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Verdade e justiça em Emmanuel Levinas

Truth and Justice in Emmanuel Levinas

RESUMO

Para se abordar a questão da verdade, no pensamento de Levinas, faz-se necessário procurar antes o seu fundamento que, na ética como filosofia primeira, é a justiça. Em seguida, é preciso fazer o caminho da fenomenologia levinasiana em diálogo com as fenomenologias de Husserl e Heidegger, além de passar pelo modo como Kierkegaard compreende ética. Levinas busca o Sentido dos sentidos, distanciando-se de Husserl para quem o sujeito é a fonte de todo sentido; mas também se distanciando da ontologia de Heidegger que opera uma redução de tudo ao ser, suprimindo a exceção do Outro. Se Kierkegaard descobriu a interioridade como marca indelével da subjetividade que recusa se perder na obra da totalização, ele não consegue escapar de outra violência que não compreende a exterioridade como vindo de fora de todo Sistema, deixando o ético se perder no geral. A relação ética, tal como Levinas a compreende, é, ao contrário, uma relação de único a único. A significação primeira da Verdade é de ordem ética e não se entende senão em relação com a justiça - retidão do face a face - que a ontologia traduzirá tardiamente como verdade que se mostrará no ser.

Palavras-chave:
verdade; justiça; ética; ontologia; Levinas

ABSTRACT

To discuss the question of truth in Levinas’ thought, it is necessary to search first its fundament which, in a philosophy which claims ethics as first philosophy, is Justice. Second, it is necessary to make the same way done by Levinas’ phenomenology in dialogue with Husserl and Heidegger, beside taking also into consideration the way Kierkegaard comprehends ethics. This article shows Levinas’ search for the meaning of meanings, taking distance from Husserl for whom the subject is the source of all meanings, but also taking distance from Heidegger’s ontology which operates the reduction of all to being, suppressing Other´s exception. If Kierkegaard discovered interiority as a characteristic of subjectivity which refuses to get lost in the work of totalization, he cannot escape of another violence that does not comprehend exteriority as coming from dehors of all system, letting ethics get lost in the general. Ethical relation, is, on the contrary, a relation of an unique to an unique. The first truth, then, belongs to ethics that offers itself as a first signification and cannot be understood but in relation with Justice which ontology will translate too late as truth that will show itself in being. The first signification, for Levinas, is then ethical.

Keywords:
truth; justice; ethics; ontology; Levinas

1 Introdução

Para falar da verdade na filosofia da alteridade de Levinas, é preciso atentar para algumas peculiaridades de seu pensamento, antes de colocar a questão. Inicialmente, parte-se do pressuposto de que a verdade não é a questão primeira de sua filosofia, uma vez que esta se torna a questão premente da filosofia como ontologia. Levinas, ao contrário, clama a ética como filosofia primeira, o que exige situar a verdade sobre um outro fundamento que, nesse caso, é a justiça ou a retidão do face a face, tal como nosso filósofo a entende. “A verdade supõe a justiça”, diz Levinas (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 76). Não poderíamos abordar a questão da verdade, sem levar em consideração uma das noções-chave da filosofia levinasiana da alteridade que é a do Rosto (visage), a figura que, em sua filosofia, melhor diz o humano.

2 Fenomenologia do Rosto

O Rosto, para Levinas, não é fenômeno e por isso não é um conteúdo ou uma ideia. Ele designa, ao contrário, um comando moral que escapa a meu poder, não podendo jamais ser apreendido pela consciência. Nessa condição, ele não pode ser um conteúdo da consciência, elaborado por ela, tampouco se apresenta como diferença específica em relação ao eu, mas como uma força ética que me afeta, no face a face, sem ter tido seu início em mim e sem ter jamais sido objeto de minha escolha. Levinas diz que o Rosto é expressão, pois ele expressa o que se acha diante de mim, vindo de si mesmo, não sendo nem mesmo uma forma que vem à luz, mas cujo logos é o “Não Matarás!”. Diante do Rosto do outro, eu não posso mais poder, pois o outro é a partir de si mesmo e o eu não tem sobre ele nenhum poder. Sua verdade, portanto, é o “fracasso de seu assassinato”, pois não tenho como eliminá-lo. Ele se impõe a mim! (Cf. Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 176ss).

Enquanto as coisas são situadas por Levinas, no nível da fruição, como objetos, sem terem identidade em si mesmos, o Rosto, ao contrário, é a significação em si mesma. Por não terem um significado em si mesmas, as coisas podem ser convertidas em dinheiro. Diz Levinas: ... “a coisa” (...) “não tem identidade propriamente dita; convertível numa outra, pode tornar-se dinheiro. As coisas não têm rosto. Convertíveis e ‘realizáveis’, têm um preço. Representam dinheiro porque são algo de elemental, riquezas” (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 124). Com isso, as coisas não escapam ao horizonte do mundo. No mundo da tecnologia, o homem perdeu sua identidade, já que de agora em diante “existir equivale a explorar a natureza” e assim os “homens teriam perdido o mundo”. Os homens agora só conheceriam a matéria vestida diante deles, objetivada, isto é, eles não conhecem nada mais que objetos, lamenta-se Levinas!

Entretanto, no Rosto, o outro se oferece ao encontro, ainda no nível da sensibilidade, no contato, anterior ao tema que tenta apreendê-lo ou reduzi-lo ao conceito, fora do lugar e fora de um ‘enraizamento’ ou ainda fora de um contexto ou de um mundo, de tal modo que o Rosto possa brilhar em sua nudez (Levinas, 1976LEVINAS, E. 1976. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 185p., p. 325). Como metáfora do humano, Levinas o situa fora da natureza, fora da ordem natural das coisas, pois na relação com outrem, se está em relação com Deus. É a partir dessa relação que o mundo se torna inteligível e não a partir de lugares, templos, casas. O Outro não pertence ao mundo, nem vem do mundo, mas é exterioridade absoluta. Embora o humano esteja em relação com o mundo, ele é separado dele. Duas noções ajudam a descrevê-lo: separação e proximidade. Separação alude à sua estranheza em relação a mim e a tudo que pertença ao mundo e proximidade porque descreve o paradoxo da obsessão pela transcendência do outro, escapando à presença, mas se deixando afetar no nível do sensível, embora inapreensível pelo eu que dele não pode tomar distância. Sua transcendência não se situa em relação ao divino, mas é transcendente por se mostrar na ordem do originário. Diz Levinas: “o homem enquanto outrem chega-nos de fora, separado - ou santo - rosto. A sua exterioridade - quer dizer, o seu apelo a mim - é a sua verdade” (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 271). O Rosto, portanto, se mostra fora da totalidade, em sua nudez e vulnerabilidade, como estrangeiro, anterior à ordem da ontologia que o apreende posteriormente no “tarde demais” da teoria e do conceito. Sua apreensão é ética, pois seu comando ou sua súplica dirigida ao eu é de ordem moral: “Não matarás!” Portanto, a forma mais radical de eliminá-lo é a do assassinato, mas há ainda uma outra forma mais sutil de eliminar o outro que Levinas encontra na ontologia. As críticas de Levinas se dirigem, assim, à totalização, ao impessoal e ao anonimato que ele entende serem obras da Ontologia por reduzirem outrem ao mesmo.

Entretanto, o que significa esse não poder matá-lo, esse comando moral do Rosto? Não se trata apenas, como se viu, da proibição de uma eliminação física que seria a forma radical de negação da alteridade, mas de uma outra negação mais sutil que é aquela da teoria que apaga outrem na universalidade do conceito ou na compreensão. O fato de eu poder matá-lo alude a um ente totalmente independente que ultrapassa meus poderes ou que paralisa meu próprio poder de destruí-lo, sob uma forma ou outra. Diz Levinas, em Totalidade e Infinito: “outrem é o único ser que eu posso querer matar” (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 177). Outrem, no Rosto, resiste a mim, afirmando-se além de meu poder enquanto tal.

Mas, se por um lado, a presença de outrem limita meus poderes, sua presença, no entanto, me diz respeito de uma maneira positiva. A resistência de outrem é tal que não me faz violência, uma vez que sua estrutura é ética. Isso se torna mais claro à medida que compreendemos que o Infinito, em Levinas, não se fecha na obra da totalização nem se enquadra dentro de uma totalidade, mas permanece dela separado. O Infinito escapa ao desdobramento ontológico para existir como separado, inaugurando, fora da totalidade, uma sociedade. Para Levinas, é o neutro e o impessoal que fazem violência ao outro e permitem uma sociedade técnica de assimilação, privando a subjetividade de sua unicidade e outrem de sua alteridade (Cf. Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 178ss).

Em Totalidade e Infinito, Levinas justifica sua busca de um caminho para fora da ontologia do ser, constatando que a veracidade do real, de todo o ser e do ser em geral é a guerra. Começamos, portanto, na e pela guerra porque a guerra é a lei do ser, a sua essência. A guerra “instaura uma ordem em relação à qual ninguém pode distanciar-se. Nada é, desde então, exterior. A guerra não manifesta a exterioridade e o outro como outro; destrói a identidade do Mesmo” (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 10). A totalidade não admite nenhuma exterioridade e ela contém todos os seres em si mesma. Nesse contexto, a paz só é possível como ruptura com a totalidade, arrancando o ser de si mesmo, de suas táticas e estratégias. É a escatologia profética, para Levinas, que estabelece a relação com um excedente sempre exterior à totalidade, portanto, com o Infinito, que é a paz messiânica. Assim, a evasão para fora do ser e da totalidade é o único meio de alcançar a paz. Todavia, não se trata de substituir a filosofia pela escatologia, mas de buscar uma situação em que se verifica a quebra da totalidade e essa situação é a exterioridade ou a transcendência no rosto de Outrem. A ética é justamente “esse questionamento de minha espontaneidade pela presença de Outrem” (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 13). O encontro com a concretude do Rosto destrói a totalidade, pois ele impõe uma ruptura questionadora de meus poderes, de minha vontade, liberdade e egoísmo fruidor. É nesse sentido que o Rosto de Outrem ordena a interdição do assassinato.

Nesse sentido, há uma violência na ontologia: a do “se” (pronome impessoal) ou do neutro. Ao passo que a guerra supõe outrem como adversário, um ser que apareça num Rosto, o “se” não se apresenta à luta. A socialidade ou o comércio de que fala Levinas aqui não se produz nem como guerra nem tampouco como a paz dos impérios que se assenta sobre a força, pois a guerra ainda supõe a transcendência do Rosto. Outrem aqui é para mim único e eu sou para ele também a partir de minha unicidade. Só assim outrem pode me dirigir uma palavra à qual sou convocado a responder, ainda que seja essa resposta o meu silêncio. Na resposta à convocação de outrem, é que o eu se afirma como único, uma vez que ninguém pode responder por ele ou em seu lugar.

Qual é então o lugar da verdade ou que tipo de relação ela inaugura com outrem? Para responder a essa questão, faz-se necessário recorrer aos filósofos com quem Levinas estabelece um diálogo filosófico, quais sejam Husserl, Heidegger e Kierkegaard dos quais ele faz sua leitura tão particular e tão peculiar, considerada a distância que Levinas quis tomar, de modo particular e por razões bem conhecidas, da ontologia heideggeriana. Tendo sido aluno tanto de Husserl como de Heidegger, Levinas não hesitou em se distanciar de seus dois mestres naquilo que o seu uso pessoal da fenomenologia exigiu para poder pensar a alteridade da forma original como ele a pensou. O diálogo com Kierkegaard se entende pela compreensão que este tem do que venha a ser a ética, compreensão da qual diverge nosso filósofo.

3 Levinas e a fenomenologia de Husserl

Com relação a Husserl, Levinas lhe dedica algumas páginas em Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger que reúne também seus ensaios sobre a Ontologia Fundamental de Heidegger. O problema principal da fenomenologia husserliana é a busca das evidências primeiras que deem um fundamento seguro para as ciências, embora, numa linha diferente da de Descartes que procurava também esse fundamento seguro. Esse fundamento, para Husserl, não se encontra tanto na certeza proporcionada pela evidência das proposições, mas está mais no sentido que podem ter a certeza e a verdade para cada uma das regiões do ser (Cf. Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 12). Husserl se preocupa em determinar as condições que justifiquem a pretensão do pensamento à verdade, em situar a perspectiva em que elas aparecem ao sujeito. A fenomenologia husserliana afirma a constituição da significação a partir de sua origem, isto é, o sentido dos objetos deve ser buscado a partir das evidências que eles constituem. Daí o lugar da subjetividade, em Husserl, para explicar a origem da representação, uma vez que é no sujeito que se encontra a inteligibilidade da fenomenologia. A noção de consciência intencional, tão cara a Husserl, mostra que todo sentido se constitui na consciência e que não há sentido fora dela ou fora da realidade humana.

Na fenomenologia, o objeto reenvia ao sujeito não porque ele tenha esse ou aquele sentido, mas pelo fato mesmo de que ele tem um sentido. A verdade fenomenológica se encontra no sentido no qual o pensamento compreende, põe e verifica seu objeto (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 23). Diferentemente do Positivismo, a fenomenologia não explica fatos, mas traz à luz o sentido. Diz Levinas a respeito de Husserl:

a reposição de toda verdade objetiva nas intenções reais que a constituem e onde o sentido da sua objetividade se torna visível, a reposição dos objetos no pensamento enquanto pensamento e intenção, a procura do seu sentido por meio do exame, não dos objetos, mas dos atos do pensamento naquilo que eles são e contêm por si mesmos - o próprio método da fenomenologia - são doravante possíveis (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 25).

Logo se vê que o interesse de Levinas é também o do sentido e de sua origem, embora ele se distancie de Husserl, quanto ao lugar do sentido, uma vez que o conceito husserliano de intencionalidade não lhe permite descrever o fenômeno ético. Se para Husserl o sujeito é, graças à intencionalidade, esta origem, começo e princípio do sentido, a consciência é então o fenômeno mesmo do sentido e o sujeito é a origem de todo sentido! No entanto, para Levinas, a intencionalidade não descreve o fato de um objeto exterior entrar em relação com a consciência e menos ainda que uma relação entre dois conteúdos psíquicos se estabeleça no interior da consciência. A intencionalidade é “essencialmente o ato de emprestar um sentido. A exterioridade do objeto representa a própria exterioridade daquilo que é pensado relativamente ao pensamento que o visa” (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 30). A relação ética, no entanto, é de outra ordem e se situa assim fora da intencionalidade da consciência, uma vez que outrem vem de si mesmo.

Assim, o que está em discussão na fenomenologia, segundo Levinas, não é o objeto, mas “nossa maneira de nos relacionar ao objeto e de o identificar”; “nós o designamos antes de tê-lo diante dos olhos”. Logo, o problema não é saber se o objeto se reflete fielmente no pensamento, mas saber com que sentido ele aparece. Em Husserl, o sentido é caracterizado pelo fenômeno da identificação em cujo processo o objeto se constitui. Para o pai da fenomenologia, a representação é ato objetivante, atividade que precede e determina toda outra atividade. Assim, para Levinas, o problema da origem do sentido e a intencionalidade encerram toda a fenomenologia husserliana.

A crítica de Levinas a Husserl se dá em torno de alguns pontos. Em primeiro lugar, Levinas vê no primado dos atos objetivantes, afirmado por Husserl, o imperialismo da teoria. Sendo assim, o mundo real é o mundo do conhecimento. A consequência disso foi que se interpretou a vida espiritual, no Ocidente, sob o modelo da luz, fazendo com o sentido seja entendido como aquilo graças ao qual o exterior é ajustado e referido ao interior. O sentido se torna assim a permeabilidade mesma do espírito, característica do que se denominará sensação. O sentido é então a luminosidade, isto é, o que vem de fora é compreendido, pois a luz torna possível o encobrimento do exterior pelo interior. Essa é a estrutura mesma do cogito e do sentido. O pensamento é sempre claridade e a luz é dele a essência. Todo objeto vem de fora já apreendido como se viesse de nós, comandado por nossa liberdade. Nisso consiste, para Levinas, o imperialismo da teoria que se manifesta como violência da lógica da luz (Cf. Petrosino et Rolland, 1984PETROSINO, S.; ROLLAND, J. 1984. La Vérité nomade. Introduction à Emmanuel Levinas. Paris: La Découverte, 187p., p. 130).

Ainda, na fenomenologia husserliana, a razão suspende a atitude natural do mundo para estudar o sentido do mundo no pensamento que o constituiu, um pensamento que, portanto, precede o mundo, fazendo remontar à consciência como a única certeza possível. A consciência é então liberada do peso do mundo, permitindo a reconstrução do mundo sobre bases autênticas, mas, se a consciência é descoberta como fonte e origem de todo sentido, a fenomenologia procura reconquistar o mundo a partir dessa origem. Tudo esse processo dá à consciência uma existência absoluta, livre de tudo e condição de tudo. O pensamento é então uma autonomia absoluta e o sujeito é uma mônada da qual tudo deriva. Como consequência, a fenomenologia husserliana é a negação de todo irracional e nada se entende ou existe sem referência à subjetividade. Para Levinas, isso é supressão da exceção do Outro enquanto Outro, pois se todo sentido nasce no sujeito, o Outro, para ter um sentido, é meramente um alter ego, não podendo ser Outro.

Levinas ainda critica a maneira desincarnada e neutra em que Husserl concebe a intencionalidade, não situando o sujeito intencional no mundo, ignorando a fruição do sujeito. Não basta dizer que a intencionalidade está voltada para o objeto, mas ainda que este objeto está à nossa disposição, ele está lá para mim. A intencionalidade se volta para o Outro somente para trazê-lo ao sujeito e, por isso, ela é identificação, ocasionando a absorção do Outro pelo Mesmo. O Mesmo está em relação com o Outro de uma maneira que o Outro não determina o Mesmo, mas de modo que é sempre o Mesmo que determina o Outro. Levinas diz que a fenomenologia husserliana é uma filosofia da liberdade, entendida como liberdade em relação ao mundo, aos outros e ao diferente, sendo essa a liberdade da solidão. O sujeito, anterior ao real ao qual ele dá significado, está só em sua certeza e em seu primado, obrigando-o a neutralizar a alteridade que coloca em questão a dominação do Mesmo. No entanto, esse sujeito solitário não é nada mais que uma ilusão de sentido, pois, ao se dirigir às alteridades descobre apenas a si mesmo por trás delas. Logo, é preciso sair da fenomenologia da luz que encerra o homem na solidão, na angústia e na morte como fim último, para quem o Outro é apenas um alter ego ou um retorno ao Mesmo.

4 Levinas e a Ontologia de Heidegger

Quanto a Heidegger, ele permanece, segundo Levinas, devedor da fenomenologia de Husserl, pois a significação de toda situação humana é imanente a essa situação e a questão do ser, em sua diferença com relação ao ente, se põe no interior mesmo da existência. A questão do ser inclui a compreensão pré-ontológica do ser. A compreensão do ser é um modo de existência humana, pois o Dasein, sendo, compreende o ser. Abandona-se assim a estrutura sujeito-objeto, além do fato de ela não ter mais nada de teórico. Na leitura de Levinas, Heidegger substitui a consciência da filosofia clássica que permanece exterior à história concreta do homem e pensa o Dasein como compreendendo suas possibilidades e, ao compreendê-las, faz seu destino ou sua existência. A compreensão do ser se faz no ente homem e essa é a característica fundamental da existência humana. O Dasein se determina a partir de uma possibilidade que ele é e que compreende em seu ser. Levinas compreende também esse primado da existência humana colocado na compreensão do ser como a impossibilidade do irracional, do anárquico ou a impossibilidade da incompreensão. Logo, se existir é compreender o ser, tudo poderá ser compreendido.

Diz Levinas a esse respeito:

o contato obscuro com a realidade e com suas potências, por mais hostis que elas sejam - o peso do real sobre nós, nossa fuga diante dele - tudo isso é já uma intimidade com ele, uma compreensão. (...) E nada pode lhe escapar. Toda incompreensão, tudo que se pode chamar ‘o acerto do irracional’ é um modo deficiente da compreensão. A compreensão torna possível e - coisa essencial - necessária a incompreensão mesma (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 98).

A segunda crítica de Levinas a Heidegger é que, nele, o interesse pelo ente é somente determinado pelo interesse pelo ser e pela questão do ser. Heidegger só se ocupa da questão do ser e a existência humana é o lugar da compreensão do ser. O homem é o ente que compreende o ser. A compreensão do ser passa pelos modos de ser do homem. Com isso, Heidegger não se interessa pela questão do homem por ele mesmo, mas apenas pela questão do ser. Não se trata, assim, de descrever a natureza humana, a consciência ou o sujeito, mas somente o acontecimento ontológico da verdade que é o homem (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 99ss). Para Levinas, em sua leitura de Heidegger, a ontologia é esse horizonte do ser que define o homem e que ocupa a primazia filosófica. Não há no homem, nesse caso, nenhum excesso de significação em relação ao ser. E para Levinas isso significa a negação da dignidade excepcional do homem enquanto sujeito, a negação do Rosto. Esse primado da existência humana na compreensão do ser significa, para Levinas, a impossibilidade da incompreensão, a impossibilidade do irracional, do anárquico e a impossibilidade de toda fratura. Para Heidegger, nada pode escapar ao horizonte da compreensão e é esse ‘reducionismo’ que Levinas critica no filósofo alemão. Para nosso filósofo, tudo isso vem negar a dignidade excepcional do homem enquanto sujeito, seu Rosto. Nos escritos tardios de Heidegger, Levinas constata a desaparição mesma do termo homem que é substituído simplesmente pela expressão “mortal”. O ser em geral e o horizonte no qual se dá a compreensão do ser não é um ente, mas um neutro que ordena pensamentos e seres, um anônimo que aloja todas as particularidades, sempre sacrificando a individualidade. Essa filosofia do neutro destrói a distância, apaga o diferente e sua alteridade. Além de filosofia do neutro, o pensamento de Heidegger é também pensamento do Mesmo. Ao pensar o homem como Dasein, Heidegger o pensa como lugar de manifestação do Mesmo. Nesse contexto, não é possível a noção de subjetividade que Levinas vai propor como Outro-no-Mesmo, um sujeito de serviço ao outro ou um sujeito responsável no qual a alteridade possa significar. E

afirmar a prioridade do ser em relação ao ente é já pronunciar-se sobre a essência da filosofia, subordinar a relação com alguém que é um ente (a relação ética) a uma relação com o ser do ente que, impessoal como é, permite o sequestro, a dominação do ente (a uma relação de saber), subordina a justiça à liberdade (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 32).

5 Levinas e a ética de Kierkegaard

Ainda com relação a Kierkegaard, Levinas lhe dedica um capítulo em Noms Propres. Levinas o louva por ter colocado o problema da subjetividade em toda sua dimensão filosófica. O filósofo dinamarquês se deteve na dimensão da interioridade da subjetividade que ele entendeu como absoluta, separada, abaixo do ser objetivo. Para Levinas, Kierkegaard, numa linha anti-Hegel, combateu toda pretensão a totalizar as experiências, o espírito de Sistema que neutraliza todos os contrastes e diferenças. Assim, ele propôs uma subjetividade única, singular, para além das pretensões hegelianas, fazendo a singularidade exceder todo sistema. No entanto, Levinas critica em Kierkegaard a recusa do estado ético em que a subjetividade se coloca em jogo com a exterioridade das coisas e dos homens, o estado em que a vida interior deve se traduzir nos termos da ordem legal (Levinas, 1976LEVINAS, E. 1976. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 185p., p. 101-102). Nessa teoria dos estados, o ético significa o geral e a singularidade do eu se perde em meio às regras válidas para todos, na fidelidade às instituições e aos princípios. Para Levinas, a generalidade do ético não pode conter nem exprimir o segredo absoluto do sujeito angustiado por si. Para Levinas, Kierkegaard associou o segredo da subjetividade à ruptura do pecado que permanece inexprimível (Levinas, 1976LEVINAS, E. 1976. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 185p., p. 103). Recusando o estado ético bem como o estético, Kierkegaard se abre ao estado religioso onde se encontra sua originalidade e seu limite. A crença designa uma existência indigente, pobre de uma pobreza radical, de uma fome absoluta que é o pecado. E a crença é uma relação com uma verdade que sofre. Assim, a perseguição e a humildade são as modalidades do verdadeiro, características nas quais Levinas reconhece a novidade absoluta do pensamento de Kierkegaard. A ideia da ‘verdade que sofre’ transforma a procura da verdade e toda relação com o exterior num drama interior. O problema, para Levinas, é que essa ‘verdade que sofre’ não abre ao homem os outros homens, mas apenas Deus em sua solidão. Na leitura levinasiana do filósofo dinamarquês, é pela ‘verdade que sofre’ e que é perseguida que se descreve a manifestação mesma do divino: “simultaneidade do Tudo e do nada, relação com uma pessoa ao mesmo tempo presente e ausente - com um Deus humilhado que sofre, mata e deixa desesperados aqueles que Ele salva” (Levinas, 1976LEVINAS, E. 1976. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 185p., p. 106).

Levinas se pergunta se a exaltação da fé pura, correlativa da verdade crucificada, não é ela mesma a última consequência dessa tensão ainda natural do ser sobre ele mesmo que ele denomina egoísmo, que é a ontologia do sujeito que se acha também na Ética de Spinoza: “cada ser faz todos os esforços, enquanto é em si mesmo, para perseverar em seu ser” ou ainda na fórmula heideggeriana da existência como “interessamento de si mesma” (Levinas, 1976LEVINAS, E. 1976. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 185p., p. 108). A subjetividade isolada em sua interioridade é a saída de Kierkegaard contra a absorção do sujeito na universalidade hegeliana. O segredo da fé pura é a alternativa kierkegaardiana ao absurdo da generalidade. Diz Levinas: “toda a polêmica de Kierkegaard contra a filosofia especulativa supõe a subjetividade como tendida sobre ela mesma, a existência como um cuidado que um ser toma de sua própria existência e como um tormento por si” (Levinas, 1976LEVINAS, E. 1976. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 185p., p. 110). A existência interior impede o sujeito de se perder no universal e é na interioridade que reside a subjetividade do sujeito.

6 A Fenomenologia de Levinas e a busca do Sentido dos sentidos

Levinas, em sua proposta filosófica, critica a ontologia ocidental pela redução que ela opera do outro ao mesmo e os três filósofos anteriormente abordados são, para ele, a continuação dessa tradição que, aliás, neles, atinge seu ápice. Levinas então começa seu itinerário filosófico, tomando distância do primado husserliano da teoria. O primado dos atos objetivantes, em Husserl, é para ele o imperialismo da teoria. Diz Levinas que, para Husserl, “o mundo real é o mundo do conhecimento” e em Da existência ao Existente, ele diz que isso significa que, no Ocidente, se interpreta a totalidade da vida espiritual sob o modelo da luz. Isso lhe permite concluir que a intencionalidade se compreende como a origem do sentido e o sentido aqui é aquilo graças ao qual o exterior é ajustado e referido ao interior. O sentido é então a luminosidade (Cf. Levinas, 1998LEVINAS, E. 1998. Da Existência ao Existente. Campinas: Papirus Editora, 119p., p. 51ss).

Levinas ainda insiste que, em Husserl, o objeto não é abordado a partir de sua realidade objetiva, mas de sua natureza de sentido e a fenomenologia tenta recolocar esta noção no horizonte de pensamento em que os objetos são colocados e pensados. É este horizonte que a fenomenologia procura. Na redução fenomenológica, a razão suspende a tese natural do mundo para lhe estudar o sentido no pensamento que o constituiu. A suspensão do mundo leva à consciência como a única certeza possível. Com a consciência liberada do peso do mundo, trata-se finalmente da reconstrução do mundo sobre bases autênticas. Assim, a consciência é descoberta como origem ou fonte de todo sentido e o mundo a ser reconquistado, após a redução fenomenológica, será um mundo constituído por um pensamento. Por isso, diz Levinas, Husserl recusa a existência de um mundo sem a consciência que o constitui, embora admita a possibilidade de uma consciência sem mundo. Consequentemente, o sujeito husserliano é pensado como uma mônada (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 60ss).

Compreende-se também porque a fenomenologia husserliana e a ontologia fundamental heideggeriana são a negação do irracional e isso significa, para Levinas, a supressão da exceção do Outro enquanto Outro, enquanto separado do Mesmo: “se o sentido é o sentido do sujeito, o Outro, se ele tem um sentido, é o Outro do sujeito e, nesse caso, ele não é Outro” (Cf. Petrosino et Rolland, 1984PETROSINO, S.; ROLLAND, J. 1984. La Vérité nomade. Introduction à Emmanuel Levinas. Paris: La Découverte, 187p., p. 131).

Na conclusão de seu artigo sobre a fenomenologia de Husserl, Levinas afirma:

a fenomenologia de Husserl é, no fim de contas, uma filosofia da liberdade, de uma liberdade que se cumpre como consciência e se define por ela; de uma liberdade que não caracteriza a atividade de um ser, mas que se localiza antes do ser e em relação à qual o ser se constitui (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 63).

A pergunta que se coloca aqui é, então, sobre o tipo de sentido que a fenomenologia sustenta e defende ou o que ela entende por sentido. Petrosino e Rolland comentam que essa liberdade é liberdade em relação ao mundo, aos outros, ao diferente, mas é uma liberdade solitária. O sujeito, origem do sentido, está só em sua certeza e essa solidão se alimenta da neutralização da alteridade enquanto ela coloca em questão a dominação do Mesmo. No entanto, o sujeito solitário só pode ser a origem de uma ilusão de sentido. Além disso, esse sujeito que nega a alteridade nega também a possibilidade de um autêntico sentido. Ele, ao procurar alteridades fora de si, só encontra a si mesmo ao fundo delas. O símbolo desse retorno ao Mesmo é Ulysses que retorna à sua ilha natal, após se aventurar pelo mundo todo. Levinas procura então um sentido do sentido, a Roma à qual conduzem todos os caminhos, a sinfonia entre todos os sentidos. A multiplicidade da indiferença não passa de uma solidão dos indivíduos múltiplos, fechados em sua própria autonomia e separados uns dos outros pela indiferença que não respeita a maravilha da alteridade. Por isso, a fenomenologia permanece no mundo da luz, mundo do eu solitário que não reconhece outrem como outro ou para quem outrem é apenas um alter ego conhecido por simpatia (Cf. Petrosino et Rolland, 1984PETROSINO, S.; ROLLAND, J. 1984. La Vérité nomade. Introduction à Emmanuel Levinas. Paris: La Découverte, 187p., p. 134).

Quanto a Heidegger, seu erro, ao ver de Levinas, foi ter subordinado a verdade ôntica, verdade que se dirige ao outro, à questão ontológica que se coloca no seio do Mesmo. Para Heidegger, compreender o ente supõe colocá-lo além ou no horizonte do ser. Só no ser é que o ente se oferece à compreensão e à posse, sendo que o ente mesmo escapa à compreensão. Para Levinas, nesse caso, essa concepção do particular não o assume como um excesso único e insubstituível, no interior da economia do ser. O que se nega aí é a significação do Rosto. Tudo que não tem Rosto se compreende dentro de uma totalidade da qual ele participa, enquanto o Rosto é ruptura da totalidade e escapa às suas categorias que tentam apreendê-lo. O Rosto é expressão! A Ontologia heideggeriana, ao subordinar a relação com o ente à relação com o ser em geral (apagamento do Rosto), é uma filosofia do neutro, do anônimo que aloja todas as particularidades, sacrificando a sua individualidade. Essa ontologia é incapaz de manter a distância, de deixar ser o diferente e de respeitar o Outro e, nela, também Deus se reduz ao Ser. Também a subjetividade, nessa ontologia, deve se mostrar como parte de uma estrutura mais profunda ou como uma de suas partes componentes. Aqui a subjetividade levinasiana como ‘Outro-no-Mesmo’, uma subjetividade de serviço ou de responsabilidade, através da qual a alteridade ganha significado, não encontra lugar. Consequentemente, o pensamento do ser impede o pensamento da alteridade e da diferença.

Quanto a Kierkegaard, Levinas reconhece seu mérito em criticar toda pretensão universalizadora e em propor a subjetividade como singularidade, permitindo assim escapar à violência do neutro, embora ele não consiga escapar a uma outra violência. Levinas louva a experiência interior como tentativa de salvaguardar a singularidade, mas ela não escapa à violência de uma subjetividade destinada a se consumir no espaço pela paixão, ou seja, a violência do neutro é substituída pela violência da solidão, pois no estado religioso, domínio da crença, ela não se justifica a partir de uma exterioridade. A filosofia ocidental fica então entre duas possibilidades: o ser em geral ou a paixão pela existência interior. Ao negligenciar a significação do Rosto do Outro, a filosofia ocidental nega a ordem criatural e totaliza o ser e, aí, o Outro se perde. Ao perder o Outro, o sujeito também se perde na totalização, pois perde o Rosto. Solidão e totalidade aqui estão de mãos atadas.

Para solucionar essa questão, Levinas busca um lugar que é a impossibilidade mesma de um lugar ou uma verdade sem lugar. Para ele, a forma da multiplicidade se produz como ética que é uma relação entre termos não unidos pela síntese do entendimento, mas por uma intriga que o saber não esgota (Cf. Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 275, nota 184). O ético supõe a escuta de um apelo do outro cuja resposta me dá uma unicidade, uma condição de singularidade. O Rosto é o momento em que o ser se abre a uma significação que anuncia um excesso de ser, graças ao qual o ser se torna a maravilha da exterioridade e esse excesso é a responsabilidade. A responsabilidade pelo outro é uma abertura em que a essência do ser se ultrapassa na inspiração. Surge aqui uma estrutura a três: o eu se abre ao Infinito, indo em direção ao Tu, meu contemporâneo, mas que, no traço da eleidade, se apresenta a partir do passado do face a face original (tempo da criação) (Levinas, 1997LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 288p., p. 262). Eu me aproximo do Infinito à medida em que eu me esqueço em atenção ao próximo que me olha. Nesse encontro, não há conceitualidade possível, nem posse, mas abertura ao Outro, sem nenhuma mediação, apresentando-se o Outro de uma altura (assimetria) que só me permite formar com ele uma relação ética. Aí a transcendência do Outro não é suprimida, mas respeitada em sua diferença. Abre-se aí uma multiplicidade que estrutura o eu como pluralidade. Essa estrutura original é ética e, como tal, anárquica ou pré-original, estrutura da criaturalidade que não se funda numa relação prévia de conhecimento.

Autrement qu’être, a obra que mostra a maturidade filosófica de Levinas, entende a subjetividade, em sua estrutura, como substituição em que a responsabilidade precede sua própria essência e é anterior à liberdade. O eu na ipseidade é refém do outro! Essa responsabilidade do eu pelos outros não é escolhida, é uma assignação, expiação pelas faltas dos outros. O sujeito destarte carrega sobre si o peso de todo o universo. O único individualismo possível, para o filósofo franco-lituano, é o individualismo ético. Para Levinas, a “ética é o campo que designa o paradoxo de um Infinito em relação com o finito sem se desmentir nessa relação” e, por isso, a ética é a filosofia primeira (Cf. Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 179ss).

Uma última questão a abordar aqui é a questão do sentido ou da significação, introduzida no início como a busca de nosso filósofo. Em Totalidade e Infinito, Levinas afirma:

o ser da significação consiste em colocar em questão numa relação ética a liberdade constituinte mesma. O sentido é o Rosto do outro e todo recurso à palavra se coloca já no interior do face a face original da linguagem. Todo recurso à palavra supõe a inteligência da primeira significação, mas inteligência que, antes de se deixar interpretar como ‘consciência de’, é sociedade e obrigação (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 185).

O fenômeno primeiro da significação coincide com a exterioridade e a exterioridade é a significação mesma. “...o primeiro inteligível não é um conceito, mas uma inteligência cujo rosto anuncia a exterioridade inviolável ao proferir: ‘tu não cometerás assassinato!”. Logo, a essência do discurso é ética (Cf. Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 59)!

O sentido dos sentidos, procurado por Levinas, se põe assim como “um movimento indo para fora do idêntico, em direção a um Outro que é absolutamente outro” (Levinas, 1972LEVINAS, E. 1972. Humanisme de l’autre homme. 1972. Paris: Fata Morgana , 123p., p. 41). Em Totalidade e Infinto, Levinas afirma: “ter um sentido é situar-se em relação a um absoluto, isto é, vir da alteridade que não se assimila na sua percepção” (Levinas, 1980LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p., p. 83) e em Autrement qu’être, ele diz: “o sentido quer dizer o mesmo-para-o-outro”. O fenômeno do sentido surge na abertura ao outro, o um-para-o-outro é a significância mesma da significação que precede toda tematização e a torna possível. À aventura de Ulysses se opõe o itinerário de Abraão que procura Deus sem jamais voltar ao ponto de partida ou ao Mesmo. A presença do Outro é a fonte de toda significação. “A significação precede a essência” e a significação é ética. Logo, o ético é o lugar da verdade, do êxodo sem fim (Cf. Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 206).

6.1 O Testemunho

Não poderia terminar sem fazer menção ao testemunho que, segundo Ricoeur, em Lextures 3 - Aux frontières de la philosophie, é a categoria em que Levinas mais nitidamente se opõe às filosofias da consciência. Junto com a assignação à responsabilidade, o testemunho substitui a consciência mestra do sentido e de si mesma. Uma vez que o outro se exclui da ordem da manifestação ou da revelação - próprias da ontologia - a assignação à responsabilidade ocupa o lugar dado pela ontologia à manifestação, uma vez que o ser oculta o outro. As estratégias de Levinas para superar a linguagem da ontologia e propor a ética como a linguagem respeitadora do outro passa por dois caminhos: o primeiro consiste em substituir a arché pela anarquia e o segundo consiste, no método levinasiano denominado exasperação, isto é, o uso constante de hipérboles para desalojar o sujeito do centro que ele ocupa nas filosofias clássicas. O termo escolhido por Levinas é então o testemunho que não é nada mais do que “o modo de verdade desta auto-exposição (do si), inverso da certeza” do Idealismo. O testemunho se oferece como a alternativa à certeza da representação (Ricoeur, 1994RICOEUR, P. 1994. Lextures 3 - Aux frontières de la philosophie. Paris: Ed. du Seuil, 370p. , p. 101). O testemunho é a sinceridade diante do outro que é o Dizer, ou melhor, a sinceridade que só se realiza no Dizer, uma vez que essa sinceridade “desfaz a alienação que o dizer sofre no dito” (Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 224-5). Um dizer que mantém aberta sua abertura, se expondo para além do dito, exposição que consiste em “fazer sinal sem se repousar na figura mesma do sinal” (Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 223). É o ‘eis-me aqui’ no para-o-outro da proximidade! O dito não é capaz de expressar adequada e suficientemente essa “veracidade de antes do verdadeiro, a veracidade do aproximar, da proximidade para além da presença” (Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 225). A sinceridade é a “pura transparência do testemunho, reconhecimento da dívida”, dado ser o dito uma traição do dizer, da retidão do face a face, que ele trai ao se distanciar. Nas palavras de Levinas,

a sinceridade onde significa a significação - onde o um se expõe sem retenção ao outro - onde o um aproxima o outro - não se esgota em invocação - na saudação que não custa nada, entendida como puro vocativo. (...) Fissão da última substancialidade do Eu, a sinceridade não se reduz a nada de ôntico, a nada de ontológico e conduz como além ou deste lado de todo positivo, de toda posição. Ela não é um ato, nem movimento, nem gesto cultural qualquer o qual supõe em um outro lugar já a abertura absoluta de si (Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 225).

Surge, assim, a partir de Autrement qu’être, um sujeito concebido como sacrifício e imolação, absurdo à lógica do ser, à lógica do connatus essendi. Aliás, a lógica do ser vem para amortecê-lo, com as mediações do ser, interpondo o interesse como impossibilidade da imolação. Surge então um outro logos que mostra a pertença do subjectum a outro reino, testemunhando uma verdade que não é deste mundo e que corrói pela base os fundamentos do ser. O testemunho não é desvelamento, mas o modo pelo qual o Infinito faz sinal na imolação incondicional. O testemunho mostra uma identidade de pura eleição que consiste numa “exposição extrema à designação por outrem, (...) designação entrada em mim por arrombamento (...), falando no dizer do assinalado” (Levinas, 1978LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris : Martinus Nijhoff, 287p., p. 227). Como o explica Ricoeur, o testemunho combina altura e exterioridade, sendo altura a ‘glória do infinito’, um termo que não sendo nem fenômeno, nem tema, nem aparecer, é o ‘desdito de um dito’ e dela não se pode falar sem os recursos antes utilizados no desdito como ‘anarquia sem começo’, ‘passividade da passividade’, ‘passado imemorial’, ‘obediência precedendo toda escuta do comando’ termos que, na linguagem ética de Levinas, substituem a linguagem da ontologia. A glória do infinito como altura e a exterioridade como injunção à responsabilidade se atestam, mas nem se mostram nem se põem. Um infinito que se manifestasse perderia sua glória. A transcendência consiste justamente na interrupção de sua própria mostração, ela é assim anarquia. Por isso, o discurso ético é o único capaz de indicar esse testemunho da exterioridade, da assignação à responsabilidade (Ricoeur, 1994RICOEUR, P. 1994. Lextures 3 - Aux frontières de la philosophie. Paris: Ed. du Seuil, 370p. , p. 102).

7 Conclusão

A verdade primeira, portanto, pertence à ética que se oferece como a significação primeira e não se entende senão em relação com a justiça - retidão do face a face - que a ontologia traduzirá tardiamente como verdade que se mostrará no ser, ainda que seja ao preço de traí-la num dito incapaz de esgotar o dizer.

Referências

  • LEVINAS, E. 1980. Totalidade e Infinito Ensaio sobre a exterioridade. Lisboa, Edições 70, 287p.
  • LEVINAS, E. 1997. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger Lisboa: Instituto Piaget, 288p.
  • LEVINAS, E. 1998. Da Existência ao Existente Campinas: Papirus Editora, 119p.
  • LEVINAS, E. 1976. Noms Propres Paris: Fata Morgana, 185p.
  • LEVINAS, E. 1978. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence Paris : Martinus Nijhoff, 287p.
  • LEVINAS, E. 1994. Les Imprévus de l’histoire Paris: Fata Morgana , 192p.
  • LEVINAS, E. 1994. Liberté et commandement Paris: Fata Morgana , 123p.
  • LEVINAS, E. 2010. Entre Nós Ensaio sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 271p.
  • LEVINAS, E. 1972. Humanisme de l’autre homme 1972. Paris: Fata Morgana , 123p.
  • PETROSINO, S.; ROLLAND, J. 1984. La Vérité nomade Introduction à Emmanuel Levinas. Paris: La Découverte, 187p.
  • RICOEUR, P. 1994. Lextures 3 - Aux frontières de la philosophie Paris: Ed. du Seuil, 370p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2022
  • Aceito
    24 Abr 2023
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