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Do “não ceder de seu desejo” ao “bem-dizer o desejo”: considerações acerca da ética em Lacan* * Trabalho resultante da elaboração de uma Dissertação de Mestrado com o apoio financeiro da CAPES.

From “do not give away on your desire” to “benedictory of the desire”: considerations about the ethics to Lacan

Resumo

No Seminário da ética, Lacan opôs a pastoral analítica à ética do “não ceder de seu desejo”. Ao pôr o desejo como parâmetro, tal ética questiona valores universais para alcançar uma suposta boa vida. Comparamos tal formulação à ética do “bem-dizer o desejo”, destacada por Lacan em Televisão. Se no Seminário 7 temos uma crítica aos ideais de felicidade associados ao mercado dos bens, na ética do “bem-dizer o desejo”, a felicidade aparece como parte do sintoma, vinculada aos diferentes modos de gozo, via possível para questionar a atual injunção a aproveitar, vinculada a uma certa cultura da alta performance.

desejo; ética; felicidade; gozo; moral

Abstract

In the Seminar of ethics, Lacan has opposed the analytical pastoral and the “do not give away on your desire” ethics. By putting the desire as a parameter, such an ethics questions the universal values to achieve a supposed good life. Here we compare this formulation to the ethics of the “benedictory of desire”, highlighted by Lacan in Television. If in the 7th Seminar we have a critics about the ideal of happiness, associated to the market of the goods, on the “benedictoty of desire” ethics happiness appears only as a symptom, tied to the different modes of enjoyment, which is a possible way to question about the contemporary injunction to enjoy, bound to a certain “high performance” culture.

desire; ethics; happiness; enjoyment; morale

Viveríamos, atualmente, uma aversão à psicanálise que parece ter ganhado cores mais fortes em certas culturas, como a estadunidense. Benilton Bezerra Jr (BEZERRA JR.; FIGUEIREDO; HORNSTEIN, 2009BEZERRA JR., B.; FIGUEIREDO, L. C.; HORNSTEIN, L. Psicanálise: uma leitura da condição humana. Percurso, São Paulo, ano XXII, n. 42, jun. 2009. Debate. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=41&ori=edicao&id_edicao=42>. Acesso em: 10 jan. 2011.
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) atribuiu esta “onda de rejeição” a alguns efeitos da psicanálise sobre a cultura. Entre as décadas de 1950 e 1970 a psicanálise foi transformada numa espécie de saber oficial, proliferaram-se os manuais de psicanálise e algumas interpretações estereotipadas atribuídas a ela. Os críticos logo chamaram tal “movimento” de psychobabble.1 1 Junção das palavras inglesas psychoanalysis e babble, palavra que pode ter o sentido de “balbucio”, de “discurso confuso”, de “balela”. Alguns outros fatores teriam se somado a esse cenário: o impacto dos psicofármacos, surgidos na década de 50, na clínica de paciente graves; as expectativas geradas pelas novas tecnologias de visualização cerebral, surgidas na década de 90, as quais acenaram para a possibilidade de “investigar correlatos neurais de estados e eventos subjetivos” e, assim, de criar “uma ciência objetiva da subjetividade” (BEZERRA JR.; FIGUEIREDO; HORNSTEIN, 2009BEZERRA JR., B.; FIGUEIREDO, L. C.; HORNSTEIN, L. Psicanálise: uma leitura da condição humana. Percurso, São Paulo, ano XXII, n. 42, jun. 2009. Debate. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=41&ori=edicao&id_edicao=42>. Acesso em: 10 jan. 2011.
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, p. 2). Para o autor, tais fatores não explicariam os desafios da psicanálise por si sós, haveria uma rede de entrecruzamento de fatos históricos complexos que teriam gerado aspectos culturais que permitem a valorização e a incorporação, na vida cotidiana, de tais fatores. Vivemos o tempo da “otimização da performance física e mental”, da tentativa de abolir o sofrimento, da recusa dos signos da falta, da incerteza, da imprevisibilidade, cenário distinto daquele encontrado por Freud.

A psicanálise, numa cultura da imagem e da alta performance, é capaz de nos pôr a interrogar ainda o sentido da experiência, sendo, por isso, interlocutora privilegiada das pesquisas sobre a base biológica da vida subjetiva e das críticas voltadas a essa “cultura da alta performance”, as quais devem incluir também a própria psicanálise como psychobabble. Se atualmente clamamos por autonomia e solicitamos respostas aos discursos competentes, a psicanálise “ainda nos permite afirmar que na vida é de apostas que se trata. E que, assim como no futebol, o erro faz parte do jogo” (BEZERRA JR.; FIGUEIREDO; HORNSTEIN, 2009BEZERRA JR., B.; FIGUEIREDO, L. C.; HORNSTEIN, L. Psicanálise: uma leitura da condição humana. Percurso, São Paulo, ano XXII, n. 42, jun. 2009. Debate. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=41&ori=edicao&id_edicao=42>. Acesso em: 10 jan. 2011.
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, p. 4).

Ao levarmos em conta esse quadro e o que a psicanálise ainda teria a nos dizer, pensar a ética a partir da psicanálise faz todo sentido. A dimensão ética que discutiremos aqui se refere a um recorte: trataremos de algumas formulações lacanianas acerca da ética da psicanálise. Pensamos que Lacan foi um dos psicanalistas atentos a manter-se fiel à potência crítica da psicanálise. Como veremos, o Seminário 7 (LACAN, 1988LACAN, J. O Seminário: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. livro 7.[1959-1960]) tratou da adesão da psicanálise aos ideais de bem-estar difundidos na segunda metade do século XX. Lacan estava atento também aos usos da psicanálise nos E.U.A. e condenava os analistas que se ofereciam como “egos autônomos” para guiar os norte-americanos “em direção à happiness, sem perturbar as autonomias, egoístas ou não, que pavimentam o American way de chegar lá” (LACAN, 1998aLACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). In: LACAN, J . Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998a. p. 591-652., p. 597). Dessa forma, nos parece que a questão não se esgota numa discussão sobre a direção do tratamento psicanalítico, numa espécie de ética que fosse sinônima de um regramento sobre a atividade do psicanalista. Ao contrário, nos parece estar em jogo uma concepção ética que escapa do terreno no consultório e se liga à política e à cultura.

Textos como o de Sandra Alencar et al. (2009)ALENCAR, S. et al. A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 497-511, set. 2009. discutem as contribuições da obra lacaniana para pensarmos questões contemporâneas. Numa análise de grupos marcados pela exclusão política, como imigrantes, migrantes e refugiados, as autoras colocaram em questão a “dimensão errante do desejo” e sua incompatibilidade tanto com tentativas de colocá-lo sob o jugo da exclusão e do exílio impostos quanto das cristalizações de identidades. O sujeito pensado por Lacan é marcado justamente pela errância, as identidades que fixamos são continuamente desconstruídas e reconstruídas pelo movimento do desejo. Levar em conta uma ética da psicanálise nesse estudo sobre uma “metáfora do desejo” na condição de imigrante, migrante e refugiado é tanto não ignorar as implicações de uma desterritorialização forçada, que coloca os sujeitos na condição de não poderem simbolizar sua nova condição de exílio, que os coloca como “estrangeiros”, encarados pela cidade como uma ameaça, quanto ver nesse movimento de errância do desejo possibilidades de construir novos modos de existência. Assim, “apelos migratórios e identitários (podem ser) pensados como diversidade de expressão dos sujeitos, como modalidades de trabalho do sujeito na direção do desejo” (ALENCAR et al., 2009ALENCAR, S. et al. A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes, refugiados e a prática psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 497-511, set. 2009., p. 450). A alternância entre esses dois movimentos, a errância do desejo e a constituição de identidades, foi utilizado pelas autoras como instrumento de análise de processos migratórios envoltos por condições de penúria, que envolvem situações políticas de abuso, as quais desfavorecem tal alternância.

Outro estudo aponta para as relações entre a “obstinação” que marcaria a anorexia e a negação (de comer, de possuir um corpo sexualizado, de abrir mão da onipotência) como um modo possível de relação com o desejo. Para Isabel Fortes (2011)FORTES, I. Anorexia: o traço da obstinação na clínica psicanalítica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 83-95, mar. 2011., o traço da obstinação pode ser lido como resistência ativa dos sujeitos a partir da afirmação do desejo, assim como, ao contrário, ser entendido como aniquilação do desejo em nome de um ideal tirânico. Pode-se entender que, na anorexia, o desejo estaria totalmente submetido ao Outro e, restando ao sujeito pouca margem de manobra, “o domínio do objeto da necessidade” (a comida) seria usado como “modo de anteparo ao estado de dependência extrema” (FORTES, 2011FORTES, I. Anorexia: o traço da obstinação na clínica psicanalítica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 83-95, mar. 2011., p. 87). No entanto, tal manobra traz o risco de aniquilar o desejo: a partir do “não preciso de nada”, a anoréxica põe um obstáculo ao desejo, e na tentativa de liberar-se da dependência do outro, enfraquece a dimensão desejante. Uma outra via para entender a obstinação, não somente na clínica da anorexia, seria tomá-la como uma tentativa de desvincular o desejo do domínio de um Outro sufocante. Às vezes, o “não quero comer” sinaliza um “eu quero” como tentativa de fazer surgir o desejo fora de um certo domínio tirânico.

Abordaremos a ética em Lacan tentando circunscrever algumas mudanças no domínio de suas formulações sobre o campo, ao passarmos da ética do “não ceder de seu desejo” (anunciada em 1960), à ética do “bem dizer o desejo” (anunciada em 1974). Sabemos que Lacan manteve ao logo de sua obra o desejo como ponto de partida para uma ética. Para além da correção de comportamentos desviantes, para além de um enquadramento dos sujeitos em categorias aceitas socialmente e do atendimento à demanda pela “alta performance”, a psicanálise permitiria questionar qual o lugar do desejo em nossas vidas. Pensamos que a importância dada ao gozo por Lacan em seu segundo ensino enriqueceu tal questionamento. Nesse sentido, abordaremos algumas implicações do uso de tal conceito nas formulações lacanianas da ética.

1. A ética do “não ceder de seu desejo”

Toda moral teria em comum uma tentativa de dizer o que é bom para todos, estabelecendo onde e como encontrar esse bem. Para a moral, nossa experiência só é relevante se pode colocar-se em conformidade com alguns bens ou obrigações teóricas (RAJCHMAN, 1993RAJCHMAN, J. Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993.). No Seminário da ética (1988[1959-1960], p. 13) um dos principais alvos das críticas de Lacan foi a dimensão pastoral da análise – denominação dada por ele a certa postura que tomava os analistas como guias, semelhantes a pastores espirituais. Seria papel deles ajudar o analisando a atingir uma relação de objeto satisfatória, centrada no amor genital, apaziguando as pulsões e fazendo convergir os objetos parciais. Enfim, uma verdadeira ortopedia. Para Lacan (1988[1959-1960]LACAN, J. O Seminário: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. livro 7., p. 373), a ética da psicanálise, no sentido de um “juízo sobre nossa ação” próprio ao discurso analítico, trata de outra coisa: ela deveria colocar, necessariamente, o desejo como parâmetro, o que faz questionar valores universais como fórmulas para alcançar uma suposta boa vida.

Lacan chegou à pastoral analítica mediante um percurso pelas morais do Bem, do Dever e do Útil, cujos principais expoentes seriam, respectivamente, Aristóteles, Kant e Bentham. Ao concentrar alguns desses “vícios” moralizantes, a pastoral analítica dotaria o analista de poderes indispensáveis para que os analisandos se aproximassem de um Bem; o Útil, por sua vez, referir-se-ia à venda dos resultados da análise, inserida no “mercado dos bens”. Interessou a Lacan retomar a “revolução” freudiana na ética, nem ligada à virtude, como na Antiguidade, nem separada do “patológico” (pathos) da experiência, como postulou Kant, mas perpassada pelo mal-estar inerente ao desejo. Não à toa o Seminário da ética dá um lugar especial à tragédia. Antígona é retomada por conta de não abrir mão de seu desejo frente às leis da cidade, de não alinhar-se ao ideal do bem comum. Aqui Lacan uniu o senso trágico ao tema freudiano do mal-estar: a psicanálise não seria “[...] uma sabedoria geral sobre o que é bom ser, não é uma morale, uma teoria de um princípio ou regra geral do que é certo fazer” (RAJCHMAN, 1993RAJCHMAN, J. Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993., p. 42). Nem a posição de quem seguiu as leis da cidade (Creonte, Ismênia), nem a posição de quem segue seu desejo (Antígona) podem garantir algum conforto ou certeza. Assim, o problema ético posto por Freud seria, para Lacan, a questão do lugar do desejo numa cultura fundada na moral e na lei.

Duas referências fundamentais para Lacan pensar a lei moral são Kant e Sade (LACAN, 1998bLACAN, J. Kant com Sade (1963). In: LACAN, J . Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998b. p. 776-803.[1963]). Em Kant, a ação moral se coloca a partir de um distanciamento radical do pathos, da afetação, do afeto. Tal ação não pode ser motivada pelo bem estar, ou ainda, pelos bens (das Wohl). Isso afasta a ação moral de qualquer finalidade, pois esta sempre traria a marca da satisfação de algum interesse. A lei moral em Kant, ao contrário, é obedecida não pelo que ela possa trazer em termos de satisfação ou lucro, mas sim por puro senso de dever, por uma espécie de boa-vontade vazia de qualquer expectativa de retorno. O legislador kantiano, então, é aquele que nunca decide em causa própria – em função dos fins, dos bens ou do bem estar que poderia haver em retorno à sua decisão – mas por pura obediência à forma da lei.

Tal apatia (distanciamento do pathos) é traço comum a Kant e a Sade. No segundo, a defesa do crime não implica uma defesa do afeto. Ao contrário, o crime sadeano é tão apático quanto o dever kantiano: não se trata em Sade de deixar-se ceder a tentações prazerosas, mas encontrar um prazer extremo num crime que transcende o pathos, um crime que se exerce a sangue frio por uma questão de obedecimento: cometer um crime, para Sade, é obedecer apaticamente à natureza, este ser supremo em maldade (BATAILLE, 1988BATAILLE, G. O erotismo. Lisboa: Antígona, 1988., p. 152).

Assim é que, segundo Lacan, Sade pode esclarecer Kant. No primeiro, aparece a céu aberto aquilo que fica escamoteado no segundo: no lugar da boa-vontade, o gozo, como prazer extremo pelo obedecimento que ultrapassa tanto a compaixão como a própria volúpia; no lugar da voz interior, a boca obscena do Outro, apreendida ora na figuração de uma natureza que exige e valoriza o crime e a injustiça, ora na figuração de um Deus de quimera, fraco, tolo e inconsequente.

Sade serve a Lacan como instrumento para colocar a problemática da lei em Kant não mais na perspectiva de uma crítica da razão afastada de todo pathos, mas na do desejo do Outro, colocado como puro pathos, cuja satisfação fica na mão do agente do tormento. Reencontramos então a figura freudiana de um “contentamento que o sujeito experimenta, na experiência moral, ao se submeter ao imperativo do supereu” (BAAS, 2001BAAS, B. O desejo puro. Rio de Janeiro: Revinter, 2001., p. 28). Nada aqui situa esse contentamento em relação ao prazer. Ao contrário, o que se coloca aponta para uma satisfação de outra ordem que não a do Wohl, assim como para um mal-estar para além da falta dos bens. Aqui se apresenta, com obscena clareza, o campo da moral como uma questão relativa ao desejo do Outro, e cujo traço de apatia revela uma satisfação de outra ordem.

A questão da moral, assim, não se situa em relação às leis – não é uma questão de privação ou interdição de tal ou qual objeto. Não se trata, como Lacan resgata no texto de Kant, da ameaça do cadafalso para aquele que se dispusesse a realizar seus desejos proibidos. Não se trata, em suma, de uma equação na qual desejo e lei aparecem em lados opostos. Em Kant, não é uma interdição que está em jogo, mas um imperativo que se pode colocar para além de qualquer lei. É nisso que a tragédia de Antígona mostra, para Lacan, seu valor. A coragem de Antígona, afinal, é não abrir mão da Lei dos deuses, do que para ela é imperativo, do que, afinal, é ao mesmo tempo sua Lei e seu desejo. Isso não garante a ela uma vida confortável, bem ao contrário. Mas sua morte é sem culpa, o que não é, decerto, o caso de sua irmã Ismênia. A covardia desta, segundo a maldição da primeira, a levará a uma vida possivelmente longa, mas cujo fardo de não ter feito aquilo que deveria se fará pesar (SÓFOCLES, 1996SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 27).

Desta forma, é certo dizer que Lacan situa a questão ética não em torno da antinomia leis x desejo, mas de uma equivalência estrutural entre Lei (entendida no esvaziamento do imperativo categórico de Kant) e desejo. Eis então que, também, o desejo se esvazia. Ele não será, doravante, desejo de alguma coisa, mas será marcado pela mesma abstração que a fórmula do imperativo kantiano imprime na Lei. Esta é a chave para releitura lacaniana do Édipo, posto como modo mítico de contar um fato que, segundo Lacan, é de estrutura. Assim, no lugar da mãe como objeto de desejo, é preferível apontar o das Ding do Projeto, esse sem-nome que marca na origem do desejo uma falta fundamental.

Se o desejo organiza-se em torno dessa falta, Baas (2001)BAAS, B. O desejo puro. Rio de Janeiro: Revinter, 2001. preferiu pensar duas dimensões do desejo: uma referida aos objetos da experiência, figuráveis, e a dimensão do desejo puro, referida à Lei. Nesse sentido, Lacan teria feito uma espécie de “Crítica do desejo puro” (BAAS, 2001BAAS, B. O desejo puro. Rio de Janeiro: Revinter, 2001., p. 51). Apesar de buscarmos os objetos da experiência, nosso desejo não é movido por eles e sim por uma faculdade a priori de desejar, espécie de imperativo. O objeto a faria justamente uma síntese entre esses objetos figuráveis e tal faculdade por meio do fantasma. A diferença com o imperativo kantiano se daria pelo fato de que se Kant não encontra na experiência qualquer exemplo do imperativo, a categoria de desejo é justamente o que está sempre em jogo na experiência da análise. Para a ética da psicanálise “é o que encontramos” e o que precisa ser levado em conta, o jogo que envolve os objetos da experiência e sua ilusão de satisfação, de realização e de felicidade, sempre revisitada pelos mal-estares, meandros desse desejo puro.

Ao demarcar o campo ético próprio ao discurso analítico no Seminário 7, um dos marcos de seu primeiro ensino, Lacan (1988LACAN, J. O Seminário: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. livro 7.[1959-1960]) tinha em vista também o bem-estar, relacionado ao tema da felicidade. Nessa espécie de exercício de esclarecimento ele parece desbotar aquilo que nos embriagaria na felicidade: os engodos diários, os objetos que tentamos reencontrar para contornar a falta fundante, referida a das Ding, não nos aproximam do desejo puro, aquele, sem temor nem piedade, figurado por Antígona. Mas há outros aspectos: Lacan tem a clara noção de que, seja como for, buscamos a felicidade, de que a demanda feita ao analista é da ordem da felicidade; ele também não nega que a felicidade se tornou um negócio de política sob o lema da satisfação para todos, acompanhado pelo desprezo do poder político pelo desejo (LACAN, 1988LACAN, J. O Seminário: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. livro 7.[1959-1960]). O problema seria a psicanálise se disponibilizar a fazer concessões a tais ideais de felicidade, associados à eficácia técnica, ao consumo dos bens, e contemporaneamente à injunção de gozar, esquecendo toda a problemática que Freud levanta quanto ao mal-estar quando associa a busca de felicidade com o próprio princípio de prazer, e, portanto, com todas as dificuldades e impasses implicados nele. Lacan retoma alguns desses impasses por meio do jogo entre o desejo e o gozo.

1. Desejo e felicidade: algumas considerações críticas em torno do Seminário 7

Lacan (1985LACAN, J. O Seminário: mais, ainda (1972-1973). Rio Janeiro: J. Zahar, 1985. livro 20.[1972-1973]) proferiria o Seminário 20 - mais, ainda, marco de seu segundo ensino, doze anos após o fim do Seminário da ética da psicanálise. Três anos desde o fim do Seminário 17 - o avesso da psicanálise (LACAN, 1992LACAN, J. O Seminário: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. livro 17.[1969-1970]), perpassado pelo “clima” do Maio de 68. Também na década de 70, Televisão (LACAN, 2003LACAN, J. Televisão (1974). In: LACAN, J . Outros Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. p. 508-543.[1974]) foi publicado pela primeira vez. É nessa entrevista que encontramos a ética da psicanálise como uma ética do “bem-dizer o desejo”. Antes de abordarmos tal ética vejamos algumas críticas ao Lacan do Seminário 7.

Tomemos um dos mais célebres livros críticos da psicanálise, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (DELEUZE; GUATTARI, 2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972). Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.[1972]). Livro que vale a pena ser retomado por três motivos, pelo menos: apresenta um conceito de desejo que se pretende oposto à ideia de desejo lacaniana; foi classificado por Michel Foucault como um livro de ética; critica o uso do estruturalismo por Lacan, estabelecendo-se como uma das origens do pensamento pós-estruturalista (BIRMAN, 2000BIRMAN, J. Os signos e seus excessos: a clínica em Deleuze. In: BIRMAN, J . Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: 34, 2000. p. 463-478., p. 467).

Colocar o desejo como dependente de uma lei estrutural seria radicalizar o Édipo como complexo em Freud, elevando-o a uma posição quase transcendental. Essa seria uma das bases do argumento de Deleuze e Guattari para pensar o desejo como excesso numa época em que a apropriação lacaniana de Freud pela via estrutural era hegemônica na França (FOUCAULT, 1991FOUCAULT, M. Anti-Édipo: introdução à vida não-fascista. In: FOUCAULT, M . Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. p. 81-84.). O desejo no Anti-Édipo é pensado a partir da ideia de máquina desejante, conceito que atribui ao desejo uma fluidez oposta ao “imutável” da estrutura. Para os autores, o desejo jamais obedeceria a uma base estrutural, sua característica seria produzir sempre. Nada poderia faltar ao desejo já que ele produz sua própria realização.

Um aspecto fundamental à crítica ao desejo do ponto de vista estrutural é a ligação entre Lei estrutural e a ideia de interdição. Para Deleuze e Guattari, de nada vale a distinção lacaniana entre a Lei estrutural, formulada a partir do imperativo kantiano, e as leis de interdição. A Lei estrutural apenas radicalizaria a cultura da renúncia vinculada ao cristianismo e à ideia de dívida eterna com Deus, resultando num desprezo do homem por si mesmo e pela vida, base da má consciência.2 2 Eis um tema tipicamente nietzscheano apropriado pelos autores. Cf. Nietzsche (1998). Tratar-se-ia, para eles, ao contrário, de denunciar a ligação entre a falta e o desejo como mais um modo de captura do segundo, que tornaria impotente sua força transformadora e produtiva.

Michel Foucault (1991FOUCAULT, M. Anti-Édipo: introdução à vida não-fascista. In: FOUCAULT, M . Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. p. 81-84., p. 83) classificou o Anti-Édipo, no prefácio à edição estadunidense, como “o primeiro livro de ética que foi escrito na França desde há muito tempo”. Tal afirmativa inclui a transformação do livro num certo estilo de vida, “ser anti-Édipo” significaria questionar até mesmo os atos mais revolucionários, a fim de denunciar o fascismo que pode estar em qualquer parte. Daí a nomeação da ética que perpassaria o Anti-Édipo como uma “introdução à vida não-fascista”. Um dos itens das propostas de Deleuze e Guattari enumerados por Foucault (1991FOUCAULT, M. Anti-Édipo: introdução à vida não-fascista. In: FOUCAULT, M . Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. p. 81-84., p. 83) seria liberar-se

[...] das velhas categorias do Negativo (a lei; o limite, a castração, a falta, a lacuna) que o pensamento ocidental por tanto tempo manteve sagrado enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas, considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade.

As denúncias do Anti-Édipo passavam por uma distinção entre ética e moral, abordada por Deleuze (1985DELEUZE, G. Pensamento nômade. In: DELEUZE, G . Nietzsche hoje: Colóquio de Cerisy. São Paulo: Brasiliense,1985. p. 56-76., p. 126) em “Pensamento nômade”: a moral (no sentido de “corretude”, de uma pastoral) seria um conjunto de regras coercitivas baseadas em valores transcendentes (certo, errado), para avaliar ações e intenções; a ética seria um conjunto de regras facultativas que avaliam ações e intenções em função de um determinado modo de existência implicados em tais ações e intenções. Já que Deleuze não separava a escrita de um livro – a criação de conceitos – de uma ação, a ética que perpassaria o Anti-Édipo seguiria o viés do desejo como produção, comprometida com o “fazer funcionar”, não avaliando uma ação segundo medidas universalizantes, mas sob o viés da posição do desejo, interessada nos modos de captura das máquinas desejantes (interdito, transformado segundo as categorias do negativo) e em como elas podem fugir de tais capturas.3 3 Deleuze nos dá um exemplo dessa “fuga” pela via da literatura. A escrita de Kafka era estrangeira dentro da língua na qual seus livros eram escritos, o alemão. Sua literatura foi por isso chamada por Deleuze e Guattari (1975) de “menor”, por criar “linhas de fuga” no alemão oficial. Note-se que em escritos como “Psicanálise, morta análise” Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, G.; PARNET, C. Psicanálise, morta análise. In: DELEUZE, G.; PARNET, C . Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 93-141.) deixou claro que o desejo como excesso não pode ser confundido com hedonismo, com felicidade. Escapar das capturas do desejo, quando isso é possível, não nos traria nada parecido com a felicidade, associada também por Deleuze à homeostase, fato que romperia com a própria tentativa de ser fiel ao desejo como produção, como fluidez.

Embora a distinção entre moral e ética também perpasse a obra de Deleuze e a tentativa de desvincular o desejo como excesso da felicidade seja um aspecto fundamental, quando pensamos no contemporâneo não haveria justamente uma espécie de lei às avessas? No pedido para valorizar o positivo ao nos livrarmos da lei, não haveria, como o próprio Foucault (1988)FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 17 ed. São Paulo: Graal, 1988. v. 1. denunciaria anos depois do referido prefácio ao Anti-Édipo, um espaço para modos de poder mais ardilosos por conta de dominar justamente permitindo? Tal ética não cederia à tentação de estabelecer os eleitos, pessoas supostamente capazes de se distanciar da moral, abrindo espaço para uma nova moralidade perpassada pela obrigatoriedade de ser “positivo”?

Podemos ler o Anti-Édipo como uma espécie de “sintoma” (BARROS, 2005BARROS, R. R. O anti-Édipo da psicanálise. Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 42, p. 64-69, fev. 2005.). O sonho de “acabar com o Édipo”, declarado no prefácio da edição italiana de Mil platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: 34, 1995. v. 2.), teria um gosto desesperançoso não porque enfim Édipo venceu, mas porque o livro em questão seria um sintoma de uma época em que o Édipo estaria dando seus últimos suspiros. A proposta ética de abrir-se ao múltiplo, de negar o negativo, seria uma característica essencial do capitalismo e do poder contemporâneos, fragmentados, múltiplos, nômades,4 4 Façamos justiça a Deleuze (1992[1972-1990]): em “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” ele discutiu esse poder fragmentado, distinto do que Foucault chamou de sociedade disciplinar. como o próprio Anti-Édipo anuncia (BARROS, 2005BARROS, R. R. O anti-Édipo da psicanálise. Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 42, p. 64-69, fev. 2005.). Autores como Zizek (2006b)ZIZEK, S. O desejo, ou a traição da felicidade (entrevista com Slavoj Zizek). São Leopoldo: UNISINOS, 2006b. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_content&task=view&id=321&Itemid=89>. Acesso em: 12 ago. 2009.
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apontam como um dos desdobramentos desta nova configuração a exigência de “aproveitar”,5 5 Zizek utiliza-se aqui da noção lacaniana de gozo (jouissanse), e de sua forma verbal (jouir). Ela se traduz para o inglês como enjoy, to enjoy, e por essa via, aproxima-se da noção, na língua portuguesa, de “aproveitar”, como possibilidade de desfrute e de obtenção de satisfação. o dever de obter felicidade. O mal-estar contemporâneo não seria mais o de ter gozado lá onde não se podia, ou o de não se poder gozar disso ou daquilo – os temas da culpa e da insatisfação, temas freudianos por excelência. A interdição, uma vez substituída por um imperativo positivo de aproveitar, desloca o mal-estar para a incapacidade do sujeito de aproveitar como deveria – o tema tão contemporâneo da performance. Não basta, nos dias de hoje, buscar a felicidade. A demanda quanto a isso é um tanto maior, trata-se da máxima eficácia da felicidade. O paradoxo aí é que, uma vez suspensa a interdição de gozar, é na própria promessa de felicidade ligada a essa suspensão que a culpa reaparece: não mais por se ter gozado, mas por ter deixado de fazê-lo, ou de fazê-lo com a máxima eficiência.

2. Bem-dizer o desejo?

No Seminário 7 era estratégico associar a felicidade aos engodos, às promessas massificadas de realização da demanda por homeostase, oferecidas também pela psicanálise. Mas Lacan ainda estaria preso ao regime da lei, da estrutura, e indicaria o momento de assumir o desejo como uma experiência excepcional. Após tal travessia rumo ao desejo como poderíamos viver? Seguiríamos cínicos, apenas jogaríamos o jogo das leis da cidade, do capitalismo vigente (ZIZEK, 2006bZIZEK, S. O desejo, ou a traição da felicidade (entrevista com Slavoj Zizek). São Leopoldo: UNISINOS, 2006b. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_content&task=view&id=321&Itemid=89>. Acesso em: 12 ago. 2009.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?opt...
, p. 4). O aprisionamento do desejo em instituições, seja no campo da literatura ou no campo da psiquiatria, presente na obra de Deleuze e Guattari, foi uma questão que persistiu no ensino de Lacan. A fundação da Escola Freudiana de Paris pode ser entendida como uma tentativa de preservar o legado de Freud, para além das identificações imaginárias das pastorais analíticas, sem o recalcamento da função subversiva da psicanálise ao levar em conta o desejo (RINALDI, 1997RINALDI, D. Ética e desejo: da psicanálise em intensão à psicanálise em extensão. Intersecção Psicanalítica do Brasil. Disponível em: <http://www.interseccaopsicanalitica.com.br/int-biblioteca/DRinaldi/Doris_Rinaldi_Etica_desejo_psican_intenc_psican_extens.pdf>. Acesso em: 13 dez 2010.
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). Tratar-se-ia de pensar outros tipos de laços sociais, distanciados do regime do Mestre, do Pai, mesmo que, em certo sentido, tenha sido um fiasco (ZIZEK, 2006bZIZEK, S. O desejo, ou a traição da felicidade (entrevista com Slavoj Zizek). São Leopoldo: UNISINOS, 2006b. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_content&task=view&id=321&Itemid=89>. Acesso em: 12 ago. 2009.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?opt...
). A escola tornou-se a de Lacan, e Lacan tornou-se ponto de identificação do grupo – tornou-se pai, mestre, líder.

Em 1974 podemos notar uma transformação interessante no discurso de Lacan. Neste ano, ele afirma que “o sujeito é feliz”, e que isso é mesmo a sua própria definição, dado que qualquer sorte é boa para que o sujeito se repita, e, portanto, se mantenha:

Nisso tudo, onde está o que traz felicidade, feliz acaso? Exatamente em toda parte. O sujeito é feliz. Esta é até sua definição, já que ele só pode dever tudo ao acaso, à fortuna, em outras palavras, e que todo acaso lhe é bom para aquilo que o sustenta, ou seja, para que ele se repita (LACAN, 2003LACAN, J. Televisão (1974). In: LACAN, J . Outros Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. p. 508-543.[1974], p. 525).

A diferença é que aqui a felicidade definir-se-ia também pelo sintoma. Ou seja, não somente pela satisfação que estamos acostumados a associar à felicidade, mas também pelo gozo. Antes de procurarmos a análise, nada queremos saber, vivemos felizes com nosso sintoma. Afinal, o domínio do sintoma não diz respeito ao prazer, mas ao sentido. Nosso sintoma faz “todo sentido” para nós e sua manutenção sustenta um certo gozo (MALISKA, 2010MALISKA, M. E. Sintomas atuais e novas formas de gozo. Psicanálise & Barroco em revista, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 112-120, dez. 2010.). A decisão pela análise torna o sintoma clínico, ou seja, aquilo que compõe minha felicidade passaria a ser insuportável, testemunhando o real (MILLER, 1996MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: J. Zahar,1996.).6 6 Miller (1996) ressalta que Lacan teria apontado como uma das saídas para a análise justamente estabelecer uma satisfação sem ruptura do sujeito com seu sintoma, ao acomodar-se, identificar-se com seu sintoma, tornando-o sua felicidade. Pode-se dizer que a importância atribuída ao gozo no segundo ensino de Lacan foi um dos fatores que contribuíram para que outras questões fossem postas à ética da psicanálise, passando por um deslocamento da discussão em torno do regime da lei.

Se “só o falo pode ser feliz, não o portador do dito cujo” (LACAN, 1992LACAN, J. O Seminário: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. livro 17.[1969-1970], p. 77), essa felicidade que vez ou outra parecemos encontrar esbarra sempre num limite, o princípio de prazer é sempre passível de ser refreado. Mas não temos aqui um motivo para que Lacan não se debruce sobre as relações entre o gozo e a satisfação. A felicidade atribuída somente ao falo não quer dizer que o gozo fálico esteja excluído. Ainda no Seminário 17Lacan (1992LACAN, J. O Seminário: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. livro 17.[1969-1970]) interessou-se pelas suplências a este gozo interdito pela castração, na função do mais-de-gozar.

A partir do Anti-Édipo, uma certa “‘vulgata’ deleuziana” oporia os verdadeiros desejos aos desejos capturados pela sociedade de consumo, unida a um aparato de Estado, hierárquico, fundado na lei, que colaboraria na captura do desejo (ZIZEK, 2006bZIZEK, S. O desejo, ou a traição da felicidade (entrevista com Slavoj Zizek). São Leopoldo: UNISINOS, 2006b. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_content&task=view&id=321&Itemid=89>. Acesso em: 12 ago. 2009.
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). O que Lacan apresenta-nos é a possibilidade de ver como o desejo e o gozo se articulam nos discursos. Kaufmann (1996KAUFMANN, P. Dicionário Enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar,1996., p. 222-223) cita, do Seminário 16 - de um Outro ao outro (LACAN, 2008LACAN, J. O Seminário: de um outro ao Outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. livro 16.[1968-1969], p. 63), uma passagem na qual Lacan recorre a Marx para falar da relação entre o saber e o gozo. Lacan nos diz que no capítulo V do Capital, Marx e Engels (1987/1983) expõem os argumentos do capitalista para provar ao trabalhador que o mercado é honesto: ele fornece sua força de trabalho e o capitalista fornece os meios de produção. No entanto, o capitalista “ri”. Tal riso seria o efeito da mais-valia rendida, no exemplo, na troca entre o capitalista e o trabalhador. É o efeito silenciado no discurso, “esse ‘viu!’ que atinge você no ventre no efeito do chiste”, comentou Lacan (2008LACAN, J. O Seminário: de um outro ao Outro (1968-1969). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. livro 16.[1968-1969], p. 63) no Seminário 16. A mais-valia é o mais-gozar, o outro nome dado ao objeto a, ao mesmo tempo causa do desejo e objeto perdido como preço pago, como gozo renunciado, ao saber.

Com isso podemos pensar não em termos dos empecilhos para “aproveitar”, encarnados, para alguns, na lei, mas na injunção de aproveitar. Citamos acima que viveríamos um momento no qual está difundido na cultura um culto à alta performance e ao bem-estar. Se à época de Freud as queixas estavam relacionadas à culpa por se ter burlado uma interdição e ao prazer gerado na dor em obedecer ao imperativo superegoico, hoje teríamos um sentimento de impotência gerado por não conseguir aproveitar, já que esbarramos na impossibilidade de aproveitar ao máximo. A busca por um “a mais” é ilustrada por Zizek (2006aZIZEK, S. La marionnette et la nain: le christianisme entre perversion et subversion. Paris: Seuil, 2006a., p. 183) através dos ovos de chocolate Kinder. As crianças buscam o brinquedo de plástico dentro do ovo, o que menos importaria é o chocolate. O brinquedo atenderia, diz Zizek, à promessa de “uma outra coisa”, de um prazer insondável, obtido nesse “misterioso excesso”: algo “a mais” que se apresentaria como perfeitamente inútil. A impotência por não poder aproveitar “ao máximo” pode ser entendida também por meio dessa tentativa de buscar um a mais, busca associada contemporaneamente a um excesso permitido que barraria o gozo (ou o prazer?), já que o superego (interdito e imperativo do gozo) exige cada vez mais.

O mais-gozar pode ser compreendido também segundo a famosa “sentença” lacaniana, “não há relação sexual”. O falo como significante simboliza o sexo do homem. A função do pai da horda, que goza das mulheres, delimita uma exceção, o “Um” não submetido à castração. Para a mulher, há a indeterminação como ausência de significante sexual, implicando numa impossibilidade do universal da mulher. Daí decorre um gozo mais-além do falo, infinito por vir do “significante da falha no lugar do Outro” (KAUFMANN, 1996KAUFMANN, P. Dicionário Enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar,1996., p. 223). Daí o paralelo entre a mulher e a verdade: “a verdade já é mulher, por não ser toda – não toda a se dizer, em todo caso” (LACAN, 2003LACAN, J. Televisão (1974). In: LACAN, J . Outros Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. p. 508-543.[1974], p. 538). A verdade, que podemos querer saber, só pode ser dita como um semi-dizer. A outra metade diz respeito ao real e sua impossibilidade.

O bem-dizer o desejo como ética da psicanálise não nos diz onde está o Bem, muito menos se confunde com o belo-dizer, com a eloquência (MILLER, 1996MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: J. Zahar,1996., p. 110). Para o analista trata-se da dimensão ética da enunciação (o que se quer dizer com o que se diz) na interpretação, cujo manejo torna o analisando o sujeito suposto saber. Mas o bem-dizer seria também o semi-dizer, o chiste no dizer do analisando.

3. Algumas considerações

Lacan permaneceu fiel à ética da psicanálise como uma ética específica, desinteressada em dizer o que é e onde estaria o Bem. Esta ética do particular só pôde sustentar-se como tal por levar em conta as relações entre o desejo e o gozo. Se a aliança entre lei e ética do desejo no Seminário 7 articulava-se à questão da proibição do incesto como estrutural, apesar das tentativas do mercado dos bens, da pastoral analítica de tamponá-la com promessas de felicidade, no segundo ensino a felicidade é parte do sintoma, o qual só se torna clínico diante de uma “falha” na felicidade, de um encontro com o impossível do real. O objeto a coloca-se como causa do desejo e objeto perdido na renúncia ao gozo. Objeto envolvido também na busca por recompensas desta perda, como um mais-gozar.

Vemos que um certo tom de “missão de esclarecimento” sobre as enganações da felicidade para todos que nos é oferecida, dá lugar à análise da felicidade particular do sintoma. A falta de grandes pretensões no argumento de Lacan chega a frustrar-nos: “A única chance que ex-siste decorre apenas do feliz acaso [bon heur], com o que pretendo dizer que a esperança não adiantará nada, o que basta para torná-la inútil, isto é, para não permiti-la” (LACAN, 2003LACAN, J. Televisão (1974). In: LACAN, J . Outros Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. p. 508-543.[1974], p. 541).

Não há promessas de solução. A psicanálise só pode ser composta pela ética do bem-dizer o desejo. Pode-se dizer que a contribuição de Lacan ao Maio de 68 foi questionar estudantes pela via do gozo: “É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre” (LACAN, 1992LACAN, J. O Seminário: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. livro 17.[1969-1970], p. 218). Abriu-se o caminho para pensarmos como o “a mais” que muitas vezes esperamos pode tornar a busca por uma verdade que seja “toda-possível”. Não caberia à ética da psicanálise nem uma nostalgia do Pai, das antigas soberanias, muito menos uma promessa de libertação do desejo. O que ela pode então? Reconhecer distintos modos de lidar com o objeto a, abrindo novas possibilidades aos sintomas. Frente a um mundo prenhe de promessas eis o paradoxo: daí vem sua potência.

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    » http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_content&task=view&id=321&Itemid=89>
  • 1
    Junção das palavras inglesas psychoanalysis e babble, palavra que pode ter o sentido de “balbucio”, de “discurso confuso”, de “balela”.
  • 2
    Eis um tema tipicamente nietzscheano apropriado pelos autores. Cf. Nietzsche (1998)NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,1998..
  • 3
    Deleuze nos dá um exemplo dessa “fuga” pela via da literatura. A escrita de Kafka era estrangeira dentro da língua na qual seus livros eram escritos, o alemão. Sua literatura foi por isso chamada por Deleuze e Guattari (1975)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: pour une literature mineure. Paris: Minuit, 1975. de “menor”, por criar “linhas de fuga” no alemão oficial.
  • 4
    Façamos justiça a Deleuze (1992DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1972-1990). In: DELEUZE, G . Conversações. São Paulo: 34, 1992. p. 219-226.[1972-1990]): em “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” ele discutiu esse poder fragmentado, distinto do que Foucault chamou de sociedade disciplinar.
  • 5
    Zizek utiliza-se aqui da noção lacaniana de gozo (jouissanse), e de sua forma verbal (jouir). Ela se traduz para o inglês como enjoy, to enjoy, e por essa via, aproxima-se da noção, na língua portuguesa, de “aproveitar”, como possibilidade de desfrute e de obtenção de satisfação.
  • 6
    Miller (1996)MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: J. Zahar,1996. ressalta que Lacan teria apontado como uma das saídas para a análise justamente estabelecer uma satisfação sem ruptura do sujeito com seu sintoma, ao acomodar-se, identificar-se com seu sintoma, tornando-o sua felicidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2012
  • Aceito
    15 Abr 2015
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