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O problema da Individuação nas substâncias corpóreas e a solução de Tomás de Aquino

The problem of Individuation in corporeal substances and Thomas Aquinas’ solution

RESUMO

Este artigo apresentará a noção de “individual” de acordo com a filosofia de Tomás de Aquino buscando identificar os problemas que envolvem esta noção. Primeiro, como uma introdução, observamos esta noção de modo geral em algumas teorias filosóficas, mas depois adentramos propriamente na filosofia de Tomás de Aquino. Apenas a individuação da substância corpórea será apresentada, pois Tomás tem uma teoria diferente para a substância incorpórea, tal como os anjos, Deus e as almas separadas. Assim, A teoria de Tomás afirma que o princípio de individuação é a matéria assinalada, mas tal matéria assinalada é aquela que é considerada como tendo dimensões determinadas. Nossa principal preocupação será identificar o que significa a expressão “dimensões determinadas”. Usaremos uma explicação pouco habitual para esclarecer este problema. Uma vez que Tomás afirma que, no hilemorfismo, a matéria recebe o ser da forma, defenderemos que existe um conjunto de propriedades da matéria que recebe o ser a partir da forma.

Palavras-Chave:
individuação; Tomás de Aquino; substância corporal; matéria assinalada; dimensões determinadas

ABSTRACT

This paper will present the notion of “individual” according with the philosophy of Thomas Aquinas seeking to identify the questions involving this notion. First, as an introduction, we observe this notion in general in some philosophical theories, but after we entered properly in the philosophy of Thomas Aquinas. Only the individuation of the corporal substance will be presented, because Thomas have a different theory to the incorporeal substances, such as the angels, God and the separated souls. So, the Thomas’s theory claims that the principle of individuation is the signaled matter, but such signaled matter is that which is considered as having certain dimensions. Our main concern will be to identify what means the expression “certain dimensions”. We will use an explanation few habitual to clear this problem. Since that Thomas says that, in the hilemorphism, the matter receive the being from form, we will defend that there’s a conjunct of proprieties of the matter that receive the being from form.

Keywords:
individuation; Thomas Aquinas; corporal substance; signed matter; determinated dimensions

1 Introdução do problema e possíveis soluções

Tratar daquilo que é individual nas coisas ao nosso redor envolve uma série de problemas que não são nada fáceis de serem resolvidos. Para compreendermos melhor, façamos um breve experimento de pensamento: escolha um objeto ao seu redor agora e diga alguma propriedade que seja apenas individual e que nunca poderia ser de qualquer outro indivíduo no universo em qualquer época. De fato, se for possível ser encontrada em outro indivíduo, essa propriedade não será individual. Eu escolhi a minha mesa: o fato de ser marrom, quadrada, baixa, dura, de madeira, boa, de ser mesa e até o fato de ser minha são meras propriedades comuns.

O primeiro e maior problema é exatamente identificar que propriedade é rigorosamente individual, pois parece que todas as propriedades dos objetos ao nosso redor são comuns. Todas as propriedades, se não são, ao menos poderiam ser de mais de um objeto. De fato, quando consideramos que as propriedades poderiam ser de outros objetos, acabamos por destruir quase todas as possibilidades de se encarar a individualidade, como veremos nos textos seguintes.

Uma primeira tentadora solução poderia ser considerar que o indivíduo (ou individual) nada mais é do que um conjunto de todas as propriedades comuns. Uma das principais defesas dessa postura teria sido defendida por Leibniz1 1 Para Leibniz (1982), já é pressuposto que toda substância é singular, cabendo a nós apenas conhecer a noção completa dessa substância singular. com a defesa da noção completa da substância singular2 2 Assim Leibniz (1982) se expressa em sua obra Verdades Primeras, 520b: “A noção completa ou perfeita da substância singular abarca todos os predicados pretéritos, presentes e futuros. Posto que mesmo agora é verdade que o predicado futuro é futuro e assim está contido na noção da coisa.” . Tal noção seria um conjunto completo, maximal e consistente de todas as propriedades comuns do passado, presente e futuro deste indivíduo, onde as relações3 3 E Leibniz (1982) prossegue na mesma obra: “Toda substância singular abarca em sua noção perfeita o universo todo e todas as coisas nele existentes, pretéritas, presentes e futuras. Pois não há coisa alguma que não se possa colocar a partir de outra alguma denominação verdadeira, pelo menos a título de relação ou comparação.” com outros singulares (do presente, passado e futuro) também são tratadas como propriedades comuns. Assim nós individualizaríamos qualquer substância singular segundo Leibniz. Desse modo, juntamente com o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis podemos identificar um singular: quando encontramos dois objetos com o mesmo conjunto de propriedades comuns, podemos dizer que se trata do mesmo objeto individual.

Contudo, não parece ser logicamente impossível que o mesmo arranjo de propriedades comuns se repita. Por exemplo: aquilo que os diferencia dois irmãos gêmeos poderia não diferenciar em outro mundo possível, de modo que ficamos sem critério de individuação. Assim, a propriedade de “nascer antes do outro”, de “ocupar um lugar no espaço diferente do outro”, dentre outras, é fácil imaginar um mundo possível em que essas propriedades não sejam de tal indivíduo, mas do outro irmão. Em outras palavras, que ele nasceu antes e que ocupar esse lugar são apenas acidentes e, como tais, podem muito bem ser de outro indivíduo num outro mundo possível.

Além disso, como se pode observar, se tal noção completa existe, o ser humano não pode conhecê-la perfeitamente, mas apenas conhece algumas dessas propriedades comuns, de modo que o ser humano teria apenas uma noção incompleta da substância singular. Somente Deus teria a noção completa da substância singular em seu intelecto supremo. Portanto, esta teoria parece insuficiente para se tratar de modo preciso o individual (ou singular).

Uma versão mais forte dessa teoria seria considerar o conjunto de propriedades de uma parte em específico. Na nossa sociedade, nós somos identificados pelas impressões digitais dos nossos dedos, pela [2] retina dos nossos olhos ou pelo nosso [3] DNA. Contudo, impressão digital é apenas um conjunto de linhas e suas posições, a retina é um conjunto de vasos sanguíneos e partículas da retina e o DNA é um conjunto de bases nitrogenadas em sequência. No fim, caímos no mesmo problema acima, onde poderíamos imaginar um mundo possível em que tais propriedades se repitam. De fato, esse parece ser o modo mais comum de individualizarmos uma pessoa na sociedade, considerando a grande improbabilidade de ser repetir uma pessoa com as mesmas propriedades que outra pessoa em tal parte. Contudo, como vemos, essa teoria é filosoficamente insuficiente para tratar do indivíduo.

Uma tentativa de resolver o problema do individual como conjunto de propriedades comuns é colocar índices espaciais e temporais (ou a especificação do tempo e do lugar no espaço) como propriedades integrantes do conjunto. Contudo, essas propriedades espaço-temporais já identificaria o indivíduo, tornando desnecessário tratar o conjunto inteiro de todas as propriedades. Assim, essa mesa que está aqui (no meu quarto) e agora (às 22h de 18/10/2014) já seria suficiente para tratarmos deste indivíduo. Contudo, observaremos mais adiante nesse artigo que, mesmo assim, essa teoria ainda terá problemas. Grosso modo, podemos dizer que a mesa poderia (num mundo possível) não estar aqui e agora, mas em outro lugar nesse tempo ou nesse lugar em outro tempo. Diante disso, considerando que o espaço e o tempo estão contidos no conjunto propriedades comuns, podemos dizer que mesmo o espaço e tempo juntos ainda não indicam individualidade.

Uma versão radical da teoria do indivíduo como conjunto de propriedades seria a teoria ontológica dos tropos.4 4 Para uma referência à teoria que identifica os indivíduos como um conjunto de propriedades e, também, para teoria ontológica dos tropos ver: Imaguire, 2007. Grosso modo, tal teoria afirma que as propriedades que pensamos ser comuns e nos aparecem como comuns, na verdade, sempre foram individuais. Os tropos seriam essas propriedades individuais que estaríamos erroneamente achando que seriam comuns. Em outras palavras, só existiriam propriedades individuais e nenhuma propriedade seria comum. As propriedades de ser marrom, quadrada, baixa, dura, de madeira, boa são propriedades únicas (tropos) que somente esta mesa na minha frente possui. Algo parecido com isso parece ser defendido por alguns tomistas como se tratando da teoria de Tomás de Aquino sobre os indivíduos, quando estes tomistas entendem que tudo no indivíduo é individualizado. Contudo, esse particípio passado “individualizado” indica que antes (em termos ontológicos e não temporais) não era individual e se tornou individual.

Num primeiro momento, essa teoria dos tropos parece resolver todos os problemas que dizem respeito aos indivíduos, mas precisa lidar com problemas no que diz respeito às propriedades comuns. O primeiro problema a se encarar é como tratar da semelhança entre os tropos (porque este vermelho é semelhante a aquele vermelho), pois parece haver algo comum na semelhança entre os tropos. A resposta normal seria dizer que esse algo comum é apenas ilusório, de modo que se trataria na verdade de tropos de tropos. Se alguém insistir que há algo comum entre os tropos de tropos, o defensor dessa teoria diria que se trata de tropos de tropos de tropos, e assim tenderíamos ao infinito, o que provaria a impossibilidade. Além disso, é importante lembrar que, na medida em que adquirimos conhecimento a propriedade na mente, tal propriedade deixa de ser individual5 5 Não estamos falando da teoria da abstração neste ponto. Trata-se de uma reflexão metafísica sobre a incomunicabilidade do que é individual, pois “comunicar”, por definição, significa “tornar comum”. Se algo das coisas é comunicado a nós para que haja uma correspondência com conhecimento verdadeiro, então não podemos dizer que na realidade haja apenas propriedades individuais, como propõe a teoria dos tropos, mas deve haver algumas propriedades comuns também. , pois deveria haver algo comum entre a minha mente e a realidade. Assim, um defensor da noção de “verdade” como correspondência teria dificuldades para aceitar a teoria dos tropos. Sendo assim, se tudo no indivíduo é propriedade individual, não seria possível conhecer nada.

Diante disso, podemos dizer que deve haver propriedades comuns nos objetos da realidade. Contudo, ainda podemos pensar que ao menos uma propriedade deve ser individual, individualizante ou, pelo menos, considerada a razão da individualidade. Na Idade Média, João Duns Scotus (1996SCOTUS, J. D. 1996. Ordinatio: Livro II, Distinção Terceira, Parte Primeira: Questão 1. Trad. CEZAR, C.R. In: Trans/Form/Ação, São Paulo, 19: p. 241-250.) propôs que a propriedade individual seria o que ele chamou de ecceidade (haecceitas), o que numa tradução livre ficaria “isto-eidade”, aquilo que faz com que isto seja isto. Tal defesa se dá porque os demonstrativos “isto”, “este” ou “esta” são usados como um modo de quantificar individualmente uma natureza comum. Assim, por exemplo, nós individuamos um “homem” dizendo “este homem”. Diante disso, podemos dizer que a ecceidade é a “marca de individualidade que caracteriza o ser inteiro em todos os seus princípios constitutivos - “este” ser se compõe “desta” matéria e “desta” forma e sua “é-isto-eidade” é irredutível ao composto” (Cerezer, 2013CEREZER, C. 2013. O Problema da Individuação em Duns Scotus: uma Introdução. In: Thaumazein, Ano V, nº 11, Santa Maria, p. 225-245., p.232).

Apesar de ser uma boa teoria, ela acaba por criar um conceito a mais dentro do hilemorfismo aristotélico, que é a teoria na qual as substâncias corpóreas são compostas de matéria (em grego ὕλη, hile) e forma (em grego μορφή, morfe). A ecceidade é irredutível à matéria, à forma e ao composto hilemórfico, de modo que se acrescenta como algo a mais e de caráter, por vezes, obscuro, sem contar que criar um novo conceito para resolver o problema da individualidade soa como uma solução ad hoc. Para outros modos de compreensão da individuação na Idade Média, veja “The Problem of Individuation in the Middle Ages” de Peter King (2000KING, P. 2000. The Problem of Individuation in the Middle Ages. In: Theoria, 66: p.159-184., p. 159-184).

Por fim, Tomás de Aquino segue um caminho parecido com o de Duns Scotus, considerando que há propriedades comuns, mas há pelo menos uma propriedade que é individual ou individualizante. Contudo, ao contrário de Scotus, Tomás não apela para nada além do hilemorfismo, considerando que o princípio de individuação não seria nada mais do que a matéria assinalada. Assim, em termos de economia de conceitos, pelo princípio da parcimônia, a teoria de Tomás pode ser melhor. Contudo, antes de adentrarmos na questão dos indivíduos em Tomás de Aquino, é importante considerar como tratar as propriedades comuns e a propriedade individual.

2 Passando do que é Comum para o que é Individual

A teoria tomista pode ser resumida da seguinte maneira: a matéria, enquanto pura potência, é potencial para muitas formas (Aquino, 1996AQUINO, T. 1996. Suma Contra os Gentios. Tradução de Odilão Moura. 1º Vol. Porto Alegre: EST, 1990; 2° Vol. Porto Alegre: PUCRS., S.C.G., lib.3, cap.86, n.1 “materiam, quae est in potentia ad plures formas”; Aquino, 2002AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola., S.Th.Iª, q.7, a.1, co.). Contudo, por “muitas” não se deve entender ainda que se trata de uma multiplicidade de indivíduos, mas se deve entender que se trata de uma multiplicidade de espécies. Desse modo, a matéria está em potência para infinitos “atos das formas” (Aquino, 2002AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola., S.Th.Iª, q. 7, a.1, co.) e, quando a matéria é atualizada, ela recebe o ser na espécie (Aquino, 2002AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola., S.Th.Iª, q.44, a.2, co.; S.Th.Iª, q.50,a.2,ad2.; S.Th.Iª, q.76,a.5, arg.3. ad 3), ou seja, ela é especificada.

De fato, há textos onde Tomás fala da matéria e a forma comuns (Aquino, 2002AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola., S.Th. Iª, q.29, a.2, ad.3.; S.Th.Iª, q.119, a. 1, res.; Aquino, 1996AQUINO, T. 1996. Suma Contra os Gentios. Tradução de Odilão Moura. 1º Vol. Porto Alegre: EST, 1990; 2° Vol. Porto Alegre: PUCRS., S.C.G.lib.1, c.21, n.40) como partes integrantes de uma espécie. Em outras palavras, estamos falando ainda de tipos, de modo que se trata das propriedades comuns que estão em cada indivíduo. Nesse ponto, é importante lembrar que, embora a forma seja a parte que dá o ser ao composto, este composto de matéria e forma comuns não está em ato por si. Se um universal estivesse por si na realidade, cairíamos na teoria das ideias platônicas, que existiriam por si num mundo separado (o mundo das ideias). É bem conhecido que Tomás de Aquino se contrapõe a tal teoria, pois, para ele, o universal não existe por si, embora possamos dizer que o aspecto comum tem ser em cada indivíduo. Assim, aquilo que é comum não existe por si, mas tem ser em função da individuação. Se assim ocorre, é necessário um princípio de individuação para o composto de matéria e forma comuns (, por exemplo, a carne e os ossos + a humanidade6 6 Uso os artigos “a” e “os” para apresentar uma noção comum da matéria e da forma, em contraposição ao uso do demonstrativo em “esta carne e estes ossos”, indicando a matéria individual. ), que compõem a espécie ínfima (“ínfima” porque abaixo dela temos apenas indivíduos). Tomás considerará que o princípio de individuação será a matéria assinalada ou individual.

No entanto, aparecerão alguns problemas no que diz respeito à matéria enquanto assinalada. Ora, a forma será o princípio ou causa do ser da matéria, e essa matéria passa a ser tratada como sendo de numa espécie, ou melhor, passa a ter um ser específico, mas não um ser individual ainda. O que justificaria passarmos para o individual?

Para começar a responder a essa pergunta, podemos dizer que há três modos de consideração da matéria, onde há certo afunilamento do mais geral para o individual: [1] A matéria informe, isto é, a matéria por si mesma, independente da forma, que é pura potência e como tal não poder ter ser sem a forma. Tal modo de consideração independente da forma não pode haver na realidade, caso não haja uma forma atualizando-a. Contudo, uma vez recebendo a atualização da forma, temos [2] a matéria específica, isto é, a matéria de uma espécie. Na medida em que recebe o ser da forma, a matéria é especificada, isto é, é tratada como sendo de uma espécie. Por exemplo: uma coisa é considerar [1] a matéria em geral, mas outra é considerar a [2] matéria do ser humano (carne e ossos), a qual tem o ser da forma humana. Por fim, teríamos [3] a matéria individual, à qual pode ser atribuída uma existência concreta.

Para esclarecer esse assunto, usarei uma abordagem pouco convencional, mas que tem base nos textos tomistas e ajuda na compreensão. Quando falamos em termos de “conjuntos de propriedades”, podemos expor melhor a distinção das matérias: Em [1], podemos pensar numa materialidade em geral sem qualquer especificação, onde não podemos identificar qualquer propriedade dessa matéria. Contudo, em [2], quando pensamos na matéria especificada do homem, por exemplo, nós já podemos identificar um conjunto de propriedades dessa matéria dizendo que um homem tem carne e ossos, dando detalhes de quais carnes e ossos (nomes dos músculos, ossos e órgãos) que um homem em geral tem.

Sendo assim, tomando esse conjunto de propriedades da matéria que receberam o ser da forma, podemos dizer que, em sua maioria, essas propriedades são comuns a qualquer homem. Entretanto, será que podemos identificar nem que seja apenas uma propriedade neste conjunto que seja individual e que sirva para individuar uma espécie? É importante responder a essa pergunta para podermos identificar a existência concreta dos indivíduos ao nosso redor. Essa questão será tratada no próximo tópico, mas no momento podemos concluir que, qualquer que seja tal propriedade, ela precisa estar entre essas propriedades que a matéria recebe da forma. Desse modo, do mesmo modo que a forma é causa do ser para as propriedades específicas da matéria, a forma também é causa do ser da propriedade individual que nos permite falar de [3] uma matéria individual. Com essa posição, não queremos dizer que a forma seria o princípio de individuação, mas sim que o princípio de individuação seria a matéria com alguma propriedade que tem ser por causa da forma. Em outras palavras, a individuação não se daria pela forma, mas pela matéria que tem ser em função da forma. Cabe a nós agora identificar que propriedade individual poderia ser.

3 Possíveis interpretações errôneas de Tomás de Aquino

Para descrever a individuação, precisamos de “algo” que sirva de princípio de individuação, mas este “algo” precisa ter um ser substancial e não acidental. Portanto, precisamos considerar na substância o que seria alguma parte individual em ato, para servir de princípio de individuação. Tomás defende que a parte da substância em ato enquanto individual seria exatamente a “matéria individual” ou “matéria assinalada” (Aquino. 1981AQUINO, T. 1981. O Ente e a Essência. Tradução e notas de Dom Odilão Moura, O.S.B. Rio de Janeiro: Presença., De Ente., c.2, n.17; S.Th. I, q.75, a.4, res; “materia signata est individuationis principium”).

A palavra “assinalar” ou “designar” utilizadas aqui se refere ao ato de apontar o dedo para um indivíduo como numa definição ostensiva. Assim, por exemplo, alguém me pergunta “O que é computador?” e eu respondo “Computador é isto” (apontando o dedo para o objeto), Eis um exemplo onde faço uma definição ostensiva do computador, pois “ostensiva” vem de ostentar, isto é, mostrar. Em outras palavras, estou mostrando o que é o computador. Contudo, com definições ostensivas, podemos definir propriedades comuns que podem ser compartilhadas por mais de um indivíduo, como “vermelho”, “alto”, “magro”. Para o propósito de compreender o que é “assinalar” ou “designar” na filosofia tomista, devemos considerar o uso do pronome demonstrativo (“esta”, “este”, “isto”), o qual normalmente (mas não necessariamente) é acompanhado do gesto de “apontar o dedo”. De fato, o pronome demonstrativo juntamente com nome de uma espécie7 7 Para os medievais, o pronome demonstrativo é tradicionalmente compreendido como apontando para um indivíduo, como observamos antes também em Scotus com sua noção de “ecceidade”. Contudo, observe que temos um problema aqui, pois é fácil objetar que podemos apontar para propriedades comuns também usando “isto”, “este” e “esta” como que dizendo “isto que é compartilhado por mais de um indivíduo”. Em outras palavras, quando alguém diz “este homem”, a pessoa poderia estar querendo dizer “este tipo de homem”, “esta espécie homem”. Por exemplo, alguém poderia dizer de modo universal: “Este homem que desmata a floresta é o mesmo que sofre sem água.” Diante disso, em resposta, podemos dizer que apesar de os pronomes demonstrativos poderem ser usados assim, é do costume mais habitual no cotidiano usá-los para reforçar uma individualidade. transmite a ideia de uma individualidade. Desse modo, a expressão “matéria assinalada” ou “matéria designada” indicaria “esta matéria” (por ex.: “esta carne e estes ossos”, “esta madeira”) que podemos apontar ou não com o dedo, mostrando-a.

Há quem defenda que a matéria deve ser considerada como “assinalada” na medida em que recebe o ser de uma forma acidental da quantidade. É possível encontrarmos textos diversos como, por exemplo, em Aquino, 2002AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola., S.Th. I, q.115, a.1, co.; S.Th. III, q.77, a.2, co.; S.Th. I, q.115, a.1, ad.3, nos quais Tomás afirma algo próximo a essa defesa, mas entendemos que estes textos podem ser ambíguos. Além disso, não seria razoável que um acidente seja a causa da assinalação, uma vez que isso significa dizer que a substância não é individual por si mesma, mas por acidente.

Nesse ponto, é importante relembrarmos as dez categorias de Aristóteles, que, grosso modo, seria uma forma de organizar as propriedades dos objetos ao nosso redor. Segundo Aristóteles, temos uma categoria da substância e nove categorias dos acidentes. A categoria da substância envolve as propriedades que não mudam no objeto enquanto este objeto existir, já as categorias dos acidentes envolvem as propriedades que mudam no objeto enquanto este objeto existir. Para Aristóteles, a substância corpórea é hilemórfica, isto é, é composta de matéria (em grego ὕλη, hile) e forma (em grego μορφή, morfe), daí nossa reflexão envolver a matéria, mas não somente, como já vimos anteriormente. Além disso, Aristóteles enumera as nove categorias acidentais da seguinte maneira: quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, hábito, ação, paixão. Estamos tratando do acidente da quantidade, que podem mudar ao longo de existência de um objeto, mas posteriormente também será importante considerarmos o acidente do lugar e o tempo.

Os textos de Tomás que nos induzem a pensar que o acidente da quantidade é o que assinala a matéria são exatamente aqueles textos onde Tomás afirma que a matéria assinalada é aquela que “é considerada sob dimensões determinadas”. Assim Tomás afirma: “Deve-se saber que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo, mas unicamente a matéria delimitada. Chamo ‘matéria delimitada’ a que se considera sob dimensões determinadas.”8 8 Como é uma referência importante, segue texto em latim para conferir: “Et ideo sciendum est quod materia non quolibet modo accepta est individuationis principium, sed solum materia signata. Et dico materiam signatam, quae sub determinatis dimensionibus consideratur.” (Aquino, 1981AQUINO, T. 1981. O Ente e a Essência. Tradução e notas de Dom Odilão Moura, O.S.B. Rio de Janeiro: Presença., De Ente, n. 17).

De fato, se as dimensões são determinadas, então parece que só podem ser determinadas quantitativamente. No mínimo, isso indicaria que sem a determinação do acidente da quantidade nós não teríamos a matéria assinalada e, portanto, não teríamos a individuação. No fim, todos os seres seriam apenas acidentalmente individuais, segundo esse modo de compreender o pensamento de Tomás de Aquino.

Desse modo, mudando-se minimamente a quantidade de matéria que um determinado corpo possui, nós estaríamos mudando a individualidade desse corpo. Em outras palavras, a respeito do mesmo corpo que mudou de quantidade, teríamos o indivíduo A, o anterior à mudança da quantidade, e o indivíduo B, o posterior à mudança da quantidade. Ora, se é o mesmo corpo, o termo “mesmo” indica uma unidade numérica (isto é, individual) desse corpo, o que entra em contradição com o suposto indivíduo A e o suposto indivíduo B. Sendo assim, além de ser contra intuitivo a teoria de que mudar a quantidade de algo é mudar a sua individuação, essa teoria apresenta sinais de contradição lógica.

Para resolver isso, podemos indicar que há uma ambiguidade nos textos tomistas quando se diz “dimensões determinadas”. Entraremos em mais detalhes sobre essa ambiguidade mais adiante neste artigo. Neste ponto, observemos apenas que quando Tomás trata dos corpos, ele faz constantes referências às três dimensões que podem ser entendidas como comprimento, largura e altura. Assim ele afirma: “Ora, é manifesto que todos os corpos têm três dimensões, a saber: comprimento, largura e profundidade (altura).”9 9 Em latim, para conferir: [...] Manifestum est enim omne corpus tres dimensiones habere, scilicet longitudinem, latitudinem et profunditatem. (Aquino, 1959AQUINO, T. 1959. Sentencia Libri De Anima. Textum Taurini.<Disponível em: http://www.corpusthomisticum.org/ >. Acesso em: 22 de Março de 2022.
http://www.corpusthomisticum.org/...
, In Sentencia De Anima, lib. 2, l. 23, n. 1)

As três dimensões em questão nos remetem à noção de “espaço”. De fato, a noção de “espaço” pode nos ajudar a compreender a individualidade, caso tenhamos em mente o seguinte princípio da Física: “Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”. Desse princípio podemos observar algo de individual e único que um corpo possui e que não compartilha com nenhum outro corpo. Esse algo de individual é a propriedade de ocupar um lugar no espaço. Parece que encontramos o que queríamos, mas ainda não é o caso.

O grande problema é o termo “lugar” da expressão acima, que corresponderia a mais uma categoria de acidente na filosofia Aristotélica. Tudo o que se aplica ao acidente da quantidade também se aplica ao acidente do lugar. Em outras palavras, bastaria modificar um objeto de lugar para que ele deixe de ser o mesmo indivíduo. Por exemplo: Eu, quando estou no meu quarto, eu sou o indivíduo A, mas quando eu estou na cozinha, eu sou o indivíduo B. Novamente, observa-se como é contra intuitivo e contraditório afirmar que o acidente do lugar seria aquilo a que se refere quando Tomás fala das três dimensões sobre as quais a matéria é considerada individual.

Para reforçar a ideia de uma individuação, junto com o lugar no espaço, nós podemos acrescentar o acidente do tempo, ou seja, o individual não é somente a matéria que está aqui, mas também a que está agora. Se compreendermos que as dimensões determinadas da matéria seria equivalente a falar da matéria aqui e agora (hic et nunc), então teríamos muito mais precisão. Realmente, colocando índices temporais (como t¹, t², t³) ou especificando a data e a hora, nós podemos alcançar uma clara individualidade. Assim, poderíamos reescrever o princípio da Física do seguinte modo: “Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”. Essa parece ser a compreensão10 10 Essa posição que envolve espaço junto com o tempo poderia ser até mesmo reforçada pelas descobertas da Física de Einstein, que considera o tempo como uma quarta dimensão de um corpo, somada as três dimensões já citadas anteriormente. Contudo, defender tal reforço por Einstein seria um anacronismo grosseiro demais para ser sustentado na Filosofia Tomista. sobre o princípio de individuação em Tomás, sendo a matéria com dimensões determinadas aqui e agora (hic et nunc).11 11 A base para defender a individuação desse modo estaria em passagens como esta: Aquino, 1953, De Trini. pars 2, q.4, a.2, co. “Non enim forma individuatur per hoc quod recipitur in materia, nisi quatenus recipitur in hac materia distincta et determinata ad hic et nunc.” [Grifo nosso]

Para esclarecermos mais sobre essa questão, podemos trazer nesse ponto uma reflexão baseada na teoria contemporânea dos mundos possíveis. Por exemplo: o fato de eu estar com a minha matéria aqui, sentado na cadeira do meu quarto, e agora, às 22h de 18/10/2014, faz com que eu seja único e individual nesse mundo atual, real. Até aqui tudo bem. Contudo, é fácil imaginar um mundo possível no qual eu esteja numa situação totalmente contrafactual, isto é, diferente do mundo atual. Eu poderia nem sequer estar em casa nesse horário e dia, por exemplo, eu poderia estar curtindo o sábado à noite. Sendo assim, podemos nos perguntar o seguinte: nesse mundo possível, eu seria um indivíduo diferente do que sou no mundo atual? A resposta é obviamente não, pois eu continuaria sendo eu mesmo, mesmo com as situações contrafactuais de tempo e espaço. Seria o mesmo Thiago que está sentado na cadeira do quarto e o que estaria curtindo a balada no sábado à noite. Assim, com situações contrafactuais, Kripke (1972KRIPKE, S. 1972. Naming and Necessity. Cambridge/ Massachussetts, Harvard University Press.) defendia que nomes próprios seriam designadores rígidos.

Trazendo essa reflexão para a filosofia tomista, poderíamos utilizar as noções aristotélicas de “potência” e “ato”. Por exemplo: Antes das 22h de 18/10/2014, eu estava em potência para ficar sentado na cadeira do meu quarto às 22h de 18/10/2014, bem como estava em potência para curtir a balada às 22h de 18/10/2014. Antes das 22h, eu tenho dois caminhos a seguir, de modo que pensei, decidi e atualizei (realizei) a ação de ficar sentado na cadeira do meu quarto às 22h de 18/10/2014, de modo que temos o equivalente ao “mundo atual” do parágrafo anterior. No entanto, ainda podemos pensar que eu poderia seguir pelo outro caminho se eu tivesse atualizado (realizado) a ação de curtir a balada às 22h de 18/10/2014, isso seria correspondente ao “mundo possível” do parágrafo anterior.

A respeito disso, Tomás também usa a pensamento de que ocorre assim no mundo atual, mas Deus poderia fazer com que o contrário ocorresse12 12 Aquino, 1953, De Trini., pars 2 q. 4 a. 3 ad 1: “Non enim in duobus corporibus in eodem loco positis potest aliqua naturalis causa diversitatis inveniri. Sed divina virtus potest ea, quamvis sint unita in situ, in sua distinctione conservare. Et sic miraculose fieri potest quod duo corpora sint in eodem loco.” Neste texto, supõe-se que o milagre seria de dois corpos que estariam no mesmo lugar ao mesmo tempo (apesar de não haver referência ao tempo nesta referência). . Assim, temos que um corpo possui o lugar e o tempo, os quais ocorrem (mundo atual) e que poderiam ocorrer (mundo possível). Diante disso, por exemplo, uma maçã ocorre de estar em cima da minha mesa agora, mas poderia ocorrer de estar em cima da cadeira agora. Se é o lugar e o tempo que tornam uma matéria individual, então nós teríamos dois indivíduos (duas maçãs) nessas situações que ocorrem e que poderiam ocorrer. Portanto, caímos nos mesmos problemas que envolvem os acidentes tratados acima, pois seria contra-intuitivo admitirmos que não se trata da mesma maçã individualmente nas situações contrafactuais.

Entretanto, será que se juntarmos a matéria com todas as categorias aristotélicas de acidentes juntas poderíamos transmitir rigorosamente a individualidade? Pode ser tentador responder que sim por causa da aparente precisão da individuação em questão, mas cairemos no mesmo problema que envolve qualquer acidente. A substância de um corpo não pode ser individualizada por algo de externo a essa substância, caso contrário, o corpo não seria substancialmente individual, mas apenas acidentalmente individual. Em outras palavras, a individualidade seria algo meramente acidental para o corpo, de modo que a individualidade seria passível de mudança enquanto o corpo existir, o que é muito contra intuitivo. Por isso, os acidentes advêm posteriormente à individuação, de modo que o aqui e agora (hic et nunc) são apenas efeitos13 13 Assim Paulo Faitanin (1997) afirma em sua dissertação Conceito e extensão de individuum na filosofia de Santo Tomás de Aquino: “As expressões “hic” e “nunc”, que fazem parte da estrutura da tese tomista da individuação das substâncias corpóreas indicam, enquanto relacionadas ao efeito desta (da individuação), o espaço e tempo indivisíveis nos quais se manifesta o indivíduo substancial.” contingenciais da individuação. Assim afirma Alfredo C. Storck:

(...) os acidentes não podem ser o princípio de individuação da substância, pois, por sua própria natureza, eles dependem da substância para existir. Logo, se é possível falar de uma relação de individuação entre os acidentes e a substância é porque os acidentes são individuados pela substância e não o inverso. ( Storck, 1998 STORCK, A. C. 1998. A Noção de Indivíduo Segundo Tomás de Aquino. In: Analytica, 3(2): p.13-53. , p.34.)

Prosseguindo neste artigo de Alfredo Storck, ele nos indica a referência do seguinte texto de Tomás de Aquino:

Ainda que o particular e o universal se achem em todos os gêneros, no entanto, o indivíduo acha-se de um modo especial no gênero da substância. Pois a substância é individuada por si mesma, enquanto os acidentes são individuados pelo sujeito que é a substância. Esta brancura, por exemplo, é dita um indivíduo enquanto está em um sujeito. 14 14 Texto em latim para conferir: “Universale et particulare inveniantur in omnibus generibus, tamen speciali quodam modo individuum invenitur in genere substantiae. Substantia enim individuatur per se ipsam, sed accidentia individuantur per subiectum, quod est substantia: dicitur enim hoc albedo, inquantum est in hoc subiecto.” ( Aquino, 2002 AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola. , S. Th. I, q. 29, a. 1 co)

Neste texto, Tomás afirma claramente que a individuação ocorre propriamente no gênero da substância e os acidentes são individuados posteriormente pela substância. Isso deixa claro que, para Tomás, não são os acidentes (nem o conjunto deles) que individua a substância corpórea, mas a individuação somente pode ocorrer num nível substancial, uma vez que a “substância é individuada por si mesma”. Portanto, não devemos procurar a explicação individuação além da constituição da substância (aristotelicamente falando).

4 O Individual na filosofia de Tomás de Aquino

Diante dessas reflexões, precisamos identificar onde pode ter havido erro. Retomando nossa posição de que as três dimensões nos remetem à noção de “espaço”, precisamos determinar mais corretamente o que significa tal noção. A palavra “espaço” pode ter dois sentidos: [1º] lugar e [2º] volume. Nós já tratamos razoavelmente do primeiro sentido de espaço e já descartamos, mas ainda nos sobra o segundo sentido.

De fato, as três dimensões seriam bem melhor descritas com o que nós entendemos hoje como sendo o volume. Ligar as três dimensões à noção de volume é um pequeno passo que pode esclarecer bastante como Tomás compreende a individualidade da matéria. Mesmo que Tomás não use a palavra “volume”, na medida em que este se refere constantemente às três dimensões do corpo e depois afirma que o princípio de individuação é a matéria sobre dimensões determinadas, podemos dizer que o princípio de individuação é a matéria enquanto ocupa um volume. Tomás se refere às três dimensões:

“Na verdade, ‘corpo’, na medida em que está no gênero da substância, é dito daquilo que tem tal natureza que nela se podem ser designadas três dimensões. Estas três dimensões designadas são o corpo, que está no gênero da quantidade.” 15 15 Latim para conferir: “Corpus enim, secundum quod est in genere substantiae, dicitur ex eo quod habet talem naturam, ut in eo possint designari tres dimensiones; ipsae enim tres dimensiones designatae sunt corpus, quod est in genere quantitatis.” ( Aquino, 1981 AQUINO, T. 1981. O Ente e a Essência. Tradução e notas de Dom Odilão Moura, O.S.B. Rio de Janeiro: Presença. , De Ente, n. 20).

Uma vez que a matéria está sobre estas três dimensões, ela ocupa um volume espacial na natureza que não pode ser ocupado por nenhum outro indivíduo. Observe o fato de que a matéria com volume muda de local e não perde a sua individualidade, além do fato de que nem precisamos apelar para o tempo quando falamos de volume. Desse modo, podemos corrigir a nossa referência do princípio da Física substituindo “lugar” por “volume” do seguinte modo: “Dois corpos não ocupam o mesmo volume no espaço”. Assim, fica evidente que a matéria com dimensões determinadas é aquela considerando que ocupa o volume, pois fica patente que será uma matéria individual. No texto acima, também há uma referência ao “gênero da quantidade”. Aqui, é importante ressaltar que não defendo que o princípio de individuação seja a quantidade das dimensões do volume, uma vez que a quantidade é um acidente e, como tal, faria com que a individuação fosse algo acidental, como já dissemos. O texto de Tomás citado abaixo é um texto-chave que me levou a ter um melhor esclarecimento:

Ora, estas dimensões podem ser consideradas de duplo modo. [1] Um modo segundo a determinação delas; e digo que elas são determinadas segundo medida e figura determinadas, e é assim que os entes perfeitos são colocados no gênero da quantidade. E assim não podem ser o princípio de individuação, uma vez que com tal determinação das dimensões que variam frequentemente no indivíduo, se segue que o indivíduo não permaneceria sempre o mesmo em número. [2] De outro modo, pode ser considerada sem esta determinação, apenas na natureza da dimensão, embora nunca possa ocorrer sem alguma determinação, como também não (pode ocorrer) a natureza da cor sem a determinação de branco e preto. E assim são colocados no gênero da quantidade como imperfeitos. A partir destas dimensões indeterminadas da matéria se tem esta matéria designada, e assim a forma individuada, de modo que a partir da matéria se causa a diversidade segundo o número na mesma espécie. 16 16 Como a citação é muito importante, segue o texto em latim para conferir: “Dimensiones autem istae possunt dupliciter considerari. Uno modo secundum earum terminationem; et dico eas terminari secundum determinatam mensuram et figuram, et sic ut entia perfecta collocantur in genere quantitatis. Et sic non possunt esse principium individuationis; quia cum talis terminatio dimensionum varietur frequenter circa individuum, sequeretur quod individuum non remaneret semper idem numero. Alio modo possunt considerari sine ista determinatione in natura dimensionis tantum, quamvis numquam sine aliqua determinatione esse possint, sicut nec natura coloris sine determinatione albi et nigri; et sic collocantur in genere quantitatis ut imperfectum. Et ex his dimensionibus indeterminatis materia efficitur haec materia signata, et sic individuat formam, et sic ex materia causatur diversitas secundum numerum in eadem specie.” [Grifo nosso] [Grifo nosso] ( Aquino, 1953 AQUINO, T. 1946/1953. Super Boetium De Trinitate. Questions 1-4 translated by Rose E. Brennan, S.H.N., Herder; Questions 5-6 translated by Armand Mauer, Toronto. <Disponível em: https://isidore.co/aquinas/english/BoethiusDeTr.htm >. Acesso em: 22 de Março de 2022.
https://isidore.co/aquinas/english/Boeth...
, De Trini., q. 4, a. 2, co. 7).

Em várias passagens, Tomás afirma que o princípio de individuação é a matéria que está sob “dimensões determinadas”. Muitos compreendem erroneamente que se trata de “dimensões determinadas quantitativamente” e, unindo-se ao texto acima, afirmam que Tomás parece ter entrado em contradição, pois ele acaba de dizer que aquilo que individua é a matéria com “dimensões indeterminadas quantitativamente”. Nesse ponto, alguns afirmam que Tomás mudou de pensamento a respeito da individuação depois de um tempo. Todavia, não é necessário afirmar isso.

Nas outras passagens, quando Tomás fala da matéria que está sob “dimensões determinadas”, esta determinação não é uma determinação quantitativa, mas sim a determinação de que possui ou não possui três dimensões, ou melhor, possui ou não possui um volume. Tomando essa citação acima como referência, defendo que, antes de se receber a quantidade determinada em ato pelo acidente, é possível pensar a matéria com algum volume sem determinar a quantidade das dimensões desse volume. Por exemplo: a matéria com m³ é o princípio de individuação, pois teria o volume sem a quantidade das dimensões. Por outro lado, a matéria com 5 m³ ou 10 m³ não seria o princípio de individuação, uma vez que tem quantidades determinadas.

Assim, a determinação quantitativa seria um passo posterior ontologicamente e já supõe a individualidade. A determinação está ligada às dimensões em per se, mas não está ligada à quantidade da dimensão. Então, uma coisa poderia ter “determinadas dimensões”17 17 Modifiquei a ordem da expressão propositalmente. Dizer “dimensões determinadas” parece ambíguo, mas dizer “determinadas dimensões” parece indicar uma proximidade maior com a posição que defendo. em ato, mas permanecer em potência para ter a quantidade destas determinadas dimensões. Antes de ter a quantidade da dimensão, é necessário primeiro ter a dimensão. Antes de ter dois metros cúbicos (2 m³), é necessária que se tenha a propriedade metros cúbicos (m³). Diante disso, quando Tomás fala sobre “gênero da quantidade”, temos que lembrar que há um modo perfeito e um imperfeito de participar do gênero da quantidade e, tal como tratado acima, o princípio de individuação é a matéria está no “gênero da quantidade” apenas de modo imperfeito e indeterminado.

Por fim, podemos observar que, uma vez que estamos tratando o acidente da quantidade de modo indeterminado, podemos dizer que estamos num nível ontológico onde a quantidade ainda não está em ato. Desse modo, nós não estamos dizendo que a matéria depende do acidente da quantidade e nem de qualquer outro acidente. Finalmente, chegamos ao ponto em que podemos afirmar claramente que um corpo é substancialmente individual, isto é, o corpo será individual enquanto ele existir. Essa é uma postura muito mais forte do que qualquer outra já citada neste artigo, de modo que chegamos ao que Tomás de Aquino propõe como sendo o princípio de individuação.

Com este texto, fica claro o que é a “matéria assinalada” ou “designada”. Nós somente podemos assinalar (ou designar) algo no sentido de apontar o dedo para este algo na medida em que possui uma matéria identificável com volume. Em outras palavras, para individuarmos, é necessário identificar a matéria que ocupa um volume, pois isso é a condição de possibilidade para que possamos apontar o dedo para esta matéria. Assim, só podemos tratar a matéria como “matéria assinalada” (ou designada) na medida em que ocupa um volume (indeterminado a respeito da quantidade).

5 Possível objeção à teoria tomista da Individuação partindo da nutrição

Por fim, há ainda espaço para um último questionamento sobre essa matéria individual em si: será que, em qualquer mundo possível, a matéria que ocupa o volume é a mesma matéria sempre? Em outras palavras, é possível imaginar uma situação em que estamos falando do mesmo indivíduo, mas que a matéria deste indivíduo não seja individualmente a mesma? Esses questionamentos são mais delicados e merecem nossa atenção quando se diz respeito aos seres vivos, que estão continuamente renovando a sua materialidade através da nutrição e das excreções. Parece que a matéria individual se modificou, mas não é caso.

Montando a questão de outro modo, considerando um exemplo com a teoria dos mundos possíveis, temos o seguinte: no mundo atual, parece que a matéria individual (com volume) do meu corpo é resultado da minha nutrição. Ora, considerando que comi um empadão ontem, o meu organismo absorveu a matéria do empadão, de modo que esta matéria se transformou em matéria do meu corpo. Contudo, num mundo possível, ontem eu poderia ter comido apenas feijão e arroz, de modo que essa matéria individual de agora seria apenas resultado da absorção do feijão e arroz. Isso parece indicar que a minha matéria individual nesse mundo atual poderia ser diferente daquela no mundo possível, o que levaria às mesmas contradições dos acidentes citados acima.

Para resolver esse problema, podemos dizer o seguinte: afinal de contas, a matéria do empadão ou do feijão se transformam, através da nutrição, na minha matéria humana. Nesse processo, o nosso organismo assimila apenas os nutrientes em comum, como ferro ou proteínas, enquanto excreta tudo aquilo que não temos em comum. Aqui já nos aparece a dica para resolver o problema: o que está em jogo é a matéria comum e não a individual. Além disso, não olhamos para uma parte do nosso corpo e dizemos “Isso é feijão” ou “Isso é empadão”, uma vez que as formas do feijão e do empadão foram destruídas no processo de nutrição. Em outras palavras, no estômago, a nutrição corrompe e destrói a forma específica do feijão separando e reaproveitando a matéria comum que a alimento possui com o nosso corpo, de modo que essa matéria comum se junta com a matéria comum do nosso corpo. Sendo assim, aquela matéria que recebia o ser da forma específica do feijão, depois da nutrição, passa a receber o ser da forma específica de homem. Observe que não estamos falando da matéria individual, mas apenas da matéria considerada em comum, ou seja, especifica ou genericamente. Quando desenvolve seu pensamento sobre a nutrição e os alimentos, Tomás afirma sobre a matéria de modo específico:

(...) a forma humana pode começar a existir em alguma outra matéria, considerada a natureza humana em comum; não, porém considerada num indivíduo (...). E dizem que esta matéria faz parte principal e realmente na natureza humana. Mas, como tal matéria não tem a quantidade devida, forçoso é que advenha outra, pela conversão do alimento, que seja suficiente para o crescimento necessário. (...) deve-se dizer que o alimento converte-se realmente na natureza humana transformando-se nas espécies da carne, dos ossos e demais partes. E isso mesmo diz o Filósofo quando escreve que o alimento nutre porque é carne em potência. ( Aquino, 2002 AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola. , STh I, q. 119, a.1, co.).

Portanto, a nutrição não lida com a matéria individual, mas lida antes com a matéria comum (específica), de modo que falamos da matéria específica do homem (como espécie). Observe-se a importância do “crescimento” do ser vivo, uma vez que este somente pode crescer pela acumulação da matéria comum recebida dos alimentos. Em outras palavras, o alimento se torna “a carne e os ossos” em função da “forma do homem”, pois trata-se de “carnes e ossos humanos”. Se a nutrição tivesse sido realizada por um tigre, a matéria do alimento iria se tornar “carnes e ossos de tigre”. Se a nutrição foi realizada por um boi, a matéria do alimento irá se tornar “carnes e ossos de boi”. A matéria só é específica porque está em função da “forma do tigre” ou “forma do boi”. Na nutrição e excreção, o máximo que ocorre é acréscimo ou decréscimo de quantidade da matéria comum da mesma forma específica. Esse acréscimo ou decréscimo em nada influi sobre a individualidade, pois isso não afeta o fato de a matéria “ocupar dimensões determinadas de um volume”, lembrando que a quantidade não afeta na individuação como já disse. Observe abaixo a objeção contra Tomás e, logo em seguida a sua resposta:

Objeção contra Tomás: “Se, pois, (um homem) vivesse muito tempo, seguir-se-ia que nada do que nele existia, no princípio de sua geração, permaneceria ao fim. E assim um homem não seria numericamente idêntico a si mesmo no decurso total de sua vida, pois a identidade numérica exige a identidade da matéria.” ( Aquino, 2002 AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola. , STh I, q. 119, a.1, arg 5)

Resposta de Tomás: “Como diz o Filósofo, quando certa matéria (...) se converte num fogo preexistente, diz-se que este é alimentado. (...) Se, porém, lentamente queima-se um lenho, e se lhe substituir por outro, e assim por diante até que o primeiro fique totalmente consumido, permanecerá sempre o mesmo fogo, numericamente, porque sempre o que é acrescentado se transforma no fogo preexistente. E o mesmo deve entender-se dos corpos vivos nos quais, pela nutrição, é recuperado o consumido pelo calor natural (do corpo).” ( Aquino, 2002 AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola. , STh I, q. 119, a.1, ad 5).

Uma vez solucionado esse problema sobre a nutrição, podemos observar no exemplo de Tomás que o ser do fogo permanece, mesmo acrescenta novas matérias quando este fogo é alimentado. A propriedade da matéria do fogo de ocupar um volume mantem o seu ser, mas através de quê? Além disso, mesmo com toda a exposição sobre a matéria assinalada acima, parece que ainda estamos pulando da especificidade da matéria para a individualidade da matéria. Quando acabamos de dizer que a matéria sob as dimensões do volume é a matéria individual, nós ainda não justificamos o que faz com que a matéria esteja sob as dimensões do volume. Em outras palavras, o que dá o ser para a matéria de modo a fazer com que a matéria tenha o ser sob dimensões determinadas do volume?

Para responder a esse questionamento, precisamos lembrar o que trabalhamos anteriormente no último parágrafo do tópico 2. A matéria por si mesma, sem a forma, não possui qualquer ser, de modo que é a forma que é a causa do ser da matéria. Dito de outro modo, por si mesma, a matéria não possui qualquer propriedade em ato, mas a matéria com a forma recebe todas as propriedades a partir da forma. Há, portanto, um conjunto de propriedades que a matéria recebe da forma.

Contudo, no tópico anterior, chegamos a uma suposta “propriedade individual”, que é o fato de ocupar um volume desconsiderando a quantidade. De fato, ocupar um volume é algo esperado de qualquer membro da espécie homem que recebe ser pela forma, de modo que podemos incluir no conjunto das propriedades da matéria específica de homem, a propriedade de ocupar um volume desconsiderando a quantidade.

Para finalizarmos, podemos concluir que a matéria somente é individual na medida em que recebe o ser da propriedade de “ocupar as dimensões de um volume” através da forma. Entretanto, se a forma em si mesma tem um ser específico (como muitas vezes Tomás afirma), então como ela poderia transmitir um ser individual para a matéria? Teoricamente, se a forma tem apenas um ser específico, então ela deveria transmitir apenas um ser específico para a matéria. De fato, observe que essa propriedade que dá o ser da matéria que chamamos de “individual” é compartilhada por todos os indivíduos da espécie. Em outras palavras, ocupar as dimensões de um volume também é uma propriedade comum. Esse é um fato importante pelo qual podemos dizer que a forma não é aquilo que individua.18 18 Alfredo Storck, em seu artigo A Noção de Indivíduo Segundo Tomás de Aquino, afirma que há comentadores tomistas que defendem que a forma é aquilo que individua o ser na medida em que dá a existência. Esta posição parece ser defendida por Joseph Owens em: Owens,1994. Isso deixa claro porque é precisamente a matéria (possuindo essa propriedade) que é aquilo que individua não só a forma, como o composto.

Apesar de que a matéria recebe o ser pela forma, a forma não a individua, mas é a matéria concreta que está sob as dimensões do volume (indeterminado a respeito da quantidade) que realiza a individuação, pois duas matérias não podem ocupar o mesmo volume no espaço. Quando apontamos o dedo para um indivíduo, nós não apontamos para a propriedade de ocupar volume, mas sim para a matéria que está ocupando o volume. Assim, não somente a forma (que é naturalmente “específica”) é individuada pela matéria, tornando-se uma forma individuada, mas também o próprio composto hilemórfico é individuado.

Observe-se que mesmo considerando a teoria dos mundos possíveis, a matéria que ocupa um volume ainda continua sendo individual. Em outras palavras, não é possível imaginar uma situação contrafactual na qual se tenha uma matéria que ocupe um volume e, ao mesmo tempo, não se tenha uma matéria individual. Em termos modais, trata-se de uma verdade logicamente necessária. Sendo assim, não há nada de errado em falar de uma matéria considerada especificamente e de uma matéria considerada individualmente, pois basta considerarmos as suas respectivas propriedades. Se incluirmos a propriedade de ocupar um volume desconsiderando a quantidade, então se trata da matéria individual. Se abstrairmos de tal propriedade, então se trata da matéria comum específica (quando ao menos possui as propriedades da espécie).

6 Considerações finais

Diante de todas as possibilidades de se considerar o individual que tratamos neste artigo, é observável que todas as teorias precisam encarar seus problemas lógicos. A teoria de Tomás de Aquino não é diferente, mas foi possível apresentar soluções para os problemas propostos. Contudo, é claro que foi necessário adentrar na visão aristotélico-tomista de mundo para responder aos problemas, de modo que nós ainda teríamos problemas, caso o interlocutor não aceite tal sistema, sendo necessário ainda prova-lo.

Além disso, neste artigo, trabalhamos apenas como ocorre a individuação das substâncias corpóreas porque são aquelas que mais facilmente são aceitas por qualquer um. Para trabalhar a individualidade das substâncias incorpóreas, tais como a alma humana separada, os anjos e Deus, precisaríamos demonstrar, ao menos, a imaterialidade do intelecto ou entrar em questões sobre os transcendentais com relações o Uno e o Ser (Para uma explicação da individuação usando os transcendentais, veja Storck, 1998STORCK, A. C. 1998. A Noção de Indivíduo Segundo Tomás de Aquino. In: Analytica, 3(2): p.13-53..), o que nos custaria demais no artigo. Em suma, pode-se dizer que Tomás precisará de outra teoria para explicar a individuação das substâncias incorpóreas, uma vez que não possuem matéria, além de essa outra teoria possuir problemas mais específicos.

O princípio de individuação é a matéria individual ou assinalada que possui a propriedade de ocupar as dimensões de um volume, mas esta propriedade recebe o ser da forma específica. Num campo da experiência sensível, até conseguimos fazer alguma diferenciação entre dois indivíduos, como Sócrates e Platão, uma vez que basta visar a matéria ocupando o volume para que visemos a individualidade de Sócrates e de Platão.

Contudo, como isso ficaria num campo do discurso? Como diferenciar Sócrates de Platão no discurso? Definiríamos Sócrates como “homem com matéria assinalada” e Platão como “homem com matéria assinalada”. Daí que Aristóteles e Tomás afirmam veementemente que não há definição propriamente dita de indivíduos. Como se observa, não existe uma “diferença individual” num nível do discurso, o máximo que apresentamos no discurso é a razão comum da individualidade19 19 Aquino, 2002, S.Th. I, q. 29, a. 1, ad 1: “licet hoc singulare vel illud definiri non possit, tamen id quod pertinet ad communem rationem singularitatis, definiri potest, et sic philosophus in lib Praedicament (cap. De substantia) definit substantiam primam.” , pois qualquer indivíduo dentro de uma espécie possui essa razão de individualidade, isto é, a matéria assinalada.

Mesmo assim, não podemos negar que a proposta de Tomás sobre o individual é uma das propostas consistente, pois, com sua teoria, é possível ao menos explicar como conseguimos apontar para o que é individual. Além disso, talvez a teoria tomista possa vir a reforçar a teoria que trata o indivíduo como um conjunto de propriedades. Entretanto, nesse modo de consideração, é desnecessário falar do conjunto inteiro, uma vez que é apenas uma propriedade sozinha que individualiza tudo. Sendo assim, para Tomás, o individual não será o conjunto ou arranjo de propriedades em si, mas o individual é a matéria que recebe a já referida propriedade, de modo que já seria suficiente para conseguirmos nos referir ao individual, assinalando-o.

Referências

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  • AQUINO, T. 1959. Sentencia Libri De Anima Textum Taurini.<Disponível em: http://www.corpusthomisticum.org/ >. Acesso em: 22 de Março de 2022.
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  • STORCK, A. C. 1998. A Noção de Indivíduo Segundo Tomás de Aquino. In: Analytica, 3(2): p.13-53.
  • 1
    Para Leibniz (1982LEIBNIZ, G. W. 1982. Verdades Primeiras. In: Escritos Filosóficos. Trad Ezequiel de Olaso, Roberto Torretti, Tomás Zwanck. Buenos Aires, Charcas.), já é pressuposto que toda substância é singular, cabendo a nós apenas conhecer a noção completa dessa substância singular.
  • 2
    Assim Leibniz (1982LEIBNIZ, G. W. 1982. Verdades Primeiras. In: Escritos Filosóficos. Trad Ezequiel de Olaso, Roberto Torretti, Tomás Zwanck. Buenos Aires, Charcas.) se expressa em sua obra Verdades Primeras, 520b: “A noção completa ou perfeita da substância singular abarca todos os predicados pretéritos, presentes e futuros. Posto que mesmo agora é verdade que o predicado futuro é futuro e assim está contido na noção da coisa.”
  • 3
    E Leibniz (1982LEIBNIZ, G. W. 1982. Verdades Primeiras. In: Escritos Filosóficos. Trad Ezequiel de Olaso, Roberto Torretti, Tomás Zwanck. Buenos Aires, Charcas.) prossegue na mesma obra: “Toda substância singular abarca em sua noção perfeita o universo todo e todas as coisas nele existentes, pretéritas, presentes e futuras. Pois não há coisa alguma que não se possa colocar a partir de outra alguma denominação verdadeira, pelo menos a título de relação ou comparação.”
  • 4
    Para uma referência à teoria que identifica os indivíduos como um conjunto de propriedades e, também, para teoria ontológica dos tropos ver: Imaguire, 2007IMAGUIRE, G 2007. A Substância e suas alternativas: feixes e tropos. In: IMAGUIRE, G.; OLIVEIRA, M. A.; ALMEIDA; C. L. (Org.). Metafísica Contemporânea. 1ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1: p. 271-289..
  • 5
    Não estamos falando da teoria da abstração neste ponto. Trata-se de uma reflexão metafísica sobre a incomunicabilidade do que é individual, pois “comunicar”, por definição, significa “tornar comum”. Se algo das coisas é comunicado a nós para que haja uma correspondência com conhecimento verdadeiro, então não podemos dizer que na realidade haja apenas propriedades individuais, como propõe a teoria dos tropos, mas deve haver algumas propriedades comuns também.
  • 6
    Uso os artigos “a” e “os” para apresentar uma noção comum da matéria e da forma, em contraposição ao uso do demonstrativo em “esta carne e estes ossos”, indicando a matéria individual.
  • 7
    Para os medievais, o pronome demonstrativo é tradicionalmente compreendido como apontando para um indivíduo, como observamos antes também em Scotus SCOTUS, J. D. 2005. Le Principe d’Individuation (De Principio Individuationis). Paris: J.Vrin, p. 255. (Textes Philosophiques).com sua noção de “ecceidade”. Contudo, observe que temos um problema aqui, pois é fácil objetar que podemos apontar para propriedades comuns também usando “isto”, “este” e “esta” como que dizendo “isto que é compartilhado por mais de um indivíduo”. Em outras palavras, quando alguém diz “este homem”, a pessoa poderia estar querendo dizer “este tipo de homem”, “esta espécie homem”. Por exemplo, alguém poderia dizer de modo universal: “Este homem que desmata a floresta é o mesmo que sofre sem água.” Diante disso, em resposta, podemos dizer que apesar de os pronomes demonstrativos poderem ser usados assim, é do costume mais habitual no cotidiano usá-los para reforçar uma individualidade.
  • 8
    Como é uma referência importante, segue texto em latim para conferir: “Et ideo sciendum est quod materia non quolibet modo accepta est individuationis principium, sed solum materia signata. Et dico materiam signatam, quae sub determinatis dimensionibus consideratur.”
  • 9
    Em latim, para conferir: [...] Manifestum est enim omne corpus tres dimensiones habere, scilicet longitudinem, latitudinem et profunditatem.
  • 10
    Essa posição que envolve espaço junto com o tempo poderia ser até mesmo reforçada pelas descobertas da Física de Einstein, que considera o tempo como uma quarta dimensão de um corpo, somada as três dimensões já citadas anteriormente. Contudo, defender tal reforço por Einstein seria um anacronismo grosseiro demais para ser sustentado na Filosofia Tomista.
  • 11
    A base para defender a individuação desse modo estaria em passagens como esta: Aquino, 1953AQUINO, T. 1946/1953. Super Boetium De Trinitate. Questions 1-4 translated by Rose E. Brennan, S.H.N., Herder; Questions 5-6 translated by Armand Mauer, Toronto. <Disponível em: https://isidore.co/aquinas/english/BoethiusDeTr.htm >. Acesso em: 22 de Março de 2022.
    https://isidore.co/aquinas/english/Boeth...
    , De Trini. pars 2, q.4, a.2, co. “Non enim forma individuatur per hoc quod recipitur in materia, nisi quatenus recipitur in hac materia distincta et determinata ad hic et nunc.” [Grifo nosso]
  • 12
    Aquino, 1953AQUINO, T. 1946/1953. Super Boetium De Trinitate. Questions 1-4 translated by Rose E. Brennan, S.H.N., Herder; Questions 5-6 translated by Armand Mauer, Toronto. <Disponível em: https://isidore.co/aquinas/english/BoethiusDeTr.htm >. Acesso em: 22 de Março de 2022.
    https://isidore.co/aquinas/english/Boeth...
    , De Trini., pars 2 q. 4 a. 3 ad 1: Non enim in duobus corporibus in eodem loco positis potest aliqua naturalis causa diversitatis inveniri. Sed divina virtus potest ea, quamvis sint unita in situ, in sua distinctione conservare. Et sic miraculose fieri potest quod duo corpora sint in eodem loco.” Neste texto, supõe-se que o milagre seria de dois corpos que estariam no mesmo lugar ao mesmo tempo (apesar de não haver referência ao tempo nesta referência).
  • 13
    Assim Paulo Faitanin (1997FAITANIN, P. S. 1997. Conceito e extensão de individuum na filosofia de Santo Tomás de Aquino. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.) afirma em sua dissertação Conceito e extensão de individuum na filosofia de Santo Tomás de AquinoAQUINO, T. 1856. Scriptum super Sententiis. Textum Parmae. <Disponível em: http://www.corpusthomisticum.org/ >. Acesso em: 22 de Março de 2022.
    http://www.corpusthomisticum.org/...
    : “As expressões “hic” e “nunc”, que fazem parte da estrutura da tese tomista da individuação das substâncias corpóreas indicam, enquanto relacionadas ao efeito desta (da individuação), o espaço e tempo indivisíveis nos quais se manifesta o indivíduo substancial.”
  • 14
    Texto em latim para conferir: “Universale et particulare inveniantur in omnibus generibus, tamen speciali quodam modo individuum invenitur in genere substantiae. Substantia enim individuatur per se ipsam, sed accidentia individuantur per subiectum, quod est substantia: dicitur enim hoc albedo, inquantum est in hoc subiecto.”
  • 15
    Latim para conferir: “Corpus enim, secundum quod est in genere substantiae, dicitur ex eo quod habet talem naturam, ut in eo possint designari tres dimensiones; ipsae enim tres dimensiones designatae sunt corpus, quod est in genere quantitatis.”
  • 16
    Como a citação é muito importante, segue o texto em latim para conferir: “Dimensiones autem istae possunt dupliciter considerari. Uno modo secundum earum terminationem; et dico eas terminari secundum determinatam mensuram et figuram, et sic ut entia perfecta collocantur in genere quantitatis. Et sic non possunt esse principium individuationis; quia cum talis terminatio dimensionum varietur frequenter circa individuum, sequeretur quod individuum non remaneret semper idem numero. Alio modo possunt considerari sine ista determinatione in natura dimensionis tantum, quamvis numquam sine aliqua determinatione esse possint, sicut nec natura coloris sine determinatione albi et nigri; et sic collocantur in genere quantitatis ut imperfectum. Et ex his dimensionibus indeterminatis materia efficitur haec materia signata, et sic individuat formam, et sic ex materia causatur diversitas secundum numerum in eadem specie.” [Grifo nosso]
  • 17
    Modifiquei a ordem da expressão propositalmente. Dizer “dimensões determinadas” parece ambíguo, mas dizer “determinadas dimensões” parece indicar uma proximidade maior com a posição que defendo.
  • 18
    Alfredo StorckSTORCK, A. C. 1998. A Noção de Indivíduo Segundo Tomás de Aquino. In: Analytica, 3(2): p.13-53., em seu artigo A Noção de Indivíduo Segundo Tomás de Aquino, afirma que há comentadores tomistas que defendem que a forma é aquilo que individua o ser na medida em que dá a existência. Esta posição parece ser defendida por Joseph Owens em: Owens,1994OWENS, J. 1994. Thomas Aquinas (b. ca. 1275; d. 1274). In GRACIA, J. J. E. Individuation in scholasticism. The later middle ages and counter-reformation, 1150-1650. New York, Suny, p. 177..
  • 19
    Aquino, 2002AQUINO, T. 2002. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi, OP et alii. Tomo I-IX, São Paulo: Loyola., S.Th. I, q. 29, a. 1, ad 1: “licet hoc singulare vel illud definiri non possit, tamen id quod pertinet ad communem rationem singularitatis, definiri potest, et sic philosophus in lib Praedicament (cap. De substantia) definit substantiam primam.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2022
  • Aceito
    01 Set 2022
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