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Para uma leitura (não-)realista de Michel Foucault

For a (non-realist) reading of Michel Foucault

RESUMO

O estatuto do realismo em Foucault, apesar de elaborado insistentemente, permanece elíptico - em parte graças à sua associação a proposições que poderíamos denominar ficcionalistas. Através dos textos onde Foucault aborda os nexos de pertencimento entre ficção, universalidade e facticidade, o artigo propõe uma leitura não-realista de suas pesquisas, caracterizada pela recusa não do real enquanto objeto, mas de sua evidência ontológica. Inicialmente, trata da apresentação das insuficiências das interpretações que exigem uma ontologia - como a de Paul Veyne -, bem como das que a substituem pela excepcionalidade da criação - como a de Michel de Certeau, e da aproximação mais bem-sucedida da leitura proposta por Giorgio Agambem. Em seguida, detalha a questão da literatura como paradigma metodológico, especialmente nas referências de Foucault à obra de René Char. Enfim, mostra em que sentido a enunciação do discurso da arqueogenealogia está mais próximo do (não-)realismo de Fichte - no seu improvável encontro com Blanchot - do que da dialética hegeliana.

Palavras-chave:
Foucault; realismo; ficcionalismo

ABSTRACT

The status of realism in Foucault, despite being insistently elaborated, remains elliptical - in part thanks to its association with a set of propositions we could call fictionalist. By reading the texts where Foucault addresses the interarticulation of fiction, universalism and facticity, the article proposes a non-realist reading of his work, which is marked by the refusal not of the real as an object, but of its ontological evidence. Initially, it presents the insufficiencies of the interpretations that demand an ontology, such as Paul Veyne’s, as well as of those that replace it with the exceptionality of creation, such as Michel de Certeau’s, and the most promising approach to the reading proposed by Giorgio Agambem.. Next, it examines in detail the question of literature as a methodological paradigm, especially in Foucault’s references to the work of René Char. Finally, it shows in which sense the enunciation of archeogenealogy’s discourse is closer to Fichte’s (non)realism - in its unlikely encounter with Blanchot - than to Hegelian dialectics.

Keywords:
Foucault; realism; fictionalism

“A realidade é uma hipótese repugnante.” Manuel Antonio Pina

1 Considerações iniciais

Lidas em conjunto, muitas das passagens mais conhecidas dos textos de Michel Foucault, referentes às complicadas relações entre o real, o ficcional e o verdadeiro em sua pesquisa, parecem configurar um espaço, se não paradoxal, ao menos habitado por tensões, à primeira vista, irreconciliáveis. Embora uma definição estável do realismo seja historicamente impossível na filosofia, e, embora toda a trajetória que segue do pós-kantismo ao que, equivocadamente, se denominou pós-modernismo, possa ser lida como uma tentativa de pôr em debate as fronteiras e critérios entre o fato real e sua elaboração representacional, linguística ou simbólica, pode-se assumir, provisoriamente, que estamos lidando, mesmo em Foucault, com o seguinte problema: qual o estatuto da evidência da facticidade em um tipo de pesquisa que suspende sua universalidade? Se por realismo entendemos, provisoriamente, a pressuposição de necessidade de um estrato autônomo em relação aos discursos, que tipo de apropriação estaria em jogo quando se trata de mostrar que os objetos de tais discursos não têm validade ontológica por si mesmos, ou seja, quando se assume que essa apropriação não é a destituição da propriedade de um outro, mas um tornar próprio? Nesse sentido, seria preciso especificar um pouco mais a questão se não quisermos resolvê-la pelo recurso a uma mera antítese, a do antirrealismo, que simplesmente decidiria pela absoluta inexistência do mundo fora do mecanismo de enunciação ou representação. Embora certas passagens dos textos de Foucault pareçam autorizar essa segunda via, uma série de outras exige que apreendamos essa negação como um gesto que produz, ao mesmo tempo, seu próprio paradigma de realidade. Retirando o caráter antitético da negação do realismo operada aí, denomino essa posição simplesmente de (não-)realista. Ela pressupõe, como é evidente, que o advérbio transformado em prefixo deve ser lido, de um modo apenas aparentemente paradoxal, em sua positividade.

Como acontece em grande parte das questões que tratam de problemas de método - para os quais A arqueologia do saber, de 1969, forneceu uma síntese ampla, mas certamente não exaustiva, nem definitiva, do desenvolvimento de suas dificuldades -, a dispersão dessas passagens em contextos que estão para além de seus livros, em artigos, aulas, conferências e entrevistas, exige, para seu tratamento, uma atenção de grande amplitude relativa a fontes que continuam sendo editadas, e, a cada nova publicação, parecem produzir novos remanejamentos conceituais de hipóteses já consolidadas, tanto por Foucault, quanto por seus leitores. Uma tentativa de sistematização como a que se segue, ocupada em assinalar as dinâmicas que o problema do realismo e do antirrealismo alcançam na arqueogenealogia foucaultiana, está determinada pela situação instável e dispersiva de seu objeto - algo que faz com que ela possa, ou mesmo deva admitir como pressuposto seu caráter provisório, e, em certo sentido, igualmente ficcional.

Para os que estão dispostos a enxergá-los, os impasses do realismo encontram-se por toda parte. Se nos deparamos de um lado, com a famosa entrevista de 1978 a Ducio Trombadori, que representa, talvez, o lugar privilegiado da enunciação foucaultiana de um certo princípio ficcionalista - através da muitas vezes referida, e pouco aprofundada, afirmação de que seus livros desdobrariam uma experiência que “não é verdadeira, nem falsa”, mas, antes, uma “ficção” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, p. 45) -, de outro, já em 1964, remetendo a seus trabalhos anteriores, Foucault admite seu interesse no “realismo”, ainda que esse apareça aí como um “subproduto” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, I, p. 352). Do mesmo modo, será preciso mostrar que seu antirrealismo, quando se manifesta, está, muitas vezes, transpassado por posições realistas - o que nos indica, já de partida, o quanto essas duas noções são constitutivamente insuficientes - e, de todo modo, não se conclui como uma mera recusa da verdade. Que se considere, nesse sentido, uma entrevista publicada em 1984, sob o título “O cuidado da verdade [Le souci de la verité]”, na qual Foucault se refere ao simplismo dos que o consideram um destruidor da verdade ou da racionalidade: “Todos aqueles que dizem que, para mim, a verdade não existe são espíritos simplistas” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, p. 669). Seria urgente, portanto, recusar a “chantagem” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, p. 571, e, também p. 440) do Iluminismo e fazer uma crítica da racionalidade, que certamente não se definiria pelo irracionalismo, nem pelo que Habermas denominou de “anticiência [Antiwissenschaft]” (Habermas, 1985HABERMAS, J. 1985. Der philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt am Main: Suhrkamp. , p. 293) ou, segundo esse mesmo autor, como, um reaparecimento da dialética (Habermas, 1985HABERMAS, J. 1985. Der philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt am Main: Suhrkamp. , p. 309) - algo contra o que Foucault se manifestou explicitamente (cf. Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, p. 572).

Tais ambiguidades, aparentes ou efetivas, são ainda catalisadas pelos muitos pontos que parecem entrar em contradição ao longo desses textos, mesmo que façamos a ressalva de não os tomar como um conjunto homogêneo. No que se refere, por exemplo, aos diferentes balizamentos históricos que definem, entre um livro e outro, uma epistémé - por exemplo, a importância de se localizar o limiar da crítica da modernidade na segunda metade do século XVIII, em As palavras e as coisas, em contraposição ao recuo apresentado na conferência de 1978, “O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung) [Qu’est-ce que la critique (Critique et Aufklärung)], que o situa no século XVI (cf. Foucault, 2015FOUCAULT, M. 2015. Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi. Paris: Vrin . , p. 45) -, pode-se sempre apelar - acertadamente, a meu ver - à posição foucaultiana segundo a qual a análise histórica de cada livro deve produzir imanentemente seus referenciais temporais. Como se afirma em A arqueologia do saber, a inclusão de novos conjuntos discursivos pode sempre alterar, não só os limites cronológicos de uma análise, mas, também, seus resultados - o que não seria uma deficiência, mas o pressuposto mesmo da pesquisa (cf. Foucault, 1969FOUCAULT, M. 1969. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard . , p. 207).

Não seria tão simples, no entanto, diluir as contradições que opõem as inúmeras passagens em que Foucault define seu trabalho como uma crítica da função normativa da universalidade a certos textos que, embora menos centrais em seu projeto, reintroduzem, em parte, esse regime de autoridade. Que se compare, quanto a isso, dois trechos. O primeiro, de A arqueologia do saber, onde Foucault afirma:

Se suspendi as referências ao sujeito falante, não foi para descobrir leis de contração ou formas que seriam aplicadas da mesma maneira por todos os sujeitos falantes, não foi para fazer falar o grande discurso universal, que seria comum a todos os homens de uma época. Tratar-se-ia, ao contrário, de mostrar em que consistiram as diferenças, como foi possível que homens, no interior de uma mesma prática discursiva, falassem de objetos diferentes [...] (Foucault, 1969FOUCAULT, M. 1969. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard . , p. 261),

O segundo trecho encontra-se na conferência “Dos espaços outros [Des espaces autres]”, pronunciada em 1967, onde, tratando-se do conceito de heterotopia, se recorre à tese de que “provavelmente, em toda cultura, e toda civilização” haveria “lugares reais” onde os espaços seriam, simultaneamente, representados e contestados (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, p. 755). Deslocar a atenção para a sutileza da ideia de probabilidade no início dessa hipótese não me parece ser suficiente. Antes, é na relação íntima entre a possibilidade de ser formulada no nível da universalidade e o estatuto mesmo da realidade, que, logo em seguida, se reclama, que estaria um possível critério de complexificação do próprio discurso foucaultiano. Dito de outro modo, é na questão das vinculações entre realismo e universalidade que as articulações mais delicadas desse discurso estão expostas. O que pretendo discutir em seguida é como as diferenças internas do projeto de Foucault - se ainda podemos designá-lo desse modo - repercutem a própria instabilidade de seu realismo, que, exatamente pelas ambiguidades, contradições e equivocidades dos regimes de formação do discurso e do método que o produz, pode ser descrito, também, como um antirrealismo. Se esse for o caso, talvez seja adequado falarmos, nesse nível muito amplo, de um (não-)realismo.

2 O estatuto da facticidade e da ficção: hipóteses de leitura

Caberia, de início, considerar se a questão que sustenta a arqueogenealogia não seria algo diferente de um mero deslocamento, mesmo que sob a forma axiomática, entre a facticidade aceitável do múltiplo e a pseudofacticidade dos universais. Se uma relação com esse múltiplo se estabelece como ponto de partida, se ela instaura, nesse nível, um compromisso empírico, é preciso lembrar que ele é sempre “provisório” (Foucault, 2015FOUCAULT, M. 2015. Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi. Paris: Vrin . , p. 51), e que seu estatuto não é o de uma fundamentação ontológica reduzida ao essencial - o que, mais uma vez, transformaria Foucault em Habermas -, mas o da criação. É porque o arqueogenealogista impõe aos fatos de que parte em sua pesquisa sua vocação ficcional que ele pode se dispensar de toda mitologia da origem: do ponto de vista do sistema de regularidades descrito por sua pesquisa, esses fatos ficcionais são necessários, mas se lhe perguntamos a que evidência real eles se referem, estaremos medindo suas questões a partir da escala da metafísica. A necessidade absoluta dos pressupostos é, para empregar uma formulação contraditória no contexto de tal escala, imanente aos sistemas de objetos descritos, e das regras estabelecidas para essa descrição, não a qualquer realidade considerada em seu exterior. O que opõe o universal ao empírico não é o lugar onde a verdade escolhe habitar, mas o estatuto mesmo da verdade em cada caso. É aqui, igualmente, que o termo ficção ocorre para designar não um mero deslocamento, mas uma deriva sem medida última:

Não é a experiência interior, não são as estruturas fundamentais do conhecimento científico, mas não é, além disso, um conjunto de conteúdos históricos elaborados em outro lugar, preparados pelos historiadores e acolhidos integralmente feitos como fatos. Trata-se, de fato, nessa prática histórico-filosófica, de fazer a sua própria história, de fabricar, como por ficção, a história que seria atravessada pela questão das relações entre as estruturas da racionalidade (...) (Foucault, 2015FOUCAULT, M. 2015. Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi. Paris: Vrin . , p. 48).

Eis uma passagem significativa para entendermos que não basta recusar o fundamento de um sujeito transcendental ou da transcendentalidade do conhecimento - é preciso levar essa crítica ao ponto em que ela investe a própria facticidade de uma instabilidade sem recursos. Modificado, em sua singularidade, pela mutabilidade constitutiva com que a arqueogenealogia se dirige a ele, o fato autoriza, enquanto ficção necessária no interior de um sistema, a possibilidade de, em um outro sistema, desaparecer. Há uma ligação que se estende para além da proximidade fonética entre événement e évanescent: em Foucault, a facticidade do acontecimento é exemplarmente evanescente. Compreendem-se, assim, os conflitos estabelecidos entre os regimes de realidade, de abrangência da realidade, entre um livro e outro. Seria vão, até onde vejo, tentar equacionar essas diferenças através da sobrevalorização do que se denominou as fases do pensamento foucaultiano.

Embora central para as estratégias de apropriação operada pelos leitores da arqueogenealogia, um debate sobre a extensão de seu realismo - e de seu antirrealismo - tem sido adiada e contornada por interpretações talvez excessivamente unilaterais, em geral vinculadas a uma expectativa de legitimação ou de aplicabilidade dos fatos, especialmente quando tomados em sentido político. É o que ocorre de modo notável no âmbito da história como disciplina acadêmica. Informativa, sob esse aspecto, seria a contraposição entre as análises de Paul Veyne e Michel de Certeau, que tomo como indexicais apenas para nos limitarmos a contemporâneos relativamente próximos de Foucault.

Quanto ao primeiro, seus esforços se concentram em argumentar contra a identificação do ceticismo foucaultiano com um relativismo absoluto - algo que me parece importante de ser assinalado e amplamente defensável. O que, no entanto, aparece como problemático na leitura de Veyne é a pressuposição de que a relação estabelecida por Foucault com algo da ordem de um mínimo real, que lhe serviria de ponto de partida para a desarticulação dos universais da grande história - o homem, a sexualidade, o si etc. - corresponderia à admissão de seu caráter ontológico. Veyne salvaguarda, assim, através do substrato muito limitado do Ser, a coerência real de sua história. Por mais sensível que seja às complexidades do ceticismo e da narrativa foucaultiana, sua interpretação como que recua de pavor diante das vertigens de um discurso que não se assentasse sobre qualquer evidência ontológica dos fatos, a única que lhe parece conferir rigor. O argumento se constrói em duas etapas: primeiro, pela definição do que deve ser indicado como uma fundamentação excessiva da recusa foucaultiana: “Dizem que Foucault estaria se contradizendo quando afirma que a verdade é que não há verdade: seu ceticismo arrebataria a si próprio, levando a que se duvidasse da dúvida. Não, pois seu ceticismo não duvida de tudo por princípio (...)” (Veyne, 2011VEYNE, P. 2011. Foucault. Seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. , p. 79). Até esse ponto, a condução da questão me parece pertinente. Os problemas começam a surgir no segundo passo do argumento, na medida em que Veyne compreende que esse não-mais-duvidar, que caracterizaria a positividade dos pressupostos últimos da arqueogenealogia, corresponderia a algo da ordem do acreditar. A divisa “paz aos pequenos fatos, guerra às generalidades” (Veyne, 2011VEYNE, P. 2011. Foucault. Seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. , p. 80), sintetizada em sua interpretação, precisa supor que, entre a História da loucura e As confissões da carne, as escalas empregadas para distinguir as pequenas ontologias dos fatos das grandes mitologias universalistas não entrariam em contradição ou não se inverteriam. Minha hipótese é a de que não há, em Foucault, uma inversão estável da escala de privilégio ontológico: em muitas ocasiões, sua atenção se voltou para a construção dos níveis mais amplos da inteligibilidade do real, e não para a microfísica. É o que acontece, por exemplo, em sua leitura da Aufklärung a partir de Kant. Nesse sentido, a relação com o pressuposto não dependeria da aquisição de um mínimo de realidade, com o qual a rarefação dos universais pudesse ser antagonizada. Ao contrário, em certos momentos, Foucault parece interessado em mostrar como esses níveis rarefeitos são, ao mesmo tempo, não ontologicamente mais frágeis, mas discursivamente mais densos. É a isso que ele se refere ao abordar o que chama, de forma um tanto enigmática, de “efeito de piramidalização” dos discursos (cf. Foucault, 2015FOUCAULT, M. 2015. Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi. Paris: Vrin . , p. 51). A versão de Paul Veyne para a crítica ontológica dos universais em Foucault depende de uma solução de compromisso com o real, sob o preço de um apelo a um nível natural da facticidade - o que reintroduz as inconsistências que seu trabalho, desde muito cedo, procurou identificar na história canônica.

Uma maneira de evitar os comprometimentos potencialmente reificadores desse realismo mitigado, ou desse minimalismo ontológico, foi encontrada por Michel de Certeau, ao longo dos capítulos centrais de seu livro de 1986, História e psicanálise entre ciência e ficção, nos quais propõe uma revalorização do nível narrativo, ou, mais precisamente, do récit, no trabalho de Foucault. A primeira aproximação indicada por Certeau permite uma analogia entre a escrita arqueológica e as descrições feitas pelos etnólogos acerca de sociedades que lhe são distantes (Certeau, 2002CERTEAU, M. 2002. Histoire et psychanalyse entre Science et fiction. Paris: Gallimard . , p. 160). Retoma-se aqui, voluntaria ou involuntariamente, uma afirmação feita por Foucault em uma conferência em Kyoto em 1970, na qual sua atividade de distanciamento em relação às instituições que seriam mais familiares ao intelectual europeu é apresentada explicitamente a partir das pesquisas de Lévi-Strauss: “Contentei-me em utilizar um método de trabalho que já era reconhecido em etnologia” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. II, p. 128). Se, como mostrou Jean-François Bert, a dimensão etnológica da arqueogenealogia foucaultiana não se limita a uma espécie de truque metafórico, mas constitui, antes, um aporte definidor de seu interesse metodológico (cf. Bert, 2017BERT, J.-F. 2017. Michel Foucault défenseur de l’éthnologie. ‘La magie - le fait social total’, une leçon inédite des années 1950. In: Zilsel, (2). , p. 286), não será surpreendente vê-lo, através dos manuscritos de um curso preparatório ministrado na École Normale Supérieure - depositados atualmente no Fundo Michel Foucault da Biblioteca Nacional, em Paris - articular uma interpretação global, que inclui Mauss, Lévi-Strauss, Boas, Blondel e outros. Voltarei adiante a esse curso, porque nele poderemos localizar certas passagens que especificam o tipo de problema que a emergência desse dispositivo etnográfico da narrativa histórica fixa entre a legitimidade da arqueogenealogia e as tentações do realismo.

No que diz respeito à leitura de Certeau, a etnologia foucaultiana se manifestaria na relevância do récit como uma técnica de manipulação dos discursos. Para ele, o que faz com que tal técnica represente uma retomada, em parte, dos procedimentos de Lévi-Strauss, por exemplo, é o vínculo entre a descrição do objeto e uma certa “arte de dizer”, uma investigação sobre os procedimentos de composição de “ficções panópticas”, onde “todo um aparelho retórico é utilizado para seduzir e convencer o público” (Certeau, 2002CERTEAU, M. 2002. Histoire et psychanalyse entre Science et fiction. Paris: Gallimard . , p. 184). A fim de ressaltar a arbitrariedade constitutiva do signo de que se faz uma ciência ou de que se apresenta o sistema de enunciados, Certeau se aproxima, perigosamente, de um certo voluntarismo estetizante, apenas superficialmente sugerido em fórmulas foucaultianas tardias como estética da existência ou estilística de si. Ainda que ele se apresse em lembrar que se trata de apenas um estrato do procedimento foucaultiano, e que o subjetivismo poderia ser imediatamente afastado do horizonte ao entendermos que, aí, trata-se de “um discurso que conta uma história” (Certeau, 2002CERTEAU, M. 2002. Histoire et psychanalyse entre Science et fiction. Paris: Gallimard . , p. 186), a ênfase na singularidade da narrativa corre o risco de cristalizá-la em um tipo qualquer de personalismo excepcional. É o que persiste, apesar de tudo, na bela imagem com que Certeau apresenta Foucault: “um dançarino disfarçado de bibliotecário” (Certeau, 2002CERTEAU, M. 2002. Histoire et psychanalyse entre Science et fiction. Paris: Gallimard . , p. 186). Tal ênfase, maior ou menor, na maestria com que o real seria construído pelo discurso é um tanto típica de leituras interessadas na excepcionalidade de Foucault - e, nesse ponto, ele se reúne a Veyne, e mesmo a Deleuze, por uma via paradoxal. O recurso à manipulação do real, ao se opor às exigências de um realismo incontornável, poderia solucionar, ou seja, dissolver as tensões entre o real e o ficcional. Ao contrário, caso quiséssemos prolongar essa instabilidade não-dialetizável, teríamos de levar a sério a afirmação, de uma maneira ou de outra, presente em muitos momentos da arqueogenealogia - do prefácio de A arqueologia do saber àquele de O uso dos prazeres -, segundo a qual a presença real de Michel Foucault não interessa. No limite, para os efeitos dos sistemas enunciativos de seus livros, ele nem sequer deve existir. Se o realismo de Veyne admitia, ainda que tutelada, a entrada de uma microontologia, a narratologia de Certeau se arrisca, sub-repticiamente, a reencontrar a figura do Autor.

Apesar de todas as distâncias que separam o trabalho de Giorgio Agamben da arqueogenealogia foucaultiana, instanciadas, sobretudo, através do influxo de Heidegger, seu livro Signatura rerum, de 2008, talvez seja mais preciso do que os de Veyne ou Certeau sobre o estatuto problemático da ordem ontológica em trabalhos como As palavras e as coisas. Apesar de certo heideggerianismo, a hipótese de Agamben acerca do nível que configura tal ordem tem a vantagem de dar a ver a facticidade como uma posição que não deriva nem do realismo essencialista, nem do voluntarismo enunciativo, mas reside em um ponto de indecidibilidade histórica entre os dois: somente sob essa perspectiva pode-se falar de um “fato bruto” que é, concomitantemente, passagem, ou seja, um “ponto de insurgência” (Agamben, 2008AGAMBEN, G. 2008. Signatura rerum. Sul método. Torino: Bollati Boringhieri., p. 94). A expressão utilizada aqui por Agamben é resgatada do início de As palavras e as coisas, que também se referem ao “fato bruto” da cultura de uma época (Foucault, 1966FOUCAULT, M. 1966. Les mots et les choses. Paris: Gallimard . , p. 12). O que caracteriza esse limiar indicado por Agamben é a sobreposição entre regimes de historicidade: um, plenamente determinado pelas regras da análise, que poderíamos denominar como positividade radical do objeto arqueológico; o outro, funcionando como limite de toda objetividade, como uma espécie de fundo indeterminado do pensamento genealógico, que, enquanto ficção, só se alcança em sua negatividade (algo que apenas de modo muito distorcido poderia ser chamado de sujeito). Esses elementos, ou, antes, essas dimensões, contudo, não estariam isoladas senão em uma teoria arqueológica enquanto metodologia autônoma, algo que, é importante lembrar, Foucault se recusou a fazer - e pode-se mesmo entender A arqueologia do saber como expressão rigorosa dessa recusa (cf., sobre esse ponto, Olivier, 1994OLIVIER, L. 1994. Michel Foucault: théorie et pratique. Réflexion sur l’expérience politique. In: Revue québécoise de science politique, (25). , pp. 89-113). Dito de outra forma, a vantagem da leitura de Agamben é que ela assinala de que modo a positividade do objeto e o fundo indeterminado do pensamento se colapsam, em Foucault, um sobre o outro, precisamente nesse ponto infinitesimal no qual a possibilidade de se dizer a verdade não depende nem de uma, nem de outra imagem, mas da incontornabilidade da passagem entre elas:

Podemos chamar provisoriamente de ‘arqueologia’ aquela prática que, em qualquer investigação histórica, tem a ver não com a origem, mas com o ponto de insurgência do fenômeno, e deve, portanto, confrontar-se, novamente, com as fontes e com a tradição. E não pode se medir contra a tradição, sem se desconstruir os paradigmas, técnicas e práticas através dos quais ela regula as formas de transmissão, condiciona o acesso às fontes e, em última instância, determina o próprio status do sujeito cognoscente. O ponto de insurgência é aqui tanto objetivo quanto subjetivo, ou seja, se encontra, de fato, em um limiar de indecidibilidade entre o objeto e o sujeito. Nunca é o emergir do fato sem ser, ao mesmo tempo, o emergir do próprio sujeito cognoscente: a operação sobre a origem é, ao mesmo tempo, uma operação sobre o sujeito (Agamben, 2008AGAMBEN, G. 2008. Signatura rerum. Sul método. Torino: Bollati Boringhieri., p. 90).

Tal sobreposição elíptica entre sujeito e objeto é, simultaneamente, responsável pela produção de uma fissura no trabalho de Foucault, uma espécie de abismo sobre o qual suas passagens mais obscuras acerca do estatuto do real flutuam. É importante observar que esse trabalho nunca pretendeu renunciar ao uso de termos como real, realidade etc., o que parece aprofundar ainda mais aquela fissura. Em muitas ocasiões, é preciso admitir, Foucault recorre ao fato para designar os objetos de suas descrições históricas, como ele indica, por exemplo, em um debate do departamento de história da Universidade de Berkeley, em 1983 (Foucault, 2015FOUCAULT, M. 2015. Qu’est-ce que la critique? Suivi de La culture de soi. Paris: Vrin . , p. 78). Mas também devemos lembrar que os espaços nos quais Foucault buscou apoio, para tratar dessa facticidade que conjuga, de modo não-dialético, subjetividade e objetividade, estiveram sempre muito distantes das tradições que, especialmente na filosofia, só conseguiram enunciar o problema através da perspectiva da síntese. Para manter o insoldável que se retrai nesse abismo, será preciso abandonar as pretensões hegelianas ou marxianas - será preciso investigar um outro regime de universalidade, o da magia e o da literatura.

3 O universal como enunciado mágico: a literatura

É bastante sintomático que Foucault não tenha buscado discutir a sobreposição entre sujeito e objeto nos lugares privilegiados em que a filosofia pós-kantiana, de Hegel a Adorno, se ocupou com a dialética do real. Ao invés disso, como testemunha seu já referido curso de 1951 na École Normale Supérieure, intitulado A magia - o fato social total [La magie - le fait social total], é nas dificuldades com que a antropologia e a etnologia tiveram de se apropriar da facticidade que ele poderá explicitar o que há de específico na narrativa arqueológica - ainda que, a essa altura, a questão esteja ainda longe de ser assim formulada. O que, por exemplo, a magia exige do antropólogo ou do etnólogo é sua inclusão como fato social total, ou seja, como unidade de um sistema de pensamento historica e culturalmente circunscrito. Esse sistema, contudo, é apresentado a partir de uma contradição insolúvel entre os efeitos da sociedade sobre o homem e os efeitos do homem sobre a sociedade. Desse modo, Foucault dispõe, paralelamente, duas proposições: “É a sociedade que dificulta o movimento do homem em direção à essência da verdade; é o homem que dificulta o movimento da sociedade em direção à verdade da essência” (Foucault, 2017FOUCAULT, M. 2017. La magie - le fait social total. In: Zilsel, (2). , p. 315).

No imbricamento dessas duas dimensões da facticidade elaborada no discurso etnográfico, Foucault encontrará uma formulação do ultrapassamento, que, em As palavras e as coisas, acabará por designar a própria tarefa da antropologia pós-kantiana. Essa questão central, que lhe serviu de tema para sua tese complementar de 1961, é, dez anos antes, adiantada no curso sobre a magia: “Unidade do subjetivo e do objetivo: não somente a antropologia dualista do homem social é ultrapassada, mas, por essa concepção do fato social, é ultrapassada a oposição entre o objetivo e o subjetivo” (Foucault, 2017FOUCAULT, M. 2017. La magie - le fait social total. In: Zilsel, (2). , p. 316). A magia, portanto, representa, ao mesmo tempo, a ficção do fato e o fato da ficção. Na década de 1950, os estudos de antropologia permitiram a Foucault uma primeira formulação do nível epistêmico que, posteriormente, delimitaria tanto o espaço histórico da modernidade - enquanto objeto de análise - quanto o espaço histórico da enunciação de tal análise - enquanto procedimento de objetivação. Não devemos esquecer que a arqueogenealogia nunca foi desvinculada desses espaços, o que torna qualquer tentativa de lê-la como pós-moderna, no melhor dos casos, um equívoco (cf. Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. IV, p. 446-447; também p. 568). O problema do realismo e do antirrealismo implicado nesse nível epistemológico não se limitava, para Foucault, ao domínio das ciências humanas. Antes mesmo que ele pudesse se colocar a questão nesse horizonte, foi na literatura que seus aspectos mais radicais emergiram pela primeira vez.

Sabemos, por intermédio de vários testemunhos, da paixão com que Foucault se voltou para a obra poética de René Char, sobretudo nos anos 1950. Segundo as anotações de Jacques Lagrange, feitas durante um outro curso ministrado na École Normale Supérieure, de 1954-1955, sobre A questão antropológica, alguns de seus versos eram habitualmente citados em meio ao debate sobre Kant, Marx e a fenomenologia (cf. Sforzini, 2022SFORZINI, A. 2002. Situation du cours. In: FOUCAULT, M., La question anthropologique. Cours 1954- 1955, Paris: EHESS/ Gallimard . , p. 236). Fala-se mesmo de uma certa obsessão de Foucault com essa poesia que transita entre a linguagem onírica do surrealismo e a sintaxe experimental do fragmentário, a tal ponto que, à época em que era diretor da Maison de France, na Suécia, teria exigido de cada companheiro de refeição que recitasse algum de seus textos (cf. Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. I, p. 20). Seja como for, não precisamos atestar a veracidade dessa anedota biográfica para reconhecermos a importância que Char adquire nas pesquisas foucaultianas, e isso não apenas naquelas das décadas de 1960, onde aparece citada mais frequentemente. Na verdade, Char está, quase literalmente, no lugar da primeira e da última linha publicada por Foucault em vida. Ele é introduzido já na epígrafe de seu primeiro texto a aparecer em livro, a Introdução à sua tradução de Sonho e existência, de Ludwig Binswanger, de 1954. Trata-se de uma parte do poema em prosa Partage formel, incluído por Char em 1948 na coletânea Fureur et mystère. Nela, lemos:

Na idade do homem, vi elevar-se e crescer sobre o muro que divide a vida e a morte uma escada cada vez mais nua, investida de um poder de extração único: o sonho. Os degraus, a partir de um certo progresso, não apoiavam mais o protetor corrimão do sono. Após a esboçada vacância da profundidade injetada, cujas figuras serviram de campo para a inquisição de homens dotados, mas incapazes de encarar a universalidade do drama, eis que a obscuridade se afasta, e VIVER, sob a forma de um áspero ascetismo alegórico, se torna a conquista dos poderes extraordinários de que nos sentimos profundamente atravessados, mas que não exprimimos senão incompletamente, por causa da lealdade, do discernimento cruel e da perseverança (Char, 1983CHAR, R. 1983. Oeuvres complètes, collection Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard . , p. 160).

Esse poema, inaugural em muitos sentidos, parece ter sido particularmente importante para Foucault, uma vez que sua continuação é utilizada ao final da introdução da versão de 1961 de Folie et déraison. Citado em referência ao problema da linguagem na história da loucura, ele constitui uma espécie de conclamação, nesse texto que, apesar de não ser o primeiro publicado, é o primeiro que se caracteriza como uma tese foucaultiana: “Companheiros patéticos, que apenas murmurais, ide com a lamparina apagada e entregai as joias. Um mistério novo canta em vossos ossos. Desenvolvei vossa estranheza legítima” (citado em Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. I, p. 167). Se conectarmos essa última passagem àquela primeira, sobre a idade do homem - uma expressão que denota não apenas um estágio de amadurecimento pessoal, mas, também, uma parte da história dos discursos -, e se associarmos essas remissões ao contexto das obras em que aparecem, veremos como essas primeiras referências à poesia de Char funcionam, a um só tempo, como manifesto em torno do discurso da loucura e como parte de uma atitude mais ampla diante da emergência do homem como universal moderno.

A permanência de Char é ainda revelada pela breve citação de um outro poema em prosa, L’âge cassant, de 1963-1965, utilizada no outro extremo, ou seja, na quarta capa do terceiro volume da História da sexualidade, último livro publicado por Foucault, pouco tempo antes de sua morte em 1984. Nesse lugar do projeto filosófico da arqueogenealogia, a poesia resume, fechando e abrindo, simultaneamente, sua vocação: “A história dos homens é a longa sucessão de sinônimos de um mesmo vocábulo. Contradizê-la é um dever” (Char, 1983CHAR, R. 1983. Oeuvres complètes, collection Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard . , p. 766). Como sugere Van Kelly, podemos perceber nesse conjunto de referências à poesia de René Char um arco relativamente coerente, ou mesmo uma espécie de veio subterrâneo da escrita, que não é sem interesse para a questão do estatuto de realidade do discurso foucaultiano. Resgatando os contextos em que essa poesia emerge na Introdução a Binswanger, ora ela coloca em primeiro plano, por um trabalho de inversão do cânone, o valor da imaginação poética, que é autorizada a se medir pelo “poder de destruição interna da imagem” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. I, p. 116), ora instaura a promessa de “transformar o fato fabuloso em fato histórico” (Foucault, 1994FOUCAULT, M. 1994. Dits et écrits 4. Paris: Gallimard . , vol. I, p. 119), uma forma de contradição que nada mais tem a ver com a da dialética hegeliana. Assim, Foucault “transforma Char em um traço clandestino” (Kelly, 2003KELLY, V. 2003. Passages Beyond the Resistance: René Char’s Seuls demeurent and its Harmonics in Semprun and Foucault. In: Substance, 32 (3). , p. 125) de sua própria trajetória, e, mais especificamente, de seu debate com o realismo. Se sua poesia pode aparecer, além disso, em contextos como o livro sobre a loucura ou no artigo sobre Hölderlin, é porque ela evoca aquilo que Blanchot, Bataille e Klossowski se esforçaram por dar a ver: o tipo de universalidade introduzido pelo Ser da Linguagem quando olhado por esse viés limítrofe (cf., sobre isso, Lemos, 2014LEMOS, F. 2014. O sol negro da linguagem: Nietzsche, Foucault e a questão do sentido. In: Estudos Nietzsche, 5 (1). ).

Seria, por fim, útil, quanto a isso, remeter aos versos que, como vimos, Jacques Lagrange indica terem sido pronunciados por Foucault em seu curso de 1954-1955 sobre A questão antropológica. Aqui, trata-se de uma passagem de Le poème pulverisé: “Farás da alma que não existe um homem melhor que ela [Tu feras de l’âme qui n’existe pas un homme meilleur qu’elle]” (cf. Sforzini, 2022SFORZINI, A. 2002. Situation du cours. In: FOUCAULT, M., La question anthropologique. Cours 1954- 1955, Paris: EHESS/ Gallimard . , p. 236). Também aqui a poética de Char revela um aspecto fundamental da arqueogenealogia, na medida em que faz aparecer e opera sobre aquilo que, em termos ontológicos, não existe. O absoluto que aí se inscreve só pode falar sob a condição, concomitante, de silenciar-se ontologicamente. Blanchot, que, na década de 1950, Foucault também lia apaixonadamente, comentando a poesia de Mallarmé, expressa essa situação paradoxal: “essa linguagem, cuja força inteira é a de não ser, toda a glória, a de evocar, em sua própria ausência, a ausência de tudo: linguagem do irreal, ficcional [fictif], e que nos entrega à ficção do silêncio, ela vem do silêncio e ela retorna ao silêncio” (Blanchot, 1955BLANCHOT, M. 1955. L’espace littéraire. Paris: Gallimard . , p. 31). São passagens como essa que designarão, para Foucault, a perspectiva mesma da literatura, notadamente até os anos 1960. Um manuscrito do espólio foucaultiano, datado, provavelmente, de 1967, afirma-o explicitamente: “compreende-se porque a crítica contemporânea colocou-se no bom caminho pela palavra solitária de Blanchot, uma vez que é a presença desse extralinguístico dentro da língua que ele não cessou de invocar, é à ausência dessa presença que ele emprestou sua voz” (Foucault, 2019FOUCAULT, M. 2019. Folie, langage, littérature. Paris: Vrin . , p.228).

De Roussel a Artaud, de Sade a Jules Verne, o espaço literário abre no real uma espécie de vazio que, como conclama Char, deverá se apropriar do que não existe e torná-lo melhor, ou, no vocabulário propriamente foucaultiano, torná-lo crítico. A literatura abriga em si esse paradoxo, segundo o qual seu fora precisa ser produzido desde dentro da linguagem. No período em que se dedicou mais amplamente ao estudo da linguística, encontraremos Foucault discutindo explicitamente esse problema. O mesmo fragmento de 1967 o confirma: “Deve-se dizer que a literatura é um discurso que, a partir dele mesmo (do ato que faz aparecer os enunciados), suscita a si mesmo o extralinguístico que lhe permite existir como enunciado. A literatura é o barbarismo do extralinguístico imanente ao discurso” (Foucault, 2019FOUCAULT, M. 2019. Folie, langage, littérature. Paris: Vrin . , p. 226). Movendo-nos, assim, para esse fora, estamos não na direção da possibilidade do realismo, mas na do realismo da possibilidade. Eis o que autoriza o estatuto enunciativo da arqueogenealogia, algo que já havia sido levantado por Jean-Paul Margot em um artigo de 1984MARGOT, J.-P. 1984. Herméneutique et fiction chez M. Foucault. In: Dialogue, 23 (4). :

Mas se toda prescrição [ordonnance] é o exercício de uma Vontade de verdade que nos quer fazer crer que a prescrição é real, trata-se, agora, de nos situarmos anonimamente no lugar onde todas sp. 637).

4 O espaço (não-)realista da enunciação: o fichteanismo de Foucault

Ainda que Foucault tenha sido mais explícito quanto ao aporte trazido pela literatura para o problema do realismo na arqueogenealogia, a referência, mais enviesada e menos recorrente, a um autor, dessa vez de dentro da tradição canônica da filosofia, nos ajuda a entender melhor os desdobramentos desse tema em seu trabalho. Trata-se de Fichte. Evidentemente, há diferenças irreconciliáveis entre A arqueologia do saber e a Doutrina-da-ciência, e somente o propósito maior dessa última, seu radical fundacionismo, já demarcaria essa distância de modo veemente. Se, entretanto, tivermos em mente as complicadas relações entre o que venho definindo aqui como (não-)realismo e o realismo da ontologia clássica, tanto Fichte como Foucault se apresentam como parte de uma longa e relativamente insuspeita dinastia de pensadores que se colocaram o problema da relação entre produção e reprodução do real.

A referência parece arbitrária apenas para os que não consideram a centralidade do pós-kantismo para a formação mesma das questões de método da arqueologia foucaultiana na década de 1960. De fato, muito pouca atenção tem sido dada ao interesse com que Foucault estudou a filosofia fichtiana e às contribuições que ela lhe teria trazido. Já se indicou, de passagem, como a figura do erudito, introduzida por Fichte em suas preleções públicas, se aproximaria de suas investigações sobre o dizer verdadeiro, ou sobre a parresía, elaboradas na década de 1980 (cf. Oesterreich & Traub, 2018OESTERREICH, P. L.; TRAUB, H. 2018. Fichte quer: Das Ich, die Nation und der Tod des Gelehrten. In: ALFONSO, M. V. et. al. (Hrsg.), Mit Fichte philosophieren Perspektiven seiner Philosophie nach 200 Jahren, Leiden/ Boston: Brill/ Rodopi., pp. 226-227), mas praticamente nenhuma análise se deteve nessa presença, lacunar, mas persistente. É verdade que as menções telegráficas ao projeto fichtiano no recém-publicado curso sobre A questão antropológica, de 1954-1955, tendem a diluí-lo na rubrica geral dos filósofos do século XIX (cf., por exemplo, Foucault, 2022FOUCAULT, M. 2022. La question anthopologique. Cours. 1954-1955. Paris: EHESS/ Gallimard/Seuil. , p. 68), eclipsando, talvez, o elemento que Foucault identifica como o problema que liga a filosofia crítica kantiana a seus herdeiros, ou seja, o problema da própria modernidade. Esse ponto é assinalado, brevemente, no momento em que Kant e Fichte são apresentados, já nesse curso, como formuladores de uma nova concepção antropológica, que resulta do igualmente novo estrato onde a universalidade da reflexão filosófica pode ser não apenas revelada - como fato passivo à espera da iluminação -, mas como postulação: “uma filosofia que não deve à existência senão a uma necessidade filosófica” (Foucault, 2022FOUCAULT, M. 2022. La question anthopologique. Cours. 1954-1955. Paris: EHESS/ Gallimard/Seuil. , p. 88). Vê-se desenhar, aqui, o que se desdobrará nas análises posteriores de As palavras e as coisas: a hipótese de que a emergência da antropologia crítica na modernidade está vinculada à questão da ambivalência epistêmica do objeto enquanto posição/enunciação (do sujeito, do Eu, do discurso) e enquanto esfera independente da subjetividade (cf. Franks, 2019FRANKS, P. 2019. Fichte’s Kabbalistic Realism: Summons as zimzum, In: GOTTLIEB, G., Fichte’s Foundations of Natural Right: A Critical Guide, Cambridge: Cambridge University Press. , p. 93). A relevância dessa questão se manifesta, por fim, já tardiamente, quando Foucault, em uma entrevista de 1979, caracteriza seu próprio horizonte de problemas como fichtiano. Ao contrapor-se à insistência de seu entrevistador em enxergar entre a vontade de saber e o sujeito que nela, a um só tempo, enuncia e é enunciado, uma dialética de tipo hegeliano, ele retoma, através de Fichte, aquilo que, desde a década de 1960, o interessava em Blanchot:

Farès Sassine: É muito hegeliano, não? Michel Foucault: Eu diria que é mais fichtiano. F.S.: Eu não conheço bem Fichte. M.F.: Se você me permite, aquilo que eu criticava precisamente na noção de homem, e no humanismo dos anos 1950, 1960, era a utilização de universal entendido como universal-noção. Haveria uma natureza humana, haveria necessidades humanas, haveria uma essência humana etc. E é em nome desse universal do homem que faríamos revoluções, aboliríamos a exploração, nacionalizaríamos indústrias, deveríamos nos filiar ao Partido Comunista etc. Esse universal, que permite muitas coisas, e que, ao mesmo tempo, supunha, de maneira ligeiramente ingênua, uma espécie de permanência trans-histórica, sub-histórica ou meta-histórica do homem. Creio que isso não é aceitável racionalmente e muito menos praticamente. Aí, acho que nós escapamos do universalismo quando dizemos que finalmente o sujeito nada mais é do que o efeito de um... enfim, daquilo que é determinado pela vontade. Uma vontade é a vontade mesma do sujeito. Para dizer a verdade, suponho que estou me aproximando em grande velocidade, e não por seu humanismo, mas, precisamente, por sua concepção de liberdade, é de Sartre. E de Fichte. Já que Sartre e Fichte... Sartre não é hegeliano” (Foucault, 2018FOUCAULT, M. 2018. O enigma da revolta. Entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana, traducão de Lorena Balbino. São Paulo: N-1 edicões. , pp. 85-86).

Passagem carregada de problemas - pela caracterização surpreendente da pesquisa foucaultiana, pelo enviesamento através do qual Fichte emerge em uma luz talvez distante da que pretendia emitir, enfim, pela negação do hegelianismo de Sartre -, ela aponta, contudo, com precisão para o deslocamento do paradigma da universalidade para o campo da ação. O que não significa, está claro, recorrer à solução de Fichte, ao seu Eu, mas, antes, ao seu problema - ao sentido novo de uma fundamentação.

De certa maneira, todo o projeto daquilo que Fichte denominou Doutrina-da-ciência, a Wissenschaftslehre, está relacionado à necessidade de fundamentar aquela ambivalência do objeto, ou seja, também deduzir a realidade que inscreve o Eu, completando o que, no sistema de Kant, era deixado sem solução. Encontrar o fundamento desse sistema não seria outra coisa, portanto, senão ultrapassar o solipsismo epistêmico kantiano na direção daquilo que, como proposição fundamental de toda ciência, deve poder resguardar em si o estatuto de realidade: “Aquilo que é posto pelo mero pôr de alguma coisa [Dinge] (uma [coisa] posta no eu), é, nele, realidade [Realität], é sua essência” (Fichte, 1971, p. 99). Refutando, em seguida, o ceticismo de Salomon Maimon, Fichte é enfático quanto à irredutibilidade desse estrato real a qualquer outro nível ou proposição:

O ceticismo maimoniano é, em última análise, baseado na questão sobre a nossa autoridade [Befugniss] para aplicar a categoria de realidade. Esta autoridade não se deixa ser derivada de qualquer outra, mas estamos, antes, pura e simplesmente autorizados a fazê-lo. Pelo contrário, todas as outras [autoridades] possíveis devem ser derivadas dela (...) (Fichte, 1971FICHTE, J. G. 1971. Fichtes Werke. Band I Zur theoretischen Philosophie I. Herausgegeben von Immanuel Hermann Fichte, Berlin Walter de Gruyter. , p. 99).

Muitas passagens da versão de 1794 da Doutrina-da-ciência, no entanto, parecem ter sido interpretadas e criticadas como hipóteses solipsistas, especialmente nos lugares onde Fichte, reformulando Jacobi, insiste que “toda realidade deve ser pura e simplesmente posta pelo eu” (Fichte, 1971FICHTE, J. G. 1971. Fichtes Werke. Band I Zur theoretischen Philosophie I. Herausgegeben von Immanuel Hermann Fichte, Berlin Walter de Gruyter. , p. 263). Através desse dever do postulado do realismo, sua filosofia recorria ao domínio da ação para retirar dele a forma através da qual o objeto, o Não-Eu, tinha de ser posto. A dificuldade aqui, análoga àquela do etnólogo foucaultiano, que enuncia um mundo que lhe é externo, dando-lhe uma realidade que, ao mesmo tempo, deve ser posta como independente dele, é que a atividade do Eu não é meramente produtora da realidade do mundo: a investigação fichtiana desloca-se para o nível no qual a dedução dessa atividade do Eu tem de ser, simultaneamente, em sentido oposto, a da realidade do Não-Eu, que a põe.

Para muitos de seus contemporâneos, a solução não era suficiente, e o estado-de-ação, a Tathandlung encontrada por Fichte na base de seu sistema, ainda estava restrita ao âmbito do agir, não podendo ser compreendida pela perspectiva da teoria do conhecimento. Tal interpretação foi a tal ponto persistente, que marcou o limite através do qual os autores românticos, assim como Hegel, designaram seus projetos como tentativas de superação do egoísmo transcendental, fosse pela via da filosofia da natureza ou da filosofia do espírito (cf. Schmied-Kowarzik, 1997SCHMIED-KOWARZIK, W. 1997. Das Problem der Natur. Nahe und Differenz Fichtes und Schellings. In: SCHRADER, W. H. (Herg.), Fichte und die Romantik. Hölderlin, Schelling, Hegel und die späte Wis- senschaftslehre, Amsterdam/ Atlanta: Rodopi. , p. 219; Henrich, 2003HENRICH, D. 2003. Between Kant and Hegel. Lectures on German Idealism. Cambridge: Harvard University Press. , p. 111). Já em 1802, Hegel retomaria, de certo modo, essa crítica em seu artigo Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, publicado em 1802, que mostrava como a identidade fichtiana, por inserir-se no campo da ação, limitava-se a ser um postulado prático, incapaz de produzir uma identidade efetivamente absoluta com o teórico, mantendo, assim, a cisão kantiana entre liberdade e natureza, o que, em outros termos, corresponde à cisão entre a reflexão e o real (cf. Hegel, 1986HEGEL, G. W. F. 1986. Werke. Band 2: Jenaer Schriften 1801-1807. Frankfurt am Main: Suhrkamp . , p.72). Sensível a essas críticas, Fichte abandonou, em grande medida, nas obras posteriores, o vocabulário da egoidade, bem como enfatizou a centralidade do estatuto realista do princípio fundamental da doutrina-da-ciência, recusando qualquer redução de tipo mentalista. Assim, o argumento central da primeira seção de seu Fundamentação do direito natural segundo os princípios da doutrina-da-ciência [Grundlage des Naturrechts, nach Prinzipien der Wissenschaftslehre] (1796-1797) se expressa justamente nessa refutação do idealismo empírico, ou seja, da tese segundo a qual o mundo só existiria na mente ou no sujeito (cf. Beiser, 2002BEISER, F. 2002. German Idealism: The Struggle against Subjectivism 1781- 1801. Cambridge: Harvard University Press., pp.341-342). Que esse desenvolvimento posterior guarde, no entanto, uma grande ambiguidade, é algo que se comprova pelo fato de que mesmo interpretações contemporâneas da obra de Fichte consideram seu idealismo como contraposto ao realismo (cf. Bourgeois, 1995BOUGEOIS, B. 1995. L’idéalisme de Fichte. Paris: Vrin. , p. 8). Se, contudo, essa ambiguidade for entendida como própria do questionamento mesmo do estatuto do real, que passa a ser formulado ele mesmo em termos de atividade - para levarmos o problema até Foucault, como enunciação discursiva - não será difícil encontrar Fichte no início de um longo projeto da modernidade, que o reúne a Hölderlin e a Hegel, mas também a René Char e Maurice Blanchot.

De fato, ao vincularmos os interesses de Blanchot a Fichte, unica e especificamente no que se refere ao sentido dessa universalidade constituída como gesto infinito, alcançamos, ao menos, a vantagem de afastar a obra blanchotiana da sombra de Hegel, através de quem ela frequentemente é interpretada, pela sobrevalorização do negativo (cf. Warminski, 1985WARMINSKI, A. (1985). Dreadful Reading: Blanchot on Hegel. Yale French Studies, 69, 267-275. https:// doi.org/10.2307/2929940
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, pp. 267-275 ou Gelhard, 2017GELHARD, A. 2017. Abstraktion, Attraktion - Maurice Blanchot liesst Hegel. In: SCHNEIDER, U. J. (Hrsg.), der französische Hegel, Berlin: Akademie-Verlag. , pp. 65-76). Ao contrário, o mérito de Blanchot de nos invocar a autoconstrução daquilo que chama de fora da literatura, e que só pode vir de dentro, constitui justamente a possibilidade de nos desligar dos perigos do hegelianismo, ou seja, de tomarmos o absoluto como efetividade do conceito. Para que seu trabalho possa emergir como momento privilegiado, mas não excepcional do antihegelianismo, será preciso prestar atenção ao fato de que, para ele, o trabalho negativo do espírito não pode ser outra coisa senão uma espécie de enclausuramento libertador, que remete, na leitura que proponho aqui, à enunciação do real pelo Eu fichtiano: trata-se de um “nada trabalhando dentro do nada” (Blanchot, 1949BLANCHOT, M. 1949. La part du feu. Paris: Gallimard. , p. 296). Não é preciso lembrar que a convergência com Fichte não é senão muito frágil, e que se dá apenas nos termos gerais dessa sobreposição entre o dentro e o fora, mas não do ponto de vista da natureza da dedução. Assim, em Blanchot, é a própria impossibilidade da síntese positiva que manifesta o ultrapassamento como excesso, como movimento imprevisivelmente acelerado, pura velocidade sem os parâmetros de um mundo exterior, mas que, ao mesmo tempo, o produz pela vertigem desse atravessamento-para-dentro. Contrai-se, assim, o além e o instante, “além de toda fratura, de toda ruptura, a paciência da pura impaciência, o pouco-a-pouco da morte súbita” (Blanchot, 1980BLANCHOT, M. 1980. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard . , p. 58): nenhuma dialética, portanto, mas, antes, a imediaticidade de um ato instaurador do tempo. A “urgência extrema” (Blanchot, 1980BLANCHOT, M. 1980. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard . , p. 58) é a do “desastre” (Blanchot, 1980BLANCHOT, M. 1980. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard . , p. 69): um “morrer sem fim” (Blanchot, 1980BLANCHOT, M. 1980. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard . , p. 67) que se impõe, desfazendo-a, à realidade em sentido acabado, mesmo que seja o do escorregadio acabamento do Espírito absoluto: “Hegel é o impostor, é isso que o torna invencível, louco em sua seriedade, falsário da Verdade” (Blanchot, 1980BLANCHOT, M. 1980. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard . , p. 79).

O interesse de Foucault em Blanchot, sob essa perspectiva, emerge como signo de seu perene e parcial fichtianismo, mas também o contrário. Tratar-se-ia, em todo caso, de, por uma inversão anacrônica, combater o universalismo hegeliano, a antropologia hegeliana, o discurso hegeliano, enfim, por meio desse curto-circuito entre a ação da enunciação e seu objeto, entre o Eu e seu Mundo. Seria desejável, portanto, que Fichte não tivesse se retraído diante das interpretações solipsistas, que ele, ao contrário, tivesse levado até o fim, até seu paroxismo, o empreendimento fundacionista da Doutrina-da-ciência, justamente naquilo que ele tem de mais asfixiante.

5 Conclusão

Ao conversar sobre seu trabalho com os estudantes de Berkeley em novembro de 1980, Foucault definiu de maneira aparentemente paradoxal o ofício de suas pesquisas, apresentadas não como uma teoria, mas como uma “prática teórica” (Foucault, 2013FOUCAULT, M. 2013. L’origine de l’herméneutique de soi. Conférences prononcées à Dartmouth College, 1980. Paris: Vrin . , p. 153). Assim, de um lado, designa-se o empreendimento que teria uma legitimidade enunciativa própria do moralismo, sem, no entanto, partilhar de seu modelo de universalidade. Eis porque essa ênfase no fundamento da ação, que o liga a Fichte e lhe autoriza a dizer “Em um sentido, sou um moralista” (Foucault, 2013FOUCAULT, M. 2013. L’origine de l’herméneutique de soi. Conférences prononcées à Dartmouth College, 1980. Paris: Vrin . , p. 143), se deixa logo corrigir pela impossibilidade de síntese que o coloca ao lado de Blanchot, e exige que ele especifique: “Sou um moralista na medida em que creio que uma das tarefas, um dos sentidos da existência humana, aquilo em que consiste a liberdade do homem, é a de nunca aceitar nada como definitivo, intocável, evidente, imóvel” (Foucault, 2013FOUCAULT, M. 2013. L’origine de l’herméneutique de soi. Conférences prononcées à Dartmouth College, 1980. Paris: Vrin . , p. 143). O ficcionalismo foucaultiano converte o fundacionismo fichtiano em um gesto infinito sobre si mesmo, única condição para que também o mundo o seja: “Nada de real [réel] deve nos fazer uma lei definitiva e inumana” (Foucault, 2013FOUCAULT, M. 2013. L’origine de l’herméneutique de soi. Conférences prononcées à Dartmouth College, 1980. Paris: Vrin . , p. 143).

Embora a caracterização do estatuto das pesquisas de Foucault, como procurei mostrar, remetesse desde muito cedo à dimensão construtiva do ficcional, é certo que a tematização desse problema ocorre mais tardiamente do que se poderia desejar. Ao menos essa seria a situação na qual nos encontramos até agora, dado o que conhecemos do material publicado extraído, apesar de suas próprias recomendações, de seu espólio. Contudo, a recente publicação de um texto manuscrito de Foucault datado provavelmente de 1966, Le discours philosophique, onde se ensaia, de modo peculiar, uma distinção entre o discurso filosófico e o discurso literário, aparentemente torna o quadro um pouco mais complicado. Se Les mots et les choses e L’archéologie du savoir se recusam a abordar qualquer especificidade da filosofia diante daquele domínio que se denominou como o dos saberes, esse texto, que lhes é mais contemporâneo, não apenas cede a essa questão, como dá a ela uma importância central. Há aí toda uma série de diferenças em relação aos referenciais historiográficos dos livros publicados: por exemplo, uma mudança que faz, no manuscrito do espólio, de Descartes o autor que inaugura a época moderna (cf. Foucault, 2023FOUCAULT, M. 2023. Le discours philosophique. Paris: EHESS/ Seuil/ Gallimard . , pp. 34-36), ou uma certa relativização da figura de Kant, que, em Les mots et les choses, autorizava falar de uma geração pós-kantiana de amplo alcance, enquanto no manuscrito vemos surgir a imagem de uma “filosofia pós-nietzscheana” (Foucault, 2023FOUCAULT, M. 2023. Le discours philosophique. Paris: EHESS/ Seuil/ Gallimard . , p. 194). Mas, entre todas as dificuldades impostas por esse texto que, é importante assinalar, é deixado inacabado, a mais significativa para o que tratei aqui é a relação tensa entre ficção e filosofia. De um lado, Foucault admite aí uma certa analogia entre o modo de ser do discurso literário e o do discurso filosófico (Foucault, 2023FOUCAULT, M. 2023. Le discours philosophique. Paris: EHESS/ Seuil/ Gallimard . , p. 42), especialmente no que se refere ao fato de que, em ambos os casos, seus objetos são ontologicamente esvaziados: “a literatura não exprime nada (e, sobretudo, não o mundo), mas pertence a um certo tipo de discurso onde este se imita a si mesmo, e a filosofia não exprime nada (e, menos que tudo, uma civilização), mas pertence a um tipo de discurso onde este interpreta o agora de onde fala (Foucault, 2023FOUCAULT, M. 2023. Le discours philosophique. Paris: EHESS/ Seuil/ Gallimard . , p. 53). Por outro lado, a filosofia moderna abandona o território da ficção ao pensar a verdade do presente (Foucault, 2023FOUCAULT, M. 2023. Le discours philosophique. Paris: EHESS/ Seuil/ Gallimard . , p. 87). Ora, haveria de se esperar, portanto, que, nessa caracterização, o filosófico viesse, desde Descartes, exorcizar os perigos da ficção, e que o trabalho de Foucault, inscrevendo-se, voluntariamente, na modernidade, estaria informado por essa premissa. No entanto, uma distinção necessária se impõe: se a vínculo da arqueogenealogia com a épistémé moderna é insistentemente demarcado, sua relação com a filosofia vai na direção oposta - é preciso, assim, levar a sério todas as ocasiões em que Foucault se recusou a qualificar o seu trabalho como filosófico. Se admitirmos isso, veremos em que sentido esse trabalho, talvez em função de sua inscrição não na filosofia, mas na ficção da modernidade, mantenha com essa distância crítica: “Em face de todos os outros grandes tipos de discurso, a filosofia se torna, bruscamente, o que ela permanece sendo até hoje: em estranho discurso que pretende chegar à verdade através da verdade do agora que a sustenta” (Foucault, 2023FOUCAULT, M. 2023. Le discours philosophique. Paris: EHESS/ Seuil/ Gallimard . , p. 87, grifo meu). Trata-se, portanto, diante do universal da verdade filosófica, de nutrir a expectativa de um certo estranhamento - que, olhado com algum interesse, se manifesta como um problema de método.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2022
  • Aceito
    12 Set 2023
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