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Por uma proposta baudrillardiana em psicossomática e psicanálise contemporâneas: algumas ponderações concernentes aos fenômenos corpo e alma na obra Da sedução

For a baudrillardian proposition in contemporary psychosomatics and psychoanalysis: some weightings concerning body and soul phenomena in Seduction piece of work

Resumo

Jean Baudrillard, pensador francês contemporâneo, apresenta críticas instigantes à Psicanálise e à sociedade atuais, sua original teoria pode vir a contribuir significativamente em releituras de práticas e conceitos do modo como se desenvolve o cuidado em Saúde (Psicanálise e Psicossomática, mais estritamente abordadas aqui). Seu conceito de sedução conjuga-se com a crítica laplanchiana ao abandono da teoria da sedução frente à teoria da sexualidade, nos primórdios dos desenvolvimentos teóricos freudianos; ambas noções entrecruzadas podem possibilitar substantiva transvaloração de conceitos, quando articuladas com linhas psicanalíticas e psicossomáticas ortodoxas, podendo vir a impactar virtuosamente em práticas clínicas e sociais das mesmas.

Baudrillard; sedução; sexualidade; Psicanálise; Psicossomática

Abstract

Jean Baudrillard, French contemporary thinker, presents instigating critiques towards current Psychoanalysis and society, his original theory may contribute significantly in re-readings of practices and concepts in the way how it is developed care in Health (Psychoanalysis and Psychosomatics, more strictly here). His seduction concept goes hand in hand with laplanchian critique about the abandonment of seduction theory due to the outcoming of the theory of sexuality, in early times of freudian theoretical developments; both notions intercrossed may provide substantive transvaluation of concepts, while articulated with orthodox Psychoanalytical and Psychosomatical streams, which may virtuously impact in their clinical and social practices.

Baudrillard; seduction; sexuality; Psychoanalysis; Psychosomatics

Introdução:

Em sua jornada autoral, Jean Baudrillard, indiretamente faz mister o protagonismo das noções de corpo e alma enquanto pontos de apoio para os complexos jogos simbólicos, rituais e antagonísticos, na complexa relação interdependente em que se pode falar – em termos sempre dinâmicos; “reversíveis” em termos mais do léxico baudrillardiano – do que seria um sujeito versus um objeto, na lógica do afeto e imanência dos duelos intersubjetivos.

Este artigo alude mais especificamente baseado em Da Sedução (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.), aspectos relativos ao binômio corpo-alma presentes em Jean Baudrillard. Ainda que sob outras roupagens nomeativas, mas que se possa transvalorar até certo ponto, no recorte, haja vista esta questão ser tão cara e - permitindo-se o witz - incorporada na cultura e debates da modernidade e pós-modernidade, em que se ressalte àqueles que dizem respeito aos campos psicológico-psicanalíticos.

O contraponto, caro à obra problematizada, é o enunciado da “sedução”, em que imperaria a lógica da reversibilidade dual e do duelo: do jogo, conceitos-chave estes para a compreensão da díade corpo/alma conforme fenômeno contingente à esfera das trocas simbólicas, da relação... em sedução.

A partir de tais análises, mediante pesquisa bibliográfica, busca-se investigar a hipotética mudança de enfoque sobre os enunciados de corpo e alma, em função de uma nova articulação epistêmica sobre eles efetuada: o conceito de sedução em Baudrillard; deslocado de uma perspectiva perversa para um viés em que insurge enquanto constitutivo e regente do ser e da existência e, consequentemente, dos seus corpos e almas.

Apenas valendo-se a pena, na hipótese baudrillardiana da qual partimos aqui, considerar estes quatro (“ser”, “existência”, “corpos”, “almas”) em imanência das trocas intersubjetivas, mais do que em descrições frias e estanques, em que há que se isolar o objeto, afim de o conceituar.

Neste caso, conceitua-se o nada, não que não haja potência no nada (e como há!), mas não aqui, não este “nada” enquanto discurso de “verdade”, nada vão e jactante, posto que, no caso, o objeto (“ser”, “existência”, “corpos” ou “almas” e etc.) sequer existiria mais, posto que perder-se-ia-os em sua magnífica forma mutante, mais que conteúdo, na óptica e lógica inter-relacional, da interdependência... da sedução.

Em palavras melhores, mas também enigmáticas e nada conclusivas:

“Quando as coisas atingem esse apogeu em que se esclarecem e se resolvem por si mesmas, repentinamente também se tornam ininteligíveis e inapreensíveis” (BAUDRILLARD, 1987BAUDRILLARD, J. Cool memories 1980-1985. Rio de Janeiro. Espaço e Tempo, 1987., p. 11).

As questões de corpo e alma são apresentadas pelo autor nunca como circunscritas a uma autonomia destes, às individualidades (de desejo, de fala ou de escrita), mas sempre em dualidade com outrem, numa composição imagética do sensível em oposição ao sentido racional e da predominância dos jogos entre signos intercambiáveis ao significado estrito e isolado de cada um.

Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. colocou deste modo, o conceito distante do já arraigado de bissexualidade psíquica ou biológica, introduzindo o de transsexualidade da sedução – o que toda organização sexual tende a diminuir, dentre elas, a da própria psicanálise - através do axioma de que não existe outra estrutura além da sexualidade, o que a torna, para Baudrillard, constitucionalmente incapaz de considerar para além deste tema, vindo a implicar na exclusão da sedução como tema estrutural do funcionamento psíquico-afetivo do ser humano.

Viés este, faça-se justiça, que já vem sendo revisto por alguns expoentes da Psicanálise pós-freudiana – embora, neste sentido, estas considerações não sejam assimiladas nas trajetórias clínicas e discursos teóricos do main-stream psicanalítico pós-moderno, destina da sedução estar sempre nos interlúdios, jamais nas práticas hegemônicas? -, por exemplo, tome-se a veemente crítica feita por Jean Laplanche ao abandono radical da Teoria da Sedução por Freud em 1897 e a obnublação total deste termo (Sedução) pelo da Sexualidade [culminando com os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 2006[1905]FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Edição Standard Brasileira, v. 7, p. 76-150.), de 1905]. Repressão freudiana frente à Sedução? (LAPLANCHE, 1988LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.).

Intrinsecamente manifestas na inter-relação de corpos, em seus percursos rituais e sedutores frente aos outros, as almas são a magia e encantamentos advindos destas trocas simbólicas, exercendo o fulgor estético de viver. Sendo assim, o corpo é um instrumento artificial lúdico-simbólico que rege a beleza do instante do existir, quando em relação. Ausentando-se da lógica maquínica em que os estudos “naturais” modernos e pós-modernos tentam representar a corporalidade.

O discurso baudrillardiano afasta-se desta naturalidade biológica, da Biologia, do Sexo, da Reprodução e aproxima-se da artificialidade lúdica, do Rito, do anímico aquém e além do Sexo, da Sedução, da Re-Sedução.

Vejamos sua ojeriza ao que se confinou o corpo anatômico - portanto, o cadáver – reprodutivo (Decifra-me, ou apodreço e fedo); e não enquanto máscara e desafio - vivo, pungente, pulsante -, sedutor, seduzível, a seduzir (Decifra-me, ou devoro-te):

O sexo como modelo assume a forma de um empreendimento individual fundado numa energia natural: a cada um seu desejo [...] sexualidade, desejo e gozo são valores subalternos [...] surgiram não há muito tempo no horizonte da cultura ocidental como sistema de referência [...] esse corpo a que nos referimos sem cessar, não tem outra realidade que não a do modelo sexual e produtivo. É o capital que gera, no mesmo movimento, a força do trabalho e o que imaginamos hoje como santuário do desejo e do inconsciente [...] o próprio corpo tornado processo primário e por isso anticorpo [...]. Portanto, é a forma ausente da sedução que se alucina sexualmente sob a forma de desejo (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 47-49, itálico do autor, grifos nossos).

Já, à Psicanálise, contrapõe-se a partir de que a óptica desta busca, em determinadas concepções e/ou momentos, resgatar “verdades”, profundidades desejosas individuais, a sedução baudrillardiana afasta-se radicalmente de sistemas de pensamento baseados na individualidade estanque, na profundidade subjetivista e, sobretudo, na ordem da verdade ou realidade, ainda que psíquica:

“É nessa liquidação do processo de sedução que ganha força a moderna teoria do desejo” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 49).

Portanto, há que se ver neste abstrato espaço do inter-jogo, no entre corpos em dança sedutora, não um ostentando seu desejo frente ao outro, o que seria alma... alma conforme processo interpessoal, nunca intra, enquanto afecção e poder de afecção, à guisa de não se entender, mas se entregar e resistir á entrega, no arriscar-se, no achar-se, perdendo-se no outro, por isso que o termo alma evanesce-se em Baudrillard, pois jamais trata-se de um termo, jamais é termo, o jogo recomeça a cada instante, conforme a poesia diz, jamais é uno, jamais é. Mas está e faz-se múlltiplo, só assim, que bom ser assim a alma baudrillardesca:

Uma mobilidade maravilhosa, encantadora, uma prontidão aérea: o gato.

Toda sedução é felina. É como se as aparências se pusessem a funcionar sozinhas e a se encadear sem esforço.

Felinidade das aparências. Nada se desencadeia, tudo se encadeia. Pois a felinidade não é senão o encadeamento supremo do corpo e do movimento (BAUDRILLARD, 1987BAUDRILLARD, J. Cool memories 1980-1985. Rio de Janeiro. Espaço e Tempo, 1987., p. 11) .

Assim, o conceito de sedução se desenha como dança lúdica e imanência entre corpos e almas em inter-relações – e só em inter-relações - na dinâmica da vida, que se expressa esteticamente e nunca via sistemas imutáveis e irreversíveis “naturais” de verdades absolutas.

Por isso, o objetivo deste artigo é ressaltar alguns aspectos que podem ser interpretados em relatividade ao corpo e à alma na obra: Da Sedução, de Jean Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., sempre fiel porém às suas concepções, enquadres e críticas nestes assuntos, situando-os em relação ao enunciado da “sedução” enquanto conceito-chave.

Torna-se a proposta relevante devido à importância das noções de corpo e alma na psicologia como pontos de apoio dos complexos jogos simbólicos, rituais e sociais de signos nas dinâmicas intersubjetivas, tão caras ao estudo psicológico, agora através de um enfoque inovador sob um tema também bastante controverso em termos psicológicos e psicanalíticos: a sedução.

Sempre na intenção de abrir e não fechar diálogos, ou seja, jamais negar outros saberes, ou promover rupturas entre, mas sim colaborar por uma maior amplitude do debate em outras esferas do entendimento das questões relativas à existência humana, neste enfoque estético que reverbera pelo corpo e pela alma de todos.

Sendo assim, o artigo suscita a gravitação primeva e instigante entre os conceitos de corpo e alma na obra Da Sedução, na proposta de tê-los como eixos de estudo sobre a problematização do que seria “sujeito psicológico” na visão baudrillardiana; sob a óptica deste autor, está instância inexistiria a priori, só podendo ser analisada numa perspectiva vincular, sendo a própria subjetividade jamais um per si, portanto sempre crítica graças à evidência de que sujeito e objeto só assim se tronam em relação, mas mesmo assim, nunca há estritamente um “sujeito” ou um “objeto” fixo, na relação, sempre dinâmica, há oscilação e trocas de posições reversíveis em torno destes pólos jamais obejtiváveis.

Como se sabe, o autor não se fia na independência das coisas em sua teoria, pelo contrário, as coisas só existem em relação, em jogo, ambiência, sendo assim, o desafio será tratar tais temas de forma não analítica clássica – cartesiana - mas relacional, evitando-se erros tautológicos, mas sabendo que não há como se definir algo sem se imbricar com suas relações proximais ou distantes com os demais conceitos, em uma obra de Baudrillard.

Baudrillard, biografia/biografemas – o autor e sua obra

Baurdrillard cursou graduação em Letras, em transposição à nossa realidade, especializando-se na língua germânica – graças a seu interesse de filiação juvenil marxista, tendo sido, inclusive tradutor de uma versão para o francês da obra O Capital (MARX, online) em associação ao então grande mentor acadêmico, o neo-marxista Henri Lefebvre –, o idioma alemão acabou por aproximá-lo, ulteriormente, da obra nietzschiana e o afastar, gradativamente, do marxismo e das correlatas e também teutônicas postulações contemporâneas a si da “Escola de Frankfurt” (HORROCKS, C.; JEVTIC, Z., 1996HORROCKS, C.; JEVITIC, Z. Introducing Baudrillard. Victoria: McPherson, 1996.).

Esta apropriação não intermediada à obra de Nietzsche o fez bastante crítico quanto a usos e leituras desta empreendido por outros teóricos franceses que se atribuíam e se lhe eram atribuídas vertentes nietzschianas – dentre estes destaque-se Michel Foucault e suas “genealogias”.

Jean Baudrillard, após influências do filósofo de Assim falou Zaratustra (NIETZSCHE, 1999NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. In: LEBRUN, G. (Org.). Friedrich Nietzsche: obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 209-249.), preferiu, em seu caminho autoral, sempre adotar posições argumentativas que não atribuía a mais ninguém, mas a si mesmo.

Ao contrário de prepotência, via nisto um maior respeito e veneração aos grandes pensadores que lhe foram caros em sua trilha para se tornar – embora tivesse ojeriza por alcunhas de quaisquer ordens, e, seguramente, teria aqui –, o que poderia ser chamado, “livre pensador”.

Ao negar filiações e escoramento em apadrinhamentos forçados que apenas poderiam favorecer o virtual afilhado, mas sobretudo corromper o espírito mais radical e contumaz do, proclamado falaciosamente e em atitude de impostura, suposto padrinho, em recortes e usos inapropriados, para que dissessem, sem hipótese de refutarem, mortos, o que não queriam dizer ou jamais diriam. Recusar-se a este estratagema, portanto, sua máxima e mais fiel devoção e veneração para suas influências teóricas nunca denegadas e sempre valorizadas em entrevistas e comentários menos engessados.

Sendo assim, através de seus comentários, fez indispor contra si o xodó e ídolo fetichizado do novíssimo status quo e fisiologismo francês na academia, o discurso de saber... e de poder foucaultiano – ainda que com roupagem de ruptura a isto e discursando em negação e problematizando aos fisiologismos de pensamentos e práticas – na academia francesa de “novos” e “descolados” intelectuais, no átimo da intitulada em jactância: revolução cultural dos idos de 68’ (1968).

Apesar de partícipe e colaborador importante deste momento de transformação no pensamento francês (lecionando à época em Naterre – Paris X, um dos pontos de maior ebulição durante os levantes da década de 1960), Jean Baudrillard jamais foi ufanista em relação à capacidade factual de mobilização social e mudanças radicais através do mesmo, tanto que tampouco se sentiu ultrajado ao se ver como persona non grata e ao sofrer boicotes e certo ostracismo nos meios acadêmicos franceses depois do movimento ter sido “bem sucedido”.

Aliás, escritor contumaz e divulgador de sua obra – através muito mais de livros em formato ensaístico ou palestras criativas ou em settings alternativos, do que periódicos acadêmicos ou “seminários” cult – aliviou-se bastante quando conseguiu criar uma reputação e consistência argumentativa reconhecidas internacionalmente, podendo finalmente romper com a academia francesa, largando o magistério mais burocrático e sobrevivendo muito bem como escritor e dando cursos e palestras ao redor do globo.

Quanto à revolta de 68’, vejamos um comentário de Baudrillard (apud HORROCKS, C.; JEVTIC, Z., 1996HORROCKS, C.; JEVITIC, Z. Introducing Baudrillard. Victoria: McPherson, 1996., p. 13, tradução nossa), ilustrando sua profunda verve crítica e sarcástica, denotando, em sua visão, o falecimento e falência do político, seja em ideologias de direita ou de esquerda, podendo ser a questão de 1968, na França, nada mais que um último, porém impotente, suspiro: “esta revolta de 1968 foi ingênua. Os estudantes pensaram que a repressão capitalista significava agressão, mas de fato ela encorajava a participação”.

Ou seja, este percurso e engajamento seu na “revolução cultural”, por mais que o tenha marcado – e isto foi importante – também serviu para que experimentasse a falha em se apostar no político, como jogo fraco frente aos demais que depois se lhe abriram a partir de novas influências, vivências e insights: a sedução, principalmente.

Porém, não isentou-se, através destas posturas, em sentir na pele o que postulou o desenvolvimento de sua teoria - a se saber: o quanto se é captado e reabsorvido pelo sistema e suas trocas reversíveis – ou seja, tornou-se também, em certa medida, ícone, pop, cult - passando a fazer parte da inspiração de artistas ditos de vanguarda, sobretudo anglo-saxões.

Ainda mais, tornou-se inclusive sucesso na indústria cultural, pois é atribuída a ele, pelos próprios roteiristas, a inspiração para a saga hollywoodiana blockbuster Matrix.

Fato este que o faz – nova reversibilidade – de novo renegado no universo intelectual: até hoje, autores recentes, temendo serem discriminados e excluídos, conforme Baudrillard, nos meios europeus acadêmicos mais tacanhos, tendem a disfarçar de todos os modos possíveis, nunca atribuindo créditos justos às suas dependências à obra baudrillardiana – por exemplo: Rundell, Richman e Bauman (GANE, 1991GANE, M. Baudrillard: critical and fatal theory. Londres: Routledge, 1991., p. 4).

Estas brevíssimas pinceladas sobre a vida do autor mostram o quanto ele situava-se em um meio francês em uma época que valorizava muitíssimo a interlocução filosófica com a Sociologia e a Psicanálise, fundamentalmente.

Importante ressaltar também, seu caráter inquisidor e rebelde, que fez com que ele, mais do que filiar-se a escolas de pensamento e render-se ao status quo, conseguisse pensar fora da caixa, até em aspecto de provocação, se seu maior antagonista no pensamento francês – Foucault – pautava-se por eleger como objeto de estudo a subjetividade, a produção desta, Baudrillard, em contrapartida, viu que não adiantava contra-argumentar à respeito da falsa questão que se colocava, com os recursos e discursos desta falsa questão.

Portanto, interessante que ele foi ao outro pólo deste sistema de pensamento, foi estudar o objeto (não à toa, seu primeiro livro, oriundo de sua dissertação de pós-graduação - tendo na banca figuras mais complacentes e acessíveis do pensamento francês, que aceitam o debate: Roland Barthes e o próprio Henri Lefebvre – foi O sistema dos objetos (BAUDRILLARD, 2002BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. São Paulo: Loyola, 2002.).

Ao se empenhar neste exercío de pensamento, vislumbrou que os objetos nos dominam, inexiste passividade total deles frente a nós, supostos sujeitos; pelo contrário, a imaginária passividade é uma arma de sedução.

Ao mesmo tempo que nós somos criadores do mesmos, chamamo-los ou os capturamos (bichinhos de estimação) ao nosso convívio, somos criatura também, por eles somos manipulados e também seqüestrados, eles também nos dominam.

Assim, a questão falsa também gira em torno da produção, o que domina não é a produção, ou quem produz, mas quem desvia essa lógica objetiva e objetivante, neste desvio, encontra-se a sedução e o que seduz: tudo e todos, neste aprisionamento do corpo, que é aonde empenhamos nossa alma, sacrificialmente e ludicamente no jogar/relacionar-se.

A partir daí, nem sujeito, nem objeto, mas a flutuação inevitável entre estes dois pólos, em eterna sedução, só assim em vida, a sedução é a alma, o corpo a matéria enquanto signo e elemento ritualístico que precisamos encetar nesta dinâmica para que aís sim tenha uma utilidade – não produtiva –, mas anímico-existencial: sedutora /seduzível.

Sobre a obra Da Sedução:

Situando a obra e o autor, pode-se dizer que Baudrillard condensou seu campo de estudo teórico dos anos 60’ aos primórdios do novo milênio nas questões referentes ao consumo de massa, à mídia, à globalização, à sociedade contemporânea ocidental deste período, bem como à construção subjetiva dinâmica de corpo e alma de seus indivíduos, neste contexto. Porém, este pensamento sofreu rupturas e revisões contestatórias próprias consonantes a este mesmo percurso cronológico.

Baudrillard começou seus posicionamentos em meio à turbulência política francesa dos anos 60’, atrelados, então, às críticas marxistas da cultura moderna de consumo e sociedade, incrementando suas posições teóricas a partir da metade da década de 1970 – sendo a obra Da Sedução (1979 - publicação do original em francês, Éditions Galilée) um marco neste sentido; através de uma sucessão de diálogos e críticas com os campos de saber da Psicanálise, Sociologia e Semiótica e este próprio Marxismo.

Refutando então completamente ao materialismo dialético, e a estes termos isolados, renunciando tanto ao materialismo marxista/capitalista quanto à ordem da razão espiral dialética para o estudo dos fenômenos sociais, vislumbrando não mais uma lógica de significados e significantes fortes no sentido da razão, ou que deveriam se condensar em um arcabouço edificante e progressivo tese/antítese/síntese... lógico... mas sim se rendendo a uma supremacia estética da desrazão imanente e irredutível à lógicas. Ou seja, deixando-se seduzir pelos “desvios” e os “enganos” sob quaisquer fins ou finalidades outrora sublimes da verdade cartesiana ilusória também, mas sem qualquer graça.

Nesta fase, o autor em questão primou muito mais por um discurso menos teórico e mais poético, sendo que buscava inclusive uma ruptura com a teoria e quaisquer cientificismos propriamente ditos, aproximando-se, ainda respaldado por seu arsenal instrumental próximo do idioma germânico, de discursos nietzschianos e schopenhauerianos.

Apoiou-se também na imanência kierkegaardiana, principalmente no que se refere à obra Diário de um Sedutor (KIERKEGAARD, 1979KIERKEGAARD, S. Kierkegaard. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Coleção Os Pensadores.), bastante requisitada como fonte de análise e ideias em Da Sedução, aí residindo também a importância destes novos aportes filosóficos que se materializam mais pontualmente nesta obra, para o ulterior desenvolvimento de sua trajetória intelectual. Culminando, em princípios do novo milênio, com o que muitos caracterizam como uma terceira fase baudrillardiana, mais fatalista, representada principalmente por Power Inferno (BAUDRILLARD, 2005BAUDRILLARD, J. Power inferno. Porto Alegre. Brasil: Meridional, 2005.), influenciada pelo atentado de 11 de setembro às torres gêmeas.

Portanto, o livro Da Sedução ocupa papel central na obra de Jean Baudrillard, representando a conversão axiomática de seu pensamento predecessor, atrelado ao marxismo, estruturalismo e cientificismo catedrático, mostrando o embate entre estas forças e as novas que advêm de seus estudos nietzschianos e kierkegaardianos (1979), somados à influência da teoria sócio-antropológica da dádiva de Marcel Mauss.

A sedução destes novos componentes, pode-se dizer, que promoveu um enriquecimento crítico – e, sobretudo, estilístico - em sua linha de pesquisa, nunca abandonada, mas deslocada de posição e de ordem, desgarrando-se de eventuais fisiologismos doutrinários próprios ao academicismo hegemônico, daí a importância central do estudo desta sua nova visão e articulação, então únicas e diferentes de todas circulantes .

Em Da Sedução, Jean Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. discorre por aspectos afirmativos da sedução frente às ópticas dominantes no campo do “saber” que, segundo ele, até então distorceram ou jamais entenderam a sedução, de modo a posicioná-la em uma dinâmica ética da ordem do mal ou da perversão. Em sua empreitada, por resgatar tal conceito de seu “limbo”, ocorre ao autor identificá-lo como inerente a uma lógica diversa da que ele considera atrelada ao ideário da revolução burguesa.

Deste modo, introduz concepções novas que o termo “sedução” resguarda, quando observado de maneira dissociada de tal ideário burguês. Desta maneira, o que Baudrillard traz à baila são argumentos que embasariam a existência humana e a graça de tal existência na dança de signos reversíveis. Este jogo de signos nos remete a um universo simbólico que transcenderia qualquer universo “real”, nos moldes da concretude epistemológica do cientificismo dogmático.

Conforme historicamente se reconhece, a episteme científica moderna é promotora da natureza e da produção, advinda da lógica cognitiva tradicional associada a fatores tais como objetividade, irreversibilidade, fisiologia/anatomia. Como também à Lei e à sexualidade restrita à finalidade do gozo e sexo.

Tais ilações fazem o autor descolar-se gradativamente da lógica da produção, que etimologicamente remeteria ao ato de direcionar um caminho de positivismo, de compromisso entre causalidade e efeito, da linearidade discursiva, da técnica e da tecnologia, da ética formal, da Lei e do Jurídico, do explicável, do racional.

Esta ruptura faz Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. reconhecer e postular outra dinâmica - a da sedução - que etimologicamente, por sua vez, recorre ao contrário: um desvio do caminho triunfante, muito mais circunscrita numa lógica circular, enigmática, do jogo, da estética, da Regra e do Ritual, do inexplicável, da magia.

Como desfecho, o filósofo articula qual seria “o destino político da sedução”, entrando no confronto recorrente, desta feita e com maior enfoque, entre as lógicas da produção e da sedução; do linear e do helicoidal; do centrífugo para o centripeto; da globalização para a regionalização; da Lei para a Regra do jogo; e o rito, sempre, em sua discursividade, apontando a superioridade epistemológica das segundas vertentes lógicas, destas díades antagônicas apresentadas, sintetizando conforme a seguir:

A anatomia não é o destino, tampouco a política. A sedução é o destino. Ela é o que resta de destino, de aposta, de sortilégio, de predestinação, de vertigem e também de eficácia silenciosa num mundo de eficácia visível e descontentamento.

O mundo está nu, o rei está nu, as coisas estão claras. Toda a produção e a própria verdade visam a esse desnudamento, e é daí também que procede há bem pouco tempo a insustentável “verdade” do sexo. Felizmente, não é nada muito profundo, e ainda é a sedução que detém a chave mais sibilina da própria verdade, a saber, que “talvez não se deseje desnudá-la porque é extremamente difícil imaginá-la nua” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 206-207).

A Sedução e Seus Jogos de Corpos e Almas – Baudrillard e a Psicossomática

“Toda a estrutura acomoda -se à inversão ou à subversão, mas não à reversão de seus termos” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 28).

Baudrillard desconstrói principalmente a psicanálise franco-lacaniana, contrapondo-se à rigidez estrutural dos quadros clínico-subjetivos, mas também relativiza a psicanálise circunscrita às relações objetais, pois, em sedução, as próprias noções de sujeito e objeto se esboroam, pode-se pensar em algo psíquico vincular sim, mas sempre aspecto dinâmico-vincular, assim, tomar-se-á neste complexo a sedução como alma ou relação terceira que se estabelece, remontando-se a André Green (2008)GREEN, A. Orientações para uma Psicanálise Contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2008. e mesmo Bion (apud FIGUEIREDO, 2011FIGUEIREDO, L. Bion em nove lições: lendo transformações. São Paulo: Escuta, 2011.), e só conforme as relações vinculares (PICHON-RIVIÈRE, 2012PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.).

Portanto, a sedução é reversível –reverte corpos e almas, dissolve idéia de subjetividades per si quando se apresenta de uma forma irônica e alternativa, que rompe a referência ao sexo, num espaço de jogo e desafio - não de desejo:

Esta forma reversível é a da sedução [...] Não aquela à qual as mulheres teriam sido historicamente relegadas, cultura de gineceu, rendas e ouropéis, sedução revista pelo estádio do espelho e do imaginário das mulheres, terreno de jogos e de astúcias sexuais (ainda que aí se tenha preservado, quando todos os outros desapareciam, o único ritual do corpo da cultura ocidental, incluindo o da polidez), mas a sedução como forma irônica e alternativa, que quebra a referência do sexo, espaço não de desejo, mas de jogo e desafio (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 28).

Vislumbra-se os novos – e únicos ? – patamares instintuintes enquanto em relação, e não sexo strictu sensu, nesta colocação, nunca corpo enquanto apenas fisiologia de vazão hormonal individual:

É o que transparece no jogo mais banal da sedução: eu me esquivo, tu não me farás gozar, sou eu quem te fará jogar e quem te roubará o gozo. Jogo móvel, do qual é falso supor que seja apenas estratégia sexual. Muito mais uma estratégia de deslocamento (se-ducere: afastar, desviar de seu caminho), de desvio da verdade do sexo; jogar não é gozar. Existe aí uma espécie de soberania da sedução que é uma paixão e um jogo da ordem do signo, sendo ela quem prevalece a longo prazo, pois é uma ordem reversível e indeterminada (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 28).

O autor, novamente, apoiou-se em discursos de terceiros - agora as feministas Judith Belladonna e Barbara Penton - para demonstrar o quão o totem do desejo assumiu o espectro de uma exigência, uma tirania de algo a ser reivindicado e lutado, não mais como uma possibilidade mas como um dever, um direito ―inalienável – do indivíduo, que lhe era negligenciado pela sociedade machista/ falocêntrica como instrumento de seu poder (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 30-31).

Ao reproduzir tais discursos, Baudrillard tentou fazer cada vez mais nítidos, em sua concepção, certa ingenuidade destes ao tentar contradizer outros discursos no mesmo plano lógico. Nunca recorrem, por exemplo, à sedução, conceito tabu e, pelas feministas, tido como associado a uma vassalagem/submissão aos homens.

As críticas que se fazem sempre reeditam a lógica biológica, anatômica, psicanalítica do corpo como matéria e instrumento funcional, tendo o gozo como fim e o desejo como leitmotiv, sem necessidade argumentativa após a transcrição do texto/manifesto a seguir para que haja percepção de seu quê de grotesco:

Vemos não o homem, ou a mulher, mas o ser humano, antropomórfico (!) [...] Estamos exaustas com todo o nosso corpo de todas as barreiras culturais estereotipadas, de todas as segregações fisiológicas... Somos machos e fêmeas, adultos e crianças, bichas e viados, chupadores e chupadoras, enrabadores e enrabadoras. Não aceitamos reduzir a um único sexo toda a nossa riqueza sexual. Nosso safismo é apenas uma faceta de nossa sexualidade. Recusamos limtar-nos àquilo que a sociedade exige de nós, a saber, ser hetero, lésbica, pederasta e toda a gama de produtos publicitários. Somos insensatos em todos nossos desejos (BELLADONNA; PENTON, 1978 apud BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 31).

Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. aludiu à alma de diversas formas não taxativas quando se referiu às dimensões semióticas e imanentes do viver, elocubrando sobre tais questões, ou seja, seu conceito de alma remeteu-se aos aspectos sensíveis e relacionais da vida, pulsantes inter-psíquica e corporalmente, na pele.

Não, com isso, dizendo que tais afecções necessariamente dêem sentidos ao viver, aliás, pelo contrário, diluem os sentidos, dão, sim, gosto de viver – isto sim anímico escorado na corporeidade pulsante.

Com maior precisão, não um gosto que remeta a prazer/gozo, mas sim que impulsione o indivíduo ao jogar: instigue. O it que desperte o jogo/ sedução, da imanência da presença de si frente ao outro e do outro frente a si, aí sim o “isso”, o quelque chose, aquém e além de um Id/Isso de caráter exclusivamente intrapsíquico e/ou filogenético, ou seja, nunca da ordem individual.

Novamente, sobre sedução e corpos:

A sedução jamais é resultado de uma força de atração dos corpos, de uma conjunção de afetos, de uma economia de desejo; é preciso que intervenha um engano e misture as imagens, é preciso que uma tirada de repente junte coisas desunidas, como num sonho, ou de repente separe coisas indivisas [...]. Jogo sem fim ao qual os signos se prestam espontaneamente por uma ironia sempre disponível. Talvez eles queiram ser seduzidos [...] , desejem seduzir e ser seduzidos (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p.118, grifo do autor).

Assim, nesta ordem, a promessa do gozo - não ele - pode ser uma das vertentes que enrede a alma na sedução; nunca sua realização. Pelo contrário, a realização muitas vezes pode até remeter a uma sensação de fim de jogo, perda de graça que pouco quer dizer ao fogo de vida, em outras palavras, à alma em si – à animação - mas sim ao seu abrandamento ou mesmo extinção.

Desta feita, quando fala em vida, Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. até prefere remeter – com as ressalvas epistemológicas cabíveis - ao conceito psicanalítico de pulsão de morte, por mais paradoxal que isto possa parecer, justamente por resgatar deste a potência do se entregar, jogar-se como sacrifício.

À hipótese de dissolução, no caso baudrillardiano, ao jogo/ sedução. Vendo nisto uma beleza estética imanente do duelo/ desafio até às últimas consequências; isto em sua teoria é vida, vida com alma, sem produção nem desejo as regendo, ou tendo-se na égide da reprodução do código genético a finalidade.

Entende-se então que alma, na filosofia baudrillardiana, relaciona -se à promessa de, ou à inevitabilidade em se jogar por se estar absorvido pelo que Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. denomina ―significantes insignificantes: em relação e troca, como jogador: no jogo dos signos ―sedutores, e sedutores justamente por não dizerem nada.

Portanto, o nada dizer os coloca como enigma, desafio de jogo para que digam algo: sendo que este vir a dizer algo em algum momento corresponde não mais ao jogo, mas a seu fim; mas a possibilidade de vir a dizer – irrealizável, mutável - esta sim é sedutora.

Aí a proposta filosófica baudrillardian a também se afasta da Semiótica e da Psicanálise, disciplinas que buscam decodificar e analisar sentidos em tudo, o sentido não se faz importante na visão de alma desta filosofia da sedução, mesmo porque, segundo esta, quando algo é explicável, dizível, este algo deixa simplesmente de existir, relacionando -se à ideia de final de jogo (BAUDRILLARD, 1996BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996., 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Não é exatamente o feminino como superfície que se opõe a o masculino como profundidade; é o feminino com o indistinção da superfície e da profundidade. Ou como indiferença entre o autêntico e o artificial (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 16).

Ou seja, a filosofia baudrillardiana, na proposta da sedução enquanto dimensão anímica escorada nas interações corpóreas, afasta-se de um discurso de verdade, do desejo ou do que seja, confunde com o artifício, em uma visão positiva do mesmo, ou melhor, nem isso, amoral, lúdica – e nisto positiva, melhor, ultrapassando lógicas de bem e mal, parafraseando Nietzsche.

Arraigado como está o Homem pós-moderno de ideais da lógica e da natureza oriundos do Iluminismo, o artificial e a dissimulação sempre se fazem ver de maneira pejorativa, disto tenta fugir a argumentação baudrillardiana. Citando uma autora inglesa psicanalítica, mas que vislumbrou tal fato envolvendo a feminilidade - como há elementos de outra ordem, que não o racionalismo naturalista, Baudrillard (RIVIÈRE, J. apud BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 16) dá os créditos por tal feito:

[O que dizia Joan Rivière em “La feminité comme mascarade” (La psychanalyse nº 7), proposição fundamental e que contém em si toda sedução]: Seja autêntica ou superficial, a feminilidade é fundamentalmente a mesma coisa.

Foi então ressaltado que tal só pode ser mencionado em relação ao feminino, sendo que o masculino “conhece uma discriminação segura e um absoluto critério de veracidade” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 16).

Ainda, fechando de maneira até poética: “O masculino é certo, o feminino é insolúvel” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 16).

Este, então, é o enigma e o poder do feminino, oscilar por estes mundos, o do real e das aparências, sem se comprometer com nenhum deles, aí a concepção da feminilidade como uma máscara, sob a qual o homem adivinha algum perigo oculto, lança alguma luz no enigma ultrapassando-os, de forma que: “Essa estranha coincidência remete o feminino a sua ambiguidade: ele é ao mesmo tempo uma constatação radical de simulação e a única possibilidade de ultrapassar a simulação – precisamente pela sedução” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 16).

Baudrillard conjura-se completamente fora desta estúpida guerra dos sexos, conforme se desenha na atualidade, biologizante, jurídico-subjetiva, bem do “biopoder” que nem diriam outras vertentes que não a baudrillardiana, identificatória, subjetivizante. Mesmo porque, Baudrillard, além de nunca partir destas premissas, ele quer é se esquivar das mesmas, acreditando o sexo nunca ser tema interessante ao corpo em seu aspecto biológico, acreditando não em bissexualidade psíquica, mas sim em transsexualidade artifício-anímica-ritual, aqui se entende a sua concepção de corpo, fora do anatômico:

Tampouco é a beleza natural que seduz no homem, mas sim a beleza ritual. Pois esta é esotérica e iniciática, ao passo que a outra é apenas expressiva. Pois a sedução reside no segredo que fazem reinar os signos alijados do artifício, nunca numa economia natural de sentido, beleza ou desejo (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 103).

E continua:

A negação da anatomia e do corpo como destino não data de ontem. Foi bem mais virulenta em todas as sociedades anteriores a nossa. Ritualizar, cerimonializar, ataviar, mascarar, muitilar, desenhar, torturar, para seduzir, seduzir os deuses, seduzir os espíritos, seduzir os mortos. O corpo é o primeiro grande suporte desse gigantesco projeto de sedução. Apenas para nós é que assume um caráter estético e decorativo (e que ao mesmo tempo é negado em profundidade; a negação moral de toda a mágica do corpo surte efeito na própria idéia de decoração. Tanto para os selvagens quanto para os animais, não se trata de decoração, é um adorno. E essa é a regra universal. O que não está pintado é estúpido, dizem os caduveo) (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 103-104).

À Guisa de Conclusão – A Sedução (“Psicossomática” baudrillardiana) em Contraponto com a Psicanálise: os abismos superficiais

A filosofia baudrillardiana conceitua sedução como aquilo que desvia o sentido de quaisquer discursos, desvia-os de suas verdades (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Destarte, a proposta filosófica baudrillardiana propõe o inverso do que propõe o discurso analítico em suas distinções entre discurso manifesto e discurso latente: “pois o discurso latente desvia o discurso manifesto não de sua verdade mas para a sua verdade” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 61, grifo do autor).

Ou seja, tal escamoteação do discurso é para que este diga o que não gostaria de dizer, para que transpareça neste as suas “determinações e indeterminações profundas” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 61). “A profundidade sempre emerge oblíqua por trás do corte, o sentido sempre emerge oblíquo por trás do traço. O discurso manifesto tem estatuto de aparência trabalhada, atravessada pela emergência de um sentido” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 61).

Sob a égide da Psicanálise, a interpretação exerce a tarefa de romper com aparências e representações presentes no discurso manifesto, libertar o sentido, restabelecer o discurso latente (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Pois bem, tudo isto é estranho e avesso à sedução, segundo a perspectiva filosófica baudrillardiana, pois nela é o manifesto, aquilo de mais superficial que comporta o discurso, “que se volta sobre a organização profunda (consciente ou inconsciente) para anulá-la e substituir seu encanto e a armadilha das aparências” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 61-62).

Por conseguinte, de modo algum as aparências seriam fúteis e sim “lugar de um jogo e de uma aposta, de uma paixão pelo desvio” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 62); a sedução dos signos intrínsecos ao discurso faz-se de maior relevância que a eclosão de suposta verdade, qualquer que seja (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Baudrillard (2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 62), desdobrando este raciocínio filosófico, qualifica que a interpretação acaba por negligenciar e destruir tal sedução, em meio a seu objetivo supremo de se garimpar sentidos ocultos no discurso.

É por isso que esta, por excelência, opõe-se à sedução; é por isso que todo discurso interpretativo é o menos sedutor. Não apenas seus danos são incalculáveis no domínio das aparências, como bem se poderia dizer que existe um profundo equívoco nessa busca privilegiada do sentido oculto (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Na linha teórica baudrillardiana, os desvios jamais ocorrem em função de obras obscuras e recônditas de um inconsciente, mas o que desloca virtuais verdades do discurso, ou seja, seduz e o transmuta em sedutor é a aparência deste: a fruição sem sentido e randômica, ritualística, de seus signos à superfície, apresentados em todas inflexões e nuances destas formas (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

As conformações ocupam a tarefa de esvaziar o sentido do discurso - isto é sedutor - o sentido não.

Tendo-se então que discursos de sentido, como alguns psicanalíticos, intentam findar as aparências para conseguirem, de seu modo e sempre sujeitos a seu sistema lógico, resgatar verdades; a visão filosófica baudrillardiana aponta aí seu maior equívoco e maior embuste, pois neste processo obliteram e perdem de vista a sedução (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

No entanto, a filosofia baudrillardiana também observa que estas tentativas analíticas sempre estão fadadas ao fracasso, quaisquer discursos são subjugados por suas próprias aparências, mesmo os discursos de sentido, mas talvez este fracasso seja secretamente seu derradeiro desejo, tentado como todo discurso a cair nas malhas da sedução: “Contudo talvez todo o discurso também seja secretamente tentado por esse fracasso e essa volatização de seus objetivos, de seus efeitos de verdade nos efeitos de superfície que representam um espelho de absorção, de engolimento do sentido” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 62).

Neste caso, o discurso “seduz a si mesmo”, ou seja, originalmente se autoabsorve e se autoesvazia de seu sentido, pois assim melhor sirva para exercer fascinação aos outros, “sedução primitiva da linguagem” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 62). Talvez seja o que ocorrera ao discurso psicanalítico e sua inclusão no discurso laico, presente pela fascinação de seus termos, jamais pelo sentido, perdido, desviado, seduzido.

As aparências todas se conjuram de modo a destruir o sentido, converter este em um jogo, mais uma regra do jogo, como tal arbitrária, ritual, nada se relacionando com a verdade ou com a natureza, sempre numa perspectiva mais aventureira e encantada; lúdica. Linha esta sempre mais sedutora que a linha que se dirige ao sentido (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Ou seja, para não cair na sedução, antes de se preocupar com segredos do inconsciente, fantasmas ou alucinações investidos de sentido, o discurso psicanalítico deveria ocupar-se em não cair no abismo superficial representado por sua própria aparência, “a brilhante superfície do não-sentido e de todos os jogos que ela torna possíveis” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 63), porém nada garante, como se observou, que o discurso psicanalítico não queira cair neste abismo superficial.

A aposta na profundidade, no inconsciente, na interpretação é frágil e efêmera; este atributo terrorista e violento em se generalizar e interpretar: obsessão do discurso latente. Frágil porque o inconsciente seduz:

[...] seduz por seus sonhos, seduz por seu conceito, seduz visto que “fala” e que tem vontade de falar; sempre está presente uma dupla estrutura,uma estrutura paralela de convivência dos signos do inconsciente e de seu intercâmbio, que devora a outra, a do “trabalho” do inconsciente, exatamente a da transferência e da contratransferência. (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 63).

De maneira genial, neste desenvolvimento filosófico, a dinâmica transferencial e contratransferencial são apontadas, então, como o retorno do recalcado da própria teoria psicanalítica, sendo que em sua instituição original está o recalque da sedução, a mesma volta, na dinâmica dual, de jogo, da transferência e contratransferência da Psicanálise; nem seria diferente, na dinâmica da reversibilidade inerente à teoria baudrillardiana (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

Aliás, observando a obra de Freud, a perspectiva filosófica baudrillardiana constata dois extremos também condizentes com seu campo de estudo, embora divergentes conceitualmente: a sedução e a pulsão de morte.

Sobre a pulsão de morte, Baudrillard (1996)BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996. em A troca simbólica e a morte coloca admirar este conceito freudiano, não na sua lógica sistêmica na teoria, mas em sua ideia de impulso à vida, por incoerente que pareça, sob a óptica baseada em se apostar a própria vida para usufruir do viver, vida como instrumento de aposta, sempre na dinâmica de jogo.

A vida se presta como lance de aposta, aposta-se a própria vida para jogar, permanecer no jogo, ser jogador, viver, seduzir ou ser seduzido. Distanciando-se da noção de vida como preservação de si, como duração. Pelo contrário, dar à própria vida nesta troca pode ser muito mais interessante e vital que a mera sobrevivência. Sendo que nunca se dá como escolha, conscientemente, como diria a Psicanálise, mas sim como pulsão, sempre se opta em desfazer-se da vida, para viver.

Apesar de descrita esta assertiva, em uma outra obra (A troca simbólica e a morte), unem-se os elos em Da Sedução, a sedução estaria ali, na pulsão de morte, na vertigem que sentimos em abismo, vertigem que se explica justamente através da noção do abismo superficial, a de ser desviado da vontade de sobreviver, o algo que puxa a se entregar, jogar-se.

Ou seja, segundo a filosofia baudrillardiana, entre ambas – pulsão de morte e sedução - há “alguma afinidade secreta além de alguns fatos, que é uma espécie de objeto perdido da psicanálise” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 64).

Destarte, pode-se conjecturar que quando Freud começou a tecer a noção de pulsão de morte talvez tentasse reconciliar-se com a sedução, de maneira inconsciente que fosse, para usar sua linguagem, lembrando-se a lógica da reversão dos termos e que este mesmo Sigmund abandonara sua teoria da sedução em 1897 (LAPLANCHE; PONTALIS apud BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 64).

A partir do abandono da sedução, claro, não o abuso sexual dos filhos por seus pais, mas simplesmente da noção de sedução tida como fundamental aos fenômenos anímico-corpóreos, em detrimento à introdução da vertente sexual/ da sexualidade como base da teoria, segundo a filosofia baudrillardiana, houve uma perda substancial: “A sedução como forma original se vê remetida ao estado de ‘fantasma originário’ e é assim tratada, segundo uma lógica que não é mais a sua, como resíduo, vestígio, formação/ tela na lógica e na estrutura desde então triunfal da realidade psíquica e sexual” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 64).

Mais ainda, a partir de então, no discurso psicanalítico, a respeito do local que passou a ocupar sedução: “Ela não é simplesmente descartada como elemento secundário em relação a outros mais decisivos como a sexualidade infantil, o recalque, o Édipo etc; é negada como forma perigosa cuja eventualidade pode ser mortal para a coerência do edifício posterior” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 64-65).

Lógica semelhante de eventos, conforme observou a linha filosófica baudrillardiana, ocorreu na estruturação científica da Semiótica; segundo Baudrillard (2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 65), Ferdinand Saussure também “começara descrevendo nos Anagramas uma forma de linguagem ou de extermínio da linguagem, uma forma minuciosa e ritual de desconstrução do sentido e do valor”.

Isto, na óptica baudrillardiana, era consonante aos meandros da sedução, uma teoria potente, mas os seguidores de Saussure invalidaram o que escrevera o mestre, em seguida, preocupados com a construção científica da Linguística.

Ou seja, uma reviravolta de um projeto enigmático, sedutor, para um construtivo, conforme visto, a sedução jamais é da ordem da produção, a opção foi pela vertente mais fácil do caminho, com maior propensão ao entendimento e aceitação, para perpetração dos valores e lógicas vigentes; a filosofia baudrillardiana ressalvou com justiça que, no fim, Saussure apercebera-se intuitivamente de seu fracasso: “deixando pairar uma incerteza e entrever um enfraquecimento, um possível engano dessa tão bela mecânica de substituição” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 65).

Mas os “herdeiros” da linguística saussuriana, não se ateram a esta consideração final, assim como os herdeiros da psicanálise, contentaram-se em gerar uma disciplina:

[...] nunca mais aflorando a idéia de um abismo da linguagem, um abismo de sedução da linguagem, de uma operação radicalmente distinta de absorção e não de produção de sentido. O sarcófago da linguística estava bem selado e coberto pela mortalha do significante (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 64).

Retornando à psicanálise, por analogia, a crítica filosófica baudrillardiana acrescentou:

Assim a mortalha da psicanálise estendeu-se sobre a sedução, mortalha do sentido oculto e de um acréscimo oculto de sentido, a expensas do abismo superficial das aparências, da superfície de absorção, superfície pânica e instantânea de troca e de rivalidade dos signos que constituem a sedução (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 66).

Desta forma, no discurso filosófico baudrillardiano, denotou-se que a abolição freudiana da sedução para, em seu lugar, estruturar-se um maquinário interpretativo evidentemente operacional ou para incluir uma mecânica de recalque de natureza claramente sexual, ambos apresentando todas idiossincrasias do objetivismo e da coerência (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 66).1

Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. declarou a impostura de Lacan por seu discurso generalizar uma prática sedutora da Psicanálise, aí vingando a exclusão freudiana, porém de modo atavicamente contaminado pela Psicanálise, a saber, sempre circunscritos à Lei (do simbólico) – “sedução capciosa que sempre se exerce sob os auspícios da lei e da efígie do Mestre que reina pelo Verbo sobre as massas histéricas ineptas ao gozo” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 67).

Mas esta morte anunciada, da psicanálise, faz-se interessante, nesta difração de suas correntes e tendências, todas elas equivocadas e apontando os equívocos umas das outras, este momento antecede o retorno triunfal do recalcado inaugural, do que foi negado no início, na visão baudrillardiana: “A psicanálise teve pelo menos a oportunidade de terminar com um Grande Impostor depois de ter começado com uma Grande Negação” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 67).2

Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. viu como reconfortante este desmoronamento da psicanálise em seus próprios termos e signos “plenos de sentido que eram, artifícios de uma sedução desenfreada, em termos desenfreados de um intercâmbio cúmplice e vazio de sentido (inclusive na cura)” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 67); quando em referência a “inclusive na cura”, novamente em diálogo com a psicanálise lacaniana, que prevê naquela o esvaziamento de sentido dos significantes. Esta queda faz-se boa porque: “É sinal de que pelo menos a verdade nos será poupada” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 67).

Porém, além disso, a queda da razão psicanalítica é boa, sobretudo porque: “Assim se fecha um círculo sobre o qual talvez se abra a oportunidade de outras formas interrogativas e sedutoras” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 67).

Novamente a perspectiva filosófica baudrillardiana compara com outros percursos de sistemas de verdade mortos, como “Deus” e a “Revolução” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 68); no sentido de que os iconoclastas se enganaram, não havia verdade de Deus, só aparências, estas sim permanecem. Simplesmente porque “a verdade não existe” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 68, grifo do autor). Quanto ao denominado de “Revolução”, também só vive quando em confronto com seu duplo paródico, ou seja, em oposição, a ideia é sempre a de oposição, a verdade esvanece-se

A proposta de filosofia baudrillardiana sinaliza a hegemonia da perspectiva da sedução a partir destas críticas a outras visões modernas/ pós-modernas sobre as relações anímico-corpóreas, visões estas fundamentadas em discursos científicos de “verdades”, “naturais”: calcados na primazia do signo puro, como informação, no sentido- não na dança destes signos em promiscuidade, numa relação em que um esvaziaria e zombaria do sentido do outro.

Finalizando esta linha argumentativa com a enigmática frase nietzschiana: “Não acreditamos que a verdade continue sendo a verdade quando lhe retiram o véu” (NIETZSCHE apud BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 68).

Nos termos filosóficos baudrillardianos: “No ponto exato em que seu princípio de realidade psíquica se confunde com seu princípio de realidade psicanalítica, o inconsciente se transforma, assim com a economia política, num modelo de simulação” (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., p. 9, grifo do autor).

Além da temática do inconsciente, outra crítica ao ideário introduzido pela psicanálise localiza-se na noção de desejo como mola propulsora do existir corpóreo-anímico, todo desejo buscaria sua realização, descarga libidinal, nesta economia das pulsões.

Pois bem, Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008. critica ter o desejo esta importância, critica até aos críticos à ideia freudiana de desejo (como falta de algo, incompletude, insatisfação, frustração); naquela mesma noção de que estes querem subverter ou inverter a lógica freudiana baseando-se em mesmos conceitos desta, ainda que buscando novas concepções; assim como no caso do movimento feminista, a visão baudrillardiana conota tais tentativas como completamente incapazes de alcançar seu intento, ingênuas.

Haja vista a crítica a Deleuze, que procurou confrontar a óptica freudiana de desejo apresentando-o, resumidamente, como instrumento de potência vital ao indivíduo, não mais na visão psicanalítica clássica enquanto falta; tendo, neste aspecto, assumido uma pretensa atitude transgressora (BAUDRILLARD, 2008BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008.).

No entanto, na visão filosófica de Baudrillard (2008)BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas, SP: Papirus, 2008., ambos os enfoques são da mesma ordem e, em Da Sedução, postula uma abolição total da ênfase no desejo, não considerando contestatórios discursos que pretendam subverter outros usando dos mesmos valores que estes.

A partir de então, tendo a égide da Psicanálise se instituído a partir da noção de desejo, outra posição baseada no mesmo desejo, apesar de que pretensamente em outra óptica, não consegue operar reversão daquela teoria ou posição ideológica, pelo contrário, acaba por revalidá-la em uma esfera de inversão e subversão condizente àquela lógica e facilmente absorvível com partes do mesmo sistema.

Assim, tendo a alma prisoneira do corpo, ou o corpo prisioneiro da alma, na visão foucaultiana, ambos são posicionamentos igualmente errôneos, pois conotam uma individualidade, ou, em termos menos sacrílegos a Foucault, uma subjetividade, em si, algo completamente discordante, em termos baudrillardianos.

Em Baudrillard, não existe “constituição do sujeito psicológico”, muito menos produção, aliás, pode até existir, mas discursivamente, com sentido de “verdade” tautológica. Mas o que vale não é nada disso, o primado é o da sedução e a relação sempre dual e ritualística com outrem de fato, em certo momento, apodera-se do indivíduo uma sensação de perda, de ludibrio vil, desvio não da verdade, mas em sentido dela – proposta esta que corresponde a um engôdo, posto não existir verdade, nada de sedutor em tal projeto.

E a sedução não está na ordem “diagnóstica” (mas também com ressonância moralista) da sedução, pois a sedução jamais engana, apenas desvia da verdade.

Ainda, a sedução não mente e não trapaceia, apenas e tão somente desvia àqueles que querem ser desviados da Verdade, ninguém mais. Apenas seduz àqueles que querem ser seduzidos. A saber: todos.

Referências

  • BAUDRILLARD, J. Cool memories 1980-1985 Rio de Janeiro. Espaço e Tempo, 1987.
  • BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte São Paulo: Loyola, 1996.
  • BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos São Paulo: Loyola, 2002.
  • BAUDRILLARD, J. Power inferno Porto Alegre. Brasil: Meridional, 2005.
  • BAUDRILLARD, J. Da sedução Campinas, SP: Papirus, 2008.
  • FIGUEIREDO, L. Bion em nove lições: lendo transformações. São Paulo: Escuta, 2011.
  • FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: SALOMÃO, J. (Org.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 2006. Edição Standard Brasileira, v. 7, p. 76-150.
  • GANE, M. Baudrillard: critical and fatal theory. Londres: Routledge, 1991.
  • GREEN, A. Orientações para uma Psicanálise Contemporânea Rio de Janeiro: Imago, 2008.
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  • LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
  • MARX, K. Capital: a critique of political economy. v. I, II, III. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action&co_autor=130> Acesso em: 1 mar. 2016.
    » http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action&co_autor=130>
  • NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. In: LEBRUN, G. (Org.). Friedrich Nietzsche: obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 209-249.
  • PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo São Paulo: Martins Fontes, 2012.
  • 1
    Pequeno parênteses: ressaltemos que já há quem problematize isto na Psicanálise e tenha aderência a diferentes técnicas, como a técnica ativa, apenas para exemplificar um manejo entre vários outros que fogem a esta lógica, para que não se confunda a noção, importantíssima, de Baudrillard, mas muito generalista quanto à Psicanálise; quando de fato há várias Psicanálises , com a do autor do artigo.
  • 2
    Isto de “Grande Impostor” e “Grande Negação”, claramente uma paródia sarcástica à Psicanálise lacaniana, seus termos e conceitos, e novamente ficando a ressalva de que na opinião do autor, divergente à baudrillardiana, a Psicanálise não está morta, pelo contrário, apenas importante não repetir o erro, conforme apregoa Laplanche quando critica Freud ao abandonar a Teoria da Sedução, de jogar fora argumentos tão frutíferos por não se concordar com alguns postulados (LAPLANCHE, 1988LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.), do mesmo modo, insiste-se em se considerar valiosíssimas as colocações de Jean Baudrillard, não se jogando o bebê juntamente à água do banho, mantendo aqui seus argumentos aos quais se discorda apenas para ilustrar a sua verborragia incisiva, que é digna de admiração, até certo ponto, importante quem não fale só na aura do ascético e da neutralidade (neutralidade do analista?).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2013
  • Aceito
    22 Abr 2015
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