vácuo na teoria de Rawls a respeito da desobediência civil, haja vista boa parte daquilo que poderia, segundo seu pensar, engendrar a desobediência, ter sido deslocado para o âmbito da resistência. Não obstante, seria a forma de responder às objeções de Raz, mas em outro âmbito, aquele da resistência, pois a resistência não seria algo excepcional face às injustiças sérias ou graves, como também poderia fazer uso da violência e não engendrar punição.

Ao final, defende-se que essa forma de compreensão traz mais clareza analítica para o uso desses conceitos que permanecem amalgamados, talvez obscuros ( Habermas, 2015HABERMAS, J. 2015. A nova obscuridade: pequenos escritos políticos V. São Paulo: Editora UNESP., p. 131). A proposta é separar o padrão dos direitos individuais do padrão da legitimidade democrática, algo que aparece, por exemplo, na proposta de Smith. No entanto, esse vácuo em relação à desobediência civil poderia ser suprido por uma reconstrução em termos processuais. Nesse sentido, o próprio Rawls aponta para várias falhas no procedimento democrático, como aquelas resultantes das disparidades de renda. Com efeito, segundo Rawls (1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .), a disparidade de riqueza pode levar a um controle do debate público por aqueles “better situated to exercise a larger influence over the development of legislation” (p. 198), sendo que “historically one of the main defects of constitutional government has been the failure to insure the fair value of political liberty” (p. 198). Mais importante ainda, “the effects of injustices in the political system are much more grave and long lasting than market imperfections” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 199). Tendo em vista esse diagnóstico, ele propõe medidas compesatórias: “Compensating steps must, then, be taken to preserve the fair value for all of the equal political liberties” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 198). Isso para além do voto universal, considerado por ele insuficiente ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 199). O que se propõe é que a teoria da desobediência, no contexto da obra em comento, deveria ser reconstruída como uma medida compensatória derradeira para corrigir as disparidades de influência política nos processos de deliberação democrática. Contudo, isso altera o modo como Rawls a concebeu. Ela teria que ser reconstruída como um dispositivo compensatório das disparidades de influência política, ou seja, teria que ser reconstruída como sendo de natureza processual, em consonância com o §36 da obra.

A tipologia de desobediências de Dworkin pode muito ajudar na presente reconstrução. Segundo ele, haveria três tipos. O primeiro tipo alicerça-se na integridade pessoal, pois envolve a consciência moral, envolve ação imoral, por exemplo, recusar-se a devolver um escravo fugitivo ao seu proprietário, matar inocentes no Vietnã, saudar compulsoriamente a bandeira. A desobediência do primeiro tipo é defensiva no sentido de não fazer algo que a consciência moral proíbe ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 109). Inclusive, este primeiro tipo, diferentemente dos outros dois, não exige que a possibilidade de seu exercício esgote previamente o processo político e judicial normal.

O segundo tipo se baseia em princípios de justiça, por exemplo, o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos tinha por base princípios morais da Constituição.

O terceiro tipo envolve questões políticas, quando as ações governamentais podem ser consideradas imprudentes ou perigosas, como a política de mísseis na Europa no século XX, justamente um dos casos analisados pelo texto de Habermas sobre a desobediência civil, no que, aliás, Habermas e Dworkin discordam.

Nesse sentido, a desobediência civil pode ser analisada como um meio de ação para a obtenção de certos resultados. Para isso, há duas possibilidades, uma primeira que visa à persuasão, no sentido de fazer a maioria mudar de opinião, como foi a tentativa de King, e uma segunda, mais claramente estratégica, com a finalidade de desmantelar um programa político ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 109). Nesta, deve-se considerar um cálculo de consequências, pois ela visa a aumentar os custos de manutenção de um determinado programa político, por exemplo, mediante o bloqueio de vias pública, dificultar acesso a locais, prédios, etc. Exemplares desse tipo de ação foram aquelas relacionadas ao apartheid na África do Sul ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 110).

Na desobediência de segundo tipo usam-se das duas estratégias, persuasivas e não persuasivas, mas elas também podem ser usadas nas de terceiro tipo ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 110), embora esta última seja mais problemática para este tipo específico ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 111), por exemplo, para questões econômicas ou como foi para o caso da política de mísseis da Europa ( Dworkin, 2000DWORKIN, R. 2000. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press ., p. 112-3).

Ora, as desobediências que Dworkin classifica de primeiro e de segundo tipo são estruturantes. A causa dos direitos civis e do apartheid são talmente injustos que desafiam resistência, não desobediência. Esta ficaria reservada ao terceiro tipo.

Como bem se vê, a tipologia de Dworkin é indício de que distinções mais precisas devem ser feitas entre desobediência civil e resistência.

5 Conclusão

A presente reconstrução explicita melhor as bases morais da democracia defendida por Rawls e outros, como Habermas e Dworkin. Nesse sentido, na filosofia de Rawls, tal base moral reside na decência da sociedade, ou seja, naqueles direitos humanos que ele considera não paroquiais. Tal base moral desafia a resistência, que por óbvio inclui a desobediência. A fundamento moral da desobediência civil foi reconstruído como direito moral de resistência, o que, mais uma vez, inclui a desobediência. Nesse sentido, a desobediência civil, diferentemente da resistência, não teria um fundamento moral, mas político.

Em uma sociedade que se concebesse como liberal ou democrática e que ferisse direitos humanos básicos, a desobediência poderia ser considerada como um estágio da resistência, já que a democracia, especialmente na sua formulação deliberativa, se define pela conexão com a esfera pública informal da sociedade civil. Nesse sentido, ela seria uma espécie de notificação extralegal de mora para dar ao sistema político e jurídico a oportunidade de revisão das leis consideradas injustas.

Propôs-se que a teoria da desobediência civil de Rawls como direito de defesa responda na verdade pela teoria da resistência. Com efeito, segundo ele, as injustiças têm que ser sérias ou graves. Por isso, propôs-se que o conteúdo de tal injustiça deva ser definido nos termos dos direitos humanos, tais quais explicitados por Rawls em The Law of Peoples, como condição de decência. Dito claramente, se uma sociedade é democrática, e uma sociedade justa ou quase justa tem que ser necessariamente democrática, então, em uma tal sociedade, não fica franqueada a desobediência civil como um direito para todo o escopo de produtos possivelmente resultante dos procedimentos democráticos. No que concerne aos produtos, em uma democracia, só se poderia resistir aos produtos em desacordo frontal com os direitos humanos não paroquiais, sendo que a desobediência civil, então, não passaria de um incidente no espectro da resistência à injustiça.

Não obstante, uma possível justificação da desobediência civil por direito próprio em uma sociedade democrática teria que residir nas incongruências entre o direito de participação política e a realização deste direito nos procedimentos democráticos legalmente instituídos em tal sociedade. É certo que em sociedades democráticas poderá haver desobediência civil, mas não como exercício de um direito com uma fundamentação moral. Nesse sentido, só poderia haver um direito próprio de desobediência em sociedades democráticas por direito próprio em conexão com os processos democráticos. Não seria um direito moral, mas um direito político. Nesse diapasão, haveria um direito próprio à desobediência civil, tanto em sociedades decentes, não decentes e quase-justas. Assim entendido, tal direito deveria ser política normal, como é o direito de greve, ou seja, não deveria ser punido e deveria ser pacífico. Habermas e Arendt, de fato, têm posições que vão nessa direção. Parte da reclamação de autores, como Celikates, em relação à violência, acabaria por ser deslocada para a resistência.

Como mencionado, a forma de a teoria de Rawls responder a Raz é deslocá-la para caracterizar a resistência, esta, sim, um direito individual de defesa dos direitos humanos individuais, o mínimo de decência que toda sociedade deve ter para ser cooperativa. Isso responderia à crítica de Rawls ter sido condescendente com injustiças sérias ou flagrantes, pois, em casos sérios e graves, ou seja, de prejuízo aos direitos humanos básicos, estaria franqueada a resistência, inclusive se isso viesse a ocorrer em sociedades democráticas. Nesse sentido, a desobediência fica rearticulada em conexão com procedimentos democráticos. A resistência é um direito de defesa contra prejuízos aos direitos humanos básicos, em especial, nas sociedades indecentes, mas também em qualquer sociedade nas quais tais prejuízos ocorrerem, como nas sociedades decentes hierárquicas, nas sociedades decentes absolutistas benevolentes e nas sociedades democráticas [quase-justas]. Por fim, a desobediência civil não é um direito moral em sociedades democráticas, mas é um direito político conectado aos direitos políticos. Seria, no dizer de Dworkin, como que o verso da medalha dos direitos políticos. 31 31 Dworkin, 2002, p. 295). “The right to disobey the law is not a separate right, having something to do with conscience, additional to other rights against the Government. It is simply a feature of these rights against the Government, and it cannot be denied in principle without denying that any such rights exist” ( Dworkin, 1977, p. 192). Em conexão com os procedimentos democráticos, tal direito se tornaria justificável em todos os tipos de sociedades, inclusive nas próprias sociedades que se autodeclaram democráticas.

Em suma, frente às objeções de Raz, torna-se difícil sustentar a teoria da desobediência civil de Rawls, como um direito de defesa. Para enfrentar a objeção de Raz, a sua teoria da desobediência civil precisa ser reformulada/reconstruída como uma teoria da resistência, já que esta é, sim, propriamente, um direito de defesa. Com a interpretação proposta, ela é redesenhada como resistência, que é um direito e, como tal, permite o uso da violência. Seu critério é aquele da decência, no sentido dos direitos humanos. Aplicar-se-ia também nas sociedades quase-justas e bem-ordenadas, caso houvesse atentado aos direitos humanos não paroquiais. Mais importante, ele não seria um último recurso.

Embora não tenha sido objeto do presente estudo, sugere-se que a teoria da desobediência civil de Habermas tem melhor chance no enfrentamento da objeção de Raz, já que ela não é entendida como um direito de defesa, mas como um direito de soberania do cidadão. Poder-se-ia sugerir, então, que Rawls e Habermas apresentam teorias que poderiam se complementar. Aquele não tem propriamente uma teoria da desobediência civil, mas uma teoria da resistência, como direito de defesa. Já este tem uma teoria da desobediência civil infensa à objeção de Raz, mas é carente de uma teoria adequada da resistência, ainda que a sua teoria da desobediência, primeiramente formulada em 1983, fique melhor nos termos da sua reformulação de 1992, a qual, inclusive, poderia albergar um lugar para a resistência, nos termos do “modelo processual de formação política racional da vontade” ( Habermas, 2020HABERMAS, J. 2020. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. [Felipe Gonçalves Silva & Rúrion Melo: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. São Paulo: Editora da UNESP., p. 222). Nesse diapasão, a desobediência civil é redesenhada no contraponto com os procedimentos que realizam o direito de participação política nas sociedades quase-justas. Ela responderia pelo déficit democrático estrutural de qualquer procedimento que vise a realizar institucionalmente o direito de participação política. Seria, portanto, um direito responsivo à inalienabilidade do direito de participação política. Como tal, não seria violenta, mas não precisaria ser um último recurso. Como dito, este último ponto deverá ser objeto de um outro estudo.

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  • 1
    “The duty to respect the law, however, does not entail a duty to obey it” ( Moraro, 2018MORARO, P. 2018. On (Not) Accepting The Punishment for Civil Disobedience. The Philosophical Quarterly. 68 (272): p. 503-520., p. 513>. Isso implica, para ele, que não se deve punir os desobedientes, já que os seus atos comportariam respeito à lei.
  • 2
    É o que Rawls nomeia uma inviolabilidade da pessoa ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 3, 442, 513).
  • 3
    ( Rawls, 1999, p. 295-6RAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .). Os deveres naturais não exigem atos supererrogatórios, atos de heroísmo e de sacrifício. Tais ações são boas, mas não são deveres ou obrigações. Esse ponto é importante para um dos objetivos centrais de Rawls (1999RAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press .), qual seja, aquele de apresentar a sua concepção de justiça como alternativa ao utilitarismo (p. XI), já que este pareceria demandar certos atos para o bem dos outros, a despeito dos seus custos para o indivíduo (p. 100). Sobre esse ponto ver Volpato Dutra (2018VOLPATO DUTRA, D. J. 2018. Boa-fé e validade dos contratos em Hobbes: uma interpretação a partir de Rawls. Kriterion. 59: p. 385-408. , p. 385-408).
  • 4
    Ênfase acrescentada. A assertiva rawlsiana bem relembra um ponto de Kant a respeito da mais inofensiva das liberdades: “Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!” [WA, AA 08: 36-37]. De acordo com Estlund (1997ESTLUND, D. 1997. Beyond Fairness and Deliberation: The Epistemic Dimension of Democratic Authority. In BOHMAN, J.; REHG, W. Deliberative Democracy: Essays on Reason and Politics. Cambridge: MIT, p. 173-204.), Rousseau seria de outra cepa: “Since the minority voter is expected to conclude that she is mistaken, the initial acceptance of majority rule is an agreement to surrender one’s judgment on the general will to the procedure” (p. 199, ênfase acrescentada).
  • 5
    Habermas, também, acompanhará essa linha de raciocínio: “Se todo risco pessoal desaparece, o fundamento moral do protesto que infringe as regras torna-se questionável; também se desvaloriza o seu efeito de apelo” ( Habermas, 2015HABERMAS, J. 2015. A nova obscuridade: pequenos escritos políticos V. São Paulo: Editora UNESP., p. 143).
  • 6
    “One of the tenets of classical liberalism is that the political liberties are of less intrinsic importance than liberty of conscience and freedom of the person. Should one be forced to choose between the political liberties and all the others, the governance of a good sovereign who recognized the latter and who upheld the rule of law would be far preferable. […] The priority of liberty does not exclude marginal exchanges within the system of freedom. Moreover, it allows although it does not require that some liberties, say those covered by the principle of participation, are less essential in that their main role is to protect the remaining freedoms” ( Rawls, 1999, p. 201-2RAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., ênfase acrescentada). Se a primeira parte da citação é referente ao liberalismo clássico, a segunda parece ser a convicção do texto. Em suma, ao que parece, ele também honra essas máximas do liberalismo, nas duas obras, aos menos de maneira parcial, pois parece permitir [allows] que o princípio da participação possa ser considerado menos essencial, na medida em que seu papel pode ser considerado como aquele de proteger as outras liberdades. Mais que isso, em ponto algum ele diz o contrário, ou seja, que as liberdades liberais teriam valor instrumental em relação às liberdades políticas, como, ao menos, em parte, parece ser o caso de Habermas. Há como que uma subprioridade dentro da prioridade da liberdade, ou seja, dentro de P1 haveria uma prioridade das liberdades individuais sobre as políticas. Então, elas teriam valor não só instrumental, mas em si mesmas, mas no cotejo com a liberdades individuais, cederiam o passo.
  • 7
    “Freedom of expression is denied […] not because one cannot express true beliefs but because one cannot express false ones, beliefs which one should not have nor express. This and nothing less is implied by the common observation that the freedom is to express any view one wishes (subject to a certain small number of restrictions such as that against libel)” ( Raz, 1979, p. 266RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon .).
  • 8
    “The right-holder’s interest in freedom is part of the justification of most rights and is the central element in the justification of some” ( Raz, 1996, p. 49RAZ, J. 1996. Ethics in the Public Domain: Essays in the Morality of Law and Politics. Oxford: Clarendon.)
  • 9
    Um modelo mais amplo de liberdade política foi adotado pelos Estados Unidos, configurado pela Suprema Corte no caso Skokie (National Socialist Party of America v. Village of Skokie, 432 U.S. 43 (1977)), pelo qual os nazistas foram permitidos de se agruparem e manifestarem publicamente o seu ideário. A decisão parece sufragar o Federalista 10, no sentido de que não se deve remover as causas das facções, mormente a liberdade, mas controlar os seus efeitos (Hamilton, 2008, p. 49). A corte disse que poderia haver proibição de palavras obscenas, difamatórias e de luta [aquelas com a única finalidade de causar injúria ou violência, mas isso não incluiria tumulto verbal, discórdia e frases ofensivas]. Mais que isso, segundo a decisão, as reações do público, de raiva ou ressentimento, não poderiam ser razão para a sua proibição. Em relação à suástica, “Court found that the swastika did not constitute fighting words.” [https://www.mtsu.edu/first-amendment/article/728/village-of-skokie-v-national-socialist-party-of-america-ill]. Um modelo mais restrito foi seguido por países como a Alemanha, que interdita tais manifestações. O Brasil adotou este último modelo, configurado pelo STF no caso Ellwanger [BRASIL. STF. HC 82424. HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. [...] . (HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)]. Poder-se-ia acalentar a hipótese de que Rawls acataria o modelo mais amplo da tradição constitucional americana e Habermas o modelo mais restrito do constitucionalismo alemão ( Solum, 1989SOLUM, L. B. 1989. Freedom of Communicative Action. Northwestern University Law Review. 83 (1 & 2): p. 54-135.).
  • 10
    “Art. 95. Nenhuma obra ou evento que possa perturbar ou interromper a livre circulação de veículos e pedestres, ou colocar em risco sua segurança, será iniciada sem permissão prévia do órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via. [...] § 3º O descumprimento do disposto neste artigo será punido com multa de R$ 81,35 (oitenta e um reais e trinta e cinco centavos) a R$ 488,10 (quatrocentos e oitenta e oito reais e dez centavos), independentemente das cominações cíveis e penais cabíveis, além de multa diária no mesmo valor até a regularização da situação, a partir do prazo final concedido pela autoridade de trânsito, levando-se em consideração a dimensão da obra ou do evento e o prejuízo causado ao trânsito» [ BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o código de trânsito brasileiro.. Institui o código de trânsito brasileiro].
  • 11
    ( Waldron, 1981WALDRON, J. 1981. A Right to Do Wrong. Ethics. 92 (1): p. 21-39., p. 24). O artigo de Mackie referido por Waldron é de 1978.
  • 12
    Por um lado, Brownlee (2012BROWNLEE, K. 2012. Conscience and Conviction: The Case for Civil Disobedience. Oxford: Oxford University Press.) sustenta uma perspectiva bastante ampliada de não punição dos desobedientes, que inclui mesmo manifestações nazistas (p. 163, 266). Por outro lado, o direito de desobedecer, que decorre do princípio humanístico do respeito pela autonomia e pela dignidade, não é absoluto, mas encontra vários limites processuais, o que restringiria bastante as possibilidades de desobediência civil de um nazista [p. 163].
  • 13
    Quong (2011) distingue o incorreto e o não razoável [wrongness and unreasonableness] para também proibir a fala nazista (p. 309).
  • 14
    Segundo Waldron (1993WALDRON, J. 1993. Liberal Rights: Collected Papers 1981-1991. Cambridge: Cambridge University Press .), a fala nazista seria acometida por um tipo de inconsistência que justificaria o banimento de sua fala (p. 223).
  • 15
    Usa-se reconstrução de modo semelhante ao sugerido por Habermas (2016HABERMAS, J. 2015. A nova obscuridade: pequenos escritos políticos V. São Paulo: Editora UNESP.): “ Reconstrução, em nosso contexto significa que uma teoria é decomposta e recomposta em uma nova forma para que possa assim atingir o fim que ela mesma se pôs: esse é um modo normal de se relacionar com uma teoria que, sob diversos aspectos, precisa de revisão, mas cujo potencial de estímulo (ainda) não se esgotou” (p. 25).
  • 16
    Sabidamente, -ALMEIDA, G. A. 2006. Sobre o princípio e a lei universal do Direito em Kant. Kriterion. (114): p. 209-222.- Rawls (1996WILLASCHEK, M. 1997. Why the Doctrine of Right does not belong in the Metaphysics of Morals: On some Basic Distinctions in Kant’s Moral Philosophy. Jahrbuch für Recht und Ethik. 5: p. 205-227.) teceu uma crítica a essa forma de raciocinar com base em uma teoria da escolha racional (p. 53, nota 7).
  • 17
    “Now consider the point of view of anyone in the original position. There is no way for him to win special advantages for himself. Nor, on the other hand, are there grounds for his acquiescing in special disadvantages. Since it is not reasonable for him to expect more than an equal share in the division of social primary goods, and since it is not rational for him to agree to less, the sensible thing is to acknowledge as the first step a principle of justice requiring an equal distribution. Indeed, this principle is so obvious given the symmetry of the parties that it would occur to everyone immediately. Thus the parties start with a principle requiring equal basic liberties for all, as well as fair equality of opportunity and equal division of income and wealth” ( Rawls, 1999RAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 130).
  • 18
    “a willingness to propose fair terms of social cooperation that others as free and equal also might endorse” ( Rawls, 2005RAWLS, J. 2005. Political Liberalism: Expanded Edition. New York: Columbia University Press ., p. 375).
  • 19
    Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 319, 335. Em sentido análogo, Habermas (1997HABERMAS, J. 1997. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B. Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro .) defende uma conexão necessária entre Estado de direito e democracia: “A argumentação no livro visou essencialmente provar a existência de um nexo conceitual ou interno entre Estado de direito e democracia, o qual não é meramente histórico ou casual” (p. 310; ver também Volpato Dutra (2018VOLPATO DUTRA, D. J. 2018. Elementos para uma metateoria da democracia. Conjectura. 23: p. 262-292.).
  • 20
    “The criterion of reciprocity is normally violated whenever basic liberties are denied. For what reasons can both satisfy the criterion of reciprocity and justify denying to some persons religious liberty, holding others as slaves, imposing a property qualification on the right to vote, or denying the right of suffrage to women?” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 138).
  • 21
    “[…] is not aggressive against other peoples and accepts and follows the Law of Peoples; it honors and respects human rights; and its basic structure contains a decent consultation hierarchy, the features of which I describe” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 5).
  • 22
    Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 65. De se destacar o aspecto fundamental do direito à propriedade de bens pessoais como necessário à liberdade: “[…] a right to personal property as necessary for citizens’ independence and integrity […]” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. XVI).
  • 23
    Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 80. Não é uma condição também suficiente porque teria ainda que ser cumprida a primeira condição, bem como as partes 2 e 3 da segunda condição.
  • 24
    “There are in fact two basic legal techniques, two ways in which the law serves its functions (there may also be further minor techniques). One is the provision of reasons for compliance through the stipulation of sanctions. The other is the marking, in a publicly ascertainable way, of standards required by the organized society” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 246). “The upshot of the discussion in this section is that the law is good if it provides prudential reasons for action where and when this is advisable and if it marks out certain standards as socially required where it is appropriate to do so. If the law does so properly then it reinforces protection of morally valuable possibilities and interests and encourages and supports worthwhile forms of social co-operation. But neither of these legal techniques even when admirably used gives rise to an obligation to obey the law. It makes sense to judge the law as a useful and important social institution and to judge a legal system good or even perfect while denying that there is an obligation to obey its laws” ( Raz, 1979RAZ, J. 1979. The Authority of Law. Oxford: Clarendon ., p. 249).
  • 25
    Hart teoriza algo semelhante quando instancia o conteúdo mínimo do direito ( Hart, 1994HART, H. L. A. 1994. O conceito de direito (com um pós-escrito). [A. Ribeiro Mendes: The Concept of Law]. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., Cap. IX).
  • 26
    “A slave society lacks a decent system of law, as its slave economy is driven by a scheme of commands imposed by force. It lacks the idea of social cooperation” ( Rawls, 1999bRAWLS, J. 1999b. The Law of Peoples. Cambridge: Harvard University Press ., p. 65). A condição mínima de vigência do dever natural é definida pela decência da sociedade, o que poderia também ser reconstruída segundo uma versão naturalizada, como no caso de Hobbes (1979HOBBES, T. 1979. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. [Trad. J. P. Monteiro e M.B.N. da Silva: Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil]. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural.): “porque esses homens (geralmente chamados escravos) não têm obrigação alguma, e podem, sem injustiça, destruir suas cadeias ou prisão, e matar ou levar cativo seu senhor; por servo, entende-se alguém a quem se permite a liberdade corpórea e que, após prometer não fugir nem praticar violência contra seu senhor, recebe a confiança deste último. [...] Sua vida só se encontra em segurança, e sua servidão só se torna uma obrigação, depois de o vencedor lhe ter outorgado sua liberdade corpórea. Porque os escravos que trabalham nas prisões ou amarrados por cadeias não o fazem por dever, mas para evitar a crueldade de seus guardas” (cap. XX).
  • 27
    Um tal direito, até Kant parece admitir, seja na forma do ius necessitatis, seja na forma da autodefesa. Segundo ele, o destronamento de um monarca teria a seu favor a “[...] desculpa do direito de necessidade (casus necessitatis) [...] Mesmo o assassinato do monarca não é ainda o pior dos horrores de uma revolução política, pois então pode-se representar que ele se dê pelo povo por medo de que pudesse se reerguer, caso ficasse vivo, e fazer o povo sentir o merecido castigo, não pretendendo, pois, ser uma medida da justiça penal, mas meramente da autopreservação” (RL, AA 06: 321, nota). Kant não diz das razões, mas, tanto o estado de necessidade, quanto autopreservação, pressupõem ameaças à vida, de tal forma que estariam albergadas no primeiro direito humano de Rawls, no mínimo.
  • 28
    “The principle of equal liberty, when applied to the political procedure defined by the constitution, I shall refer to as the principle of (equal) participation” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 194).
  • 29
    “The priority of liberty […] allows although it does not require that some liberties, say those covered by the principle of participation, are less essential in that their main role is to protect the remaining freedoms” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 202).
  • 30
    “One of the tenets of classical liberalism is that the political liberties are of less intrinsic importance than liberty of conscience and freedom of the person. Should one be forced to choose between the political liberties and all the others, the governance of a good sovereign who recognized the latter and who upheld the rule of law would be far preferable. […] The priority of liberty does not exclude marginal exchanges within the system of freedom. Moreover, it allows although it does not require that some liberties, say those covered by the principle of participation, are less essential in that their main role is to protect the remaining freedoms” ( Rawls, 1999aRAWLS, J. 1999a. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press ., p. 202-2). Se a primeira parte da citação é referente ao liberalismo clássico, a segunda parece ser a convicção do texto. Em suma, pelo indicado, ele também honra essas máximas do liberalismo, nas duas obras, aos menos de maneira parcial, pois, pelo menos, parece permitir [allows] que o princípio da participação possa ser considerado menos essencial, na medida em que seu papel pode ser pensado como aquele de proteger as outras liberdades. Mais que isso, em ponto algum ele diz o contrário, ou seja, que as liberdades liberais tenham valor instrumentais em relação às liberdades políticas, como, ao menos em parte, parece ser o caso de Habermas. Há como que uma subprioridade dentro da prioridade da liberdade, ou seja, dentro de P1, uma prioridade das liberdades individuais sobre as políticas. Então, elas teriam valor não só instrumental, mas em si mesmas, mas no cotejo com a liberdades políticas, estas perderiam o passo. A desobediência é um direito de defesa contra qualquer governo, inclusive contra os democráticos.
  • 31
    Dworkin, 2002DWORKIN, R. 2002. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes., p. 295). “The right to disobey the law is not a separate right, having something to do with conscience, additional to other rights against the Government. It is simply a feature of these rights against the Government, and it cannot be denied in principle without denying that any such rights exist” ( Dworkin, 1977DWORKIN, R. 1977. Taking Rights Seriously. London: Duckworth., p. 192).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2023
  • Aceito
    28 Abr 2023
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