Acessibilidade / Reportar erro

Capacidade, desempenho e confiança da marcha como preditores de quedas em indivíduos pós-acidente vascular encefálico

Capacidad de la marcha, rendimiento y confianza como los predictores de caídas en personas pos accidente cerebrovascular

RESUMO

O objetivo deste estudo foi avaliar a correlação entre capacidade, desempenho e confiança da marcha e número de quedas em indivíduos após sofrerem acidente vascular encefálico (AVE), além de investigar quais dessas variáveis relacionadas à marcha poderiam predizer as quedas nessa população. Foram avaliados 95 indivíduos pós-AVE, de acordo com número de quedas no último ano e capacidade de marcha (por meio de teste de caminhada de 10 metros), desempenho na marcha (pela aplicação do questionário ABILOCO-Brasil) e confiança na marcha (pela análise de modified gait efficacy scale). O coeficiente de correlação de Pearson foi utilizado para avaliar as correlações entre as variáveis. A regressão linear múltipla foi aplicada para avaliar se as variáveis relacionadas à marcha são capazes de predizer as quedas em indivíduos pós-AVE. Não foram encontradas correlações significativas entre capacidade (p=0,87) e performance na marcha (p=0,06) e número de quedas. Correlação significativa, negativa, de magnitude moderada, foi encontrada somente entre confiança na marcha e quedas (r=−0,43; p<0,01). Na análise de regressão, apenas a confiança na marcha permaneceu no modelo (p<0,01) como preditora do número de quedas em indivíduos pós-AVE, sendo capaz, sozinha, de explicar 18% (R2=0,18) dessa variável. Assim, os achados do estudo demonstraram que apenas a confiança na marcha está diretamente relacionada com o número de quedas em indivíduos pós-AVE, sendo essa também a única variável que pode ser considerada preditora desse evento nessa população.

Descritores:
Marcha; Acidente por Quedas; Acidente Vascular Cerebral

RESUMEN

El objetivo de este estudio fue evaluar la correlación entre la capacidad de la marcha, rendimiento y confianza con el número de caídas en personas después del accidente cerebrovascular (ACV), además de identificar las variables relacionadas con la marcha que podrían predecir caídas en esta población. Se evaluó a un total de 95 personas pos-ACV de acuerdo al número de caídas en el último año y la capacidad de la marcha (por medio de la prueba de caminata de 10 metros), el rendimiento de la marcha (aplicando el cuestionario ABILOCO-Brasil) y la confianza en la marcha (por el análisis de modified gait efficacy scale). Para evaluar las correlaciones entre variables, se utilizó el coeficiente de correlación de Pearson. Para determinar si las variables relacionadas con la marcha pueden predecir caídas en personas pos-ACV, se aplicó regresión lineal múltiple. No se encontraron correlaciones significativas entre la capacidad (p=0,87) y rendimiento de la marcha (p=0,06) con el número de caídas. Se encontró únicamente una correlación negativa significativa de magnitud moderada entre la confianza en la marcha y las caídas (r=−0,43; p<0,01). En el análisis de regresión, solamente la confianza en la marcha permaneció en el modelo (p<0,01) como la predictora del número de caídas en personas pos-ACV pudiendo explicar, por sí sola, el 18% (R2=0,18) de esta variable. Los hallazgos del estudio demostraron que la confianza en la marcha fue la única variable que estuvo directamente relacionada con el número de caídas en personas pos-ACV, además de ser la única predictora de caídas en esta población.

Palabras clave:
Marcha; Accidentes por Caídas; Accidente Cerebrovascular

ABSTRACT

This study aims to assess the correlation between walking capacity, performance, and confidence and the number of falls in post-stroke individuals, in addition to investigate which of these walking-related variables could predict falls in this population. In total, 95 post-stroke individuals were evaluated according to the number of falls in the last year and walking capacity (10-meter walk test), walking performance (ABILOCO-Brazil) and walking confidence (modified Gait Efficacy Scale). Pearson’’s correlation coefficient was used to assess the correlations between variables. Multiple linear regression was used to assess whether walking-related variables can predict falls in post-stroke individuals. No significant correlations were found between capacity (p=0.87) and walking performance (p=0.06) and number of falls. A significant, negative correlation, with moderate magnitude, was found only between walking confidence and falls (r=−0.43; p<0.01). In the regression analysis, only walking confidence remained in the model (p<0.01) as a predictor of the number of falls in post-stroke individuals, explaining 18% (R2=0.18) of this variable. Thus, this study results demonstrated that only walking confidence is directly related to the number of falls in post-stroke individuals, which is also the only variable that can be considered a predictor of this event in this population.

Keywords:
Gait; Accidental Falls; Stroke

INTRODUÇÃO

O acidente vascular encefálico (AVE) é definido como uma disfunção neurológica aguda, que tem origem vascular, com início rápido dos sintomas, que podem variar segundo a região afetada do cérebro11. Silva SM, Corrêa JCF, Pereira GS, Corrêa FI. Social participation following a stroke: an assessment in accordance with the international classification of functioning, disability and health. Disabil Rehabil. 2017;41(8):879-86. doi: 10.1080/09638288.2017.1413428.
https://doi.org/10.1080/09638288.2017.14...
. Com uma alta mortalidade, o AVE é responsável por produzir importantes déficits físicos, psicológicos, cognitivos e sociais nos indivíduos acometidos, acarretando elevados índices de morbidade e incapacidades, principalmente no que se refere aos idosos22. Teixeira-Salmela LF, Oliveira ESG, Santana EGS, Resende GP. Fortalecimento muscular e condicionamento físico em hemiplégicos. Acta Fisiatrica. 2000;7(3):108-18. doi: 10.5935/0104-7795.20000001.
https://doi.org/10.5935/0104-7795.200000...
. As estruturas e funções do corpo ficam prejudicadas e, como resultado, o indivíduo pode ter dificuldades na realização de atividades básicas da vida diária33. Elloker T, Rhoda A, Arowoiya A, Lawal IU. Factors predicting community participation in patients living with stroke, in the Western Cape, South Africa. Disab Rehabil. 2019;41(22):2640-7. doi: 10.1080/09638288.2018.1473509.
https://doi.org/10.1080/09638288.2018.14...
, e gerar diferentes problemas de saúde pública, como as quedas44. Geyh S, Cieza A, Schouten J, Dickson H, Frommelt P, Omar Z, et al. ICF core sets for stroke. J Rehabil Med. 2004;(44 Suppl):135-41. doi: 10.1080/16501960410016776.
https://doi.org/10.1080/1650196041001677...
. As consequências das quedas são graves para a saúde desses indivíduos, incluindo fraturas, lesões importantes, dor, medo de cair ou síndrome pós-queda, institucionalização e até mesmo a morte55. Marchetti GF, Whitney SL. Older adults and balance dysfunction. Neurol Clin. 2005;23(3):785-805. doi: 10.1016/j.ncl.2005.01.009.
https://doi.org/10.1016/j.ncl.2005.01.00...
.

A marcha é um fator diretamente relacionado às quedas, uma vez que, se um indivíduo com AVE tiver uma redução na velocidade da marcha, isso pode ser considerado um fator causal das quedas66. Gama ZAS, Conesa AG, Ferreira MS. Epidemiología de caídas de ancianos en España: una revisión sistemática. Rev Esp Salud Publica. 2008;82(1):43-56.. De acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), o conceito de locomoção ou marcha é a capacidade de mover-se de pé sobre uma superfície, de modo que um pé esteja sempre no chão, como quando se passeia, caminha lentamente, anda para frente, para trás ou para o lado77. Organização Mundial da Saúde; Organização Panamericana de Saúde. CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Edusp; 2003.. Existem dois qualificadores importantes para avaliação da marcha, que são a capacidade e o desempenho77. Organização Mundial da Saúde; Organização Panamericana de Saúde. CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Edusp; 2003.. A capacidade descreve a aptidão de um indivíduo para executar uma tarefa ou uma ação e, para avaliá-la, é necessário ter um ambiente “padronizado” para neutralizar o impacto variável dos diferentes ambientes77. Organização Mundial da Saúde; Organização Panamericana de Saúde. CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Edusp; 2003.. Já o desempenho descreve o que o indivíduo faz no seu ambiente de vida habitual, sendo o “envolvimento numa situação de vida”, ou “a experiência vivida” das pessoas no contexto real em que vivem77. Organização Mundial da Saúde; Organização Panamericana de Saúde. CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Edusp; 2003.. Ambos devem ser considerados durante a avaliação da marcha, visto que fornecem informações complementares sobre o estado do paciente.

Outro fator importante que deve ser avaliado na marcha de indivíduos com AVE, e que pode estar diretamente relacionado às quedas, é a confiança, uma vez que indivíduos que limitam suas atividades por causa do medo de cair aumentam, particularmente, o risco de se tornarem quedantes88. Friedman SM, Munoz B, West SK, Rubin GS, Fried LP. Falls and fear of falling: which comes first? A longitudinal prediction model suggests strategies for primary and secondary prevention. J Am Geriatr Soc. 2002;50(8):1329-35. doi: 10.1046/j.1532-5415.2002.50352.x.
https://doi.org/10.1046/j.1532-5415.2002...
. A confiança na marcha pode diminuir após o AVE, devido a um conjunto de limitações que restringem a mobilidade e a capacidade de executar tarefas da vida diária. Dessa forma, indivíduos com baixa autoconfiança tendem a focar mais em suas limitações e deficiências99. Lopes KT, Costa DF, Santos LF, Castro DP, Bastone AC. Prevalence of fear of falling among a population of older adults and its correlation with mobility, dynamic balance, risk and history of falls. Braz J Phys Ther. 2009;13(3):223-9. doi: 10.1590/S1413-35552009005000026.
https://doi.org/10.1590/S1413-3555200900...
, o que pode alterar sua percepção do risco de quedas e aumentar sua incidência.

Existem estudos prévios investigando a relação entre marcha e quedas em indivíduos pós-AVE. Faria et al.1010. Faria CDCM, Saliba VA, Teixeira-Salmela LF, Nadeau S. Comparison between post-stroke hemiparetic subjects with and without history of falls on the basis of the international classification of functioning, disability and health. Fisioter Pesqui. 2010;17(3):242-7. doi: 10.1590/S1809-29502010000300010.
https://doi.org/10.1590/S1809-2950201000...
tiveram como objetivo comparar hemiparéticos com e sem histórico de quedas nos últimos seis meses, segundo os componentes da CIF e, especificamente para velocidade de marcha, não foi encontrada diferença significativa entre os indivíduos caidores e não caidores. Outro estudo, com 23 indivíduos pós-AVE, objetivou verificar a relação entre a velocidade de marcha e a autoeficácia para quedas, não encontrando correlação significativa entre ambas as medidas1111. Ricci NA, Ferrarias GP, Molina KI, Dib PM, Alouche SR. Velocidade de marcha e autoeficácia em quedas em indivíduos com hemiparesia após acidente vascular encefálico. Fisioter Pesqui. 2015;22(2):191-6. doi: 10.590/1809-2950/14484522022015.
https://doi.org/10.590/1809-2950/1448452...
. Já o estudo de Harris et al.1212. Harris JE, Eng JJ, Marigold DS, Tokuno CD, Louis CL. Relationship of balance and mobility to fall incidence in people with chronic stroke. Phys Ther. 2005;85(2):150-8. investigou a relação entre mobilidade e quedas em 99 indivíduos pós-AVE, também sem encontrar a mobilidade como explicação para o risco de quedas nessa população. Embora os estudos sugiram que a marcha não está relacionada a quedas, todos os estudos avaliaram tal atividade por meio de sua capacidade, não tendo sido encontrados estudos prévios que tenham investigado a marcha como preditora de queda, incluindo medidas de desempenho e confiança.

Tais resultados poderiam ajudar os profissionais a determinar se há correlação e, se sim, qual o fator que mais contribui para a redução do número de quedas nessa população, priorizando seu tratamento durante o processo de reabilitação. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi avaliar a correlação entre capacidade, desempenho e a confiança da marcha e o número de quedas em indivíduos pós-AVE, além de investigar quais dessas variáveis relacionadas à marcha poderiam predizer as quedas na população em questão.

METODOLOGIA

Desenho do estudo

Trata-se de um estudo observacional transversal.

Participantes

O período de recrutamento dos participantes foi entre os meses de agosto de 2018 a março de 2020, selecionados entre membros da comunidade em geral. Os critérios de inclusão foram: (1) indivíduos de ambos os sexos, sem restrição de idade; (2) pacientes diagnosticados com AVE e mais de seis meses pós-lesão; e (3) ser capaz de caminhar e responder aos questionários. Foram excluídos participantes que apresentavam quaisquer outras condições neurológicas ou musculoesqueléticas que pudessem interferir nos testes.

Procedimentos

Após coleta inicial dos dados demográficos e clínicos dos participantes, foi realizada a análise dos critérios de inclusão e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Posteriormente, foi indagado aos participantes o número de quedas no último ano, e coletadas as medidas de capacidade, desempenho e confiança na marcha. Todas as coletas foram realizadas no Laboratório de Neurologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Capacidade de marcha

A capacidade da marcha foi avaliada por meio do teste de caminhada de 10 metros1313. Salbach NM, Mayo NE, Higgins J, Ahmed S, Finch LE, Richards CL. Responsiveness and predictability of gait speed and other disability measures in acute stroke. Arch Phys Med Rehabil. 2001;82(9):1204-12. doi: 10.1053/apmr.2001.24907.
https://doi.org/10.1053/apmr.2001.24907...
. O teste foi realizado em uma superfície plana, e o tempo necessário para percorrer os 10 metros centrais foi registrado em segundos por meio de um cronômetro digital e utilizado para calcular a velocidade habitual do indivíduo, reportada em m/s. As instruções padronizadas para a realização do teste foram fornecidas sempre pelo mesmo examinador1414. Nascimento LR, Caetano LCG, Freitas DCMA, Morais TM, Polese JC, Teixeira-Salmela LF. Different instructions during the ten-meter walking test determined significant increases in maximum gait speed in individuals with chronic hemiparesis. Braz J Phys Ther. 2012;16(2):122-7. doi: 10.1590/S1413-35552012005000008.
https://doi.org/10.1590/S1413-3555201200...
.

Desempenho na marcha

Para mensurar o desempenho na marcha, foi utilizado o questionário ABILOCO-Brasil1515. Avelino PR, Faria-Fortini I, Basílio ML, Menezes KKP, Magalhães LC, Teixeira-Salmela LF. Adaptação transcultural do ABILOCO: uma medida de habilidade de locomoção, específica para indivíduos pós-acidente vascular encefálico. Acta Fisiatrica. 2016;23(4):161-5. doi: 10.5935/0104-7795.20160031.
https://doi.org/10.5935/0104-7795.201600...
. O questionário contém 13 itens sobre deambulação em diferentes situações cotidianas, e é realizado em forma de entrevista, momento em que foi solicitado aos participantes que pontuassem suas percepções, conforme as respostas “Impossível” ou “Possível” (impossível=0, possível=1)1515. Avelino PR, Faria-Fortini I, Basílio ML, Menezes KKP, Magalhães LC, Teixeira-Salmela LF. Adaptação transcultural do ABILOCO: uma medida de habilidade de locomoção, específica para indivíduos pós-acidente vascular encefálico. Acta Fisiatrica. 2016;23(4):161-5. doi: 10.5935/0104-7795.20160031.
https://doi.org/10.5935/0104-7795.201600...
),(1616 Caty GD, Arnould C, Stoquart GG, Thonnard JL, Lejeune TM. ABILOCO: a rasch-built 13-item questionnaire to assess locomotion ability in stroke patients. Arch Phys Med Rehabil. 2008;89(2):284-90. doi: 10.1016/j.apmr.2007.08.155.
https://doi.org/10.1016/j.apmr.2007.08.1...
. Após o final da entrevista, as respostas foram submetidas à análise on-line no site www.rehab-scales.org, que fez a conversão dos escores brutos em medida linear (logits)1515. Avelino PR, Faria-Fortini I, Basílio ML, Menezes KKP, Magalhães LC, Teixeira-Salmela LF. Adaptação transcultural do ABILOCO: uma medida de habilidade de locomoção, específica para indivíduos pós-acidente vascular encefálico. Acta Fisiatrica. 2016;23(4):161-5. doi: 10.5935/0104-7795.20160031.
https://doi.org/10.5935/0104-7795.201600...
),(1616 Caty GD, Arnould C, Stoquart GG, Thonnard JL, Lejeune TM. ABILOCO: a rasch-built 13-item questionnaire to assess locomotion ability in stroke patients. Arch Phys Med Rehabil. 2008;89(2):284-90. doi: 10.1016/j.apmr.2007.08.155.
https://doi.org/10.1016/j.apmr.2007.08.1...
.

Confiança na marcha

A confiança da marcha foi avaliada pelo modified gait efficacy scale (mGES), uma escala de 10 itens que avalia a percepção do indivíduo sobre seu nível de confiança na marcha, em circunstâncias desafiadoras1717. Avelino PR, Menezes KKP, Nascimento LR, Faria-Fortini I, Faria, CDCM, Scianni AA, et al. Adaptação transcultural da Modified Gait Efficacy Scale para indivíduos pós-acidente vascular encefálico. Rev Ter Ocup. 2018;29(3):230-6. doi: 10.11606/issn.2238-6149.v29i3p230-236.
https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149....
),(1818. Newell AM, Vanswearingen JM, Hile E, Brach JS. The modified gait efficacy scale: establishing the psychometric properties in older adults. Phys Ther. 2012;92(2):318-28. doi: 10.2522/ptj.20110053.
https://doi.org/10.2522/ptj.20110053...
. Os itens são classificados individualmente em uma escala Likert, de 10 pontos, na qual a pontuação 1 representa “sem nenhuma confiança”, e a pontuação 10 representa “confiança total”, perfazendo assim escores de 10 a 100. Quanto maior a pontuação alcançada pelo indivíduo, maior a confiança em sua habilidade de locomoção1818. Newell AM, Vanswearingen JM, Hile E, Brach JS. The modified gait efficacy scale: establishing the psychometric properties in older adults. Phys Ther. 2012;92(2):318-28. doi: 10.2522/ptj.20110053.
https://doi.org/10.2522/ptj.20110053...
.

Cálculo amostral

O cálculo amostral foi realizado com base na análise de regressão, que considerou a inclusão de três variáveis independentes (capacidade, desempenho e confiança na marcha). De acordo com a fórmula n=30+10k, onde k é o número de possíveis variáveis preditoras a serem incluídas1919. Knapp TR, Campbell-Heider N. Numbers of observations and variables in multivariate analyses. West J Nurs Res. 1989;11(5):634-41., a amostra mínima a ser considerada no estudo é de 60 indivíduos.

Análise estatística

Estatísticas descritivas e testes de normalidade (Kolmogorov-Smirnov) foram realizados para todas as variáveis. O coeficiente de correlação de Pearson foi utilizado para avaliar as correlações entre as medidas de marcha (capacidade, desempenho e confiança) e o número de quedas. A força das correlações foi classificada como baixa (r<0,30), moderada (0,30≤r≤0,50) e alta (r>0,50)2020. Cohen J. Statistical power analysis for the behavioral sciences. 2a ed. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1988.. Regressão linear múltipla foi utilizada para avaliar qual variável da marcha (capacidade, desempenho e confiança) melhor prediz as quedas. Todas as análises foram realizadas com o software estatístico SPSS 23.0 com significância de 5%.

RESULTADOS

De uma lista de 714 indivíduos, 619 não puderam ser contatados, se recusaram a participar do estudo, ou não se encaixaram nos critérios de inclusão. Assim, participaram do estudo 95 pessoas, sendo 38 homens (40%). A idade média dos participantes foi de 67 anos (DP=13), com predominância do AVE isquêmico (76%), e um tempo de instalação médio de 30 meses (DP=27). As características detalhadas dos participantes se encontram na Tabela 1.

Tabela 1
Características dos participantes (n=95)

Não foram encontradas correlações significativas entre capacidade (p=0,87) e performance na marcha (p=0,06) e número de quedas. Correlação significativa, negativa, de magnitude moderada, foi encontrada somente entre confiança na marcha e quedas (r=−0,43; p<0,01). Na análise de regressão, apenas a confiança na marcha permaneceu no modelo (p<0,01) como preditora do número de quedas em indivíduos pós-AVE, sendo capaz, sozinha, de explicar 18% (R2=0,18) dessa variável (Tabela 2).

Tabela 2
Análise de regressão das possíveis variáveis relacionadas à marcha como preditoras do número de quedas (n=95)

DISCUSSÃO

Este estudo teve como objetivo avaliar a relação entre capacidade, desempenho e confiança na marcha e número de quedas em indivíduos pós-AVE, além de investigar quais dessas três variáveis relacionadas à marcha poderiam predizer as quedas nessa população. Os resultados demonstraram que houve correlação significativa somente com a confiança na marcha, sendo também a única variável que pode ser considerada preditora do número de quedas em indivíduos pós-AVE.

Similar a achados prévios na literatura, este estudo também não encontrou correlação significativa entre capacidade da marcha, avaliada pela velocidade de marcha, assim como estudos anteriores, e as quedas1010. Faria CDCM, Saliba VA, Teixeira-Salmela LF, Nadeau S. Comparison between post-stroke hemiparetic subjects with and without history of falls on the basis of the international classification of functioning, disability and health. Fisioter Pesqui. 2010;17(3):242-7. doi: 10.1590/S1809-29502010000300010.
https://doi.org/10.1590/S1809-2950201000...
)-(1212. Harris JE, Eng JJ, Marigold DS, Tokuno CD, Louis CL. Relationship of balance and mobility to fall incidence in people with chronic stroke. Phys Ther. 2005;85(2):150-8.. Medidas de velocidade de marcha são frequentemente usadas para mensurar a capacidade de indivíduos pós-AVE1414. Nascimento LR, Caetano LCG, Freitas DCMA, Morais TM, Polese JC, Teixeira-Salmela LF. Different instructions during the ten-meter walking test determined significant increases in maximum gait speed in individuals with chronic hemiparesis. Braz J Phys Ther. 2012;16(2):122-7. doi: 10.1590/S1413-35552012005000008.
https://doi.org/10.1590/S1413-3555201200...
. Porém a deambulação, principalmente na comunidade, necessita de adaptação da marcha em condições adversas, com demandas atencionais e realizando tarefas adicionais, por exemplo, carregar uma sacola2121. Robinson CA, Shumway-Cook A, Matsuda PN, Ciol MA. Understanding physical factors associated with participation in community ambulation following stroke. Disabil Rehabil. 2011;33(12):1033-42. doi: 10.3109/09638288.2010.520803.
https://doi.org/10.3109/09638288.2010.52...
, componentes não contemplados no teste de velocidade de marcha ou no ABILOCO-Brasil, medida de desempenho que também não apresentou correlação significativa com as quedas. A recuperação da deambulação após o AVE, diretamente relacionada à execução de tal atividade sem a presença ou com o menor número possível das quedas é complexa, e não necessita apenas de velocidade da marcha, mas principalmente da capacidade de realizar tarefas mais complexas de caminhada em diversos ambientes2121. Robinson CA, Shumway-Cook A, Matsuda PN, Ciol MA. Understanding physical factors associated with participation in community ambulation following stroke. Disabil Rehabil. 2011;33(12):1033-42. doi: 10.3109/09638288.2010.520803.
https://doi.org/10.3109/09638288.2010.52...
, uma vez que a capacidade não é mensurada em um ambiente de vida real do indivíduo, e sim em um ambiente padronizado. Além disso, embora o ABILOCO avalie o desempenho em atividades distintas no ambiente de vida real do paciente, esse instrumento avalia a percepção em relação à possibilidade de execução ou não de determinadas tarefas1616 Caty GD, Arnould C, Stoquart GG, Thonnard JL, Lejeune TM. ABILOCO: a rasch-built 13-item questionnaire to assess locomotion ability in stroke patients. Arch Phys Med Rehabil. 2008;89(2):284-90. doi: 10.1016/j.apmr.2007.08.155.
https://doi.org/10.1016/j.apmr.2007.08.1...
, mas não estima sua percepção em relação ao nível de dificuldade ou confiança dos pacientes diante das atividades sugeridas.

Em relação à confiança na marcha, única variável que apresentou correlação significativa e única preditora encontrada no estudo, essa é uma habilidade que pode preceder a habilidade real e influenciar o desempenho de atividades diárias2222. McAuley E, Mihalko SL, Rosengren KS. Self-efficacy and balance correlates of fear of falling in elderly. J Aging Phys Act. 1997;5(4):329-40.. Em indivíduos pós-AVE, mesmo que consigam aumentar a velocidade da marcha, pode ser que essa melhora não seja transferida para o ambiente domiciliar ou para a deambulação em comunidade, devido à baixa confiança1818. Newell AM, Vanswearingen JM, Hile E, Brach JS. The modified gait efficacy scale: establishing the psychometric properties in older adults. Phys Ther. 2012;92(2):318-28. doi: 10.2522/ptj.20110053.
https://doi.org/10.2522/ptj.20110053...
. Indivíduos que apresentam baixa confiança na marcha também demostram menor desempenho1818. Newell AM, Vanswearingen JM, Hile E, Brach JS. The modified gait efficacy scale: establishing the psychometric properties in older adults. Phys Ther. 2012;92(2):318-28. doi: 10.2522/ptj.20110053.
https://doi.org/10.2522/ptj.20110053...
. A perda de confiança na marcha gera medo de cair e, com isso, os indivíduos restringem suas atividades do dia a dia, gerando um ciclo que se inicia pelo medo e resulta em restrição, que consequentemente leva à diminuição de força muscular e déficit de equilíbrio, gerando ainda mais incapacidades e maior risco de quedas2323. Jorstad EC, Hauer K, Becker C, Lamb SE. Measuring the psychological outcomes of falling: a systematic review. J Am Geriatr Soc. 2005;53(3):501-10. doi: 10.1111/j.1532-5415.2005.53172.x.
https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2005...
.

O principal ponto positivo deste estudo é a realização de uma pesquisa inédita, que preenche uma importante lacuna da literatura, com a utilização de instrumentos de baixo custo, fácil manuseio, rápida aplicação, com propriedades de medidas adequadas e que podem ser utilizados em ambiente domiciliar. No entanto, é possível citar como principal limitação deste artigo a utilização de uma amostra de conveniência. Embora essa amostra tenha sido ampla e extraída de vários locais distintos, ela não foi selecionada aleatoriamente e, portanto, pode não ser totalmente representativa da população em geral.

CONCLUSÃO

Os achados do estudo demonstraram que apenas a confiança na marcha está diretamente relacionada com o número de quedas em indivíduos pós-AVE, sendo essa também a única variável que pode ser considerada preditora desse evento nessa população. Assim, a reabilitação, que tem como objetivo reduzir o número de quedas em indivíduos pós-AVE, deve focar em um plano que inclua, principalmente, treinamentos capazes de aumentar a confiança nessa atividade, uma vez que ganhos apenas na capacidade e no desempenho possivelmente não serão capazes de melhorar de forma significativa o número de quedas nesses indivíduos.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Silva SM, Corrêa JCF, Pereira GS, Corrêa FI. Social participation following a stroke: an assessment in accordance with the international classification of functioning, disability and health. Disabil Rehabil. 2017;41(8):879-86. doi: 10.1080/09638288.2017.1413428.
    » https://doi.org/10.1080/09638288.2017.1413428
  • 2
    Teixeira-Salmela LF, Oliveira ESG, Santana EGS, Resende GP. Fortalecimento muscular e condicionamento físico em hemiplégicos. Acta Fisiatrica. 2000;7(3):108-18. doi: 10.5935/0104-7795.20000001.
    » https://doi.org/10.5935/0104-7795.20000001
  • 3
    Elloker T, Rhoda A, Arowoiya A, Lawal IU. Factors predicting community participation in patients living with stroke, in the Western Cape, South Africa. Disab Rehabil. 2019;41(22):2640-7. doi: 10.1080/09638288.2018.1473509.
    » https://doi.org/10.1080/09638288.2018.1473509
  • 4
    Geyh S, Cieza A, Schouten J, Dickson H, Frommelt P, Omar Z, et al. ICF core sets for stroke. J Rehabil Med. 2004;(44 Suppl):135-41. doi: 10.1080/16501960410016776.
    » https://doi.org/10.1080/16501960410016776
  • 5
    Marchetti GF, Whitney SL. Older adults and balance dysfunction. Neurol Clin. 2005;23(3):785-805. doi: 10.1016/j.ncl.2005.01.009.
    » https://doi.org/10.1016/j.ncl.2005.01.009
  • 6
    Gama ZAS, Conesa AG, Ferreira MS. Epidemiología de caídas de ancianos en España: una revisión sistemática. Rev Esp Salud Publica. 2008;82(1):43-56.
  • 7
    Organização Mundial da Saúde; Organização Panamericana de Saúde. CIF: classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde. São Paulo: Edusp; 2003.
  • 8
    Friedman SM, Munoz B, West SK, Rubin GS, Fried LP. Falls and fear of falling: which comes first? A longitudinal prediction model suggests strategies for primary and secondary prevention. J Am Geriatr Soc. 2002;50(8):1329-35. doi: 10.1046/j.1532-5415.2002.50352.x.
    » https://doi.org/10.1046/j.1532-5415.2002.50352.x
  • 9
    Lopes KT, Costa DF, Santos LF, Castro DP, Bastone AC. Prevalence of fear of falling among a population of older adults and its correlation with mobility, dynamic balance, risk and history of falls. Braz J Phys Ther. 2009;13(3):223-9. doi: 10.1590/S1413-35552009005000026.
    » https://doi.org/10.1590/S1413-35552009005000026
  • 10
    Faria CDCM, Saliba VA, Teixeira-Salmela LF, Nadeau S. Comparison between post-stroke hemiparetic subjects with and without history of falls on the basis of the international classification of functioning, disability and health. Fisioter Pesqui. 2010;17(3):242-7. doi: 10.1590/S1809-29502010000300010.
    » https://doi.org/10.1590/S1809-29502010000300010
  • 11
    Ricci NA, Ferrarias GP, Molina KI, Dib PM, Alouche SR. Velocidade de marcha e autoeficácia em quedas em indivíduos com hemiparesia após acidente vascular encefálico. Fisioter Pesqui. 2015;22(2):191-6. doi: 10.590/1809-2950/14484522022015.
    » https://doi.org/10.590/1809-2950/14484522022015
  • 12
    Harris JE, Eng JJ, Marigold DS, Tokuno CD, Louis CL. Relationship of balance and mobility to fall incidence in people with chronic stroke. Phys Ther. 2005;85(2):150-8.
  • 13
    Salbach NM, Mayo NE, Higgins J, Ahmed S, Finch LE, Richards CL. Responsiveness and predictability of gait speed and other disability measures in acute stroke. Arch Phys Med Rehabil. 2001;82(9):1204-12. doi: 10.1053/apmr.2001.24907.
    » https://doi.org/10.1053/apmr.2001.24907
  • 14
    Nascimento LR, Caetano LCG, Freitas DCMA, Morais TM, Polese JC, Teixeira-Salmela LF. Different instructions during the ten-meter walking test determined significant increases in maximum gait speed in individuals with chronic hemiparesis. Braz J Phys Ther. 2012;16(2):122-7. doi: 10.1590/S1413-35552012005000008.
    » https://doi.org/10.1590/S1413-35552012005000008
  • 15
    Avelino PR, Faria-Fortini I, Basílio ML, Menezes KKP, Magalhães LC, Teixeira-Salmela LF. Adaptação transcultural do ABILOCO: uma medida de habilidade de locomoção, específica para indivíduos pós-acidente vascular encefálico. Acta Fisiatrica. 2016;23(4):161-5. doi: 10.5935/0104-7795.20160031.
    » https://doi.org/10.5935/0104-7795.20160031
  • 16
    Caty GD, Arnould C, Stoquart GG, Thonnard JL, Lejeune TM. ABILOCO: a rasch-built 13-item questionnaire to assess locomotion ability in stroke patients. Arch Phys Med Rehabil. 2008;89(2):284-90. doi: 10.1016/j.apmr.2007.08.155.
    » https://doi.org/10.1016/j.apmr.2007.08.155
  • 17
    Avelino PR, Menezes KKP, Nascimento LR, Faria-Fortini I, Faria, CDCM, Scianni AA, et al. Adaptação transcultural da Modified Gait Efficacy Scale para indivíduos pós-acidente vascular encefálico. Rev Ter Ocup. 2018;29(3):230-6. doi: 10.11606/issn.2238-6149.v29i3p230-236.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v29i3p230-236
  • 18
    Newell AM, Vanswearingen JM, Hile E, Brach JS. The modified gait efficacy scale: establishing the psychometric properties in older adults. Phys Ther. 2012;92(2):318-28. doi: 10.2522/ptj.20110053.
    » https://doi.org/10.2522/ptj.20110053
  • 19
    Knapp TR, Campbell-Heider N. Numbers of observations and variables in multivariate analyses. West J Nurs Res. 1989;11(5):634-41.
  • 20
    Cohen J. Statistical power analysis for the behavioral sciences. 2a ed. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1988.
  • 21
    Robinson CA, Shumway-Cook A, Matsuda PN, Ciol MA. Understanding physical factors associated with participation in community ambulation following stroke. Disabil Rehabil. 2011;33(12):1033-42. doi: 10.3109/09638288.2010.520803.
    » https://doi.org/10.3109/09638288.2010.520803
  • 22
    McAuley E, Mihalko SL, Rosengren KS. Self-efficacy and balance correlates of fear of falling in elderly. J Aging Phys Act. 1997;5(4):329-40.
  • 23
    Jorstad EC, Hauer K, Becker C, Lamb SE. Measuring the psychological outcomes of falling: a systematic review. J Am Geriatr Soc. 2005;53(3):501-10. doi: 10.1111/j.1532-5415.2005.53172.x.
    » https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2005.53172.x
  • 1
    Fonte de financiamento: nada a declarar
  • 3
    Aprovado pelo Comitê de Ética: nº CAAE 65765817.3.0000.5149.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2021
  • Aceito
    15 Nov 2021
Universidade de São Paulo Rua Ovídio Pires de Campos, 225 2° andar. , 05403-010 São Paulo SP / Brasil, Tel: 55 11 2661-7703, Fax 55 11 3743-7462 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revfisio@usp.br