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A tradução de aristocracia em germanismo: uma questão disputada no debate entre Nietzsche e Brandes

The translation of aristocracy into germanism: a disputed issue in the debate between Nietzsche and Brandes

RESUMO

Diversas referências que envolvem os temas do germanismo e da aristocracia encontram em Nietzsche e em Brandes um campo bastante fértil. Ambos os autores, comprometidos com a discussão voltada à crítica da cultura ocidental, têm o intuito de fomentar a elevação da cultura, o que alavanca o tema da aristocracia. A dinâmica das forças, que caracteriza o pensamento nietzschiano, manifesta, na aristocracia, a vontade de superação de um povo dotado de espírito. Na recepção que Brandes faz deste tema da aristocracia de Nietzsche, este adquire rasgos de um radicalismo. Por essa razão, o intuito, nesta investigação é o de, num primeiro momento, examinar em que medida a aristocracia, elevada a radicalidade, implica numa leitura que envolva, para além da dinâmica de autossuperação, a de um germanismo, radicado na exaltação da raça. Num segundo momento, o intuito é o de avaliar em que medida as implicações da recepção de Brandes do radicalismo aristocrático, traduzido em moldes de germanismo, enfatizaram a leitura que os nazistas realizaram do pensamento nietzschiano.

Palavras-chave:
Nietzsche; Brandes; aristocracia; germanismo; espírito

ABSTRACT

Several references involving the themes of Germanism and aristocracy find in Nietzsche and Brandes a very fertile field. Both authors, committed to the discussion focused on the critique of Western culture, aim to promote the elevation of culture, which leverages the theme of aristocracy. The dynamics of forces, which characterizes Nietzschean thought, manifests, in the aristocracy, the will to overcome a people endowed with spirit. In Brandes’ reception of this theme of Nietzsche’s aristocracy, it acquires characteristics of a radicalism. For this reason, the aim of this investigation is, at first, to examine to what extent the aristocracy, elevated to radicalism, implies a reading that involves, in addition to the dynamics of self-overcoming, that of a Germanism, rooted in the exaltation of the race. Secondly, the aim is to assess the extent to which the implications of Brandes’ reception of aristocratic radicalism, translated into Germanism, emphasized the Nazis’ reading of Nietzschean thought.

Keywords:
Nietzsche; Brandes; aristocracy; germanism; spirit

1 Introdução

No capítulo intitulado Povos e pátrias de Para Além do bem e do mal, Nietzsche apresenta diversas referências a respeito dos temas que envolvem povo, raça, aristocracia e germanismo. Com isso, o intuito é o de mostrar o quanto a Alemanha se tornou decadente pelo inflamado ímpeto patriótico que impede a sua capacidade de superação de tal atavismo para chegar àquilo que o filósofo denomina “O bom europeísmo” (JGB/BM, 241, KSA, 5.180)1 1 Para as citações das obras de Nietzsche adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em Alemão/Português: PZG/FTG - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos), MA/HH - Menschliches Allzumenschliches (Humano demasiado humano), MAII/HHII - Menschliches Allzumenschliches (Humano demasiado humano), FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA - Aslo Sprach Zaratustra (Assim Falava Zaratustra). JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Além do bem e do mal), WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral), Nc/FP - Nachlass (Fragmentos Póstumos), Br/Cr - Briefe (Carta), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página. . É preciso, ainda, o desenvolvimento da capacidade de autocrítica, pelo aumento de forças, capaz de ultrapassar os limites territoriais do rebanho, ao que se convencionou chamar de pátria. Por essa razão, tudo aquilo que há de grande, elevado, superior somente se atingirá na medida em que se ousar romper com a massa, forjada no maciço de certezas inquebrantáveis. Diante destas considerações se é levado a perceber o quanto Nietzsche repudia uma nação que se fecha em torno a seus conceitos de grandeza, no sentido de terem alcançado o mais alto grau de verdade, diante da qual se colocam na posição de invencibilidade. Trata-se aqui de uma referência a Bismark (1815-1898), quem fundou o Estado Alemão, pela vitória sobre a França. No entanto, embora a Alemanha se eleve como a grande potência político-econômica, a França como potência cultural. O que faz lembrar a vitória dos romanos contra os gregos. Porém, de ambos a vitória cultural coube aos gregos. Enquanto uma nação se ufana de seu poderio sobre as demais, acaba se encaminhando para uma zona de conforto, de modo que vai atrofiando a sua capacidade de lutar, e, com isso, a sua decadência acaba sendo inevitável. Falta a estas nações aquilo que Nietzsche denomina: “espírito”. Um povo dotado de espírito é aquele que demonstra capacidade de lutar, tendo consciência de que uma nação mais forte poderá lutar contra ele. Por essa razão, a todo o instante deve estar a espreita para empreender guerra. No fundo, o que falta a estes povos acostumados a se ufanarem de seus louros é saírem de sua zona de nivelamento, ao que, falsamente, se autodenominam “espíritos livres”, por pensarem que a sua felicidade é a de viverem como animais gregários, em segurança e bem-estar. Portanto, a estes não há mais motivo algum por que lutar, por tudo já ter sido alcançado. Diante disso, o seu destino não é outro senão o caminho inverso, o da degenerescência, pois sua vontade de poder já alcançou a sua saturação máxima. O filósofo alemão alerta para a realidade de povos, como a Alemanha que, em seu auge do fascismo de que conquistou todo o poder, passam a simplesmente, cantar as vitórias passadas. O seu destino, pelo embotamento do rótulo do melhor, não trilha outro caminho, senão o da regressão decadente e acéfala; lhes falta o espírito, que é a capacidade de auto cultivo, o que implica em um auto experimentar-se constante, pelo travar de embates com o seu oposto. E, nesta tensão, o espírito é experimentado, depurando-o de tudo o que inspira estagnação, comodismo fechado, num auto centramento incapaz de criar, e, assim alçar níveis mais elevados de potência. Nesta categoria se classificam todos os modelos consagrados como os ícones entre os povos, pelos seus “ismos”, entre os quais o germanismo é um deles. Na compreensão nietzschiana não há como potencializar o qualificativo de espírito livre em meio a uma estrutura monoliticamente autocentrada, diante da qual seus membros lhe prestam culto. Assim, como nela tudo está predeterminado em termos valorativos, pelo contrário, o espírito livre é capaz de ultrapassar todos os julgamentos de bem e mal, pronto a, inclusive, assumir todos os riscos pelo transbordamento de liberdade que lhe é inerente.

O germanismo, assim como outros movimentos de massa, reúne em torno a um líder ou guia um discipulado disposto a pautar toda a sua vida de acordo com os mandatos, neste grupo estabelecidos. Os indivíduos, a ele pertencentes, são desapropriados de si mesmos para assumirem como seus os ordenamentos que perpassam a estrutura do grupo. Assim, o germanismo, em especial, tem inculcado em seus seguidores a ideia de que a Alemanha está acima de tudo, ou seja, que ela é imbatível, onipresente e onisciente, ao modo de uma divindade, diante da qual se curva em forma reverencial. Sendo uma realidade infalível, a Alemanha, seguindo a compreensão de seus seguidores, já alcançou tudo aquilo que devia ter alcançado, restando nada mais senão manifestar cultos de adoração a ela. Cada manifestação cultual implica numa desapropriação daquilo que o indivíduo possui de singular e genuíno. Por isso, o seguimento de grupos como o do ideal germânico vende a ideia de perfeição de seus membros, como aqueles pertencentes a uma raça pura, acabada, perfeita. A contradição, em meio a isso, é a de que, ao invés dessa ideia, se reforce a dimensão de potência e assenhoramento de seus membros, o que acaba implicando no inverso. Ou seja, todo este processo conduz à degenerescência, já que não há mais nenhum horizonte de abertura que lhe permita ultrapassar a si mesmo. Resta nada senão o fechamento num labirinto acéfalo e decadente. Nietzsche via no germanismo uma submissão e acatamento em relação a pré-conceitos estabelecidos de forma arbitrária e niveladora; portanto, incapaz de promover vontade de superação.

Diferentemente do germanismo, bem como de outros movimentos fechados em seus ordenamentos acéfalos, a aristocracia se apresenta como uma disposição psicológica que, ao quebrar todos os ordenamentos paradigmáticos, tem na vontade que quer, o intuito de superar. Por essa razão, para além de uma instituição fundada mediante princípios previamente determinados, a aristocracia é uma inspiração que toca a disposição de espírito individual. Esta disposição de espírito, longe de ser uma chamada ao seguimento, no sentido gregário, trata-se de um impulsionamento, no sentido motivacional. Ou seja, consiste em oferecer uma predisposição de ânimo, uma provocação a acolher uma determinada proposta. É importante lembrar que esta provocação não é, necessariamente, pacífica, implica em tensões, em oferecer obstáculos a serem superados. Pois, na medida, em que alguém é provocado a alcançar algo mediante a ultrapassagem de barreiras, tanto mais despenderá um quantum de forças para tal. E, quanto mais oposição se apresentar, tanto mais forças se empregará em vencer tais oposições. Todo este processo acontece de forma contínua e aberta, no sentido de que se supera obstáculos não para atingir metas previamente determinadas, mas para experimentar o instante vivido em seu nível mais culminante de potência. Mas, trata-se de apenas um instante, que se vive como se fosse o único da vida, pois nele se emprega toda a disposição de força acumulada, para, assim, vivê-lo inúmeras vezes, e, a cada vez que se o faz, maior o quantum de força despendida. Nesta experiência, de instante em instante de plenitude, se vai munindo de mais forças, que caracterizam a disposição aristocrata. Todo aquele que dispõe de um espírito aristocrata, em consonância à fluição instintual é movido pela força que a cada instante quer afirmação e a nada se determina. Mas, ele tem tal disposição de espírito direcionada à ultrapassagem, que quer assenhorar-se, independentemente da posição em que esteja, se servo ou senhor. Logo, a aristocracia é uma qualidade que ultrapassa toda a posição social. Sendo assim, tanto o pobre como o rico, podem, na posição social em que estão, manter uma disposição de espírito aristocrata, a de querer se superar.

O itinerário a ser percorrido, compreende três momentos. No primeiro momento será apresentada a aristocracia, de acordo com a compreensão de Nietzsche, passando pela sua produção, que compreende os escritos da maturidade. Neste primeiro movimento, o acento será dado à noção de espírito, a que a própria noção de aristocracia vem atrelada. Intitula-se “A aristocracia e a autossuperação do espírito.” No momento seguinte terá espaço uma análise da compreensão nietzschiana de maturidade do germanismo. Neste ínterim será enfatizada a noção de raça, a qual se intitula: “O germanismo e a exaltação da raça.” Para, por fim, no terceiro momento, mediante as considerações anteriores, analisar em que medida, na recepção que Georg Brandes2 2 Georg Brandes (1842-1927) foi um crítico literário e historicista dinamarquês. Sua influência na Dinamarca no que tange à literatura foi extremamente significativa. Se deve a Brandes, de maneira especial, a recepção do pensamento de Nietzsche em terras escandinavas. realizou do pensamento de Nietzsche, o radicalismo aristocrático vem traduzido como germanismo. Neste momento, a ênfase será dada a uma possível leitura nazista dos escritos do filósofo alemão, marcadas pela tradução mencionada. Intitula-se “O radicalismo aristocrático traduzido em germanismo.”

2 A aristocracia e a autossuperação do espírito3 3 Espírito é uma categoria nietzschiana muito utilizada para caracterizar o indivíduo, aquela particularidade única, singular e irrepetível. Da mesma forma, também, o espírito se liga à dimensão de tipologias psicológicas, podendo ser afirmativas ou resignadas. Daquela primeira se depreende a categoria de “espírito livre” (Freier Geist), tal como Nietzsche se expressa: “(...) um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira do abismo. Um tal espírito seria o espírito livre, por excelência. (FW/GC, 347, KSA, 3.583); da segunda se associa a expressão nietzschiana de “Espírito de peso” (Geist der Schwere), como Nietzsche se pronuncia “Eu só acreditaria em um deus que soubesse dançar. E quando vi meu demônio, achei-o sério, profundo, solene: era o espírito de peso - através dele todas as coisas caem” (Za/ZA, I, Do ler e Escrever, KSA, 4.49).

No aforismo 32 de Para Além do bem e do mal, ao tratar sobre o valor e origem de uma ação, Nietzsche, rechaçando a sua dedução de suas consequências, a associa ao “(...) predomínio de valores aristocráticos e da crença na ‘origem’” (JGB/BM, 32, KSA, 5.50). Portanto, o valor de uma ação vem mercado pela origem, a qual se liga a um acontecimento de larga envergadura, implicando em refinamento no olhar e na medida, a qual traz repercussões no inconsciente. Por isso, mais uma vez, quebrando a lógica causa e efeito. O inconsciente se situa na quebra do dualismo que se instaura entre sentidos, impulsos e instintos, de um lado e espírito, conhecimento e consciência, de outro. Por isso, a consciência é apenas um dos meios pelos quais os indivíduos travam o seu embate com o meio, ao munirem-se de órgãos que lhe permitam sua sobrevivência. A dinâmica percorrida pela consciência se dá pela lógica da ação e reação, de modo que tudo o que se faz, se é movido a fazer por uma causa externa, bem como ao fazê-lo é demandada uma consequência. Scarlett Marton denomina a consciência como “(...) um órgão de comunicabilidade, ‘um órgão de direção’” (Marton, 2016, p. 155). Em se tratando de se constituir apenas em um órgão de direção e comunicabilidade, trata-se de uma função bastante primária, o que não traduz com precisão o que constitui o indivíduo em sua completude. Logo, se por este órgão se pretende comunicar para o mundo externo do indivíduo se é devido a erros, à falsificação do que seriam aqueles elementos que pervadem o interno do indivíduo. Uma das principais vias de comunicabilidade destes fatores internos ao indivíduo é a linguagem, pois por ela o indivíduo comunica, em sons, signos e sinais, o que lhe é interno. Nietzsche, em seu Sobre verdade e mentira no sentido extramoral apesenta as diversas formas de falsificação mediante as quais, pela linguagem, se é levado a realizar. Diante disso, Nietzsche indaga sobre as diversas convenções que se realiza mediante a linguagem, indagando: “(...) o que passa aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos do conhecimento, do senso de verdade as designações e as coisas que se recobrem? É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades?” (VL/VM, I, KSA, 1.878). A linguagem passa a ser nada senão um conjunto de convenções socias, portanto, gregária, daquilo que se entende por dor, vermelho, felicidade, azul e, assim por diante. Com isso, em que medida o indivíduo é capaz de comunicar o que lhe passa internamente não incorrendo em erros? Por essa razão, tudo aquilo que se chama consciência é muito frágil para detectar a totalidade plurifacetada que é o abismo do indivíduo. O filósofo alemão rompe com este limite, denominado consciência4 4 Por consciência Nietzsche compreende o termo no sentido fisiológico, Bewusstsein, como se apresenta nesta passagem: “O infeliz obtém uma espécie de prazer com o sentimento de superioridade que a demonstração de compaixão lhe traz à consciência; sua imaginação se exalta, ele é ainda importante o suficiente para causar dores ao mundo.” (MA/HH, I, 50. KSA, 2. 71). , para apontar para uma esfera nova da consciência. Esta não permite que convenções, previamente determinadas, ao modo de rebanho, venham a interferir na maneira pela qual o indivíduo expresse o que lhe transcorre internamente. Toda essa carga inconsciente já não pode ser expressa pela linguagem, entendida enquanto convenção gregária, mas necessita de um outro meio de comunicação, para além de toda a convenção. E, nesta carga inconsciente, reside todo o valor refinado de uma ação, situada fora de toda a convenção moral de bem e de mal.

Estas ações inconscientes escapam às convenções pré-determinadas pelo rebanho, sejam estas convenções religiosas, sociais e, até profissionais. Como é, por exemplo, de acordo com a leitura de Nietzsche, quando ocorre a fenômeno da busca de emancipação feminina, movida pelo espírito industrial: “Em toda a parte onde o espírito industrial venceu o espírito militar e aristocrático, a mulher aspira à independência econômica e legal de um caixeiro” (JGB/BM, 239, KSA, 5.176). Essa forma de emancipação, longe de ser uma modalidade do cultivo de si, é nada senão um entregar-se passivamente aos ditames da sociedade moderna, o que acaba por repercutir em um estado de regressão. Se, pela emancipação feminina, se pensou em opostos, no aumento da força da mulher, de modo a favorecer a razão de toda a sua capacidade instintiva, acabou resultando no contrário. Ou seja, a mulher acabou deixando de ser mulher para assumir o que ela não é por natureza embotando-se assim os seus instintos femininos genuinamente falando. Dá a impressão que se pretende, com toda essa busca de emancipação feminina, torná-la homem, o que, de longe, constitui um grande contrassenso, e que vem a repercutir em perda de toda a poderosa carga instintiva de feminilidade, de onde reside toda a sua força aristocrática. Desta mesma forma, Nietzsche se opõe a todo o movimento que se estriba em torno a ideais nacionalistas, como acentua Daniel Conway, pela “(...) sua oposição aos nacionalismos europeus” (Conway, 2009CONWAY, D. 2009. Writer the Good Europeans? Nietzsche’s New World Order. In: South Central Review. Publisher by Johns Horkins, 26 (3): p. 40-60., p. 40). O instinto que se pretende fortalecer na mulher, descaracterizando-a daquilo que ela é por natureza, acaba por degenerá-la, diminuí-la, adoecê-la, desagregar toda a sua capacidade instintiva5 5 Nietzsche expressa o instinto feminino de forma bastante plástica mediante esta passagem: “A força dos fracos - Todas as mulheres são sutis em exagerar sua fraqueza, são mesmo inventivas em matéria de fraqueza, a fim de parecer frágeis ornamentos que até um grão de poeira poderia ferir: sua existência deve fazer o homem sentir no ânimo e carregar na consciência a própria rudeza. Assim se defendem elas dos fortes e da ‘lei da selva’” (FW/GC 66, KSA, 3.426). . Em nome dos ideais modernos de emancipação, a mulher é despojada de todo o seu aparato, presente na sua força de vontade, onde reside o seu espírito aristocrático, que é a sua mais natural e autêntica inclinação em direção à “(...) astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre, por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior. O caráter inapreensível, vasto berrante de seus desejos e virtudes...” (JGB/BM, 239, KSA, 5.178). Há, por isso, em toda essa busca de emancipação, um grande equívoco, que embota a própria noção de aristocracia, pelas ideias modernas. Com isso, o resultado acaba sendo o oposto daquilo que, aparentemente, se vem buscando, que seria o engrandecimento da classe feminina, por exemplo.

Equivocadamente, segundo a leitura de Nietzsche, vem se buscando, mediante as inspirações das ideias modernas, engrandecer uma determinada classe social pela conceção de direitos iguais à classe feminina, ou seja, a promoção de sua emancipação. A emancipação de uma determinada classe social, pela via dos direitos iguais, representa nada senão o seu rebaixamento. A manutenção e promoção das diferenças tem sido um dos ingredientes fundamentais para o engrandecimento do ser humano.

Nietzsche tem o intuito de apresentar uma nova forma de aristocracia, que seja superior àquela que, até então, existiram: “Ó meus irmãos, eu vos dirijo e consagro a uma nova nobreza: deveis tornar-vos procriadores e cultivadores, e semeadores do futuro” (Za/ZA, III, Das velhas e novas tábuas, 12, KSA, 4.254). Esta futura aristocracia, conforme a interpretação de Vanessa Lemm, diz respeito ao “(...) uma elevação enobrecedora do ser humano” (Lemm, 2019LEMM, V. 2019. Cultura e economia em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. Trad. Davi Maranhão De Conti. Guarulhos/Porto Seguro, 40 (1): janeiro/abril, p. 67-91., p. 68). Pois, este sentimento, este pathos da distância entre uma classe e outra na ordem da hierarquia provoca a cada um a sua própria superação, alcançando níveis sempre mais elevados, em direção aos pontos culminantes de potência6 6 Aos pontos culminantes de potência (Macht-Höhepunkte) Nietzsche atribui àquilo que constitui poder no sentido de alcance de sempre maiores níveis de assenhoramento, a isto, inclusive, o filósofo atribui a Deus: “’Deus’ como momento culminante: a existência de uma eterna deificação e desdeificação. Mas não há um ponto alto em valor, mas pontos altos em poder” (Nc/FP do outono de 1887, 9[8], KSA, 12.343). . E é justamente este o sentimento que perpassa o âmbito da aristocracia: proporcionar oportunidades para a superação. E, mais ainda, provocam a superação, mediante obstáculos que resultem em avanço para além dos limites interpostos pela moral e pelos costumes. “Toda elevação do tipo ‘homem’, foi, até o momento, obra de uma sociedade aristocrática e assim será sempre: de uma sociedade que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre um e outro homem” (JGB/BM, 257, KSA, 5.205). Esta diferença de distância entre um e outro homem produz um aumento de vontade de superação, de vontade de potência, “(...) o desejo de sempre aumentar a distância no interior da própria alma, a elaboração de estados sempre mais elevados, mas raros, remotos, amplos, abrangentes, em suma, a elevação do tipo homem, a contínua autossuperação do tipo homem” (JGB/BM, 257, KSA, 5.205).

Os tipos mais elevados de entre os homens se fizeram potentes, desde a sua origem, entre os bárbaros, mas não se diferenciaram, de maneira especial, pelas suas qualificações físicas, e sim psíquicas. A tipologia psicológica diz respeito àqueles sentimentos de distância, àquela vontade de superação. Como observa Conway, Nietzsche tem introduzido “(...) o nobre pathos da distância que formalmente informou e animou a cultura europeia” (Conway, 2009 CONWAY, D. 2009. Writer the Good Europeans? Nietzsche’s New World Order. In: South Central Review. Publisher by Johns Horkins, 26 (3): p. 40-60.p. 40). A aristocracia consiste em uma força que se situa para além da dimensão acurada da dimensão física, ela toca o âmbito de tudo o que no homem é remoto, raro, abrangente, elevado, aquela sua ânsia por superação. Por buscar elevar-se para além do patamar que por ora se encontre. Pois, é, justamente, nesta busca de superação que se situam todas as classes nobres que a humanidade já possui. E, pertencer a uma classe nobre, em termos aristocráticos, não é servir a alguma função específica dentro de uma organização do Estado, mas de se aceitar, com espírito de boa consciência7 7 A consciência, nesta qualificação moral é Gewissen, consciência moral. Nietzsche compreende esta consciência como algo novo, capaz de romper com o costume, até então, vigente em meio à uma determinada cultura: “A boa consciência tem como estágio preliminar a má consciência — não como oposto: pois tudo que é bom foi uma vez novo, portanto, inusitado, contrário ao costume, imoral, e roeu como um verme o coração do feliz inventor” (AM II/HH II, 90, KSA, 2.413). , o sacrifício de inúmeros homens pela causa de seres seletos. Pois a sociedade não deve existir por ela mesma, mas na medida em que se provoca seres seletos, que ela sirva de andaime para que estes seres seletos possam se afirmar. Por essa razão, não é à favor de uma raça que se deve endurecer todo o apoio e fundamento para a sua superação, e sim, para seres que se distinguem por sua própria capacidade de alcançarem os mais altos níveis da hierarquia, dos sentimentos, do cultivo do pathos da distância.

3 O germanismo e a exaltação da raça8 8 O conceito de raça ocupa em Nietzsche um papel fundamental. Já desde Humano, demasiado humano, o termo raça se refere à cultura, povo e comunidade, sem se vincular a um grupo social determinado. A partir de Aurora o termo raça passa a possuir um duplo sentido, ou melhor, um sentido que varia entre o biológico e o cultural, pelas transformações históricas pelas quais passam as culturas. Em Para além do bem e do mal a raça passa a ocupar um local no âmbito valorativo psicológico, pois o conceito passa a ter uma dimensão genealógica. Desse modo, a raça passa a ser analisada sob o ponto de vista de uma hierarquia. Contudo, a raça não possui um fator determinativo, no sentido de uma concepção marcada por ideologias nacionalistas e antissemitas, pois como sublinha Emmanuel Salanskis: “(...) Nietzsche não rejeita as misturas raciais; ele as valoriza, em todo o caso numa primeira etapa, enquanto condição de possibilidade de uma unidade mais forte e mais bela (...) Nietzche inverte a retórica dos antissemitas alemães, ao defender que a raça judia é a mais forte e a mais pura da Europa do século XIX” (Salanskis, 2016, p. 351).

Como visto no movimento anterior, a aristocracia diz respeito a um sentimento de distância, presente numa disposição psicológica afirmativa. Por isso, todo aquele, devotado a tal espírito, não se dispõe a fazer coisas, a servir, mas antes, a superar-se. Inclusive, deverá estar situado para além do patamar de outros indivíduos, sujeitos a agirem como iguais. Pelo contrário, o cultivo de uma aristocracia sã demanda “(...) a vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio - não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder” (JGB/BM, 259, KSA, 5.208). Desse modo, há naqueles dedicados ao cultivo de si, uma vontade de expandir-se, extravasar, alargar, sair continuamente de sua zona de conforto, ultrapassar limites e barreiras interpostos pelo sentimento moral presente em uma dada coletividade. A nada se conforma aquele que cultiva altos níveis do patamar aristocrata, sua sina é a de, por todos os meios, elevar-se para além da massa gregária, de todo o conformismo e mandamentos pré-estabelecidos de acordo com aquele sentimento igualitarista nivelador e conformista. Este sentimento de extravasamento, próprio daqueles que se entregam a aristocracia, não se aproximam dos outros no sentido de medirem forças, de estabelecerem disputas e duelos. Mas, muito pelo contrário, destes se distanciam, no sentido de não se contaminarem com todo o sentimento de baixeza e conformismo, próprio dos padrões por estes convencionados. Dados a fugir de todos os padrões convencionados pela moral gregária, os aristocratas se mostram tipos extremamente fechados e reservados, em nada dados a modismos e conveniências sociais, mostram-se, inclusive, intolerantes a tudo o que possa constituir qualquer palavra de ordem para que ninguém se desvie do conjunto de regularidades sociais:

(...) toda moral aristocrata é intolerante na educação da juventude, nas prescrições sobre a mulher, nos costumes matrimoniais, na relação entre jovens e velhos, nas leis penais (que têm em vista somente os que se desviam) - ela inclui a intolerância mesmo entre as virtudes, sob o nome de ‘justiça’! Um tipo dotado de poucos, porém fortes traços, uma espécie de homens severos, guerreiros, sabiamente salientes, fechados e reservados (JGB/BM, 262, KSA, 5.215).

Toda essa reserva e fechamento, típica do traço aristocrata, pode levar a um tipo de leitura eugenista, restrito a um contexto de raça. No entanto, faz-se necessário dirimir esta confusão. Muito embora, Nietzsche, em diversas passagens, incentive a elevação de uma raça que se distinga por suas capacidades, altivez, autodomínio e força, vê nela, também, ao mesmo tempo, um entrave no que tange a efetivação de uma aristocracia. Quando se fala de raça, facilmente se incorre num outro problema, o do fechamento em um gueto, um reduto, em outras palavras, num rebanho.9 9 O conceito de raça, em Nietzsche, se desvincula de tudo o que traga conotações de fechamento e predeterminações, pois, o filósofo concebe, por raça, tudo o que conduza a um aumento de força. Por essa razão, Nietzsche possui uma abertura quanto a mistura de raças, bem como no que diz respeito ao refinamento de uma dada cultura, mediante práticas pedagógico formativas. Tudo isso, mostra o quanto a noção de raça se constitui como algo flexível, distante dos ditames dogmáticos que para ela se poderia prescrever. Por essa razão, há que ter muito cuidado quando se trata dessa categoria de raça no contexto nietzschiano, pois facilmente se pode acabar em contrassensos a seu próprio pensamento, indo na linha diametralmente oposta daquele. Daniel Conway, inclusive, recorda que é relevante atentar no pensamento nietzschiano a “(...) sua visão de uma nova ordem mundial com seu centro em uma Europa revigorada à força de uma colaboração produtiva” (Conway, 2009CONWAY, D. 2009. Writer the Good Europeans? Nietzsche’s New World Order. In: South Central Review. Publisher by Johns Horkins, 26 (3): p. 40-60., p. 40). O viver para além da velha moral requer abster-se de todas as fórmulas consagradas pelo rebanho. Por isso, o indivíduo deve buscar sempre a “(...) autopreservação, auto elevação e autorredenção” (JGB/BM, 362, KSA, 5.216). Em tudo, o indivíduo deve buscar o seu próprio cultivo, distanciando-se, ao máximo, daquilo que é o sentimento comum. Não que este sentimento seja um problema em si, mas que facilmente pode levar ao esgotamento, típico daqueles velhos modelos de padronizações morais, próprias de uma determinada cultura. Ingrid Flórez Fortich, a este respeito, traz uma referência bastante esclarecedora sobre o tema da raça em Nietzsche, quando ela diz que “O conceito de Nietzsche sobre raça não é o do racismo biológico romântico de seus contemporâneos; de sentir que o mais alto homem poderia teoricamente vir largamente dos mais diferentes lugares e culturas” (Fortich, 2010FORTICH, I. F. 2014. Nietzsche’s Übermensch: The notion of a higher aristocracy of the future. In: Civilizar. 10 (18): enero-junio, Bogotá: p.75-84., p. 78). Pois, as convenções conduzem a uma espécie de antropomorfismo, e o conformismo a de comodismo e deste a de degenerescência, até a total falta de forças necessárias para o criar livre e independente. Por isso, Nietzsche é enfático: “(...) mas nenhuma fórmula em comum, mal entendido, e menosprezo em aliança, degradação e sublimes desejos horrivelmente ligados, o gênio da raça” (JGB/BM, 262, KSA, 5.216).

Toda a raça, por mais genial que seja, esconde também o problema das convenções sociais, que se fecham num sentimento de gueto acéfalo e incapaz de criar, apenas reproduzir os sentimentos institucionalizados pelo que a raça determina, como algo que a ela se identifica. Por isso, o grande erro é o de que já não se visa uma identificação com o indivíduo, que ultrapassa, se afirma e se supera, mas a de um gueto que se fecha num conformismo acéfalo e, por isso, degenera10 10 Dentro da reflexão que Nietzsche tece em torno a aristocracia, os valores ocupam um espaço fundamental. Por essa razão, tudo aquilo que é considerado “bom”, acaba sendo fruto de uma convenção social que assim o estabeleceu. Portanto, os valores que se baseiam em regras e ordenamentos, diante dos quais a única disposição que resta não é senão a de resinar-se passivamente, conduz à degenerescência, pois estanca as forças responsáveis pela luta que afirma e cria: “(...) o bem como segundo nível, degeneração. Emburrecimento. Ódio ao desenvolvimento espiritual” (Nc/FP da primavera de 1884, 25[113], KSA, 11.43). . Todo o esforço que se segue no sentido de um melhoramento está destinado a uma raça, a um povo, um rebanho, e não a um indivíduo: “(...) nem se dirige ao indivíduo (que importa a ela o indivíduo!) mas sim a povos, raças, eras, classes, mas sobretudo ao inteiro bicho ‘homem’, ao homem” (JGB/BM, 188, KSA, 5.110). A dimensão da raça toca um distanciamento daquilo que se reserva ao indivíduo, concebido em sua particularidade, portanto, excede às demandas do pensamento de Nietzsche. Por mais que a sua filosofia se atenha a questões ligadas à raça, no que tange ao seu melhoramento e potencialização, o foco para o qual se direciona as suas considerações estão amparados no desenvolvimento de mecanismos capazes de produzir força. E a força diz respeito a pontos individuais dispostos hierarquicamente11 11 A hierarquia é mais um indicativo a sublinhar a dimensão aristocrata do pensamento de Nietzsche. Contudo, não se trata de uma concepção hierárquica, entendida como uma disposição imutável, mas, pelo contrário, como uma realidade orgânica, em constante mutabilidade de todas as partes que a compõem. Por isso, nenhum indicativo pode ser concebido como imperativo e mandamento, nenhuma disposição, como lei, nenhum conhecimento, como verdade última: “(...) em lugar da ‘teoria do conhecimento’, uma doutrina perspectiva dos afetos (que inclui uma hierarquia dos afetos)” (Nc/FP do outono de 1887, 9[8], KSA, 12. 342). , com vistas a maximização, ao assenhoramento, a realização máxima de todas as capacidades. A dimensão da raça esconde a dimensão própria de cada indivíduo, de cada particularidade, de cada quantum de força que quer extravasar, de cada vontade que quer se expressar. A complexidade da constituição fisiológica excede toda a dimensão de raça, a qual permanece num nível superficial de análise. Por essa razão, pela ultrapassagem da compreensão da raça, se toca na dimensão de indivíduo, que, em sua pluralidade, é capaz e reverter o diagnóstico de paralisia da vontade que tem tomado conta do estado de saúde europeu. Um outro fator que tem aprofundado ainda mais o quadro de doença europeu tem sido aquilo que Nietzsche chama de: “(...) semi barbárie, em que a mistura de classes e raças mergulhou a Europa” (JGB/BM, 224, KSA, 5.158). Não que a mistura de classes seja, em si um problema, pois com menciona Conway, Nietzsche tem buscado ao máximo, romper com a individualidade social e política que tem acometido a Europa no século XIX. Por essa razão, via que “(...) uma indiscriminada mistura de raças e classes” (Conway, 2009, p. 40) poderia ser um problema, ou seja, quando não se observando alguns critérios.

O problema não reside na diversidade das culturas e raças em si mesmas, mas no influxo e ideias modernas que vão tomando corpo, e, com isso, enfraquecendo os instintos: “(...) graças a essa mistura precipita-se em nós, ‘almas modernas’, e toda parte, sobretudo acessos ao labirinto das culturas incompletas e a toda semi barbárie” (JGB/BM, 224, KSA, 5.158). Estas referências nietzschianas à raça, muito facilmente podem se avizinhar a referências nazistas. Contudo, mediante uma análise mais cuidadosa das mesmas, se constata que o problema não está na pluralidade da raça, e sim, no consequente insuflamento moderno da mesma. Por isso, Nietzsche tem como uma de suas metas ‘ultrapassar’ a modernidade, com tudo o que dela demanda, à saber, a razão, a verdade e a moral. A ultrapassagem da modernidade inclui todos os processos de homogeneização, mediante a qual a Europa acabou mergulhando, “(...) o processo de homogeneização dos europeus, seu crescente libertar-se das condições em que surgem as raças ligadas a clima e classe, sua independência cada vez maior de todo meio determinado” (JGB/BM, 242, KSA, 5.182). A ascensão do tipo homem superior caminha na contramão da dimensão da raça, que, por sua vez, se liga a classificações como de cultura, costumes, climas e outras condições físicas e morais. O cultivo de um tipo humano superior está situado para além de uma nação e de uma cultura. A sua fisiologia se adequa para além de um sentimento nacional, para se expressar como exceção12 12 A exceção consiste em fator fundamental numa crítica nietzschiana ao rebanho, e, consequentemente, a tudo o que impede as diferenças. Logo, mais uma vez, o conceito de exceção contribui com uma contra crítica a uma determinada concepção totalitária do pensamento de Nietzsche, o qual poderia se aproximar do nazismo e a tudo o que impede as diferenças, a pluralidade e a mistura: “Claro que ele teve que permitir uma exceção em sua mistura de todas as sementes: o nous não era então, e não é misturado com nada” (PZG/FTG, 16, KSA, 1.863). , como uma tipologia fora de todo o tipo e classificação, como seria o de uma determinada raça. Nietzsche tem um sentido diferenciado de Aristocracia, para além de agrupamentos reconhecidos em torno a algum padrão:

Quando ele fala de uma raça: tipo superior’ que tornará a ‘aristocracia superior do futuro’, ele está falando sobre o super-homem. Mas isto deve ser o mesmo grupo retratado com a ‘nova aristocracia’ ou ‘os mestres do futuro da terra’, os legisladores do futuro, os espíritos livres do futuro, os mestres da raça que vem, as castas dominantes que vem - tudo do qual deve significar a mesma coisa com a espécie soberana superior, uma ‘raça mais forte’, ou ‘o tipo mais forte’ (Fortich, 2010FORTICH, I. F. 2014. Nietzsche’s Übermensch: The notion of a higher aristocracy of the future. In: Civilizar. 10 (18): enero-junio, Bogotá: p.75-84., p. 78).

A classificação de raça não dá conta da quantidade de força necessária que se deve expressar para a emancipação de tipos superiores. A raça torna homogêneo, padroniza, nivela tudo aquilo que, por si e em si, deve se mostrar como tensão por almejar o assenhoramento, elevando-se para além dos padrões socialmente estabelecidos. E, como bem recorda A. K. Rogers, que aquilo que poderia ser pensado como um mal, o que seria os obstáculos a serem superados, não é tão mal assim: “Mal não é realmente mal, este é necessário para o fim real do homem, e assim é um bem, até mesmo o verdadeiro homem luta por conflito, por perigo, até mesmo a dor, para superar a exaltação de seu humor” (Rogers, 1920ROGERS, A. K. 1920. Nietzsche and the aristocracy ideal. In: International Journal of ethics. 30 (4): jul, The University Chicago Press: p. 450-458., p. 421).

Elevar-se para além destes padrões e buscar superar classificações como de raça, para oportunizar o exercício do extravasamento, da exceção. Do fugir constante à regra, do romper com as amarras e limites próprios do conceito de nação e de raça, tende a estancar a vontade que quer superar, já que na raça muitos encontram o fim e a meta para as suas buscas, não indo além dela, nem num conformismo comodista. Neste sentido, o indivíduo acaba se identificando não com aquilo que é a sua vontade de superação, mas com os padrões próprios da raça, o que equivale a uma anulação do indivíduo em si. Há neste fenômeno o contrassenso da realidade do indivíduo como estando em função da raça, quando o processo deveria ser inverso, ou seja, da raça enquanto sustentação para a afirmação do indivíduo, como requisito para aquilo que Rogers acentua em sua leitura de Nietzsche, que é a qualidade e a vida, que é interpretada como uma “(...) aristocrática indiferença para motivos comuns do amor do fácil ou medo ao perigo” (Rogers, 1921ROGERS, A. K. 1920. Nietzsche and the aristocracy ideal. In: International Journal of ethics. 30 (4): jul, The University Chicago Press: p. 450-458., p. 451). Contudo, trata-se de coragem que não se confunde com o despotismo próprio de regimes totalitários, como foi o nazismo. O regime nazista constituiu-se num tipo de movimento em torno a glorificação de uma raça, em detrimento da anulação do indivíduo. Por essa razão, trata-se de um movimento que está distante daquilo que constitui a base para a afirmação de um homem de exceção. Em que medida este tipo de homem de exceção, que comunga com o espírito aristocrata, se confunde com a concepção de raça?

4 O radicalismo aristocrata traduzido em germanismo13 13 Embora o pensamento de Nietzsche seja radical, em muitos aspectos, a que se ter cuidado para que este elemento de radicalismo não venha a repercutir em uma leitura tipicamente totalitária. Esta denunciaria uma contradição no próprio pensamento do filósofo alemão. Pois, toda a forma de totalitarismo tende a enrijecer-se num dogmatismo fechado e absoluto, incapaz de enxergar a pluralidade e as diferenças, fundamentais na base do pensamento nietzschiano.

As considerações apresentadas nos capítulos anteriores, tanto àquelas referentes à aristocracia, fundadas na elevação de tipos psicológicos afirmativos, como à raça, fundada na salvaguarda de indivíduos de exceção, estão na contramão daquilo que seria a preservação de uma casta, ou grupo seleto, que guarde as prerrogativas referentes às condições de governo da Europa. Nietzsche mantém cautela com relação a todos os agrupamentos humanos nivelados em torno aos princípios, mediante os quais, pautam as suas vidas. Estes princípios acabam se atendo na vida destes agrupamentos, no sentido de cristalizar toda a sua capacidade criativa, como seriam algumas ideologias que tomam conta dos destinos da vida de cada indivíduo. Ideologias como aquelas que fazem com que alguma pessoa ou princípio passam a ser endeusados, como seria aquela em torno ao culto da própria nação alemã, consignada sob o título de germanismo. Mediante esta expressão, se alimentou um verdadeiro culto aos germânicos, à raça ariana, em detrimento a outras nações e culturas, como seria, por exemplo, a nação judaica. Sobre os judeus Nietzsche se mostra bastante controvertido, como nesta afirmação: “a Alemanha tem judeus bastantes, (e por muito tempo ainda terá) e, dar conta desse quantum de (quantidade) de judeus” (JGB/BM, 251, KSA, 5.193). Os judeus parecem fazer obstáculos para que os alemães possam desenvolver a sua capacidade máxima, como se eles roubassem o seu espaço, no sentido de sugarem toda as fontes de energia. Por isso, Nietzsche é incisivo: “Não deixar entrar novos judeus! Fechar as portas para o Leste (para a Áustria também)!” (JGB/BM, 251, KSA, 5.193). No entanto, o filósofo alemão acabou reconhecendo que é apenas o instinto de um povo baixo que acabou insuflando este tipo de atitude. Pois, e aqui, Nietzsche passa a virar o jogo, reconhecendo que “(...) os judeus são, sem qualquer dúvida, a raça mais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa, eles sabem se impor mesmo nas piores condições” (JGB/BM, 251, KSA, 5.193). Neste sentido, os judeus acabam sendo exemplos daqueles homens de exceção, portanto, daqueles que comungam do ideal aristocrata14 14 A crítica principal que Nietzsche endereça aos judeus se avizinha a inúmeros outros povos e culturas, como seriam os cristãos, por exemplo: o de serem povos devotados à moral. A positividade da lei judaica, centrada no cumprimento de mandamentos instituídos por um Deus único, denuncia as críticas de Nietzsche. Estas críticas, longe de serem consideradas como críticas antissemitas, são, antes, críticas à moral, em sentido amplo, já que nesta categoria muitos outros povos também podem se encaixar. . Os judeus, historicamente, são considerados como aqueles que souberam se impor em meio às situações mais desafiadoras. A dimensão de aristocracia for aplicada a eles por causa de seus ideais de superação: “Aristocracia como em si mesmo um ideal aristocrata já tem perdido sua pungência e verdade, e tornou-se muito menos que um conceito arquivado no passado. Um orgulhoso aristocrata e consciencioso de sua própria superioridade, e ao menos um dos edificantes dos espetáculos humanos” (Rogers, 1920ROGERS, A. K. 1920. Nietzsche and the aristocracy ideal. In: International Journal of ethics. 30 (4): jul, The University Chicago Press: p. 450-458., p. 454).

O fato de que os judeus tiveram que enfrentar tantos obstáculos para sobreviverem, tem feito deles um povo da força, um espécime dado ao jogo pelo embate. E quanto mais acirrado tem sido este embate, tanto maior a sua expressão de força, uma força capaz de extravasar continuamente o seu estado atual. Por essa razão, os judeus poderiam perfeitamente dominar toda a Europa mas preferem ser aceitos no interior da Europa, reconhecidos como tal, sem a necessidade de se estabelecerem enquanto povo com o seu padrão de povo.

Que os judeus poderiam, se quisessem - ou se fossem obrigados, como parecem querer os antissemitas -, ter já agora a preponderância, e mesmo literalmente o domínio sobre a Europa, isto é certo, que eles não trabalham e nem fazem planos para isso, é igualmente seguro. Entretanto, o que eles desejam e anseiam, com insistência quase importuna, é serem absorvidos e assimilados na Europa (JGB/BM, 252, 5.194).

Desta passagem se constata o quanto Nietzsche se coloca contra a posição antissemita, o que, de longe, já se distancia da posição nazista, centrada na dimensão da grandeza germânica. Em alguma medida, a posição aristocrata de Nietzsche pode levar a uma leitura que barra o germanismo, contudo são duas coisas distintas. A aristocracia põe em pauta o indivíduo propulsor da força, aquele que encarna o homem de exceção. Por isso, este homem destacado pela força é base para o desenvolvimento de um programa político, de uma nova legislação aristocrática, em que, como sublinha Keith Ansell-PearsonKEITH, A.P. 1994. An Introduction to Nietzsche as Political Thinker. 42-3, Cambridge: Cambridge University Press., tem “(...) o objetivo de obter controle através de uma conjunção da legislação filosófica e do poder político (a grande política)15 15 Quando Nietzsche fala em Grande Política, está se referindo, primeiramente, na questão fisiológica, como força que domina, no sentido de constante embate, guerra, um campo anímico, em que o superar obstáculos constitui uma constante na vida: a vontade de potência, presente na política do indivíduo. Esta disposição fisiológica afirmativa se contrapõe a Pequena Política, que é responsável pela degenerescência das forças, quando estas acabam sendo controlados pelos mecanismos gregários, presente na política do rebanho: “(...) a grande política quer fazer da fisiologia o mestre de todas as outras questões; ela quer criar um poder forte o suficiente para criar a humanidade como um todo e superior, com dureza implacável contra os degenerados e parasitas da vida” (Nc/FP de dezembro 1888 a início de janeiro de 1889, 25[1], KSA, 13[638]). .” Diferentemente, o germanismo tem como pauta o estabelecimento de uma casta que domine. No entanto, Nietzsche até menciona a importância do estabelecimento de um germanismo, mas trata-se de um novo germanismo, que esteja para além daquele modelo pautado sob o regime do rebanho. Este novo germanismo diz respeito aos tipos destacados pela força e pela seleção. Estes podem responder ao supremo objetivo “(...) de uma sociedade aristocrática, como Nietzsche a imagina, é o tipo de sociedade que deseja superar a incompletude produzida pela socialização e pela civilização e promover a grandeza concebida como amplitude” (Lemm, 2019LEMM, V. 2019. Cultura e economia em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. Trad. Davi Maranhão De Conti. Guarulhos/Porto Seguro, 40 (1): janeiro/abril, p. 67-91., p. 77). Nietzsche fala sobre este tipo de sociedade que supera a incompletude da inveja e do ressentimento, justamente indo em defesa dos judeus, em contra aqueles que os perseguem, os antissemitas, como pode-se acompanhar pela passagem que segue:

(...) ao judeu errante -; esse ímpeto e pendor (que talvez já indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveria ser considerado e bem acolhido: para isso talvez fosse útil e razoável expulsar do país os agitadores antissemitas. Acolher bem e com toda a prudência, com critério; como faz a aristocracia inglesa, digamos. É fato evidente que poderiam estabelecer ligações com eles, sem a menor hesitação, os tipos mais fortes e solidamente talhados do novo germanismo (JGB/BM, 251, KSA, 5.194).

Este novo germanismo, para além da moral gregária, se afirma como uma prudente e comedida aristocracia. E quando se fala em prudente e comedida aristocracia, há que se avaliar em que medida estes objetivos corroboram a noção de radicalismo aristocrático, ao qual tanto inspirou a recepção que Brandes fez do pensamento nietzschiano na Dinamarca16 16 A concepção de radicalismo aristocrata possui, em Nietzsche, e, em Brandes, algumas semelhanças, mas também diferenças. Ambas as concepções se assemelham em conceber uma cultura fundada em ideais que se elevam para além de modismos associados ao rebanho. Contudo, enquanto, em Nietzsche a aristocracia se aproxima à dimensão dos valores ligados ao indivíduo, ao espírito que comunga com ideias elevados, a concepção de Brandes, se aproxima de uma noção de aristocracia vinculada a constituição de um povo que comunga de ideias elevados, que favoreça uma nova concepção de Europa. . Como o próprio filósofo de Naumburg testemunha, nesta carta à Franz Overbeck: “Brandes, escreveu várias cartas de lealdade a mim: espantado, como ele diz, pelo espírito original e novo que emana para ele de meus escritos e cuja tendência ele descreve como ‘radicalismo aristocrático’” (Br/Cr à Franz Overbeck de 03 de fevereiro de 1888, 984, KGB, 8.243).

Quando Nietzsche refere-se ao radicalismo aristocrático, estaria ele, pensando em uma forma de aristocracia que extrapola os limites de todos os modelos aristocráticos até então vividos, uma espécie de “(...) natural megalomania do aristocrata” (Rogers, 1920ROGERS, A. K. 1920. Nietzsche and the aristocracy ideal. In: International Journal of ethics. 30 (4): jul, The University Chicago Press: p. 450-458., p. 456), ou que estivesse, antes, pensando em uma aristocracia nova, centrada no indivíduo e não no grupo, no coletivo? Este tema da aristocracia, pensado sob novos parâmetros, vem ao encontro do tema do novo germanismo. Pois, não se trata de um germanismo simplesmente centrado no slogan, numa marca, mediante a qual se identifica um grupo de seguidores resolutos a empenharem a sua fé, mas, antes, uma aristocracia do espírito17 17 O próprio Georg Brandes sublinha que o radicalismo aristocrático de Nietzsche não é político e sim um aristocratismo do espírito. Cf. Brandes, 2004, p. 71. , que empenhe o cultivo de tipos psicologicamente afirmativos, arduamente treinados a ultrapassarem obstáculos, a terem que se superar a si mesmos. Esta autossuperação é uma capacidade que aponta para a “(...) visão de uma sociedade aristocrática futura que reflita uma aristocracia do espírito” (Lemm, 2022LEMM, V. 2009. Nietzsche’s Animal Philosophy. Culture, Politics and the animality of the human being. Fordham University Press: New York., p. 03).

Por essa razão, se a antiga aristocracia se empenhou mais em formar indivíduos submetidos a uma autoridade gregária forjada por um ideal, como o foi a propaganda nazista, a nova aristocracia não apenas se distanciou daquele modelo, mas, além disso, a combate, no intuito de formar também uma nova casta. Portanto, um novo germanismo, pensado em função de uma nova casta, tudo isto tendo em vista o “(...) o ‘problema europeu’ tal como o entendo, no cultivo de uma nova casta que governe a Europa - “(JGB/BM, 251, KSA, 5.195). Esta nova casta se distingue pela força, pelo espírito, pela capacidade de superação, requisitos fundamentais no que diz respeito ao papel do governo. Governar, para o filósofo alemão não é exercer cerceamentos e subjugação de uma massa de indivíduos, mas, muito pelo contrário, é o exercício de fomentar o cultivo de si, pela autossuperação e afirmação. Este indivíduo que se supera evoca a “Visão de Nietzsche de uma ‘Aristocracia Superior’ que oferece uma ideia de liberdade individual, que reflete “(...) uma plenitude de vida, para além do humano, um gênio da cultura” (Lemm, 2009LEMM, V. 2009. Nietzsche’s Animal Philosophy. Culture, Politics and the animality of the human being. Fordham University Press: New York., p. 11). Por isso, não se trata de um germanismo autocentrado na visão acéfala e degenerada, mas um germanismo que se afirme pela força do espírito. Para tanto, este necessita estar distante de todos aqueles modismos e ideologias que se erguem com a pretensão de serem padrões de conduta, com uma abrangência universal, para atingirem um padrão de nobreza e genialidade. “Neste respeito, o gênio da cultura significa uma superação das normas e valores que definem a regra da civilização” (Lemm, 2009LEMM, V. 2009. Nietzsche’s Animal Philosophy. Culture, Politics and the animality of the human being. Fordham University Press: New York., p. 28). Regras estas responsáveis pelos diferentes movimentos de degenerescência. Tais movimentos são degenerescentes, desde a sua origem, pela pretensão de universalização em torno a uma moral gregária, tendo à frente um mentor que se impõe, ao modo de um sacerdote ascético. Movimentos como este a humanidade já assistiu por inúmeras vezes, como foram aqueles constituídos por todos os ‘ismos’: germanismo, stalinismo, nazismo, cristianismo. Todos eles se mostram auto acéfalos, incapazes de se afirmarem pela força, e, por isso, sua prerrogativa não é outra, senão a da fraqueza, representada pela vingança e pelo ressentimento.

Quando Nietzsche evoca a necessidade de uma nova casta que governe a Europa, tal como expresso no aforismo acima, está avocando um modelo diferente de mando e de liderança, que até então, tem sido para manter a subjugação por um poder altamente centralizado em torno a um ideal universalizante. Mas trata-se de uma forma de poder que se exerce pela “(...) subversão de valores da civilização (...) de poderes igualmente respeitados e envolvidos para e contra cada outro” (Lemm, 2009LEMM, V. 2009. Nietzsche’s Animal Philosophy. Culture, Politics and the animality of the human being. Fordham University Press: New York., p. 28). Ora, tal modelo de poder universalizante é, inclusive, enfatizado pela leitura que Brandes faz do pensamento de Nietzsche, como se pode acompanhar na passagem que se segue: “Será preciso então, declaram tanto Nietzsche, como os franceses mais eminentes de nossos dias, se tem conseguido elevar e educar uma casta de homens superiores que possam adonar-se de poder central” (Brandes, 2008BRANDES, G. 2008. Nietzsche. Un ensayo sobre el radicalismo aristocrático. Trad. José Liebermann. Madrid: Sexto Piso., p. 16). Uma leitura como estas dá, facilmente, azo ao acento a um germanismo que se afirme pela tirania, como se tem assistido pelo nazismo18 18 Quando se fala em tirania e nazismo, não se quer evocar que a recepção, realizada por Brandes, do pensamento do filósofo alemão, tenha necessariamente induzido a uma concepção nazista. Mas que esta pode ter dado margens a algum tipo de leitura que tenha fomentado os ideais nazistas. E isto, muito mais pela leitura que Brandes realiza sobre a concepção de radicalismo aristocrático, do que a do autor de quem esta teve origem. Pois, o autor escandinavo acentua, com esta concepção de radicalismo aristocrata, a noção de povo, de um novo europeu a comungar de tais ideais. . Um movimento que se afirma pelo controle e abandono de poder central. Com isso, tudo passa a seu domínio. Em que medida falar em poder central é tocar na fonte e expressão máxima da força, que é o espírito? Esta casta de homens superiores seria efetivamente uma classe de espíritos livres, homens de exceção, ou, antes, líderes despóticos que atuam como massa de manobra e subjugação para impor ordenamentos morais padronizadores e universais? Expressões, utilizados por Brandes, como: “almas aristocráticas contemporâneas” (Brandes, 2008BRANDES, G. 2008. Nietzsche. Un ensayo sobre el radicalismo aristocrático. Trad. José Liebermann. Madrid: Sexto Piso., p. 21), “exemplares mais altamente desenvolvidos” (Brandes, 2008BRANDES, G. 2008. Nietzsche. Un ensayo sobre el radicalismo aristocrático. Trad. José Liebermann. Madrid: Sexto Piso., p. 22), “um sacerdote da civilização” (Brandes, 2008BRANDES, G. 2008. Nietzsche. Un ensayo sobre el radicalismo aristocrático. Trad. José Liebermann. Madrid: Sexto Piso., p. 24). Facilmente podem ser aduzidas para fomentar movimentos que se afirmam pelo ideal de domínio universal, como foi o nazismo. Com isso, não se pretende afirmar que Brandes tenha pactuado com aquilo que viria a se constituir com o nazismo, mas que, em grande medida, veicular ideias e expressões que facilmente poderiam fomentar os ideais nazistas. Por mais que o pensamento de Nietzsche, claramente se opõe a movimentos como o nazismo, tal como acima analisado, como é, por exemplo, a diferença entre aristocracia e germanismo, as ênfases que se empregam ao seu pensamento e suas expressões podem suscitar leituras que se aproximam dos ideais próprios do nazismo.

5 Considerações Finais

Pelo itinerário percorrido, foi possível verificar a distância entre a aristocracia e o germanismo. Conceitos estes fundamentais para o desenvolvimento do projeto nietzschiano de crítica da cultura. Uma crítica que leve a cultura ocidental moderna superar os limites impostos pela metafísica, pela razão e pela moral, para avançar na direção de uma desconstrução dos fundamentos mediante os quais aqueles elementos foram forjados. Desse modo, o filósofo alemão entende ser possível o advento de uma cultura aristocrata. E quando se fala em cultura aristocrata é necessário levar em consideração aspectos atinentes ao âmbito do espírito, da tipologia psicológica, elementos estes referentes ao indivíduo, que se expressam no homem de exceção. Aquele espécime que se superou a si mesmo, que, livre de todos os cerceamentos impostos pela moral, alcançou um instante culminante de potência, portanto, de plenitude. E é justamente nesta disposição afirmativa que se lança a buscar atingir este instante de plenitude que reside o espírito aristocrático, não impondo a posição que ocupe na ordem hierárquica, mas que, estando em uma posição inferior ou superior, busque a todo o instante, se superar, se lançar ao assenhoramento.

Por essa razão, é melhor que aquele que, mesmo encontrando-se em uma posição hierárquica inferior, emende todos os esforços por se superar, do que aquele que se encontra em um patamar superior, se sinta acomodado, e, por isso, incapaz de se superar, como se contentasse com a posição em que está. Estes, de acordo com a leitura de Nietzsche, são os tipos degenerados. Pois, incapazes de lutar, se superar, da mesma forma também levam outros ao mesmo caminho, pela sua estratégia de envenenamento. Por isso, superior ou inferior, hierarquicamente falando, a ordem é superar-se, afirmar-se, assenhorar-se.

Brandes é atraído por todo este esforço nietzschiano de superação incessante, consignado pela fórmula de “Radicalismo aristocrático”. Contudo, mesmo que Nietzsche se entusiasme com a interpretação de seu pensamento realizada pelo historiador e crítico da cultura dinamarquesa, há aspectos que se distanciam da letra e do espírito do pensamento nietzschiano. Aspectos estes, tributários à recepção que Brandes realiza de Nietzsche, vindo a acarretar na ênfase de uma leitura até indevida de seu pensamento, como foi a que os nazistas deste realizaram. O próprio pensamento de Nietzsche, em si mesmo, pode dar azo a um tipo de leitura que fomente as ideias nazistas, pelo grande teor de controversa e até obscuridade com que grande parte de seus aforismos são dotados. Então, tanto mais este tipo de leitura pode ainda ser mais acentuado, quando conceitos e aforismos nietzschianos forem lidos à parte do conjunto de seu pensamento. E, um exemplo claro deste tipo de procedimento, Brandes realiza com o conceito de radicalismo aristocrático. A própria ideia de aristocracia traz já aspectos que apontam para a força, o despotismo, a subjugação, e ainda mais se isto for radicalizado.

Com o intuito de marcar bem os campos que dizem respeito a aristocracia e ao germanismo, procedeu-se a tratar, no decorrer do itinerário, diferentes capítulos que tratassem especificamente de um e de outro campo. Por isso, principiou-se a tratar sobre a aristocracia, como aquele do domínio que extrapola os limites de uma casta, um grupo ou agregado para apontar para a dimensão do indivíduo, que pela sua disposição afirmativa, se auto supera. Para que este movimento de autossuperação aconteça é preciso que toda a iniciativa parta do indivíduo, que pela sua constante superação de obstáculos vá demandando um quantum sempre mais potente de força. Por isso, seu intento é o de sempre atingir pontos mais culminantes na hierarquia. O papel da casta, do grupo ou comunidade, neste sentido, não é outro senão o de interpor desafios e obstáculos para que se ultrapasse, auto supere. E, quanto maiores os desafios interpostos pela sociedade, mais forças serão demandadas pelo indivíduo para que se supere. Neste aspecto, Nietzsche constata que sociedades e culturas dominadas pela paz acabam redundando em grande perigo para a vida. Sem a interposição de desafios e obstáculos, a vida degenera, pela atrofia dos diversos órgãos que compõem o organismo vivo.

Logo, o filósofo alemão tece elogios à guerra, lida, neste contexto da interposição de obstáculo, mediante os quais se depreende um quantum sempre maior de força. Deste elogio que Nietzsche realiza sobre a guerra, acaba, de alguma forma, por levar a uma leitura equivocada de seu pensamento. Guerra, neste contexto nietzschiano, não se refere a interposição de um despotismo marcado pela vingança e pelo ressentimento, mas, antes, pela dimensão anímica, que aponta para o fenômeno da tragédia, típica dos gregos antigos. Na esteira destas análises, no segundo capítulo, tratou-se de verificar os diversos desdobramentos que o conceito nietzschiano de germanismo possui. Por essa razão, por mais que este traga indicativos que possam contribuir para que eleve a cultura germânica a tal ponto de se concebê-la como uma raça pura, portanto, com implicações eugênicas, é, antes, uma apologia que incentive a elevação de espíritos livres. Por isso, tais espíritos, para que sejam verdadeiramente livres, necessitam estar desligados do vínculo gregário, próprio do que seria aquela concepção de germanismo, apresentado na concepção de raça em que são compartilhados princípios de universalidade seguidos pela massa. Nietzsche, mais do que distanciar desta concepção de raça, antes, busca, por todos os meios as formas de superar e combater. O que, de alguma forma, fez com que a noção de raça fosse lida como germanismo foi a aproximação deste último conceito com o de aristocracia, que, como analisado, são duas coisas bem diferentes. Ao associar a aristocracia ao germanismo acabou se traduzindo todos os esforços no sentido de afirmação e de superação do indivíduo à uma classe, casta ou agrupamento gregário, fechados sob os seus princípios e ordenamentos universalizantes. O que, no fundo, resulta em nada senão uma traição do pensamento de Nietzsche. E esta associação acabou sendo realizada, mesmo que de forma não intencional, por Brandes. Este, ao acentuar, o aspecto ‘aristocrata’ com o adjetivo ‘radicalismo’, acabou por recepcionar o pensamento de Nietzsche na Dinamarca sob a consigna imperativa da necessidade de uma revolução cultural, baseada na sublevação de espécimes destacados pela força, ideal este partilhado pelo nazismo.

Que Nietzsche tenha destacado em seus escritos a necessidade de espécimes que se afirmem pela força, é até aceitável, contudo, o problema está no desvirtuamento que certas ênfases num tipo de leitura destas pode levar, quando, principalmente, estas leituras venham a se atrelarem a algum tipo de ideologia assentada sob algum padrão universalizante que conduza a um fenômeno de massificação, traço este típico dos ideais nazistas, e que, infelizmente, o pensamento de Nietzsche foi instrumentalizado. Neste sentido, se é levado a crer que, em grande medida a recepção de Nietzsche, realizada por Brandes na Dinamarca, tenha se não promovido, pelo menos, acentuado a instrumentalização indevida do pensamento de Nietzsche pelos nazistas. Não, como já dito, que isto tenha sido intencional, pois o próprio Nietzsche não apenas assevera a compatibilidade da tradução de seu pensamento pela recepção de Brandes, como, até, o elogia. Por isso, a questão está nos desdobramentos que as ênfases na recepção de Nietzsche, realizada por Brandes, têm conduzido. Se espera que, com este estudo, tenha se dado um passo além, no sentido de contribuir com a forma pela qual o pensamento de Nietzsche foi recepcionado na Dinamarca, e, mediante isto, em que medida este tenha sido utilizado para enfatizar os ideais nazistas. É claro que restam, ainda, muitas questões a serem respondidas, que não cabem todas neste espaço, e que se espera realizá-los em oportunidades subsequentes.

Referências

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  • SALANSKIS, E. 2016. Raça (Rasse). In: Dicionário Nietzsche 350-2, Edições Loyola: São Paulo.
  • 1
    Para as citações das obras de Nietzsche adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em Alemão/Português: PZG/FTG - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos), MA/HH - Menschliches Allzumenschliches (Humano demasiado humano), MAII/HHII - Menschliches Allzumenschliches (Humano demasiado humano), FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA - Aslo Sprach Zaratustra (Assim Falava Zaratustra). JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Além do bem e do mal), WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral), Nc/FP - Nachlass (Fragmentos Póstumos), Br/Cr - Briefe (Carta), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.
  • 2
    Georg Brandes (1842-1927) foi um crítico literário e historicista dinamarquês. Sua influência na Dinamarca no que tange à literatura foi extremamente significativa. Se deve a Brandes, de maneira especial, a recepção do pensamento de Nietzsche em terras escandinavas.
  • 3
    Espírito é uma categoria nietzschiana muito utilizada para caracterizar o indivíduo, aquela particularidade única, singular e irrepetível. Da mesma forma, também, o espírito se liga à dimensão de tipologias psicológicas, podendo ser afirmativas ou resignadas. Daquela primeira se depreende a categoria de “espírito livre” (Freier Geist), tal como Nietzsche se expressa: “(...) um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira do abismo. Um tal espírito seria o espírito livre, por excelência. (FW/GC, 347, KSA, 3.583); da segunda se associa a expressão nietzschiana de “Espírito de peso” (Geist der Schwere), como Nietzsche se pronuncia “Eu só acreditaria em um deus que soubesse dançar. E quando vi meu demônio, achei-o sério, profundo, solene: era o espírito de peso - através dele todas as coisas caem” (Za/ZA, I, Do ler e Escrever, KSA, 4.49).
  • 4
    Por consciência Nietzsche compreende o termo no sentido fisiológico, Bewusstsein, como se apresenta nesta passagem: “O infeliz obtém uma espécie de prazer com o sentimento de superioridade que a demonstração de compaixão lhe traz à consciência; sua imaginação se exalta, ele é ainda importante o suficiente para causar dores ao mundo.” (MA/HH, I, 50. KSA, 2. 71).
  • 5
    Nietzsche expressa o instinto feminino de forma bastante plástica mediante esta passagem: “A força dos fracos - Todas as mulheres são sutis em exagerar sua fraqueza, são mesmo inventivas em matéria de fraqueza, a fim de parecer frágeis ornamentos que até um grão de poeira poderia ferir: sua existência deve fazer o homem sentir no ânimo e carregar na consciência a própria rudeza. Assim se defendem elas dos fortes e da ‘lei da selva’” (FW/GC 66, KSA, 3.426).
  • 6
    Aos pontos culminantes de potência (Macht-Höhepunkte) Nietzsche atribui àquilo que constitui poder no sentido de alcance de sempre maiores níveis de assenhoramento, a isto, inclusive, o filósofo atribui a Deus: “’Deus’ como momento culminante: a existência de uma eterna deificação e desdeificação. Mas não há um ponto alto em valor, mas pontos altos em poder” (Nc/FP do outono de 1887, 9[8], KSA, 12.343).
  • 7
    A consciência, nesta qualificação moral é Gewissen, consciência moral. Nietzsche compreende esta consciência como algo novo, capaz de romper com o costume, até então, vigente em meio à uma determinada cultura: “A boa consciência tem como estágio preliminar a má consciência — não como oposto: pois tudo que é bom foi uma vez novo, portanto, inusitado, contrário ao costume, imoral, e roeu como um verme o coração do feliz inventor” (AM II/HH II, 90, KSA, 2.413).
  • 8
    O conceito de raça ocupa em Nietzsche um papel fundamental. Já desde Humano, demasiado humano, o termo raça se refere à cultura, povo e comunidade, sem se vincular a um grupo social determinado. A partir de Aurora o termo raça passa a possuir um duplo sentido, ou melhor, um sentido que varia entre o biológico e o cultural, pelas transformações históricas pelas quais passam as culturas. Em Para além do bem e do mal a raça passa a ocupar um local no âmbito valorativo psicológico, pois o conceito passa a ter uma dimensão genealógica. Desse modo, a raça passa a ser analisada sob o ponto de vista de uma hierarquia. Contudo, a raça não possui um fator determinativo, no sentido de uma concepção marcada por ideologias nacionalistas e antissemitas, pois como sublinha Emmanuel Salanskis: “(...) Nietzsche não rejeita as misturas raciais; ele as valoriza, em todo o caso numa primeira etapa, enquanto condição de possibilidade de uma unidade mais forte e mais bela (...) Nietzche inverte a retórica dos antissemitas alemães, ao defender que a raça judia é a mais forte e a mais pura da Europa do século XIX” (Salanskis, 2016SALANSKIS, E. 2016. Raça (Rasse). In: Dicionário Nietzsche. 350-2, Edições Loyola: São Paulo., p. 351).
  • 9
    O conceito de raça, em Nietzsche, se desvincula de tudo o que traga conotações de fechamento e predeterminações, pois, o filósofo concebe, por raça, tudo o que conduza a um aumento de força. Por essa razão, Nietzsche possui uma abertura quanto a mistura de raças, bem como no que diz respeito ao refinamento de uma dada cultura, mediante práticas pedagógico formativas. Tudo isso, mostra o quanto a noção de raça se constitui como algo flexível, distante dos ditames dogmáticos que para ela se poderia prescrever.
  • 10
    Dentro da reflexão que Nietzsche tece em torno a aristocracia, os valores ocupam um espaço fundamental. Por essa razão, tudo aquilo que é considerado “bom”, acaba sendo fruto de uma convenção social que assim o estabeleceu. Portanto, os valores que se baseiam em regras e ordenamentos, diante dos quais a única disposição que resta não é senão a de resinar-se passivamente, conduz à degenerescência, pois estanca as forças responsáveis pela luta que afirma e cria: “(...) o bem como segundo nível, degeneração. Emburrecimento. Ódio ao desenvolvimento espiritual” (Nc/FP da primavera de 1884, 25[113], KSA, 11.43).
  • 11
    A hierarquia é mais um indicativo a sublinhar a dimensão aristocrata do pensamento de Nietzsche. Contudo, não se trata de uma concepção hierárquica, entendida como uma disposição imutável, mas, pelo contrário, como uma realidade orgânica, em constante mutabilidade de todas as partes que a compõem. Por isso, nenhum indicativo pode ser concebido como imperativo e mandamento, nenhuma disposição, como lei, nenhum conhecimento, como verdade última: “(...) em lugar da ‘teoria do conhecimento’, uma doutrina perspectiva dos afetos (que inclui uma hierarquia dos afetos)” (Nc/FP do outono de 1887, 9[8], KSA, 12. 342).
  • 12
    A exceção consiste em fator fundamental numa crítica nietzschiana ao rebanho, e, consequentemente, a tudo o que impede as diferenças. Logo, mais uma vez, o conceito de exceção contribui com uma contra crítica a uma determinada concepção totalitária do pensamento de Nietzsche, o qual poderia se aproximar do nazismo e a tudo o que impede as diferenças, a pluralidade e a mistura: “Claro que ele teve que permitir uma exceção em sua mistura de todas as sementes: o nous não era então, e não é misturado com nada” (PZG/FTG, 16, KSA, 1.863).
  • 13
    Embora o pensamento de Nietzsche seja radical, em muitos aspectos, a que se ter cuidado para que este elemento de radicalismo não venha a repercutir em uma leitura tipicamente totalitária. Esta denunciaria uma contradição no próprio pensamento do filósofo alemão. Pois, toda a forma de totalitarismo tende a enrijecer-se num dogmatismo fechado e absoluto, incapaz de enxergar a pluralidade e as diferenças, fundamentais na base do pensamento nietzschiano.
  • 14
    A crítica principal que Nietzsche endereça aos judeus se avizinha a inúmeros outros povos e culturas, como seriam os cristãos, por exemplo: o de serem povos devotados à moral. A positividade da lei judaica, centrada no cumprimento de mandamentos instituídos por um Deus único, denuncia as críticas de Nietzsche. Estas críticas, longe de serem consideradas como críticas antissemitas, são, antes, críticas à moral, em sentido amplo, já que nesta categoria muitos outros povos também podem se encaixar.
  • 15
    Quando Nietzsche fala em Grande Política, está se referindo, primeiramente, na questão fisiológica, como força que domina, no sentido de constante embate, guerra, um campo anímico, em que o superar obstáculos constitui uma constante na vida: a vontade de potência, presente na política do indivíduo. Esta disposição fisiológica afirmativa se contrapõe a Pequena Política, que é responsável pela degenerescência das forças, quando estas acabam sendo controlados pelos mecanismos gregários, presente na política do rebanho: “(...) a grande política quer fazer da fisiologia o mestre de todas as outras questões; ela quer criar um poder forte o suficiente para criar a humanidade como um todo e superior, com dureza implacável contra os degenerados e parasitas da vida” (Nc/FP de dezembro 1888 a início de janeiro de 1889, 25[1], KSA, 13[638]).
  • 16
    A concepção de radicalismo aristocrata possui, em Nietzsche, e, em Brandes, algumas semelhanças, mas também diferenças. Ambas as concepções se assemelham em conceber uma cultura fundada em ideais que se elevam para além de modismos associados ao rebanho. Contudo, enquanto, em Nietzsche a aristocracia se aproxima à dimensão dos valores ligados ao indivíduo, ao espírito que comunga com ideias elevados, a concepção de Brandes, se aproxima de uma noção de aristocracia vinculada a constituição de um povo que comunga de ideias elevados, que favoreça uma nova concepção de Europa.
  • 17
    O próprio Georg Brandes sublinha que o radicalismo aristocrático de Nietzsche não é político e sim um aristocratismo do espírito. Cf. Brandes, 2004BRANDES, G. 2004. Friedrich Nietzsche. Eine Abhandlung über Aristikratischen Radikalismus. Berlin: Berenberg Verlag., p. 71.
  • 18
    Quando se fala em tirania e nazismo, não se quer evocar que a recepção, realizada por Brandes, do pensamento do filósofo alemão, tenha necessariamente induzido a uma concepção nazista. Mas que esta pode ter dado margens a algum tipo de leitura que tenha fomentado os ideais nazistas. E isto, muito mais pela leitura que Brandes realiza sobre a concepção de radicalismo aristocrático, do que a do autor de quem esta teve origem. Pois, o autor escandinavo acentua, com esta concepção de radicalismo aristocrata, a noção de povo, de um novo europeu a comungar de tais ideais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2022
  • Aceito
    29 Jun 2023
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