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O Estado, a política liberal e a biopolítica

The state, liberal politics and biopolitics

Resumos

Nesse ensaio, problematizamos ações da política liberal e suas relações com o Estado. Ao considerar algumas de suas proposições, questionamos a quaisrelações de poder essa prática social responde. Em que circunstâncias ela se interessa pelo governo dos homens? A partir do estudo das práticas intituladas como filantropia empresarial podemos indicar algumas estratégias e táticas dessa política. Entre as quais destacamos: a construção do Estado Moderno, a elaboração das diversas técnicas de controle social e as mudanças de foco com relação às análises das forças produtivas do capitalismo, que passaram a intervir nas curvas de normalidade econômica imanentes aos fenômenos da população.

política liberal; estratégias de controle social; Michel Foucault


This essay discusses some liberal political actions and their relations with the state. Considering some of their propositions, we ask: what power relations does that social practice respond to? Under what circumstances is the liberal politics interested in the government of men? From a study of the practices called corporate philanthropy we can indicate some strategies and tactics of such politics. Among which: the construction of the modern state, the development of various techniques of social control and the focus changes regarding the analysis of capitalism productive forces that intervene within the economic normality curves inherent in the population phenomena.

liberal politics; strategies of social control; Michel Foucault


Nesse ensaio, problematizamos algumas ações da política liberal e suas relações com o Estado, dado que existe nessas iniciativas um status de inovação tecnológica a ser interrogado, pois se inscrevem no interior de uma racionalidade que objetiva governar as populações e tem como instrumento técnico para realizar esse fim uma sociedade controlada por mecanismos de segurança.

A fim de considerar algumas de suas proposições, perguntamos: a que relações de poder essa prática social – a política liberal e o Estado – responde, ao fomentar suas ações? Em que circunstâncias a política liberal se interessa pelo governo dos homens?

Ao partir de um estudo das práticas comumente chamadas de "filantropia empresarial",1 1 Trata-se de pesquisa de mestrado realizada sob a orientação de Sonia Aparecida Moreira França (ZANETTI, 2007). podemos indicar algumas estratégias e táticas dessa política. Hoje, as forças sociais que estão em jogo são as do livre comércio de mercadorias, e uma das funções exercida pelo Estado é a de regular as flutuações da produção, da circulação das riquezas, das coisas e dos homens.

Se essas estratégias efetivam o investimento em mercado de capitais (financeiro, humano social, natural etc.), de maneira especial, precisamos evidenciar as táticas e os procedimentos que este incita econômica e politicamente, para o controle social da miséria. Por conseguinte, perguntamos: quais estratégias e técnicas esses investimentos instituem ou promovem?

Estratégias e táticas de afirmação da política liberal

O Estado moderno e as técnicas de controle social

Esta estratégia de intervenção no mundo social se atualiza no desenvolvimento interno do próprio Estado nacional moderno. Refere-se ao proc esso de controle sobre a vida do indivíduo e à organização das formas de governo da população, em cuja realização as forças do capital tomam a frente.

A emergência dessa estratégia inicia-se nos séculos XVI e XVII.2 2 Sobre esse tema, ver Foucault (2008a). Nesse período, a vida política se institui no interior de uma nova problemática: a arte de governar. Novas perguntas aparecem em cena pública: quem irá governar? Como se deve governar? Para quem se governa, com que meios e com qual finalidade? Governa-se de mais ou de menos? Como não ser governado? Ou seja, o que está em questão é uma prática refletida de governo que traz a crítica permanente de si mesma, de sua própria racionalidade de governo. Uma crítica que se refere a um tipo de fazer dos homens e das formas de se relacionar com o governo. Como governar os homens e o Estado.

Esse acontecimento histórico evidencia novas problemáticas para a arte de governar: a) um modo de governo que se aplica ao Estado e às novas formas de tecnologias de poder, no governo dos homens; b) a relação entre a política e a estratégia, pois se exige um princípio de inteligibilidade e racionalização das relações de força; c) a população, uma vez que, para que esta tenha uma relação eficaz com os recursos do Estado, ela precisa estar acessível aos agentes e às técnicas de transformação social; d) e como dizer "sim" ao desejo do indivíduo e, paralelamente, torná-lo dócil aos interesses gerais da população, isto é: como efetivar uma política dos corpos.

Para Michel Foucault (2008a)FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos., a arte de governar os homens tem como finalidade a própria racionalidade do Estado – e este é uma instância real que define as possibilidades de governo; a política é, assim, certa maneira de pensar, raciocinar e calcular as artes de governar. Portanto, analisar o tipo de racionalidade implicada no exercício de poder do Estado – de sua organização política, de seus mecanismos de sustentação e organização, de seus saberes e da arte de governar – é uma das tarefas necessária para a análise do próprio Estado, do capitalismo e da política liberal que os entrelaça.

Em seu texto Sujeito e poder (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. Sujeito e Poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.) , o autor aponta algumas posições estratégicas para a análise das formas de racionalização e gestão técnica da nossa sociedade. Quer dizer: de que essa análise passa pelos diversos sistemas de diferenciações das relações de poder que uma dada sociedade possui, porque são eles que regulam um campo de ação sobre a ação dos outros, se o facilitam, o incitam ou o coagem.

A partir do século XVI, a questão que se impõe para os governantes do Estado é o governo das populações e das riquezas de um território, fato esse que torna mais agudo o problema da soberania e a necessidade de se desenvolver mecanismos disciplinares para regulamentar a circulação de bens e de homens. Para tanto, se "[...] elaboram técnicas precisas de ordenação e disciplinarização dos indivíduos" (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 151DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica : para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.), como também introduzem uma mudança na filosofia política, de sorte que o Estado agora é um fim em si mesmo.

O que se realiza, nesse sentido, é uma forma de organização política que se liberta da ordem dos "interesses superiores", sejam eles os interesses divinos, sejam aqueles que dizem respeito ao destino individual dos príncipes: "[...] a racionalidade política não tentaria mais alcançar a felicidade nem apenas auxiliar o Príncipe, mas aumentar o escopo de poder em proveito próprio, mantendo os corpos dos súditos do Estado sob uma disciplina mais rígida" (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 151DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica : para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.).

Essa racionalidade política levaria à emergência de um tipo de poder muito específico, que Foucault denominará poder disciplinar,3 3 Sobre esse tema, ver: Castro (2004). baseado em um sistema de lei – o código penal, que toma a soberania como elemento de determinação. O território é seu espaço de segurança, pois a soberania se exerce no limite do território, o indivíduo e o contrato social se inscrevem nos jogos entre compromisso e litígio, para delimitar o que é o proibido. A enunciação reguladora é: "Não faça isso". Aquele que viola a lei rompe com o contrato, porque ele é que legitima a pertença ou não do indivíduo a um determinado território ou grupo social. Todo indivíduo que respeita a lei subscreve esse contrato, reconhece-o enquanto tal e, mais ainda, o prorroga a cada instante de seu próprio comportamento. O que se realiza é o sujeito coletivo do contrato social, uma sociedade baseada na lei e um "Estado de Justiça" que desenvolve sofisticadas técnicas de segregação, de recusas, lastreadas em saberes científicos tais como os da medicina e da psiquiatria. Emerge a era dos grandes enclausuramentos sustentados por um sistema jurídico-legal até fins do século XVII.

Essa relação intricada entre soberania, disciplina e governo exige intensificar os usos de mecanismos disciplinares que, desde o início do século XVIII, emergem de forma contundente com as tecnologias de normalização social, a fim de organizar as capacidades humanas, de unificar as suas características e estabelecer classes de equivalência, para responder aos processos de produção e racionalização da sociedade moderna em sua função de gerir as multiplicidades, quer sejam elas as dos homens, quer as das coisas.

Para tanto, o sistema disciplinar irá tomar o corpo dos indivíduos como objeto de sua ação e, a partir dele, irá codificar e regulamentar o obrigatório, o permitido. A enunciação reguladora será: "Faça isso". Portanto, as tecnologias de normalização social serão partes integrantes da criação, classificação e controle sistemático das anomalias, e a expansão dessas tecnologias dependerá da intensificação do uso do crivo normativo na delimitação das anormalidades sob a bandeira de tornar as pessoas saudáveis, protegendo-as do risco. Seu espaço de segurança irá se exercer sobre o corpo dos indivíduos e realizar sua eficácia na individualização do fenômeno coletivo –"o caso" – e tomará o sistema penal como uma técnica disciplinar, e a ciência do direito como fundamento de saber. É o que Foucault chamará de "Estado Administrativo", um tipo de sociedade disciplinar ou sociedade da normalização, baseada em regulamentos e técnicas disciplinares ( observação hierárquica, exame, sanção normalizadora), que se inscrevem no interior de procedimentos os quais abrigam certos princípios de classificação, de ordenação e de distribuição dos corpos e, ao mesmo tempo, determinam para os sujeitos propriedades e funções singulares.

Para o autor, no século XVIII, duas tecnologias de poder se efetivam nas práticas de governo: essa de que tratávamos, uma técnica disciplinar individualizante, centrada no corpo tomado como uma força que é preciso tornar útil e eficiente, e outra, centrada na regulação dos processos inerentes à vida como fenômeno biológico, cujo objetivo é procurar controlar seus efeitos fortuitos, para ordenar a segurança. Uma tecnologia de poder em que o corpo é individualizado como um organismo dotado de habilidades e capacidades e, também, onde os corpos são recolocados nos processos biológicos de conjunto.

É o que Foucault denominará biopoder,4 4 "Trata-se de uma tecnologia de sujeição que permite desde a gestão administrativa dos corpos e da vida do indivíduo às formas de vida da população. O biopoder designa aquilo que faz entrar a vida e seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana [...] o homem moderno é um animal em cuja política sua vida, enquanto ser vivo, está em questão" (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 148). ou seja, ativou-se o interesse político pelo corpo humano como um ser vivente, enquanto uma espécie da natureza, e igualmente um corpo capaz de produzir riqueza para as forças organizadoras de uma dada sociedade. Esse acontecimento permite novas formas de gestão da população, que, para o autor, é a característica maior da racionalidade política moderna, esse esforço constante de reunir os indivíduos a uma totalidade política. Um contexto de exercício de poder que não visa a reprimir, mas a suscitar, incitar, limitar ou desviar diferentes dimensões da vida humana para uma composição dos indivíduos a uma totalidade vivente, qual seja, o governo das populações. A "biopolítica".

Pode-se dizer que o elemento que irá circular entre o corpo e a população, entre os sistemas disciplinar e o regulamentador, que possibilitará controlar, ao mesmo tempo, a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica (população) é a norma. A norma é o que se pode aplicar tanto ao corpo que se quer disciplinar, como à população que se quer regulamentar.

Como salienta François Ewald (1993)EWALD, F. Foucault, a norma e o direito. Tradução de Antonio Fernando Cascais. Lisboa: Vega, 1993., a norma designa um princípio de comunicação de signos para a fabricação de sentidos e reciprocidades, portanto, seu trabalho é oferecer conteúdos e técnicas para a produção das formas que terão as práticas da biopolítica, e tomará a população como sujeito-objeto coletivo, definindo as estratégias e os objetos para incidir na vida cotidiana imediata.

O trabalho da norma é pura relação, são regras e técnicas que um grupo se autooferece, e seus significados são vazios. A afirmação de um conteúdo depende da perspectiva do jogo de forças que agem em um dado momento histórico. Sua função é gerir as multiplicidades, prever os riscos, controlar as virtualidades das condutas, medir o lugar e o valor de cada indivíduo em relação à média do grupo em que está inserido. O anormal se realiza no interior de jogos de equivalência em relação ao normal como um índice que inscreve os limites toleráveis das curvas de normalidade. Normalizar é fazer da língua um princípio geral de comunicação.

A tríade soberania, disciplina e normalização dos indivíduos e da população serão elementos essenciais para um tipo de gestão governamental que se instaura nos fins do século XVIII – o liberalismo. A população é seu objeto principal. Seu mecanismo essencial de governo são os dispositivos de segurança, e seu saber fundamental é a economia política. É o que Foucault chamará de governamentalidade. Seu campo de enunciação será: "Deixa fazer" . E os mecanismos de segurança irão agir no ponto onde as coisas se produzem, sejam elas desejáveis ou não. Assim, suas táticas se orientam para apreendê-las em sua realidade efetiva. O que se propõe é um trabalho sobre o próprio elemento da realidade, uma regulação dos processos de produção de real.

Essa complexa organização social na qual a Lei proíbe, a Disciplina prescreve e a Segurança responde aos elementos da realidade, tal como aparecem, age sobre eles de forma que os anule, os incite, os limite, os freie ou os regule na direção necessária das condutas econômicas, sociais, culturais, políticas etc. Teremos, em decorrência, um "Estado de governo" , um Estado governamentalizado, uma sociedade da governamentalidade, uma sociedade da segurança.

Por conseguinte, para Foucault, problematizar a racionalidade do Estado moderno implica um estudo das formas de governamentalidade nela engendradas, dos procedimentos técnicos que lhe são essenciais, dos tipos de cálculos que se propõe, de suas formas de instrumentação, de saberes que legitima, das instituições que avaliza, das reflexões e táticas que oferecem sustentação a essa forma singular de exercício de poder que tem: a população como alvo, a economia política como forma de saber e os mecanismos de segurança, como instrumento técnico; ou seja, um exame das artes de governar, tanto daquelas que dizem respeito ao governo dos outros como das que concernem ao governo do indivíduo por si mesmo.

Um Estado governamentalizado funciona no interior de um sistema de segurança que transforma a correlação de forças entre os três sistemas – o legal, o disciplinar e o biopolítico – e se organiza ao redor de novas formas de penalidade e de cálculo dos custos. Para os dispositivos de segurança, todo acontecimento é importante por sua probabilidade de incidência, de inscrição e demarcação de um índice nos limiares das curvas de normalidade, isto é, esses sistemas não progridem de um para o outro, muito menos se anulam, nem do ponto de vista das estruturas jurídicas ou dos mecanismos disciplinares.

Os mecanismos de segurança que agem no interior da governamentalidade biopolítica introduzem medidas legislativas, decretos, regulamentos, circulares, regras de comportamento, técnicas etc., nas práticas de governo e nas tecnologias de produção da subjetividade, cada vez mais enredadas em seus argumentos ou diretrizes. Uma série de edifícios complexos, pois as mudanças afetam as próprias técnicas inerentes a cada um dos sistemas, que se sofistica, se aperfeiçoa, se rearranja e se desloca no interior de estratégias e táticas que intensifiquem a arte de melhor governar.

No momento em que o homem como animal vivente adquire uma existência política, e a vida biológica se converte em objeto de governo, ele se apresenta para a cena pública com base em sua inserção biológica, e a população emerge como o conjunto de elementos (físicos, demográficos, coisas e homens) em que será possível assinalar as constâncias e as regularidades que lhe são próprias. Por conseguinte, a população é, por um lado, a espécie humana – o bios – e, por outro, o público, ou seja, a "biopolítica" . A população é essa extensão que transita do marco biológico da espécie até essa superfície de inscrição denominada pública. Assim, o problema político moderno é a população como objeto tecnopolítico de governo, quer dizer, um nível de realidade aberto às intervenções das novas tecnologias de poder.

Esse novo modo de governar leva ao fim as incompatibilidades que poderiam existir entre o Estado e os interesses dos mercados, o corpo dos homens e a produção das riquezas, entre a política e a economia, porque, a partir do século XVI, o que está em jogo é como pôr em ação um tipo de economia que ofereça ao Estado instrumentos para: a) o manejo da riqueza, a fim de expandi-la; b) o trabalho sobre a conduta de todos os homens e de cada um em particular, de sorte a intensificar sua utilidade; e c) principalmente, o provimento das condições necessárias para intervir em um nível de realidade constituído por modos de circulação desse conjunto de relações composto por homens e coisas, a população (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos.).

Dessa forma, ao se desvencilhar dos interesses divinos e dos do soberano, o Estado Moderno está livre para suprir seus próprios interesses e, ao mesmo tempo, está aberto às ações do poder econômico, já que, para apreender e intervir nessa rede contínua e mutável de relações entre a população, o território e a riqueza, ele precisará de um tipo de saber sobre os processos que lhe são inerentes, ou seja, uma ciência de governo e uma ciência das relações entre as riquezas e a população.

Para Foucault (2008a)FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos., a sobrevivência do Estado e de seus limites de intervenção nas práticas governamentais somente pode ser problematizada com o concurso das táticas de governo, pois são elas que definem o que é público e o que é privado, o que deve ou não estar na órbita de competência das ações do Estado. Mais ainda, como frisamos, desde o século XVIII, constitui-se uma forma de Estado definido pelas artes de governar inscrita em várias plataformas: a) num conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões, técnicas, cálculos e táticas que permitem exercer esse tipo de poder que tem a população como objeto tecnopolítico; b) num conjunto de técnicas que se referem à instrumentalização de um saber econômico, a economia política, que elas utilizam para otimizar a positividade e a realidade material da população, e têm como instrumento técnico, para realizar esses fins, uma sociedade controlada por mecanismos de segurança. É o que Foucault (2008a)FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos. denomina "Estado governamentalizado".

Essa nova forma de organização das relações de poder – ações que objetivam incitar as condições de governo sobre a ação dos outros e estimular as estratégias de enfrentamento que operam no interior das práticas que oferecem as circunstâncias formais a partir das quais o homem irá governar a si próprio – busca conferir eficácia à ascendente predominância da esfera de ação do Estado, de seu enriquecimento e do aumento de intensidade de suas forças. Quer dizer, o Estado se governa segundo leis que lhe são inerentes, ele deve instituir sua própria racionalidade naquilo que constitui a realidade mesma do Estado. Não há algo exterior, como os interesses do príncipe ou os da Igreja, ou princípios superiores de justiça, que definam os fins do Estado.

Como ressalta Foucault (2008b)FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos., o Estado não tem nenhuma finalidade exterior. Para o autor, nunca se governa um território, uma estrutura política, porém, sempre as pessoas em suas relações com as coisas, ou melhor, o governo irá se exercer sobre

[...] o que poderíamos chamar de república fenomenal dos interesses. Questão fundamental do liberalismo: qual o valor de utilidade do governo e de todas as ações de governo numa sociedade em que é a troca que determina o verdadeiro valor das coisas? (FOUCAULT, 2008b, p. 63-64)FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos..

Portanto, a constituição do Estado moderno e a política liberal são processos imanentes das novas formas de governar que estão em ação em nossa sociedade, desde o século XVI, pois a

[...] a economia política é uma espécie de reflexão geral sobre a organização, a distribuição, a limitação dos poderes numa sociedade. A economia política [...] é o que possibilitou assegurar a auto limitação da razão governamental. [...] Ela não se desenvolveu contra a razão de Estado e para limitá-la, pelo menos em primeira instância. Ao contrário, ela se formou no próprio âmbito dos objetivos que a razão de Estado havia estabelecido para a arte de governar, porque, afinal de contas, que objetivos a economia política se propõe? Pois bem, ela se propõe como objetivo o crescimento simultâneo, correlativo e convenientemente ajustado da população, de um lado, e dos meios de subsistência do outro. O que se propõe a economia política? Pois bem, garantir de forma conveniente, ajustada e sempre proveitosa a concorrência entre os Estados (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos., p. 19).

E, desde o século XVIII, o liberalismo formula uma nova arte de governar que instaura mecanismos complexos cuja finalidade não é tanto assegurar o crescimento do Estado, mas instituir mecanismos que limitem, do interior, o exercício do poder de governar.

Se, desde o século XVI, o mercado é um dos objetos privilegiados de intervenção, de regulação governamental, a partir do século XVIII, ele se efetiva como um mecanismo de formação da verdade e sob a forma de uma governamentalidade regulamentar indefinida, ou seja, o mercado se "autorregula" e, para as artes de governar, se deve reconhecer que é preciso deixá-lo agir com um mínimo de intervenção (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos., p. 40).

Por essa razão, cresce a capacidade de ação dos efeitos do mercado nas práticas governamentais. Se o mercado age em acordo com sua própria natureza, o regime de verdade que institui se propõe como regra às políticas econômicas do Estado: a avaliação dos indicadores econômicos, das variações a que estão sujeitos os mercados globais de capitais, de força de trabalho, de distribuição de riquezas, de produção das coisas, etc.

Como salienta Foucault (2008bFOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos., p. 44), para o liberalismo,

[...] o mercado, quando se deixa que ele aja por si mesmo de acordo com a sua natureza, com sua verdade natural, digamos assim, permite que se forme certo preço que será metaforicamente chamado de preço verdadeiro, que às vezes será também chamado de justo preço, mas já não traz consigo, em absoluto, essas conotações de justiça. Será um certo preço que vai oscilar em torno do valor do produto.

Assim, é no mercado que os preços das coisas e dos homens (capital humano) podem ser regulados, pois é por ele que as coisas se colocam em evidência, entram no jogo das forças, sendo nesse lugar que os cidadãos se reúnem para negociar seus interesses e julgar o valor das coisas de acordo com suas necessidades e, dessa maneira, colocar em avaliação e juízo a relação entre a escassez e a abundância.

Em consequência, para o autor, na política liberal é o mercado que se constitui como padrão de verdade para as práticas governamentais, se elas são corretas ou erradas.

Em outras palavras, o mecanismo natural do mercado e a formação de um preço natural é que vão permitir – quando se vê a partir deles, o que o governo faz, as medidas que ele toma, as regras que impõe – falsificar ou verificar a prática governamental (FOUCAULT, 2008b, p. 5)FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos..

Portanto, o Estado se torna um elemento desse jogo da realidade consigo mesma, de tal forma que sua função política é regular os interesses e refletir sobre a utilidade de uma intervenção governamental, com o objetivo de frear, limitar ou, por fim, anular certos elementos dessa realidade.

Esse acontecimento permite que a estreita relação entre Estado e política liberal se afirme cada vez mais, trazendo a exigência da eficácia utilitária tanto nas decisões políticas e econômicas, quanto na organização dos mecanismos de controle das flutuações dos fenômenos que são próprios à população. Essa nova arte de governar que negocia interesses – o liberalismo – promove um conjunto de estratégias e procedimentos de enfrentamento que se realizam no interior de um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, entre os direitos do homem e o cálculo utilitário da independência dos indivíduos, entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público indexado por um princípio de utilidade. Para isso, insere-se um mecanismo que precisará arbitrar esse jogo entre a liberdade e a segurança do indivíduo, da população e do Estado, um gestor dos perigos.

Critérios de ação governamental

A segunda estratégia de afirmação da política liberal se refere às mudanças de foco com relação às análises das forças produtivas do capitalismo. Para as novas tecnologias de governo, o que está em jogo nas estratégias de gestão da riqueza e da pobreza são a positividade e a racionalidade das forças produtivas para a expansão da riqueza, isto é, elas dizem respeito às flutuações dos limites toleráveis de pobreza ou de riqueza no interior das curvas de normalidade econômica imanentes aos fenômenos da população: estimular os índices de produção, de natalidade, dirigir os fluxos populacionais férteis e intensificar a utilidade dos indivíduos etc.

Esse mote analítico gera algumas situações : 1) a política liberal investe na realização de um tipo de ação que intervém diretamente num elemento da realidade, nesse caso; realizar ações que buscam afetar as diferenças na distribuição das riquezas e, principalmente, intervir nas lutas entre as estratégias de poder e as estratégias de enfrentamento e suas condições de rebelião e sedição.

O que se considera nesse investimento é: como manter um índice de segurança entre a escassez e a abundância no interior de limites social e economicamente viáveis, e ao redor de uma média entendida como aceitável para um funcionamento social dado, a fim de evitar rebeliões. O que se enuncia é a ação de controles reguladores que insere o fenômeno – escassez e abundância – na série de acontecimentos prováveis que incorpora a ordem dos cálculos e custos nas relações de poder, esboçando uma outra distribuição das coisas e dos homens.

Como ressalta Foucault (2008a)FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos., o custo da escassez e o custo da abundância não se movimentam no mesmo ritmo, ou na mesma direção; portanto, faz-se necessário criar mecanismos de segurança que introduzam modificações nesse elemento de realidade, alterando o destino da população. Enfim, o que está em jogo é como otimizar os elementos que compõem a população, esse conjunto complexo que se produz na circulação de homens e coisas.

No caso da política liberal, o que se lhe apresenta como problema é: como se apoiar em dados materiais específicos, não totalizáveis, pois vários são os objetos econômicos para assegurar o desenvolvimento econômico máximo, organizar sua circulação, suprimir seus aspectos perigosos, maximizar ou reduzir o consumo etc., ou seja, como gerir essas séries indefinidas e abertas (de circulação, acontecimentos, unidades que se acumulam) que só podem ser controladas pelo cálculo das probabilidades.

Nessa perspectiva, os mecanismos reguladores das flutuações entre pobreza e riqueza enunciam um novo propósito para maximizar as positividades dos mercados: a responsabilidade social dos fluxos econômicos. Todavia, como inscrever esse campo moral no domínio dos cálculos?

Primeiramente, no campo da atitude crítica: com os processos de globalização e a circulação intensa de bens de capital, crescem as críticas à função do Estado e às racionalidades por ele instituídas, seja por estas não cumprirem com suas obrigações de regular os fluxos econômicos predatórios, seja por seus excessos de intervenção nos mecanismos de regulação. Em consequência, o que se institui como objeto de análise é uma prática refletida de governo e as racionalidades por ela produzidas. Governa-se demais ou de menos?

Em segundo lugar, a política liberal engendra múltiplas articulações, por intermédio de ONGs, institutos, universidades, instituições etc., em sua parceria com o Estado, na arte de governar, tanto para intensificar processos de subjetivação cada vez mais heterogêneos e complexos, quanto para agir nas flutuações dos efeitos do capital nos eventos de conjunto da população. Entre a escassez e a abundância, há uma série de curvas de normalidade que delimitam as condições possíveis e toleráveis de miséria e de riqueza. Obter lucro e eficiência em suas ações é um desses índices para as artes de governar.

A segunda situação que o campo analítico engendra com relação às análises das forças produtivas do capitalismo acontece no momento em que as desigualdades econômicas deixam de ser um problema de exploração e confronto sociais e se transformam em um problema da ordem de desempenho dos indivíduos.

O que isso quer dizer? Que existe um tipo de racionalidade política liberal muito específica implicada no exercício de poder em nossa sociedade, no que diz respeito ao governo das condutas dos homens, o que Foucault (1990)FOUCAULT, M. Tecnologías del yo y otros textos afines.Barcelona: Paidós Ibérica, 1990. denominará "tecnologias do eu". Para o autor, não é possível problematizar o Estado moderno – uma forma totalizante – sem considerar as técnicas de poder orientadas aos indivíduos e interessadas em dirigi-los de maneira contínua e permanente – as técnicas de individuação.

De acordo com Foucault (1990)FOUCAULT, M. Tecnologías del yo y otros textos afines.Barcelona: Paidós Ibérica, 1990., as diversas formas de governo dos indivíduos determinam diferentes modos de objetivação do sujeito e, no caso das tecnologias do eu, elas se articulam com um tipo de governo que exige não apenas obedecer, mas comunicar, expressar o que se é, isto é, a formação de um tipo de Ciência que aprimore os jogos de verdade com técnicas muito específicas a partir das quais o homem procurará entender a si mesmo.

Esse acontecimento histórico, a emergência das Ciências Humanas, faz passar o homem para o lado dos objetos da natureza e, consequentemente, aberto aos processos de intervenção científicos e um objeto de saber possível. Em seu texto Sujeito e poder, Foucault (1995)FOUCAULT, M. Sujeito e Poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249. assevera que os processos de objetivação que transformam o ser humano em sujeito se orientam no interior de várias práticas: a) os modos de investigação que tomam em consideração o sujeito que "trabalha" – a economia, a análise das riquezas; as investigações que têm como problema o sujeito que "fala" – a linguística, a gramática; e aquelas que objetivam o homem enquanto "ser vivo" – a biologia, a história natural etc. b) os processos de objetivação que intensificam procedimentos racionais de campos identitários para os indivíduos – as práticas divisoras do sujeito, tanto em si mesmo como em sua relação com os outros homens – a razão, a emoção; a mente, o corpo; o doente, o sadio, o delinquente etc. c) as práticas em que o ser humano se reconhece como sujeito da sexualidade. Esses diferentes modos de objetivação do ser humano, em nossa cultura, ora o inscrevem em categorias universais, totalizando-o, ora multiplicam de modo infinitesimal as flutuações de seus lugares de enunciação identitária nas curvas de normalidade.

Essa forma de racionalidade da política liberal inscrita no governo das condutas humanas e incitada nas "tecnologias do eu" atualiza-se no interior de uma difusão das relações de poder entre diversas instâncias sociais: instituições, indivíduos, grupos, saberes, valores morais, técnicas etc. Nesse caso, as relações de poder destas práticas são exercidas de maneira compartilhada entre vários saberes, tais como: a pedagogia, a arte, a psicologia, o direito, a medicina, a biologia, a economia etc. e, a política liberal se entrelaça com o Estado nessa partilha a fim de afirmar novas realidades sociais. Consequentemente, novas estratégias e táticas metodológicas de governança se efetivam, como por exemplo, a democracia representativa e o exercício da cidadania, e as formas de legitimidade da autonomia etc., no interior das quais outras modalidades de exercício de poder são disponibilizadas ao seu público-alvo, instituindo novos campos de ação das tecnologias de intervenção e controle social.

A grande inovação dessas tecnologias é a possibilidade de fazer com que, não somente a população, mas cada indivíduo produza instrumentos para controlar as flutuações dos fenômenos que lhe são próprios. Seus mecanismos de ação devem indicar os pontos de flutuação entre a escassez e a abundância dos fluxos de riqueza, em sua própria realidade, pois esses pontos das curvas de normalidade são, em geral, justamente os campos de emergência dos índices necessários para se colocar em ação os agentes de transformação social.

Para exercer a arte de governar com eficácia, os fluxos de capital mundial precisam multiplicá-lo, expandi-lo de tal forma que possa circular no interior das redes sociais sem interditos. Para tanto, os enunciados e as práticas que a política liberal promove têm sempre uma natureza afirmativa, porque a população precisa estar acessível aos agentes e às técnicas de transformação.

Como exemplo, há algumas ações da política liberal que objetivamqualificar ou intensificar as competências e habilidades do homem. Como se diz, formar o capital humano. Para tanto, os procedimentos adotados se inscrevem no interior das práticas científicas como norteadoras desse propósito, e se investem em um tipo de ação que objetiva incitar no homem o desejo de mudança. Concebido como um universal natural do homem e o motor de sua ação, é justamente essa naturalização do desejo que marca as condições de entrada da técnica governamental: deixá-lo atuar dentro de certos limites, de acordo com certas conexões que combinem com o interesse geral da população. Como enfatiza Foucault (2008a, p. 96)FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos.: [...] "Produção do interesse coletivo pelo jogo do desejo: isto marca ao mesmo tempo a naturalidade da população e a artificialidade possível dos meios que se instrumentalizaram para manejá-la".

Qual é a tática que se apresenta nessa estratégia de ação? A produção de campos de saber sobre o homem e a gestão de instrumentos de orientação das condutas. Por exemplo, capacitar e desenvolver certas habilidades para que este venha a propor os procedimentos necessários para a transformação de seu habitat e realizar a crítica, a fim de produzir em si mesmo um olhar mais analítico e investigativo. Deslocam-se as condições da crítica para as formas do saber, neutralizando-se os seus efeitos políticos.

Essas funções táticas apresentadas partem do pressuposto moderno de que a realidade é um dado empírico natural, e os fenômenos inerentes a ela possuem uma regularidade passível de análise e de cálculo; portanto, a realidade está acessível a um saber para ser desvendada e transformada. Por meio de uma grade de interpretação do real, que se lhe ocultava, ao homem estão dadas as condições afirmativas da proposição de mudanças no cotidiano em que vive.

O que essas táticas instruem é um modo de operar as relações de poder, de tal forma que seu exercício seja, econômica e politicamente, o menos custoso possível, que seus efeitos tenham abrangência e intensifiquem a utilidade e a docilidade dos indivíduos. O que se efetiva é um modus operandi em que a lógica científica se inscreve nos modos de agir das relações políticas e das práticas de enfrentamento que lhes são inerentes.

Nessa metodologia, as relações sociais são mediadas por práticas científicas. O habitat é tomado como um objeto de estudo, um dado de pesquisa. De um lado, a ação é pedagógica: ensina-se um estilo de intervenção baseado na ciência e na produção de regimes de verdade que as práticas capitalistas realizam sobre as condições da pobreza e da riqueza na sociedade atual e, em específico, de certa localidade. Isso se processa de tal maneira que essas práticas científicas se efetivam como um novo mediador entre a relação dos habitantes entre si, o território em que vivem e as artes de governar. Por outro lado, proporciona-se uma aproximação e um conhecimento neutralizado do território em que se vive e se naturalizam seus problemas na ordem dos cálculos legitimados pelo aval de um conhecimento de pesquisadores e cientistas. E, por fim, busca-se tratar um problema de ordem econômica e política de distribuição de riquezas de forma, digamos assim, estatística, a fim de amenizar as paixões e os possíveis nichos de rebelião.

Podemos afirmar que essa metodologia liberal traz um modo de operar da ciência que, historicamente, exerce um papel explícito na produção de racionalidades violentas,5 5 "A racionalidade é o que programa e orienta o conjunto da conduta humana. Há uma lógica tanto nas instituições quanto na conduta dos indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade mesmo nas formas as mais violentas. O mais perigoso, na violência, é a sua racionalidade. É claro que a violência é, nela mesma, terrível. Mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda e extrai sua permanência na forma de racionalidade que utilizamos. Pretendeu-se que, se vivêssemos em um mundo de razão, poderíamos nos livrar da violência. Isso é inteiramente falso. Entre a violência e a racionalidade não há incompatibilidade" (FOUCAULT, 2003. p. 319). as quais agem no interior de um campo de neutralidade que proporciona às relações de poder um tipo de ação afirmativa e, assim, as liberta para exercer um domínio abrangente e sem interditos, instituindo uma arte de governar nas mais variadas formas de o homem trabalhar, falar e viver.

O que se precisa considerar, nesses procedimentos, é a eficácia desse modus operandi da ciência, que se guarda na neutralidade de seus procedimentos e de seus métodos, e que se apresenta como um elemento constituinte das forças de poder em jogo na sociedade. Nesse aspecto, é possível apreendê-la como produtora de um saber laico para o mundo que se afirma em uma proposta como essa da política liberal. É um ideal de ciência que se mostra eficaz, pragmático, mas, ao mesmo tempo em que se diz emancipatório, ele extingue, ou melhor, legisla e regula as fronteiras entre as esferas pública e privada.

Assim, estende-se a técnica ao mundo das relações humanas e se realiza uma visão totalizante da sociedade. Além disso, para uma ciência que atualiza sua forja nesse circuito – de trazer uma proposta de autorrealização do indivíduo, de seu descentramento em relação às normas, de seu direito à crítica e ao juízo, enquanto ser humano universal –, a obscuridade do jogo das práticas do mercado liberal permite que múltiplas práticas de autonomia se manifestem e, consequentemente, não é o lugar de enfrentamento das lutas contra o excesso de governo.

Portanto, se as novas técnicas de governo instituem a atitude crítica no eixo da governamentalidade positiva, isto é, na gestão das circunstâncias sob as quais se pode ser livre, as formas de exercício dos processos econômicos do século XX instituem um individualismo instrumental que garante a produção da liberdade de que se precisa para bem governar (SENELLART, 1995SENELLART, M. Foucault – Um pensamento desconcertante. Revista de Sociologia da USP Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, 1995).

Incapaz de produzir um saber universal dos modos de operar dos processos econômicos na composição dos interesses, pois vários são os objetos econômicos, o Estado não controla a engenharia dos interesses privados, por desconhecer como e em que eles concorrem com o interesse geral. O que está em jogo, nesse embate de forças, é a multiplicidade não generalizável dos sujeitos econômicos e a unidade totalizante do Estado e, nesse enfrentamento, há que se governar a produção da liberdade com limitações, com intervenções governamentais e as possíveis ameaças de sua destruição.

Um problema de segurança, enfim, para as táticas de governo, é a necessidade de calcular os índices de variação dos custos da fabricação dessa liberdade, pois a medida justa depende das relações entre governantes e governados. A lógica da estratégia é, nesse sentido, estabelecer conexões entre termos heterogêneos, de tal maneira que entre na ordem dos cálculos tanto a utilidade dos indivíduos como a independência necessária dos governados.

Todo esse modo de funcionamento das relações de poder da política liberal visa a produzir uma forma de Estado que se constitui entre esse jogo de forças dos interesses privados e os da população, frente à variedade das práticas econômicas, um modus operandi quepromove a governamentalização do Estado pelos mecanismos de segurança. Um sistema de equilíbrio mundial das flutuações dos fluxos econômicos obriga os Estados a oferecerem a si mesmos um conjunto de objetivos que os limitem, seja na política externa, seja na interna. E as técnicas necessárias para a pontuação e o cálculo desses limites têm a população como objeto tecnopolítico, por ela ser um conjunto quantificável, fonte de riqueza, força de trabalho e de guerra, e, principalmente, por ser susceptível a desvios e aberta aos mecanismos de intervenção.

O conhecimento passa a ser desenvolvido no intuito de criar tecnologias para a expansão do mercado e para a gestão da população, uma vez que é preciso conhecer as necessidades e as variáveis que os afetam, quer dizer, gerir os riscos. Por conseguinte, para a política liberal, são as forças do mercado que têm a tarefa de realizar as conexões entre a economia política (um regime de verdade), a prática governamental e o governo.

Para a política liberal, a responsabilidade social é uma de suas estratégias de multiplicação dos efeitos de poder e de gestão de risco, agindo no interior dos dispositivos de segurança, ao criar táticas que se inscrevem a partir de várias plataformas de procedimentos direcionadas à melhoria da qualidade de vida da população em situação de miséria.

Um dos principais pontos de apoio dessa tática da política liberal inclui os seguintes conceitos de sustentação: o desenvolvimento da autonomia e da cidadania dos indivíduos que constituem uma dada população, tomando-os como agentes estratégicos de transformação social. Para tanto, ela circunscreve instituições como a cultura e a educação, no interior de instrumentos que objetivam o desenvolvimento de capital humano e sirvam de suporte para a implantação de empreendimentos sociais e de geração de renda.

Essa tática incentiva as capacidades do indivíduo. O domínio do campo político empreendido realiza sua presença como um instrumento de resolução de problemas imediatos vividos no território, inscrevendo sua participação no interior de um registro político: o homem entendido como um ativo de mercado que se oferece aos procedimentos voltados para o aprimoramento de suas habilidades e competências. É o que atualmente denomina-se de capital humano e empreendedorismo.

Hoje, está disponível em um conjunto de enunciados uma série de críticas feitas às práticas de governo do Estado quanto à sua negligência como órgão responsável pela formação e gestão dos procedimentos de organização dos fenômenos inerentes à população. São inúmeros os estudos sobre a situação de vulnerabilidade e risco de um segmento da população, e sobre o mau funcionamento ou o fracasso das ações estatais. O que não se considera neste tipo de enunciado é o fato de as ações do Estado se exercerem nesse limiar das flutuações das curvas de normalidade econômica entre a riqueza e a pobreza, pois há sempre um vazio na rede de relações entre elas, o que exige o cálculo das virtualidades das condutas de risco. Nessa orientação, a tática dos dispositivos de segurança é criar perspectivas mais promissoras frente a um destino sem redenção.

Esse estado de variação dos níveis de riqueza e de pobreza evidencia as circunstâncias viáveis de rebelião, de sorte que é preciso ativar os dispositivos de segurança, sobretudo aqueles voltados para as técnicas de individuação, as tecnologias do eu. Digamos que se está diante de uma psicologização dos fluxos de pobreza e riqueza. Se, hoje, o mercado declara que não há trabalho para os adultos, ou que é preciso reciclá-los, capacitá-los para as novas tecnologias, faz-se necessário criar nichos de treinamento, de entretenimento ou de um tipo de trabalho que se oriente a partir de atividades autorreferentes que se esgotam em si mesmas. Ou seja, essas atividades frequentemente se inscrevem no interior dos cálculos precisos de custos econômicos e de uma racionalidade específica de governo da série escassez-abundância. Os homens continuam vivendo em favelas, agora higienizadas, e inscritos em um registro de estetização da pobreza.

Se hoje, há uma falência – ou melhor – há flutuações de todas as fórmulas e receitas para a admissão no mundo do trabalho, pois uma intensa força de poder econômico se efetiva entre o aparecimento de uma forma de trabalho e seu desmanchamento, suas regras de funcionamento e de composição têm uma validade provisória, elas duram o tempo necessário de sua utilidade aos fluxos econômicos que agem no binômio escassez-riqueza e às exigências das flutuações do mercado.

Portanto, a estratégia da política liberal de expandir os modos de efetuação das relações de poder terá em vista a produção de formas de enunciação e de campos de visibilidade dos modos de viver da pobreza, e um de seus procedimentos parte das metodologias participativas.

Trata-se de um tipo de tática que propõe um monitoramento de dados referentes aos elementos constitutivos de um território (número de habitantes, faixa etária, escolaridade, sexo, tipos de habitação, equipamentos do Estado, lazer, condições de trabalho etc.), por meio de pesquisas de campo sobre as condições socioeconômicas de uma dada região. Como são realizados estudos específicos para um determinado território, além de se manusear os dados mais gerais, como os do IBGE, estes utilizam os dados de pesquisas realizadas por seus habitantes, tomados como condição de expressão da realidade específica de tal segmento da população.

Com essa iniciativa, os projetos de intervenção da política liberal nos modos de funcionar os fluxos de movimentação das riquezas e da migração da população realizam a eficácia de seu projeto transformador. Para a política liberal não há exatamente uma precarização dos custos econômicos, mas a eficiência das estratégias afirmativas do capital de operar a política no interior de um tipo de governo baseado em práticas de cuidado, de bem-estar, de qualidade de vida – responsabilidade social – que se inscreve no registro do que se poderia chamar de um excesso de governo das práticas de intervenção do Estado, uma espécie de contraconduta à governamentalidade de Estado.

Uma das críticas feitas aos modos de governar do Estado é a de que, quando este aplica em seu objeto técnico-político ( a população) as tecnologias que intervêm em um determinado elemento da realidade, o mesmo é ineficaz em suas táticas sob alguns aspectos: em geral, não divide ou delega o poder, na realização dos seus projetos; em segundo, não efetiva bem as etapas de realização de suas ações, tanto do ponto de vista burocrático quanto com respeito ao tipo de executores que realizam essa tarefa, já que não pertencem ou desconhecem o território e, logo, não traduzem bem seus anseios; e, em terceiro, se gasta muito no pagamento de especialistas, em vez de se creditar o potencial transformador de tal segmento da população que se quer melhorar ou transformar.

Existe aqui um status de inovação metodológica que precisa ser interrogado. Inicialmente, deve ser levado em consideração qual o regime de saber que tal tática estimula, e em função de que interesse se quer mudar os destinos da população. Além disso, como delegar um tipo de poder aos indivíduos, de tal forma que este atue sobre eles mesmos? Como propor a esses indivíduos que orientem o seu comportamento em direção aos interesses do restante da população, que a vigiem e controlem?

Qual o regime de saber que se produz a respeito da população que se quer transformar? O que ou quem o legitima? A que relações de poder as práticas do capital respondem, quando enunciam essas transformações e delegam um quantum de poder a certos indivíduos de um território?

Nesse sentido, ao expandir e multiplicar os pontos de conexões da rede de relações de poder e de produção de saber com aqueles que se pretende governar, os fluxos de capital produzem novas linhas de efetuação de relações de força – tanto àquelas que dizem respeito às críticas feitas ao Estado, quanto às eventuais flutuações dos elementos de realidade que compõem os fenômenos do binômio escassez-abundância. Assim, é possível manejar várias formas de controle de diferentes elementos que compõem a população sem que a ação de poder lhe seja exterior, como também se torna possível intervir sobre as virtualidades das condutas e dos riscos de rebelião.

Nos projetos da política liberal, esta composição entre o Estado, a política, os saberes científicos e o senso comum tornam-se uma estratégia de apaziguamento das paixões e de gestão das condutas, a fim de legitimar certo modo de operar dos fluxos econômicos, e institui igualmente um conjunto de sentidos de enunciação e valores morais. O que se efetiva nesse procedimento é a gestão do custo de manufatura da liberdade de que se precisa para bem governar.

O modo dos dispositivos de segurança de controlar os efeitos dos fluxos de capital no binômio escassez-abundância não funciona apenas por uma proibição, ou uma regulamentação, mas por um tipo de regulação dos fluxos econômicos em que está em jogo os limiteis toleráveis da miséria e da riqueza e, da fabricação da liberdade. Melhor transformar um potencial inimigo em um aliado, oferecer condições de manejo de certos estados de viver de um segmento da população, para acalmar os ânimos e ímpetos individuais ou coletivos, de sorte a administrar as paixões potencialmente perigosas.

Oferecer aos homens algumas técnicas de organização de seu próprio território e de modos de efetuação da conduta para evitar a rebelião é uma das estratégias de ação da política liberal, em sua tarefa de gerir as flutuações do binômio escassez-abundância das riquezas, e de igualmente agir no interior de uma série de linhas de enunciação e de visibilidade dos modos de viver dos indivíduos, que respondem aos interesses dos circuitos do mercado e da segurança de seus meios de circulação.

Notas

  • 1
    Trata-se de pesquisa de mestrado realizada sob a orientação de Sonia Aparecida Moreira França (ZANETTI, 2007)ZANETTI, F. L. A Condição da Arte e os Novos Paraísos Artificiais . 2007. 116f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2007..
  • 2
    Sobre esse tema, ver Foucault (2008a)FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos..
  • 3
    Sobre esse tema, ver: Castro (2004)CASTRO, E. El vocabulario de Michel Foucault . Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2004..
  • 4
    "Trata-se de uma tecnologia de sujeição que permite desde a gestão administrativa dos corpos e da vida do indivíduo às formas de vida da população. O biopoder designa aquilo que faz entrar a vida e seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana [...] o homem moderno é um animal em cuja política sua vida, enquanto ser vivo, está em questão" (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 148DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica : para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.).
  • 5
    "A racionalidade é o que programa e orienta o conjunto da conduta humana. Há uma lógica tanto nas instituições quanto na conduta dos indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade mesmo nas formas as mais violentas. O mais perigoso, na violência, é a sua racionalidade. É claro que a violência é, nela mesma, terrível. Mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda e extrai sua permanência na forma de racionalidade que utilizamos. Pretendeu-se que, se vivêssemos em um mundo de razão, poderíamos nos livrar da violência. Isso é inteiramente falso. Entre a violência e a racionalidade não há incompatibilidade" (FOUCAULT, 2003FOUCAULT, M. Estratégia poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. Coleção Ditos & Escritos, v. 4.. p. 319).

Referências

  • CASTRO, E. El vocabulario de Michel Foucault . Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2004.
  • DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica : para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
  • EWALD, F. Foucault, a norma e o direito Tradução de Antonio Fernando Cascais. Lisboa: Vega, 1993.
  • FOUCAULT, M. Tecnologías del yo y otros textos afines.Barcelona: Paidós Ibérica, 1990.
  • FOUCAULT, M. Sujeito e Poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
  • FOUCAULT, M. Estratégia poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. Coleção Ditos & Escritos, v. 4.
  • FOUCAULT, M. Segurança Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Coleção Tópicos.
  • FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. Coleções Tópicos.
  • SENELLART, M. Foucault – Um pensamento desconcertante. Revista de Sociologia da USP Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, 1995
  • ZANETTI, F. L. A Condição da Arte e os Novos Paraísos Artificiais . 2007. 116f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2012
  • Aceito
    12 Nov 2014
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