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O Republicanismo neorromano na concepção de liberdade de J. S. Mill

Neo-Roman Republicanism in J. S. Mill’s conception of freedom

RESUMO

John Stuart Mill é considerado um dos grandes representantes da tradição liberal. Não obstante tal consideração possuir plausibilidade, é possível afirmar que a filosofia prática de Mill guarda relação de similitude com outra tradição do pensamento político ocidental: o republicanismo. Este artigo objetiva apresentar um aspecto que aproxima as propostas de Mill das teorias republicanistas, mais precisamente, das propostas da chamada teoria neorromana de republicanismo. Para apresentar o aspecto supramencionado, este artigo recorre a uma obra de Mill que não é imediatamente associada à sua teoria da liberdade, a saber, a obra A sujeição das Mulheres.

Palavras-chave:
Mill; a sujeição das mulheres; republicanismo

ABSTRACT

John Stuart Mill is considered one of the great representatives of the liberal tradition. Despite such consideration having plausibility, it is possible to affirm that Mill’s practical philosophy is related to another tradition of Western political thought: republicanism. This article aims to present a similar aspect between Mill’s proposals of republican theories, more precisely, the proposals of the neo-Roman theory of republicanism. For this, this article refers to a work by Mill that is not associated with his theory of freedom, the work The Subject of Women.

Keywords:
Mill; the subjection of women; republicanism

1 Introdução

John Stuart Mill (1806-1873) é frequentemente considerado um dos maiores expoentes da tradição de pensamento político denominada “liberalismo”1 1 Liberalismo, a rigor, compreende uma família de teorias políticas. As diferentes vertentes do liberalismo foram elaboradas ao longo dos últimos três séculos. Em linhas muito gerais, é possível caracterizar as diferentes teorias liberais pela defesa que fazem da preeminência moral do indivíduo sobre os ditames da tradição e da coletividade. Ver, de J. B. Schneewind, A Invenção da Autonomia (2005[1998]), especificamente as seções IV e V do segundo capítulo. Ver também, de Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno (2017[1978]), especificamente a parte quatro (capítulos 10,11 e 12). . Tal consideração possui plausibilidade: Mill, de fato, parece se comprometer com essa vertente do pensamento político. Se tivermos presente, principalmente, a obra Sobre a Liberdade (2010MILL, J. S. 2010. Sobre a liberdade. São Paulo: Hedra.[1859]) e a formulação do Princípio do Dano contida nela, Mill se afigura um defensor escrupuloso dos postulados liberais. Não obstante, acredito que seja possível oferecer outra interpretação para a concepção de liberdade milliana, a saber, uma interpretação de pendor republicano. Mais precisamente, uma interpretação neorromana de republicanismo. Cumpre dizer que não pretendo incorrer em anacronismo e sustentar que existe uma linha de continuidade entre a teoria de Mill e a de teóricos republicanos contemporâneos. Isso significa, com efeito, que não intenciono apresentar uma exegese comparativa detalhada e exaustiva entre as teorias da liberdade de Mill e de Philip Pettit. Pretendo tão somente investigar se existe algum elemento na teoria da liberdade milliana que permita vislumbrar uma relação de similitude entre essa teoria e as formulações do republicanismo neorromano. As exegeses presentes no artigo devem ser compreendidas estritamente à luz da supramencionada investigação.

Este artigo será divido em duas partes. Na primeira, apresentarei brevemente o Princípio do dano e porque a defesa de tal princípio parece comprometer Mill de modo inequívoco com o liberalismo. Em seguida, apresento uma crítica usualmente dirigida à tradição liberal, qual seja: uma crítica encaminhada à sua concepção de autoridade política. Tal apresentação permitirá pôr em relevo uma das vertentes que criticam a supracitada concepção liberal, o republicanismo neorromano. Quentin Skinner e Philip Pettit são os dois grandes expoentes dessa versão contemporânea de republicanismo. Descrevo sumariamente essa corrente e sua concepção de “liberdade como não dominação”. Posteriormente, na segunda parte do texto, busco estabelecer a relação de similitude entre essa concepção e a noção de liberdade milliana. Para isso, recorro precipuamente, seguindo indicações de David Brink e do próprio Skinner, ao livro A Sujeição das Mulheres (2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina.[1869]), de Mill. Sem dúvida, esse não é o livro normalmente mencionado ao se discorrer a respeito da concepção de liberdade política em Mill. Porém, em tal obra podemos encontrar uma vigorosa e emblemática argumentação em favor da defesa do exercício de um status sociopolítico equanimemente distribuído entre homens e mulheres. Esse exercício permitiria, podemos depreender, que os indivíduos desfrutassem de uma condição sociopolítica tal que os subtrairia por completo do arbítrio de outros indivíduos e de instituições de qualquer natureza (por mais benevolentes e magnânimas que esses indivíduos e instituições factualmente se afigurassem, em um dado período). A defesa do exercício desse status sociopolítico constitui, a meu ver, o elemento de similitude entre as concepções de liberdade sustentada tanto por Mill quanto pelo republicanismo neorromano.

2 A interpretação usual da teoria da liberdade milliana

John Stuart Mill é usualmente considerado um autor ligado à tradição liberal. Em Sobre a Liberdade, Mill apresenta o princípio que permite classificá-lo de modo quase automático como um pensador pertencente à tradição supracitada, o chamado Princípio do Dano:

O objetivo deste ensaio é afirmar um princípio básico muito simples [...]. Esse princípio diz que o único objetivo pelo qual a humanidade pode, de forma individual ou coletiva, interferir com a liberdade de ação de qualquer de seus membros, é a proteção dela própria. E que o único propósito pelo qual o poder pode ser constantemente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade, contra a vontade deste, é o de prevenir danos para os outros membros (Mill, 2010MILL, J. S. 2010. Sobre a liberdade. São Paulo: Hedra., p. 49).

Essa formulação do Princípio do Dano parece exprimir a filiação inequívoca de Mill ao liberalismo. Isso porque esse princípio busca constituir fundamentalmente um obstáculo a qualquer pretensão da coletividade, especialmente quando a coletividade se vale do recurso à autoridade política, de submeter de modo arbitrário o indivíduo aos seus ditames. Nesse registro, o indivíduo é erigido à condição de referencial normativo último. Por conseguinte, no que diz respeito à expressão de pensamentos, ideias e gostos, bem como no que concerne à realização das mais variadas práticas e associações voluntárias (que não constituam ou possam constituir dano a outros indivíduos), a soberania do indivíduo deve ser considerada absoluta. Dado que a tradição liberal ao longo da história se caracteriza, em uma formulação não rigorosa, pela defesa da primazia da autonomia e da liberdade do indivíduo, o Princípio do Dano parece, pois, comprometer a concepção de liberdade milliana indissoluvelmente com tal tradição. À luz da descrição feita acima (na qual se encaixariam todas as vertentes de liberalismo e, por conseguinte, o Princípio do Dano), diferentes objeções ao liberalismo partem da asserção segundo a qual, para essa família de teorias políticas, os indivíduos são considerados “átomos”, sujeitos sem raízes, agentes capazes de possuir características, propriedades, crenças, desejos, interesses etc. que só digam respeito a eles próprios, sem nenhuma relação com o contexto histórico-cultural ao qual pertençam.2 2 Ver, enquanto expressão emblemática dessa asserção crítica, The Procedural Republic and the Unencumbered Self (1992), ambos de Michael Sandel. A sociedade só existiria para o liberalismo, de acordo com as objeções, como um meio para que o indivíduo realizasse seus desejos e interesses de modo satisfatório.

Do postulado exposto acima se segue a compreensão segundo a qual a autoridade política - e a sociedade de modo geral - é “exterior” aos indivíduos. Isso significa que o indivíduo não tem e não pode ter nenhuma conexão com a autoridade política, a não ser a conexão estabelecida por sua condição de financiador (via pagamento de impostos) da função única que o Estado deve exercer: a de mantenedor da ordem, garantidor de contratos livremente firmados e da estabilidade social. Na perspectiva liberal, ainda de acordo com as críticas, autoridade política e indivíduos seriam, do mesmo modo que a água e o óleo, imiscíveis um ao outro. O Estado, dessa maneira, seria visto, na melhor das hipóteses, como um obstáculo enorme, mas necessário, para que os indivíduos possam desfrutar de seus negócios particulares de modo seguro. Em outra caracterização não menos recorrentemente atribuída às teorias políticas liberais, o Estado seria uma espécie de “monstro maligno” sempre pronto a impedir que os indivíduos possam fruir suas vidas particulares e, no limite, sempre pronto a tomar as próprias vidas dos indivíduos.

É no bojo de invectivas como as sumariamente apresentadas acima que uma antiga corrente do pensamento político ocidental ressurge na década de 1990, a saber: o republicanismo3 3 Muitos autores e autoras, no começo do século XX, já criticavam o liberalismo e exortavam a uma vida comunitária mais exigente, por assim dizer. Ver, por exemplo, de Hannah Arendt (1906-1975), A Condição Humana (2007[1958]); e ver, de G. E. M. Anscombe (1919-2001), o artigo clássico Modern Moral Philosophy (1958). Mas tais autores e autoras não lograram formar uma vertente claramente identificável de republicanismo, na contemporaneidade. . A tradição republicanista do pensamento político tem início na Antiguidade Clássica. Ela remonta pelo menos aos escritos de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e aos de Cícero (106 a.C.-43 a.C.). Essa tradição experimenta seu primeiro ressurgimento no final do medievo e início da época moderna. Mais precisamente, o republicanismo tem em algumas cidades italianas, principalmente Florença nos séculos XIV e XV, o seu espaço de reaparecimento no cenário político ocidental.4 4 Nesse ponto, há uma importante controvérsia historiográfica entre dois estudiosos eminentes. Quentin Skinner afirma que tal ressurgimento teria ocorrido nos séculos XII e XIII, ao passo que Hans Baron (1900 - 1988) afirmou que o reinício se deu nos séculos XIV e XV. É quase desnecessário dizer que não objetivo abordar tal questão neste artigo. A vertente contemporânea que gostaria de apresentar e conectar à concepção de liberdade milliana é a chamada neorromana5 5 Existem duas tradições de republicanismo defendidas na atualidade. Aristóteles é considerado o originador do que se cognomina versão neoateniense do republicanismo. A referência histórico-geográfica evidente é à cidade-estado grega, especialmente ao período áureo de sua democracia, sob Péricles (495~492 a.C.-429 a.C.). O republicanismo neoateninese, também conhecido como humanismo cívico, consiste, grosso modo, na tese segundo a qual Aristóteles teria sistematizado e expressado à perfeição o modo de vida e a concepção política de uma comunidade republicana ideal: o modelo de democracia existente em Atenas no século V a.C. Subjaz a esse modelo de comunidade política a concepção de natureza humana oferecida por Aristóteles em sua Política, qual seja, a figura do ser humano como Zoon Politikon (animal político). Isso significa que, para essa vertente de republicanismo, o ser humano só realizaria plenamente sua natureza ao participar ativamente da vida política de sua comunidade. , cuja referência político-geográfica e histórica é o regime político instituído em Roma após a expulsão de Tarquínio, o Soberbo (535 a.C.-496 a.C.) em 509 a.C.

Essa forma de governo durou até aproximadamente 27 a.C. Entre os grandes teóricos desse regime, que os romanos chamavam de libertas, e que ficou conhecido historicamente pelo nome de “República” (do latim, res publica, ou coisa pública), figuram nomes como Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) e Salústio (86 a.C.-34 a.C.). Cícero, contudo, foi sem dúvida o autor consagrado historicamente como a principal referência teórica dessa vertente política. Contemporaneamente, o responsável pelo deslocamento do pensamento republicano de uma matriz ateniense-aristotélica para uma romano-ciceroniana é o historiador Quentin Skinner. Ele elabora o argumento segundo o qual as cidades-estados italianas, já nos séculos XII e XIII, se valeram não da autoridade filosófica de Aristóteles, mas dos postulados mais estreitamente comprometidos com a administração estatal elaborados por Cícero, para a defesa de sua liberdade política.

O que eu gostaria de destacar neste artigo são as implicações teórico-normativas que o robusto empreendimento historiográfico de Skinner permite considerar. Essas implicações são desenvolvidas pelo filósofo Philip Pettit, o principal teórico da vertente neorromana de republicanismo contemporâneo. A concepção de liberdade neorromana é definida nos termos de um tipo de liberdade como ausência de dominação - ou, para usar o termo proposto por Pettit, “liberdade como não dominação”. O autor sustenta que “não interferência” (uma concepção de “liberdade” que ele atribui ao liberalismo) e “não dominação” não se equivalem. Assim, ele nos diz que pode haver interferência sem dominação e dominação sem interferência: “Dado que a interferência e a dominação são males diferentes, a não-interferência e a não-dominação são ideais diferentes” (Pettit, 2007PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press., p. 23). Há interferência quando um indivíduo tem seu curso de ação factualmente obstaculizado por outro indivíduo ou, principalmente pela autoridade política6 6 Como se sabe, Hobbes, no capítulo XXI do Leviatã (1983[1651]), apresenta sua concepção de liberdade nos seguintes termos: “Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais.” (Hobbes, 1983, p. 129). Essa passagem, portanto, seria o fundamento da concepção liberal de liberdade, para os teóricos neorromanos. , ao passo que pode haver dominação mesmo quando um indivíduo não está sendo factualmente coagido ou obstaculizado, mas cujo status “inferior” o coloca mercê de outro (ou outros) indivíduo ou instituições. O exemplo paradigmático dado pela tradição republicana é a relação entre o senhor benevolente e o escravizado7 7 O Digesto (533 d.C.), codificação do direito romano realizada por Justiniano (527-565 d.C.), constitui a fonte da concepção republicana segundo a qual a relação entre senhor e escravizado representa a relação de dominação por excelência. Nas palavras de Skinner (1998, p. 42): “O conceito de escravidão é inicialmente discutido no Digesto sob a rubrica De statu hominis, onde nos é dito que a distinção mais fundamental do interior do direito das gentes é entre aqueles que são livres e aqueles que são escravos”. . Retomarei esse ponto ulteriormente, ao abordar a possível interpretação republicanista de Mill.

Pettit sublinha o caráter negativo de sua concepção de liberdade, ou seja, ele enfatiza que sua concepção se radica na negação de algum obstáculo ao exercício da liberdade. Contudo, diferentemente da perspectiva liberal, o que sua concepção de liberdade nega não é a interferência externa pura e simplesmente, mas um tipo específico de interferência ilegítima, possibilitada por relações de dominação. O autor oferece o que poderia ser considerada uma clara diferença entre as formas liberal e republicana de conceber a liberdade: “Não dominação é o status associado com o papel civil do homem livre: liberdade é cidadania [libertas est civitas], na forma romana de expressar a ideia [...]” (Pettit, 1997PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press., p. 66). Desse modo, o autor salienta o tipo de caráter relacional em sua concepção - o exercício da liberdade ocorre no interior de uma experiência eminentemente interindividual. A respeito de tal experiência social, pode-se asseverar: “libertas est civitas”. Esse ponto é crucial. Para a vertente neorromana, a liberdade individual e a liberdade “coletiva” (a liberdade da e na “polis”) se pressupõem mutuamente. Afirmar que os indivíduos, em uma perspectiva neorromana, não devem possuir status hierarquicamente diferentes, implica afirmar que poder participar do processo de tomada de decisão dos rumos políticos das sociedades em que vivem é a única maneira de os indivíduos se resguardarem da possibilidade de que um indivíduo, um grupo de indivíduos ou mesmo o próprio Estado possam exercer o papel de senhor de suas vidas.

A concepção de liberdade de Pettit, assim, assenta-se na ideia de que o exercício de status equivalentes entre os indivíduos (status este que permita ao indivíduo estar ao abrigo do arbítrio de outrem) exige que todos os indivíduos possam participar de modo ativo e com igualdade de acesso dos procedimentos de decisão política. Por conseguinte, o status de insubmisso ao arbítrio de outrem só pode ser haurido da dedicação à coisa pública. Donde se nos afigura o corolário de que, para a perspectiva neorromana, o Estado, em vez de ser considerado um “monstro” a ser domado, constitui um conjunto de instituições feito pelos agentes e, mais importante, permeável às suas decisões. Na perspectiva neorromana, desaparece, pois, o antagonismo necessário entre indivíduos e Estado que a posição liberal parece cultivar. Nesse aspecto, precisamente, a versão neorromana do neorrepublicanismo reivindica sua diferença básica em relação ao liberalismo. Diferentemente do que este último defenderia, os neorromanos asseveram a possibilidade de articulação entre atuação do Estado e exercício da liberdade ético-política.

Ao contrário da vertente neoateniense de republicanismo, os neorromanos não sustentam que a participação cívica seja um “bem em si mesmo” ou mesmo “o bem mais importante” ao qual os indivíduos devem aspirar. A participação na coisa pública, por mais imprescindível que se afigure aos neorromanos, não constitui um ideal substantivo de boa vida. Pode até ser que alguns indivíduos façam da participação política seu ideal de bem viver, mas a perspectiva neorromana não se compromete com a busca de tal ideal enquanto principal objetivo da vida humana. A participação na coisa pública é absolutamente central, porém essa busca deve ser entendida como meio para que os indivíduos possam exercer status sociopolíticos garantidores de liberdade sociopolítica8 8 E essa é mais uma maneira de justificar a referência à república romana, para essa vertente de pensamento político: sustenta-se que no regime republicano romano houve a coexistência de uma pluralidade de culturas e etnias sob a égide da autoridade política existente. A participação na coisa pública, desse modo, seria a única forma de garantir a coexistência estável e harmoniosa de diferentes formas de vida. . De acordo com o que vimos anteriormente, o Princípio do Dano parece comprometer Mill estritamente com uma concepção liberal de liberdade. Entretanto, podemos agora indagar, essa seria a única (ou a melhor) interpretação possível para a noção de liberdade milliana?

3 O aspecto de ‘não dominação’ na concepção de liberdade milliana

Creio que seja possível divisar a relação de similitude entre republicanismo neorromano e a concepção de liberdade milliana examinando um pouco mais detidamente o que se considera o emblema do liberalismo de Mill: o próprio Princípio do Dano. David Brink, ao esmiuçar tal princípio, elenca algumas de suas características centrais. Duas dessas características são de interesse direto para meus propósitos aqui. Ao mencionar o que categoriza como a quarta característica do Princípio do Dano, Brink faz referência ao fato de Mill, ao apresentar esse princípio, estabelecer um traço demarcatório entre o que diz respeito ao indivíduo e o que não diz. Brink não somente faz referência a tal distinção problemática a que Mill parece subscrever, mas também oferece uma interpretação do Princípio do Dano que permite um encaminhamento produtivo para esse problema, bem como oferece ensejo para se iniciar uma leitura republicanista da filosofia prática de Mill. Ele afirma:

Sem dúvida, há trabalho a ser feito para explicar o princípio [do dano]. No entanto, exatamente enquanto explicamos esse princípio, Mill deixa claro que devemos entender [direcionar] o princípio do dano para enfocar os danos não consensuais, seja essa restrição explícita ou não (Brink, 2013BRINK, D. O. 2013. Mill’s Progressive Principles. Oxford: Claredon Press., p. 175).

O autor ainda oferece um exemplo para ilustrar essa interpretação:

Ter meu nariz quebrado certamente conta como um mal, mas se você quebrou meu nariz em uma luta de boxe, não posso me queixar justamente do dano, porque concordei com o risco. Em tais casos, há um sentido, talvez, de que alguém se machucou. No entanto, é importante garantir que o risco seja assumido livremente (Brink, 2013BRINK, D. O. 2013. Mill’s Progressive Principles. Oxford: Claredon Press., p. 175).

A separação entre o que diz respeito ao indivíduo e o que não diz respeito a ele (dizendo respeito a outros indivíduos e à sociedade, de um modo geral) é considerada problemática por Brink nos termos da rejeição normativa de danos não consensualmente assumidos. Com efeito, a interpretação do autor está em consonância com a posição que outro estudioso da filosofia prática de Mill, Ben Saunders, irá defender em um artigo publicado três anos depois da publicação do livro de Brink. Ben Saunders afirma que

Mill poderia ter defendido todas as conclusões que desejava se dissesse que a única razão legítima para a interferência é evitar danos não consensuais. Assim, nos concentramos no consentimento, em vez de tentar delinear uma esfera do que diz respeito somente ao indivíduo (Saunders, 2016SAUNDERS, B. 2016. Reformulating Mill’s Harm Principle. Mind, 25 (500): p. 1005-1032., p. 2).

A despeito de parecer haver discordância entre os dois estudiosos a respeito de se a concepção de evitar danos não consensuais estava (na visão de Brink) ou não (na visão de Saunders) explícita nos textos de Mill, suas formulações claramente convergem. E isso permite que se façam ao menos duas observações. A primeira observação diz respeito ao estatuto mesmo que a noção de “dano” deve adquirir no interior da teoria de Mill. Cumpre assinalar que, se se enfatiza que o que deve ser evitado é o dano não consensual, a discussão acerca da maneira pela qual é possível identificar um dano deve ser precedida pela discussão acerca de como e quais práticas, normas e ações podem ser cognominadas “não consensuais”. E isso leva a uma segunda e, para meus propósitos, mais importante observação que pode ser feita, a saber: que a não consensualidade repousa sobre a pressuposição de que agentes em interação social devem poder exercer o mesmo status sociopolítico com o fito de lhes permitir, em igualdade de condições, rejeitar danos não consensuais de que possam ser alvo.

Assim, os indivíduos, para evitar danos aos quais não se voluntariaram a sofrer, devem poder desfrutar do status de cidadãos efetivamente livres. Os agentes só poderão, pois, se submeter a danos aos quais voluntariamente se expõem se puderem exercer liberdade sociopolítica, ou, no dizer de Mill, liberdade civil ou social. E essa liberdade não poderia ser considerada nos termos de uma liberdade estritamente liberal, porque não estaria ancorada na rejeição da interferência factual pura e simplesmente, mas estaria fundada na resistência à interferência arbitrária por meio do exercício do status sociopolítico de cidadão livre. O exercício da liberdade, assim, vincula-se ao status de indivíduo que pode reivindicar ativamente, nas instituições normativas vigentes, a supressão de todo e qualquer dano ao qual não endosse; inclusive danos emanados das próprias autoridades políticas. O consenso enquanto critério para a aceitação normativa de danos pressupõe, em termos práticos, a concepção neorromana da liberdade como não dominação.

Usei acima a expressão “instituições normativas vigentes”. O uso dessa expressão pode dar a compreensão equivocada de que a tradição republicana de defesa da liberdade liga-se exclusivamente ao âmbito das instituições estatais, bem como se liga às relações entre indivíduos e Estados. É bem verdade que esse âmbito e relações constituem, historicamente, o âmbito e o tipo de relações que são, por excelência, atribuídos ao republicanismo. Essa atribuição possui plausibilidade se se leva em conta a história romana, desde a fundação da república no século VI a.C. A história do republicanismo está ligada à longa história da luta pela limitação da intromissão do arbítrio estatal na vida dos indivíduos, e está entretecida com a reivindicação de que o Estado deve ser totalmente permeável às reivindicações e ao poder decisório dos cidadãos. Essa longa história permite que se apresente a objeção segundo a qual o republicanismo está indissoluvelmente ligado à vigência de formas estatais como a do Estado-nação. Aqui seria oportuno mencionar a pertinência da distinção entre gênese histórica, por um lado, e validade normativa, por outro lado.

É de fato possível dizer que a tradição republicana adquiriu, ao longo dos séculos, uma espécie de afinidade eletiva com “formas estatais” (Estado romano, cidades-estados italianas). Entretanto, acredito que as reivindicações e postulados dessa vertente de pensamento político não se deixam restringir pela “forma Estado”, por assim dizer. Se considerarmos o republicanismo particularmente em sua versão neorromana, poderemos ver que a reivindicação por um status sociopolítico que imunize o agente contra a dominação de outros agentes ou instituições, não precisa se vincular a nenhuma forma estatal vigente ou que já tenha existido. A versão neorromana certamente estará vinculada a alguma forma de exercício de autoridade política, mas essa autoridade não precisa assumir, necessariamente, a forma institucional de uma cidade-estado como as da Antiguidade Clássica e do início da Modernidade, ou mesmo a de um Estado-nação nos moldes dos existentes na contemporaneidade.

A referência ao fato histórico da existência da república romana na Antiguidade pode obscurecer a consideração de que o republicanismo neorromano propõe uma regulação normativa entre agentes e autoridade política, bem como uma regulação de agentes entre si baseadas no exercício do status de indivíduos insubmissos ao arbítrio de outrem. É oportuno relembrar aqui que a relação arquetípica a que a tradição republicana se opõe é a relação entre senhor e escravizado. Tal relação pode ocorrer sem a participação direta do Estado (embora o Estado possa assumir o papel de garantidor desse tipo de relação interindividual). Essa lembrança é crucial para que tenhamos sempre presente que o republicanismo permite que se repudie a dominação de indivíduos sobre outros indivíduos, não importando se os indivíduos que pretendem subjugar os outros ocupem funções de poder político ou não. Esse ponto é importante. A tradição republicana, mais particularmente a vertente neorromana, se deixa ver nas formulações de Mill precisamente no fato de ele não restringir sua oposição à dominação ao âmbito do poder do Estado. Ao mencionar a terceira característica do Princípio do Dano, Brink afirma:

Terceiro, deve-se notar que Mill quer que o princípio do dano tenha um escopo amplo. Ele insiste que o princípio do dano regula mais que as relações entre o governo e os indivíduos. Sua aplicação deve incluir a família, em particular, relacionamentos entre maridos e esposas, e pais e filhos (Brink, 2013BRINK, D. O. 2013. Mill’s Progressive Principles. Oxford: Claredon Press., p. 174, grifo do autor).

O trecho acima permite que busquemos as formulações de Mill mais claramente comprometidas com o ideal republicano em uma obra que não costuma ser imediatamente associada à corrente republicana de pensamento político. Refiro-me à obra A Sujeição das Mulheres9 9 Ao se pensar em uma leitura republicana da filosofia de Mill, a obra que talvez venha à mente de modo imediato é Considerações Sobre o Governo Representativo (1981[1861]). Porém essa obra está claramente voltada à discussão das instituições estatais. Por mais importante que a obra supracitada seja para a discussão política, creio que a Sujeição das Mulheres exprime de modo mais preciso e característico o teor do republicanismo que pode ser entrevisto na filosofia prática de Mill. E isso se dá muito em função do enfoque na dimensão extra estatal da liberdade que caracteriza essa última obra. . Ao buscar nessa obra as mais claras e comprometidas elaborações feitas por Mill em favor de uma concepção neorromana de liberdade, sigo inicialmente a sugestão dada pelo próprio Brink, ao final do trecho reproduzido acima: “Aqui, ele prefigura algumas afirmações que desenvolverá na Sujeição das Mulheres” (Brink, 2013BRINK, D. O. 2013. Mill’s Progressive Principles. Oxford: Claredon Press., p. 174). Com efeito, sigo também e principalmente uma pista oferecida por Skinner. No prefácio de Liberdade antes do Liberalismo (2001[1998SKINNER, Q. 1998. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Editora UNESP .]), Skinner descreve o modo através do qual o ideal de liberdade republicana penetrou na cultura intelectual e política inglesa, no contexto das disputas entre monarquia e parlamento, ao longo do século XVII.10 10 Tema discutido na obra clássica de John Pocock, The Machiavellian Moment (1975). Mais importante para meus objetivos, contudo, é a indicação oferecida por ele, segundo a qual elementos do republicanismo teriam sobrevivido nos dois séculos seguintes, a ponto de ser possível identificar tais elementos republicanos em escritos de um filósofo do século XIX. Nas palavras de Skinner (2001SKINNER, Q. 1998. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Editora UNESP ., p. 09-10): “Alguns elementos [da tradição republicana] sobreviveram nos Seis Pontos dos Cartistas, na explicação de John Stuart Mill quanto à submissão das mulheres e em outras alegações em defesa dos dependentes e oprimidos”.

O ensaio A sujeição das Mulheres foi elaborado com apoio e colaboração de Harriet Taylor (1807-1858), companheira de Mill, e é usualmente definido como um libelo em defesa dos direitos das mulheres. Essa é, de fato, uma interpretação acertada. O ensaio também poderia ser descrito como uma defesa da preeminência do indivíduo sobre as tradições vigentes. Também seria uma descrição acertada, embora menos usual. Contudo, esse ensaio encerra em si, de acordo com o que Skinner sugere no prefácio de sua obra mencionada acima, elementos da tradição republicana11 11 Philip Pettit também correlaciona republicanismo e movimento feminista. Ele menciona muito brevemente os esforços feitos por Mill e por outras autoras da época moderna para defender a liberdade das mulheres. Pettit sustenta que tais esforços são totalmente compatíveis com a tradição republicana. Para mais, ver Republicanism: A Theory of Freedom and Government, 1997, p. 138-139. . Mais precisamente, elementos pertencentes à vertente neorromana de republicanismo. Em favor da tese da influência do pensamento republicano presente em A sujeição das mulheres, é possível apontar, especialmente no segundo capítulo do referido ensaio, as numerosas identificações que Mill estabelece entre a relação de escravidão (relação de dominação por excelência, para o pensamento republicano) e a relação conjugal entre marido e mulher. Mill não só compara a relação de subserviência a que as mulheres eram amiúde submetidas em sua época ao regime de escravidão, como também chega mesmo a dizer que, em determinados aspectos, a situação de servidão imposta às mulheres seria até pior do que a situação de escravizados. Mill afirma:

Não estou de modo algum a sugerir que as mulheres não sejam, de uma maneira geral, mais bem tratadas do que escravos; mas nenhuma escravatura vai tão longe, e num sentido tão pleno da palavra, como a da mulher. Dificilmente um escravo, excepto aquele que esteja diretamente ligado à pessoa do seu proprietário, é escravo em todas as horas e minutos do dia [...] (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 91).

Mill caracteriza, no trecho acima, a rotina das mulheres casadas e sua total devoção ao arbítrio e caprichos de seus “amos”. Mill chega a usar a expressão “escravatura doméstica” (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 95) para se referir à relação que se estabelece entre marido e mulher. Ao comparar a condição da mulher casada com a de um escravizado, Mill descreve o tema do republicanismo clássico, segundo o qual a falta ou supressão da liberdade pode ser divisada na situação de se estar submetida ao arbítrio de outrem. Em uma circunstância assim, a única forma possível de se exercer alguma liberdade, nos diz Mill, é buscar se submeter a um “bom amo”. Assim, argumenta o autor, ao considerar as benesses que adviriam da possibilidade de divórcio:

Já que toda a sua vida [vida das mulheres] está condicionada pela natureza do amo que conseguir arranjar, a natural sequência e corolário deste estado de coisas seria dar-lhe a possibilidade de mudar uma e outra vez até acertar num bom [...]. Tudo o que agora digo é que, para aqueles a quem só a servidão é permitida, a livre escolha dos seus amos será o único, ainda que muito insuficiente, lenitivo (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 93).

Deparamo-nos com o tema do senhor benevolente, em consonância com o que foi mencionado anteriormente. Ainda que seja dada à mulher a possibilidade de trocar de “amo”, ela poderá estar sempre à mercê dos humores, simpatias, caprichos, disposições afetivas e propósitos de seu “senhor”. Esse seria um “superior” que, no início da relação, poderia mostrar-se afável e transpirar bonomia. Porém, no decorrer do relacionamento, ele é capaz de abandonar a afabilidade. Ele pode, no início da relação, permitir que a mulher tenha ampla liberdade para, por exemplo, visitar amigos e parentes, para ir à igreja sozinha e para se vestir com as roupas que quiser. O “amo” benevolente poderia até mesmo, em um arroubo de magnanimidade, permitir que a mulher dedicasse algumas horas do seu dia a alguma prática de caridade.

Assim, essa mulher submetida a um “senhor” afável poderia não experimentar nenhuma restrição factual a seu curso cotidiano de ação. Ela poderia se sentir livre em sua relação com o marido benevolente. No entanto, a magnanimidade do “amo” poderia simplesmente diminuir ao longo do tempo, até acabar completamente. O “senhor”, então, retiraria todas as liberdades que concedera à esposa: da possibilidade de escolher as roupas que quisesse à oportunidade de sair de casa sem a sua permissão expressa. Tal situação exprimiria com clareza a assimetria de status entre os cônjuges. De acordo com o que o republicanismo neorromano sustenta, a inexistência de liberdade da mulher na ilustração feita acima já está evidente desde o período em que ela poderia acreditar que se beneficiava da bondade do marido. E isso justamente pelo fato de que a liberdade de que a mulher desfrutava se devia à “bondade” do marido: os status desiguais dos cônjuges permitem ao marido assumir a posição de “amo” e, portanto, permite que ele “conceda”, “restrinja” ou “retire” a liberdade factual de sua mulher como lhe convier. Mesmo com toda a liberdade para realizar várias atividades que se poderiam atribuir à própria vontade, a mulher, desde o início, estava submetida a uma relação de dominação exercida pelo marido.

Em tal circunstância, o domínio exercido pelo “senhor” pode instaurar uma relação de total dependência psicológica da “serva”. De modo que ela pode passar a estabelecer uma total identidade entre seus desejos e os de seu “amo”, com o fito de angariar uma vez mais sua magnanimidade. Mill evoca o exemplo da escravidão na Antiguidade para ilustrar esse ponto, afirmando que “Era bastante comum, tanto na Grécia como em Roma, os escravos preferirem deixar-se torturar até a morte a trair os seus senhores” (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 96). Para além da dinâmica psicológica complexa envolvida nas formas de identificação do servo com o seu amo, a “escravidão doméstica” apresentada e objetada por Mill se relaciona com a argumentação neorromana, justamente por expor a diferença de status entre os cônjuges. O que está em jogo na sujeição das mulheres aos homens (a seus pais, em uma primeira fase da vida, e a seus maridos, na fase seguinte) não é a maior ou menor liberdade em termos de ausência de interferência para seguir os cursos de ação que quiserem, mas sim a ausência da prerrogativa necessária para não estar submetida ao poder de outrem, para não submeter o exercício da própria liberdade às disposições afetivas de pais e maridos.

O que Mill descreve com a expressão “escravidão doméstica” é o que ele considera a relação paradigmática de dominação, e outras relações poderiam ser evocadas para caracterizar a dominação de um agente por outros, como a relação entre ocupantes de cargos políticos e eleitores. Tal relação seria o tipo que, de antemão, se evocaria para ilustrar a assimetria de status entre os agentes. Apesar de estabelecer uma relação de identidade entre o “despotismo doméstico” e o “despotismo político” quando afirma que “Não há nenhum argumento a favor do despotismo familiar que não se possa também aplicar ao despotismo político” (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 95), o autor acerta ao fazer das relações conjugais o alvo de sua crítica às relações de dominação. Essas relações se constituiriam, com efeito, no grande entrave ao exercício pleno da liberdade ético-política. De acordo com o que afirmei anteriormente, isso permite desvincular conceitualmente a proposta normativa republicana, em sua vertente neorromana, da esfera estritamente estatal. Permite também desvincular essa proposta normativa até mesmo do âmbito político, propriamente - ao menos do âmbito da política especificamente institucional. Não que a proposta neorromana não se vincule também ao âmbito da política institucional e ao do Estado; porém, ao concentrarmos nossa atenção em relações domésticas, é possível evidenciar a amplitude da proposta republicana de vertente neorromana. O ponto central da proposta é a defesa de status iguais para os agentes, de modo que ninguém possa ser submetido pelo arbítrio de outrem. Mill, ao mencionar os benefícios da adoção de status iguais pelos indivíduos (homens e mulheres), afirma:

Mas seria um grave menosprezo do fulcro da questão omitir o benefício mais direto de todos: o incomensurável ganho em felicidade individual resultante da libertação de metade da espécie humana - a diferença para as mulheres entre uma vida de sujeição à vontade dos outros e uma vida de liberdade racional (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 215).

Em outro trecho, ele escreve que:

[...] de todas as lições de que os homens precisam para prosseguir a luta contra as inevitáveis imperfeições do seu destino na Terra, nenhuma lhes será mais necessária do que a de aprenderem a não agravar os males que a natureza inflige com as restrições que, por rivalidade e preconceito, se impõem uns aos outros (Mill, 2006MILL, J. S. 2006. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina., p. 225).

Tais trechos permitem a interpretação segundo a qual, se considerarmos pares de relações potencialmente assimétricas, por exemplo: patrões e empregados, adultos e crianças, jovens e idosos, professores e alunos, brancos e negros (em sociedades que experimentaram a escravidão negra, na época moderna), homens e mulheres, ricos e pobres, representantes e representados políticos etc., poderemos depreender que a assimetria potencial aí subsistente só poderá ser neutralizada por meio do exercício de um status sociopolítico igual.12 12 Poderíamos incluir ainda outras relações, como a paradigmática e já mencionada relação entre senhor e escravizado e a relação entre animais humanos e não humanos. Nesse último tipo de relação, bem como na relação entre crianças e adultos e na relação entre pessoas sem e com deficiências “mentais” severas, o exercício de status igual deveria ocorrer de modo indireto, ou seja, representantes ou tutores deveriam assumir o papel de reivindicadores para o exercício da liberdade das partes mais vulneráveis. Por questão de delimitação de escopo, não poderei abordar no artigo esse problema complexo. De que maneira, poder-se-ia perguntar, um status que, a princípio, deveria resguardar os indivíduos no âmbito do embate político (considere a palavra “político”, na expressão) poderia proteger a mulher na esfera das relações privadas? Aqui é oportuno mencionar a importância do termo “sócio”, que constitui a expressão. Falar em atribuição recíproca de status sociopolítico significa mencionar, primeiramente, a atribuição recíproca que os indivíduos podem fazer uns aos outros, recorrendo às instituições políticas e jurídicas, mas cujo escopo é mais amplo do que o contexto das instituições mencionadas propriamente. O escopo pode, evidentemente, abarcar relações interindividuais de outras áreas como as relações domésticas e as relações “contratuais”.

Considere o caso da assimetria em potencial entre patrão e empregado. Imagine que em um determinado país com milhões de pessoas desempregadas o governo resolva flexibilizar enormemente as relações trabalhistas, conferindo um peso quase que total às livres negociações entre patrões e empregados em detrimento de leis que regulem tais relações. Nesse cenário totalmente hipotético, podemos imaginar a negociação entre um patrão e um empregado, envolvendo duas opções que o patrão ofereceria ao seu funcionário: ao funcionário poderia ser oferecida a opção de passar a receber a metade do valor do salário que recebera até então, ou a opção de ser desligado do quadro de funcionários da empresa. Não é difícil imaginarmos, sem nem mesmo fazer ilações sobre eventuais dilemas financeiros pelos quais o empregado do exemplo poderia estar passando, qual opção ele muito provavelmente escolheria. Não é possível dizer que, nesse caso, não houve negociação. Houve de fato uma negociação entre patrão e empregado. O empregado pôde escolher “livremente” entre duas opções que lhe foram apresentadas. Com efeito, tal negociação não se deu em igualdade de condições. Tal negociação ocorreu em condições claramente assimétricas.

Obviamente, seria no mínimo temerário atribuirmos a escolha dilemática com a qual o empregado foi confrontado a um determinado traço de caráter do patrão. O patrão, com efeito, poderia não ser considerado uma pessoa “perversa” e não é difícil imaginar que sua decisão estivesse orientada por considerações de ordem estritamente pragmática, como o corte de despesas para permitir o equilíbrio orçamentário e, assim, a “sobrevivência” da empresa. Contudo, esse exemplo tem o intuito de ilustrar uma consequência social possível advinda do fato de pessoas desfrutarem de posições desiguais, em circunstâncias de negociação contratual, por exemplo. O exercício de um status sociopolítico desigual pode colocar o indivíduo em situações flagrantemente danosas, em decorrência de mudanças nos contextos sociais, econômicos e até mesmo em decorrência de mudanças no “humor” daqueles que detêm posição de “superioridade social”. Assim, a exigência de um status sociopolítico igual implica poder exigir das instituições normativas alguma garantia ou proteção nos casos em que as circunstâncias possam aumentar o grau de vulnerabilidade social de certos grupos, por exemplo.

A concepção de liberdade política por meio da atribuição recíproca de status sociopolíticos iguais permite, em segundo lugar, que tratemos as instituições políticas e jurídicas enquanto dimensões da vida social e não como externalidades potencialmente deletérias a tal vida. Isso significa que essas instituições devem não somente ser permeáveis às reivindicações advindas da esfera pública (dimensão identificada à esfera não subsumível ao Estado, embora não completamente apartada deste), como também devem ser elas próprias (justamente em função de tal permeabilidade) promotoras das condições sociais para que todos possam se manifestar, propor e apresentar reivindicações de forma equânime, no âmbito do debate público. As condições sociais mencionadas acima são totalmente incompatíveis com a restrição de alguém a um status “inferior”, em razão do qual se está, de alguma maneira, à mercê do arbítrio de outrem. A concepção de liberdade que Mill defende de modo particularmente claro e enfático em A Sujeição das mulheres está em consonância com a concepção de “liberdade como não dominação” formulada por Philip Pettit em nossos dias. A expressão “liberdade como não dominação” equivale à ideia de se atribuir status sociopolítico igual para todos os indivíduos, de modo que suas “vozes” possam ser efetivamente ouvidas e atendidas pelas instituições, de modo que nenhum outro indivíduo ou mesmo tais instituições possam calá-la.

Tenho usado a expressão “atribuição de status” para caracterizar a concepção de liberdade ético-política milliana, mas podemos falar também em “auto atribuição” de status sociopolítico igual pelos próprios indivíduos. Isso porque é pertinente que enfatizemos, uma vez mais, que esse status é conquistado pela ação dos indivíduos na sociedade. Nesse registro, as instituições constituem instrumentos imprescindíveis (mas não mais do que instrumentos) para a implementação e garantia da distribuição igualitária de tal status. Mill, portanto, advoga que todos devemos exercer um status sociopolítico que nos permita viver ao abrigo da tutela arbitrária de outros indivíduos e de instituições. No livro Utilitarismo, Mill expressa isso da seguinte maneira:

Ora, uma sociedade de seres humanos - exceto na relação de senhor e escravo - é manifestamente impossível se não repousar no princípio de que os interesses de todos serão consultados. Uma sociedade de iguais só pode existir se houver a compreensão de que os interesses de todos devem ser igualmente respeitados. E posto que, em todos os estados de civilização, qualquer pessoa, exceto um monarca absoluto, tem seus iguais, cada uma está obrigada a viver com alguém nesses termos. Além disso, há em todas as épocas um certo avanço em direção a um estado em que será impossível viver permanentemente com todos os demais em termos diferentes desses (Mill, 2000MILL, J. S. 2000. O Utilitarismo. São Paulo: Iluminuras., p. 56-57).

Desse modo, é possível sugerir, a partir da consideração do trecho acima, que Mill reputa a relação entre senhor e escravizado (e relações assimétricas de toda sorte, podemos depreender) como antitética a uma sociedade de seres humanos. Vale dizer, Mill vincula diretamente, ainda considerando o excerto acima, os progressos civilizatórios da espécie humana às formas de tratamento igualitário que os indivíduos são capazes de dirigir uns aos outros13 13 Mill possui uma concepção de natureza humana que a caracteriza como a de seres capazes de se auto aperfeiçoarem no curso do tempo. Mill, portanto, defende uma concepção perfeccionista de natureza humana. Ver, de David Brink, Mill’s Progressive Principles (2013), e de Don Habibi, John Stuart Mill and the Ethics of Human Growth (2001). Não é objetivo deste artigo, no entanto, tratar desse traço da teoria normativa milliana. . Assim, é sensato reiterar que o lócus do qual Mill preconiza que emergirá o desenvolvimento da espécie humana será formado pela adoção de um processo formativo por meio do qual os indivíduos aprenderão a cultivar suas potencialidades e, principalmente, pelo exercício de status sociopolítico que permita a todos os indivíduos propor, examinar, endossar e rejeitar (completa ou parcialmente) as regras de natureza ético-política as quais estarão submetidos. Não importando, em última instância, se essas regras advierem e se dirigirem a uma pequena comunidade autogestionada de viés anarquista, de um Estado multiétnico e multinacional ou mesmo de um Estado mundial (implicação que não foi feita por Mill).

Com efeito, convém perguntar, neste momento, a respeito do que venho designando, à luz das formulações neorromanas atribuídas a Mill, “status sociopolítico”. O que significa dizer que Mill pressupõe o exercício de um tal status quando, no segundo capítulo de Sobre a Liberdade, exorta ao livre embate de argumentos, propostas e ideias no âmbito público; ou quando, em A Sujeição das mulheres, defende que nenhum indivíduo deve estar sob domínio de outro indivíduo? De que modo poderíamos entender o status que estaria sendo pressuposto em tais argumentações de Mill? Creio que uma maneira plausível de precisar um pouco mais a ideia de “status sociopolítico” pressuposta na concepção de “liberdade civil ou social” defendida por Mill seria evocar a ideia de “direitos” 14 14 A interpretação republicanista de Mill que empreendo neste texto confere centralidade normativa ao conceito de “direitos”, em vez de conceder primazia à concepção de “virtudes”, tradicionalmente associada ao republicanismo. Tal centralidade subsiste, a meu ver, tanto na concepção milliana quanto na neorromana de liberdade. Evidentemente, os direitos são pensados aqui como frutos do exercício político ativo dos cidadãos e, nesse sentido, guardam estreita conexão com alguma concepção de virtudes de participação política. Em função dos objetivos deste texto, não abordarei essa importante questão aqui. Para uma investigação do estatuto das virtudes na filosofia de Mill, ver, de Bernard Semmel, John Stuart Mill and the Pursuit of Virtue (1984). . É claro que Mill, enquanto empirista e filósofo pertencente à tradição utilitarista, rejeita a ideia de direitos individuais inatos. Em consonância com o que ele mesmo diz: “A propósito, rejeito qualquer vantagem que poderia ser derivada para meu argumento da ideia de direitos abstratos [naturais] como algo independente da utilidade” (Mill, 2010RAWLS, J. 2011. O Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes., p. 51). Mill sustenta uma concepção mais ampla do que a concepção de utilidade de Bentham, por exemplo. Mas o teor da argumentação contido no trecho reproduzido acima é o mesmo, tanto na perspectiva de Mill quanto na de seu mestre: a ideia de que direitos individuais “existem” independentemente de uma estrutura legal (estrutura estatal, portanto) que os crie e ampare é totalmente equívoca.

Contudo, mesmo rejeitando a ideia de que direitos seriam tipos de entidades que os indivíduos simplesmente possuiriam, independentemente de governos e mesmo de contextos sociais, Mill não rejeita a ideia mesma da existência de direitos, que os indivíduos devem poder exercer. Do mesmo modo que Bentham, Mill entende que a implementação e exercício de direitos devem-se à ação de Estados. É o Estado que “afiança”, ao menos inicialmente, o exercício de direitos. No entanto, na perspectiva de Mill, há uma relação mais dialética (em comparação do que aquela existente em Bentham) entre a prerrogativa do Estado de conceder direitos e o exercício desses direitos pelos agentes. Exercício esse que permite tornar o Estado permeável às suas reivindicações e, no limite, até mesmo desvincular o exercício de direitos da “forma estado”, de acordo com o que mencionei anteriormente ao falar da conexão entre concepção republicana e estado-nação.

Assim, na perspectiva de Mill, os direitos cedidos pelo Estado podem e devem incluir, além dos direitos liberais clássicos estabelecidos originariamente por Locke e outros filósofos no início da época moderna15 15 John Locke é considerado um dos primeiros formuladores da ideia de direitos naturais, em seu Segundo Tratado sobre O Governo Civil (2001[1689]). , também os chamados direitos de participação política e até mesmo direitos sociais16 16 Recorro nesse trecho do artigo, ao usar as expressões “direitos liberais clássicos”, “direitos de participação política” e “direitos sociais”, à faseologia do sociólogo britânico T. H. Marshall (1893 - 1981). De acordo com tal faseologia, o exercício da cidadania no ocidente se desenvolveu em três “estágios” caracterizados, respectivamente, pelo exercício de três gerações de direitos: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais. Ver, de Marshall, a obra Cidadania, Classe Social e Status (2021[1950]). . Na perspectiva de Mill, os chamados direitos políticos devem poder ser considerados direitos centrais disponíveis a todos os indivíduos. Desse modo, investidos da prerrogativa de poderem participar amplamente no processo de tomada de decisão da coletividade a qual pertencem, os indivíduos conseguiriam, a um só tempo, garantir um ambiente público no qual todos pudessem debater e conduzir suas vidas particulares do modo mais irrestrito possível, e assegurar que todos pudessem estar ao abrigo do domínio de outros indivíduos, de outros grupos sociais e mesmo do próprio Estado. Se dirigirmos nossa atenção mais uma vez para o tema da “escravidão doméstica”, veremos como isso poderia ocorrer.

A garantia de direitos civis para as mulheres só poderia ser consolidada se as mulheres lograssem participar mais diretamente do processo decisório. Isso significa que, para obliterar a situação de subjugação social de que são vítimas, as mulheres teriam de conquistar direitos políticos. Direitos não somente de votar (causa com a qual Harriet e Mill estavam efetivamente comprometidos), mas também o de serem “votadas”, ou seja, direitos de ocuparem cargos públicos. Tais cargos, evidentemente, não deveriam se restringir ao parlamento, mas também abranger o executivo e o judiciário. Somente com um grau elevado de participação nas instituições públicas (em todas as suas instâncias e esferas) as mulheres poderiam aspirar a uma vida de insubmissão social, uma vida na qual poderiam ambicionar o que quisessem, sem precisar da permissão de um senhor benevolente17 17 No contexto brasileiro, o PL 1.951/2021, que estabelece cotas para mulheres nas eleições proporcionais, constitui medida importante (embora claramente insuficiente) para tentar ampliar a participação e a representatividade política das mulheres. .

A relação dialética entre Estado e sociedade mencionada anteriormente se deixa ver aqui no fato de o próprio Estado oferecer os meios institucionais para que os indivíduos possam se subtrair às ações arbitrárias por parte do Estado e, podemos inferir, por parte de qualquer configuração institucional (não despótica ou arbitrária) que a autoridade política venha a assumir no decurso do tempo. Por conseguinte, é razoável afirmar que o status sociopolítico que Mill propõe para todos os indivíduos pode ser descrito em termos do exercício efetivo de direitos políticos de participação na coisa pública.18 18 Essa participação, com efeito, não deveria se circunscrever somente às possibilidades efetivas de votar e ser votado, mas também formas de participação política mais diretas (embora isso não signifique necessariamente a substituição da democracia representativa pela democracia direta) por meio da realização regular e estímulos à participação em referendos, plebiscitos e projetos de lei de iniciativa popular, por exemplo. Pettit pensa em mecanismos institucionais para barrar o poder arbitrário do Estado através da instituição de “vetos” populares. Ele chama isso de “democracia contestatória”. Ver especialmente a parte II de seu Republicanism: A Theory of Freedom and Government (1997). A capacidade de influenciar os rumos da coletividade que todos os indivíduos devem possuir de forma equânime seria, fundamentalmente, a garantia contra o exercício de relações de dominação de qualquer natureza.

Isso permite asseverar que Mill (do mesmo modo que os teóricos neorromanos da contemporaneidade) não faz da participação na coisa pública um modelo de boa vida, mas sim instrumento imprescindível para que o indivíduo não seja objeto da dominação de outros indivíduos e da autoridade política. Seria razoável, pois, sugerir que a concepção de liberdade esposada por Mill não é uma concepção liberal - negativa ou liberdade como não interferência em sentido estrito - tal como Berlin descreve e atribui a pensadores da história da tradição liberal. Nas palavras de Berlin:

Diz-se normalmente que alguém é [negativamente] livre na medida em que nenhum outro homem ou nenhum grupo de homens interfere nas atividades desse alguém. A liberdade política nesse sentido é simplesmente a área em que um homem pode agir sem sofrer a obstrução de outros. (Berlin, 1981BERLIN, I. 1981. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB., p. 136).

Don Habibi, ao discorrer sobre a concepção de liberdade em Mill, rejeita a inclusão do discípulo de Bentham, feita por Berlin, no elenco de autores comprometidos com uma concepção negativa de liberdade. Em suas palavras:

No entanto, o retrato de Mill por Berlin é inadequado e, em última instância, equivocado. Ele ignora completamente aspectos essenciais da teoria da liberdade de Mill, não estabelecendo nenhum exemplo de liberdade positiva nos escritos de Mill (Habibi, 2001HABIBI, D. A. 2001. John Stuart Mill and the Ethics of Human Growth. New York: Springer., p. 123).

Ou também:

Como Berlin interpreta as tensões entre liberalismo e autoritarismo como correspondentes às diferenças entre concepções negativas e positivas de liberdade, respectivamente, é fácil ver por que ele consideraria Mill um liberal libertário negativo [...]. No entanto, ele não era um especialista em John Stuart Mill. O ensaio ‘Two Concepts’, embora repleto de referências a Mill, está preocupado com a ideia geral de liberdade, não com a versão particular de Mill sobre ela (Habibi, 2001HABIBI, D. A. 2001. John Stuart Mill and the Ethics of Human Growth. New York: Springer., p. 124).

O autor então oferece uma caracterização da concepção ético-política da liberdade em Mill, a qual identifica como uma forma de liberdade positiva:

Sua concepção de liberdade, então, inclui noções de ‘autocontrole’ e ‘autodomínio’. Inclui também uma noção de ‘auto-realização’. De acordo com Mill, para viver sob condições de liberdade, as pessoas devem ser capazes de preencher as possibilidades de sua personalidade e seu caráter que consideram valiosos (Habibi, 2001HABIBI, D. A. 2001. John Stuart Mill and the Ethics of Human Growth. New York: Springer., p. 129).

Ele sintetiza de modo bastante plausível a concepção de liberdade política de Mill ao afirmar que “A liberdade é, nesse sentido, um pré-requisito para dar às pessoas a melhor chance de cultivar e refinar suas capacidades humanas” (p. 136) e aponta a conexão entre exercício da liberdade política e a possibilidade de desenvolvimento humano na filosofia prática de Mill, o que está correto. Não obstante, a interpretação de Habibi parece se comprometer com a ideia de que o perfeccionismo preconizado por Mill faz com que ele - Mill - sustente uma espécie de liberdade positiva, ou seja, uma concepção de liberdade que faz da participação na coisa pública o objetivo último da vida humana. Discordo dessa interpretação: a meu ver, a concepção de liberdade política de Mill se assemelha à concepção de liberdade do republicanismo neorromano de Pettit. E isso faz da concepção milliana de fato um tipo de concepção negativa de liberdade. No entanto, em consonância com a teoria normativa de Pettit, essa concepção negativa não equivale à perspectiva de liberdade como não interferência, atribuída ao liberalismo, mas sim, em consonância com o que vimos, ao ideal de liberdade como não dominação.

4 Conclusão

Na filosofia prática de Mill podemos ver que o exercício da liberdade não se restringe à supressão de interferências ao curso de ação do indivíduo. Há, em sua teoria uma compreensão de que o exercício da liberdade reclama fundamentalmente o exercício de um status que faculte ao agente não estar sob o arbítrio de outrem, seja ele um indivíduo, um grupo de indivíduos ou uma instituição. Tal compreensão aproxima a teoria da liberdade ético-política de Mill da teoria neorromana de liberdade. Mill decerto pode ser plausivelmente considerado um autor ligado à tradição liberal. Isso fica patente se considerarmos a defesa da preeminência normativa do indivíduo sobre tradições e injunções sociais, contida em seu Princípio do Dano. Contudo, o liberalismo de Mill engloba a preocupação do republicanismo neorromano, que se contrapõe menos aos obstáculos factuais ao exercício de cursos de ação do que à impossibilidade de se exercer o status que permita não se estar à mercê do arbítrio alheio. Esse status, de acordo com o que disse acima, pode ser descrito especialmente nos termos do exercício de direitos políticos ativos.

Por assumir um tipo de liberalismo que se compromete com a centralidade da participação política para a fruição da vida particular, e mesmo para a fruição da liberdade no interior da vida privada, creio que a concepção de liberdade milliana possa ser considerada similar à concepção de liberdade do republicanismo neorromano. Neste ponto, entretanto, seria razoável perguntar: a concepção de liberdade negativa do liberalismo só poderia ser descrita (de acordo com o que é afirmado pela teoria de Philip Pettit) como ausência de interferência factual externa aos cursos de ações do indivíduo? Há de fato uma diferença substancial entre as teorias liberal e neorromana de liberdade? Responder a essas pertinentes indagações extrapolaria o escopo do presente artigo e reclamaria a elaboração de um texto a respeito.

Referências

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  • MILL, J. S. 2000. O Utilitarismo São Paulo: Iluminuras.
  • MILL, J. S. 2010. Sobre a liberdade São Paulo: Hedra.
  • 1
    Liberalismo, a rigor, compreende uma família de teorias políticas. As diferentes vertentes do liberalismo foram elaboradas ao longo dos últimos três séculos. Em linhas muito gerais, é possível caracterizar as diferentes teorias liberais pela defesa que fazem da preeminência moral do indivíduo sobre os ditames da tradição e da coletividade. Ver, de J. B. Schneewind, A Invenção da Autonomia (2005SCHNEEWIND, J. B. 2005. A invenção da autonomia. São Leopoldo: UNISINOS.[1998]), especificamente as seções IV e V do segundo capítulo. Ver também, de Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno (2017SKINNER, Q. 2017. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras.[1978]), especificamente a parte quatro (capítulos 10,11 e 12).
  • 2
    Ver, enquanto expressão emblemática dessa asserção crítica, The Procedural Republic and the Unencumbered Self (1992SANDEL, M. 1992. The procedural republic and the unencumbered self. In: AVINERI, S.; DE-SHALIT, A. (Orgs.). Communitarism and individualism. Oxford: Oxford University Press .), ambos de Michael SandelSANDEL, M. 2005. Liberalismo e os limites da justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian..
  • 3
    Muitos autores e autoras, no começo do século XX, já criticavam o liberalismo e exortavam a uma vida comunitária mais exigente, por assim dizer. Ver, por exemplo, de Hannah Arendt (1906-1975), A Condição Humana (2007[1958]); e ver, de G. E. M. Anscombe (1919-2001), o artigo clássico Modern Moral Philosophy (1958). Mas tais autores e autoras não lograram formar uma vertente claramente identificável de republicanismo, na contemporaneidade.
  • 4
    Nesse ponto, há uma importante controvérsia historiográfica entre dois estudiosos eminentes. Quentin Skinner afirma que tal ressurgimento teria ocorrido nos séculos XII e XIII, ao passo que Hans Baron (1900 - 1988) afirmou que o reinício se deu nos séculos XIV e XV. É quase desnecessário dizer que não objetivo abordar tal questão neste artigo.
  • 5
    Existem duas tradições de republicanismo defendidas na atualidade. Aristóteles é considerado o originador do que se cognomina versão neoateniense do republicanismo. A referência histórico-geográfica evidente é à cidade-estado grega, especialmente ao período áureo de sua democracia, sob Péricles (495~492 a.C.-429 a.C.). O republicanismo neoateninese, também conhecido como humanismo cívico, consiste, grosso modo, na tese segundo a qual Aristóteles teria sistematizado e expressado à perfeição o modo de vida e a concepção política de uma comunidade republicana ideal: o modelo de democracia existente em Atenas no século V a.C. Subjaz a esse modelo de comunidade política a concepção de natureza humana oferecida por Aristóteles em sua Política, qual seja, a figura do ser humano como Zoon Politikon (animal político). Isso significa que, para essa vertente de republicanismo, o ser humano só realizaria plenamente sua natureza ao participar ativamente da vida política de sua comunidade.
  • 6
    Como se sabe, Hobbes, no capítulo XXI do Leviatã (1983HOBBES, T. 1983. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Abril Cultural.[1651]), apresenta sua concepção de liberdade nos seguintes termos: “Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais.” (Hobbes, 1983HOBBES, T. 1983. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Abril Cultural., p. 129). Essa passagem, portanto, seria o fundamento da concepção liberal de liberdade, para os teóricos neorromanos.
  • 7
    O Digesto (533 d.C.), codificação do direito romano realizada por Justiniano (527-565 d.C.), constitui a fonte da concepção republicana segundo a qual a relação entre senhor e escravizado representa a relação de dominação por excelência. Nas palavras de Skinner (1998SKINNER, Q. 1998. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Editora UNESP ., p. 42): “O conceito de escravidão é inicialmente discutido no Digesto sob a rubrica De statu hominis, onde nos é dito que a distinção mais fundamental do interior do direito das gentes é entre aqueles que são livres e aqueles que são escravos”.
  • 8
    E essa é mais uma maneira de justificar a referência à república romana, para essa vertente de pensamento político: sustenta-se que no regime republicano romano houve a coexistência de uma pluralidade de culturas e etnias sob a égide da autoridade política existente. A participação na coisa pública, desse modo, seria a única forma de garantir a coexistência estável e harmoniosa de diferentes formas de vida.
  • 9
    Ao se pensar em uma leitura republicana da filosofia de Mill, a obra que talvez venha à mente de modo imediato é Considerações Sobre o Governo Representativo (1981[1861]). Porém essa obra está claramente voltada à discussão das instituições estatais. Por mais importante que a obra supracitada seja para a discussão política, creio que a Sujeição das Mulheres exprime de modo mais preciso e característico o teor do republicanismo que pode ser entrevisto na filosofia prática de Mill. E isso se dá muito em função do enfoque na dimensão extra estatal da liberdade que caracteriza essa última obra.
  • 10
    Tema discutido na obra clássica de John Pocock, The Machiavellian Moment (1975POCOCK, J. 1975. The Machiavellian Moment. New Jersey: Princeton University Press.).
  • 11
    Philip Pettit também correlaciona republicanismo e movimento feminista. Ele menciona muito brevemente os esforços feitos por Mill e por outras autoras da época moderna para defender a liberdade das mulheres. Pettit sustenta que tais esforços são totalmente compatíveis com a tradição republicana. Para mais, ver Republicanism: A Theory of Freedom and Government, 1997PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press., p. 138-139.
  • 12
    Poderíamos incluir ainda outras relações, como a paradigmática e já mencionada relação entre senhor e escravizado e a relação entre animais humanos e não humanos. Nesse último tipo de relação, bem como na relação entre crianças e adultos e na relação entre pessoas sem e com deficiências “mentais” severas, o exercício de status igual deveria ocorrer de modo indireto, ou seja, representantes ou tutores deveriam assumir o papel de reivindicadores para o exercício da liberdade das partes mais vulneráveis. Por questão de delimitação de escopo, não poderei abordar no artigo esse problema complexo.
  • 13
    Mill possui uma concepção de natureza humana que a caracteriza como a de seres capazes de se auto aperfeiçoarem no curso do tempo. Mill, portanto, defende uma concepção perfeccionista de natureza humana. Ver, de David Brink, Mill’s Progressive Principles (2013BRINK, D. O. 2013. Mill’s Progressive Principles. Oxford: Claredon Press.), e de Don Habibi, John Stuart Mill and the Ethics of Human Growth (2001HABIBI, D. A. 2001. John Stuart Mill and the Ethics of Human Growth. New York: Springer.). Não é objetivo deste artigo, no entanto, tratar desse traço da teoria normativa milliana.
  • 14
    A interpretação republicanista de Mill que empreendo neste texto confere centralidade normativa ao conceito de “direitos”, em vez de conceder primazia à concepção de “virtudes”, tradicionalmente associada ao republicanismo. Tal centralidade subsiste, a meu ver, tanto na concepção milliana quanto na neorromana de liberdade. Evidentemente, os direitos são pensados aqui como frutos do exercício político ativo dos cidadãos e, nesse sentido, guardam estreita conexão com alguma concepção de virtudes de participação política. Em função dos objetivos deste texto, não abordarei essa importante questão aqui. Para uma investigação do estatuto das virtudes na filosofia de Mill, ver, de Bernard Semmel, John Stuart Mill and the Pursuit of Virtue (1984SEMMEL, B. 1984. John Stuart Mill and the Pursuit of Virtue. New Haven: Yale University Press.).
  • 15
    John Locke é considerado um dos primeiros formuladores da ideia de direitos naturais, em seu Segundo Tratado sobre O Governo Civil (2001LOCKE, J. 2001. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes.[1689]).
  • 16
    Recorro nesse trecho do artigo, ao usar as expressões “direitos liberais clássicos”, “direitos de participação política” e “direitos sociais”, à faseologia do sociólogo britânico T. H. Marshall (1893 - 1981). De acordo com tal faseologia, o exercício da cidadania no ocidente se desenvolveu em três “estágios” caracterizados, respectivamente, pelo exercício de três gerações de direitos: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais. Ver, de Marshall, a obra Cidadania, Classe Social e Status (2021MARSHALL, T. H. 2021. Cidadania, Classe Social e Status. São Paulo: Editora UNESP.[1950]).
  • 17
    No contexto brasileiro, o PL 1.951/2021, que estabelece cotas para mulheres nas eleições proporcionais, constitui medida importante (embora claramente insuficiente) para tentar ampliar a participação e a representatividade política das mulheres.
  • 18
    Essa participação, com efeito, não deveria se circunscrever somente às possibilidades efetivas de votar e ser votado, mas também formas de participação política mais diretas (embora isso não signifique necessariamente a substituição da democracia representativa pela democracia direta) por meio da realização regular e estímulos à participação em referendos, plebiscitos e projetos de lei de iniciativa popular, por exemplo. Pettit pensa em mecanismos institucionais para barrar o poder arbitrário do Estado através da instituição de “vetos” populares. Ele chama isso de “democracia contestatória”. Ver especialmente a parte II de seu Republicanism: A Theory of Freedom and Government (1997PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2022
  • Aceito
    17 Ago 2023
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