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Análise do ensino em fisioterapia no Brasil durante a pandemia de COVID-19

Resumo

Introdução:

A pandemia de COVID-19 impôs ao mundo a necessidade de distanciamento social como estratégia para o controle da doença, e com isso a maioria dos países suspendeu temporariamente as atividades educacionais em todos os níveis.

Objetivo:

Analisar a situação do ensino de fisioterapia no Brasil, em instituições públicas e privadas, no período da pandemia de COVID-19.

Métodos:

Trata-se de um estudo transversal realizado com docentes de cursos de fisioterapia do país. A pesquisa foi conduzida utilizando-se formulário eletrônico distribuído por aplicativo de mídia social, contendo questões relacionadas às características dos docentes, da instituição de ensino e do processo de trabalho. Para as análises de associação, aplicou-se o teste do qui-quadrado com nível de significância de 5%.

Resultados:

Participaram da pesquisa 313 docentes de 22 estados. Entre os participantes, 62,94% eram de instituições privadas e 73,80% relataram que as atividades foram mantidas na modalidade de ensino remoto emergencial (ERE). Dentre os docentes que passaram a utilizar o ERE, 63,20% informaram que não houve planejamento prévio, e 28,13% relataram que não receberam nenhum tipo de capacitação para esta modalidade de ensino. Verificou-se que houve associação entre o tipo da instituição, pública ou privada, com a idade do docente (p < 0,001), sexo (p < 0,001), tempo na docência (p < 0,001) e adoção do ERE (p < 0,001).

Conclusão:

No Brasil, diante da pandemia de COVID-19, a maioria das instituições aderiu ao ERE - mais prevalente nas instituições privadas - e não houve planejamento para a transição do ensino presencial para o remoto.

Palavras-chave:
COVID-19; Educação superior; Fisioterapia; Pandemia

Abtract

Introduction:

The COVID-19 pandemic brought the need for social distancing as a strategy to control the disease, prompting most countries to te.,mporarily suspend educational activities at all levels.

Objective:

To analyze the status of physical therapy education in Brazilian public and private institutions during the COVID-19 pandemic.

Methods:

A cross-sectional study with professors from physical therapy courses in Brazil. The study was conducted using an electronic form distributed via a social media application, containing questions on the characteristics of the professor, educational institution and work process. Associations were analyzed by the chi-squared test at 5% significance.

Results:

A total of 313 professors from 22 Brazilian states participated, with 62.94% from private institutions and 73.80% reporting that activities were conducted via emergency remote teaching (ERT). Among the professors who shifted to ERT, 63.20% did so with no prior planning and 28.13% had received no training for this this teaching format. An association was observed between the type of institution (public or private) and professors’ age (p < 0.001), sex (p < 0.001), teaching experience (p < 0.001) and adopting ERT (p < 0.001).

Conclusion:

In Brazil, the COVID-19 pandemic prompted most institutions to switch to ERT, more prevalent at private facilities, with no prior planning for the transition from in-person to remote teaching.

Keywords:
COVID-19; Higher education; Pandemic; Physical therapy

Introdução

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi notificada a respeito da descoberta de um novo vírus existente na China que colocou os sistemas de saúde de todo o mundo em situação de alerta. A doença do coronavírus 2019 (COVID-19), uma doença de alta transmissibilidade, gerou um cenário de franca expansão com disseminação por todo o mundo, levando a OMS a decretar situação de pandemia.11 Sohrabi C, Alsafi Z, O’Neil N, Khan M, Kerwhan A, Al-Jabir A, et al. World Health Organization declares global emergency: A review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). Int J Surg. 2020;76:71-6. DOI
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,22 Zu ZY, Jiang MD, Xu PP, Chen W, Ni QQ, Lu GM, et al. Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): a perspective from China. Radiology. 2020;296(2):E15-25. DOI
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O Brasil notificou o primeiro caso de COVID-19 em 26 de fevereiro, na cidade de São Paulo, e a partir de então, nos primeiros 50 dias da epidemia no país houve um crescimento diário significativo de novos casos.33 Croda J, Oliveira WK, Frutuoso RL, Mandetta LH, Baia-da-Silva DC, Brito-Sousa JD, et al. COVID-19 in Brazil: advantages of a socialized unified health system and preparation to contain cases. Rev Soc Bras Med Trop. 2020;53:e20200167. DOI
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,44 Medeiros AA, Barbosa IR, Lima KC. Epidemia de COVID-19 no Brasil: uma análise dos primeiros 50 dias. Cad Edu Saude e Fis. 2020;7(13):e071306. DOI
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A pandemia de COVID-19 impôs ao mundo a necessidade de distanciamento social como estratégia para o achatamento da curva epidêmica, sustentabilidade das ações dos sistemas de saúde e, principalmente, redução da incidência e mortalidade em decorrência da doença.55 Araújo FJO, Lima LSA, Cidade PIM, Nobre CB, Rolim Neto ML. Impact of Sars-Cov-2 and its reverberation in global higher edu-cation and mental health. Psychiatry Res. 2020;288:112977. DOI
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6 Kaup S, Jain R, Shivalli S, Pandey S, Kaup S. Sustaining academics during COVID-19 pandemic: The role of online teaching-learning. Indian J Ophthalmol. 2020;68(6):1220-1. Full text link
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-77 UNESCO. Education: From disruption to recovery. 2020 [acesso 31 jul 2020]. Available from: https://en.unesco.org/covid19/educationresponse
https://en.unesco.org/covid19/educationr...
Desta forma, a maioria dos países suspendeu temporariamente as atividades educacionais em todos os níveis, e no Brasil aproximadamente 8,5 milhões de alunos do ensino superior foram afetados pela suspensão das aulas.77 UNESCO. Education: From disruption to recovery. 2020 [acesso 31 jul 2020]. Available from: https://en.unesco.org/covid19/educationresponse
https://en.unesco.org/covid19/educationr...

A partir da decretação de situação de emergência de saúde pública de importância nacional88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº. 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Brasília: Diário Oficial da União; Feb 4, 2020. Full text link
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, o Ministério da Educação (MEC) publicou uma série de documentos9-12 a fim de normatizar o ensino no país neste período de pandemia, e autorizou, em caráter excepcional, a substituição das atividades de ensino presenciais por aulas realizadas com a utilização de tecnologias de informação e comunicação, implementando o que tem sido chamado de ensino remoto emergencial (ERE).

As atividades práticas, de estágio e em laboratórios foram inicialmente vetadas quanto à substituição pelo ERE. Contudo, a Portaria MEC nº 544/20201212 Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº. 544, de 16 de junho de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19, e revoga as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020. Brasília: Diário Oficial da União; Jun 17, 2020. Full text link
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possibilitou a realização destas atividades pelo ERE desde que estivessem em consonância com o disposto nas diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos respectivos cursos.

As DCNs dos cursos de graduação em fisioterapia13 preveem que 20% da carga horária total do curso seja dedicada ao desenvolvimento do estágio curricular supervisionado, realizado sob supervisão docente, e que seja assegurada a prática de intervenções nos diferentes níveis de atenção. Sob esta perspectiva e considerando o que estabelece a portaria MEC nº 544/20201212 Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº. 544, de 16 de junho de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19, e revoga as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020. Brasília: Diário Oficial da União; Jun 17, 2020. Full text link
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, não verifica-se possibilidade de substituição das atividades práticas desenvolvidas no processo de formação do fisioterapeuta pelo ERE.

A formação dos profissionais da área da saúde deve ser orientada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas necessidades de saúde da população. Neste momento de pandemia, verifica-se que o processo de ensino-aprendizagem se encontra fragilizado, principalmente pela ausência do contato interpessoal imprescindível para o desenvolvimento de competências essências para os profissionais da saúde.1414 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº. 048, de 1 de julho de 2020. Recomenda ao Ministério da Educação, que observe o Parecer Técnico nº 162/2020, no que diz respeito a estágios e práticas na área da saúde durante a pandemia de Covid-19. 2020. Full text link
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Neste contexto, torna-se de extrema importância identificar como a formação em fisioterapia tem ocorrido no país no momento em que se vivencia uma crise sanitária internacional. Assim, o presente estudo teve como objetivo analisar a situação do ensino em fisioterapia no Brasil, em instituições públicas e privadas, no período da epidemia de COVID-19.

Métodos

Trata-se de um estudo seccional, do tipo pesquisa de opinião, conduzido pelo Núcleo de Estudo e Observação em Formação e Cuidado em Saúde (NEOFOCUS), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, do qual participaram docentes de cursos presenciais de graduação em fisioterapia.

Para o cálculo amostral identificou-se a quantidade de cursos presenciais de graduação em fisioterapia no país, registrados no sistema do Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior do Ministério da Educação (e-MEC)1515 Brasil. Ministério da Educação. Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior [cited 2020 May 9]. Available from: http://emec.mec.gov.br/
http://emec.mec.gov.br/...
, com início até o ano de 2019, totalizando 797 cursos. A população do estudo foi estimada em 11.955 docentes, correspondendo à média de 15 docentes por curso em atividade no país.

O tamanho da amostra foi calculado a partir da plataforma Open Epi, considerando a população de docentes de 11.955 indivíduos, intervalo de confiança de 95%, margem de erro de 6% e prevalência do desfecho de 50%. Com a finalidade de obter amostra compatível com a análise por subgrupos, acrescentou-se um percentual de 20% à amostra, totalizando 313 docentes.

A realização do web-based survey ocorreu no mês de maio com a divulgação do formulário eletrônico, o qual continha questões referentes à caracterização dos docentes, da instituição de ensino e de seu processo de trabalho. A divulgação da pesquisa e do formulário ocorreu pelo aplicativo Whastapp, e a coleta dos dados foi encerrada ao atingir o número de participantes estimado pelo cálculo amostral.

As variáveis do estudo foram agrupadas em características dos docentes (idade, sexo e tempo de exercício na docência); características da instituição de ensino (tipo de instituição a qual está vinculado, adoção do ERE, tomada de decisão compartilhada, capacitação para utilização de tecnologias da informação e comunicação, e oferecimento de suporte para o ERE); e características do processo de trabalho (planejamento conjunto entre docentes, aceitação do ERE pelos estudantes, desenvolvimento de competências dos estudantes, realização das atividades práticas e de estágio, e percepção em relação à qualidade do seu processo de trabalho, à decisão institucional em relação as ações implementadas e ao seu estado atual de saúde e dos estudantes).

Para análise dos dados realizou-se a descrição com as frequências absoluta e relativa com os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Para verificar a associação entre o tipo de instituição de trabalho do docente em relação às demais variáveis, utilizou-se o teste do qui-quadrado, considerando nível de significância de 5%.

Este estudo se caracteriza como pesquisa de opinião pública, tendo em vista que se refere à consulta de caráter pontual, na qual o participante é convidado a expressar sua preferência ou avaliação, e que não há possibilidade de identificação dos participantes. Segundo a Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, pesquisas de opinião estão dispensadas do registro e da apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

Responderam à pesquisa 313 docentes dos cursos de graduação em fisioterapia de 22 unidades da federação, sendo 62,94% trabalhadores de instituições de ensino (IES) privadas.

Em relação às características pessoais, a maioria dos docentes de instituições públicas se encontra na faixa etária entre 36 e 45 anos (50,86%), enquanto que nas instituições privadas a maior parte dos docentes tinha idade inferior a 35 anos (40,10%) evidenciando diferença significativa (p < 0,001). Também observou-se que nas instituições privadas houve maior prevalência de docentes com menor tempo de atuação na docência (p < 0,001). Quanto ao processo de trabalho, o ERE foi adotado por 99,49% das IES privadas, enquanto que 69,83% das escolas públicas suspenderam o calendário acadêmico, sendo significativa tal diferença (p < 0,001) (Tabela 1).

Tabela 1
Associação entre o tipo de instituição de ensino superior (IES) e as características pessoais, institucionais e do processo de trabalhos dos participantes da pesquisa (Brasil, 2020)

No que se refere ao processo de trabalho dos docentes que adotaram a modalidade de ERE (n = 231), a maioria relata que não houve um período de planejamento entre a suspensão das aulas presenciais e a adoção do ERE (63,20%), que a instituição ofertou capacitação para a utilização de tecnologias de informação e comunicação (71,85%), que houve planejamento conjunto entre os docentes do curso para o início das atividades do ensino remoto (59,74%), que as atividades práticas e os estágios foram suspensos e que a instituição oferece suporte para o ensino remoto (69,69%).

Em relação aos estudantes, 73,59% dos docentes relataram que houve aceitação dos estudantes ao ensino remoto e 74,45% acreditam que os alunos estão desenvolvendo parcialmente as competências esperadas. Quanto à avaliação do seu próprio processo de trabalho, 63,20% dos docentes afirmaram que não estão desenvolvendo suas atividades com a qualidade desejada (Tabela 2).

Tabela 2
Descrição das características institucionais e do processo de trabalho dos docentes que no momento da pandemia passaram a utilizar o ensino remoto emergencial (Brasil, 2020)

Discussão

O presente estudo contou com a participação de docentes fisioterapeutas de cursos de graduação de IES públicas e privadas distribuídas em todas as regiões brasileiras. Embora a grande maioria dos cursos de graduação em fisioterapia no Brasil esteja em IES privadas, houve participação equilibrada entre docentes de ambos os tipos de instituição.

Estudos que caracterizam os docentes de cursos de graduação em fisioterapia no Brasil são escassos, assim buscou-se conhecer o perfil dos docentes fisioterapeutas atuantes em IES brasileiras. A maioria dos docentes deste estudo é do sexo feminino e resultados semelhantes foram encontrados por outros autores.16-18 Essa tendência é historicamente associada à fisioterapia no Brasil, portanto, não se pode afirmar que há uma feminização da profissão, como ocorreu na medicina e odontologia, profissões que eram predominantemente desenvolvidas por homens e que hoje possuem uma considerável força de trabalho feminina.1919 Matos IB, Toassi RFC, Oliveira MC. Profissões e ocupações de saúde e o processo de feminização: tendências e implicações. Athenea Digital 2013;13(2):239-44. DOI
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Em relação à idade, os participantes possuíam em sua maioria até 45 anos, entretanto, observou-se diferença significativa quando comparados os docentes de escolas públicas e privadas, sendo a maior parte dos docentes de IES públicas com idade superior a 35 anos. As informações sobre a idade e tempo de atuação na docência superior indicam que nas IES públicas os docentes possuem carreira mais prolongada, com vínculos de trabalho que permitem o seu desenvolvimento e a aquisição de experiência no fazer docente. Em contrapartida, percebe-se que docentes jovens e com pouco - ou nenhum - tempo de experiência na docência são na maioria das vezes absorvidos pelo setor privado, com maior risco de vínculos de trabalho precarizados e poucos seguros, o que impacta diretamente na qualidade do trabalho e na formação dos futuros profissionais.

Nos últimos anos tem se observado no Brasil uma expansão de novos cursos de fisioterapia de maneira desregulada e sem planejamento, com aumento da oferta de novas vagas pela iniciativa privada1515 Brasil. Ministério da Educação. Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior [cited 2020 May 9]. Available from: http://emec.mec.gov.br/
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, o que pode ter contribuído para a maior adesão pelo ERE por estas instituições. Sabe-se que os espaços decisórios nas instituições públicas e privadas são distintos, sendo que o espaço público é (ou ao menos espera-se que seja) operado pela lógica da democracia e das decisões colegiadas, o que pode explicar a resistência, nessas instituições, ao início do ERE de forma abrupta, considerando-se seus vários impactos na formação superior. Diferentemente, a maioria das IES privadas no Brasil conformam grandes conglomerados educacionais voltados à lógica do mercado e do lucro, o que pode justificar, nessas IES, a escolha da manutenção das atividades pedagógicas para a garantia do pagamento das mensalidades e redução da evasão, evitando o acúmulo prejuízos.

Embora a Portaria MEC nº 544/20201212 Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº. 544, de 16 de junho de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19, e revoga as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020. Brasília: Diário Oficial da União; Jun 17, 2020. Full text link
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apresente claramente que as atividades práticas e estágios devam seguir às DCN do respectivo curso, verifica-se que uma parcela das instituições não atendeu a normativa publicada, contribuindo, ainda mais, para a fragilização do processo ensino-aprendizagem neste momento. Tal constatação fomenta a necessidade de discussão e aprimoramento dos procedimentos de avaliação e reavaliação de cursos no período pós-pandemia, no sentido de garantir que as normativas e as recomendações que visem a formação de qualidade sejam estritamente cumpridas.

Para o ensino das profissões da área da saúde, a substituição das atividades didáticas presenciais por aquelas realizadas no ambiente virtual sempre despertou grande preocupação, diante das singularidades e complexidade envolvidas no desenvolvimento dos conhecimentos, habilidades e atitudes imprescindíveis para a formação de um profissional capaz de responder de forma ética, competente e socialmente responsável às necessidades da população. Entretanto é importante diferenciar o ERE da educação à distância, modalidade de formação já existente no Brasil e que para os cursos de fisioterapia conta atualmente com mais de 120.000 vagas autorizadas em escolas privadas.1515 Brasil. Ministério da Educação. Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior [cited 2020 May 9]. Available from: http://emec.mec.gov.br/
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Diversas entidades profissionais, o Conselho Nacional de Saúde e a Associação Brasileira de Ensino em Fisioterapia já se posicionaram radicalmente contrários ao oferecimento de cursos de graduação na modalidade à distância.14, 20-22

A maioria dos participantes consideraram que a IES na qual atuam tomou a decisão acertada quanto à suspensão das atividades ou adoção do ERE. Entre os trabalhadores da escola privada, o percentual foi significativamente maior, o que merece destaque, uma vez que estes são justamente os docentes que iniciaram o ERE de forma abrupta e, conforme 63,20% dos respondentes, sem nenhum tempo para planejamento prévio das atividades. É importante ressaltar que o ERE foi adotado com o semestre em curso e não se trata apenas em transferir atividades didáticas antes realizadas presencialmente para o espaço virtual. Faz-se necessária a adoção de um conjunto distinto de ferramentas pedagógicas, muitas até então desconhecidas pela maioria dos docentes.2323 Ortiz PA. Teaching in the time of COVID-19. Biochem Mol Biol Educ. 2020;48(3):201. DOI
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Outra informação relevante é que parte considerável dos docentes relatou não ter havido planejamento conjunto entre os docentes do curso, o que sem dúvida pode comprometer o cumprimento do projeto pedagógico do curso e a qualidade do processo ensino-aprendizagem. Além disso, pode causar ao estudante e ao próprio docente sobrecarga de atividades síncronas, assíncronas e avaliativas, aumentando os riscos de comprometimento da saúde mental já existentes devido à situação de isolamento social, medo eminente de transmissão da doença, além de longas horas em trabalho no computador, smartphones, tablets ou outros.5, 23

Há que se destacar que uma parcela de professores não recebeu qualquer capacitação para a utilização das tecnologias de informação e comunicação, o que pode apresentar-se como um grande desafio, uma vez que comumente os docentes de fisioterapia, estendendo-se às outras profissões da área da saúde, não realizam uma qualificação pedagógica formal e reproduzem estratégias e modelos com os quais foram ensinados enquanto alunos. A problemática se refere ao fato de que estes docentes na maioria das vezes utilizam abordagens tradicionais, centradas no professor e na transmissão de conhecimento, situando o estudante em lugar passivo, pouco crítico e reflexivo. Esse modelo dificulta a adaptação ao ambiente virtual, que requer a utilização de novas ferramentas pedagógicas e formas de se relacionar com os estudantes e que, sem o conhecimento dos fundamentos da prática pedagógica, esvazia-se em uma alternância entre novas ferramentas de comunicação, com comprometimento da aprendizagem. A urgência da situação vivenciada não deve ser vista como precedente para a redução dos padrões de qualidade ou para que os objetivos fundamentais de aprendizagem sejam alterados.23, 24

Sabe-se que este período é crítico para professores e estudantes, especialmente para aqueles que se depararam pela primeira vez com as plataformas digitais. Os professores participantes consideram que houve boa aceitação dos estudantes quanto ao ERE, entretanto quase 20% referiram que os estudantes não estão desenvolvendo as competências esperadas.

O ERE demanda adaptações quanto ao tempo e objetivos de atividades síncronas como aulas, palestras e reuniões para que sejam otimizados, além disso, a diversificação de atividades como vídeos, jogos, trabalhos em grupos e textos, possibilitando que estudantes com estilos de aprendizagem distintos se sintam contemplados.2525 Gewin V. Five tips for moving teaching online as COVID-19 takes hold. Nature. 2020;580(7802):295-6. DOI
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O contato frequente com os estudantes, mantendo-se uma relação dialógica para identificar problemas de acesso, conexão, aprendizagem e familiaridade com as ferramentas, torna-se fundamental para manter o estudante engajado no processo de aprendizado, que agora mais do que nunca requer o seu protagonismo.2525 Gewin V. Five tips for moving teaching online as COVID-19 takes hold. Nature. 2020;580(7802):295-6. DOI
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A percepção dos docentes de que estão desenvolvendo as atividades com qualidade aquém do que gostariam parece ser natural e constituinte de um processo de transição que todos estão vivenciando. A falta de familiaridade com as tecnologias digitais, a falta de experiência, a ausência de um período de planejamento, além de preocupações que permeiam o fazer docente, como o reconhecimento de que as desigualdades sociais existentes impactam diretamente nas condições de acesso dos estudantes e, portanto, na oferta justa e equânime de aprendizado a todos, podem estar relacionados a estes sentimentos.2626 Sathler L. Educação pós-pandemia e a urgência da transformação digital. 2020 [cited 2020 Jun 15]. Available from: https://tinyurl.com/SathlerLopiniao
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Conclusão

Os resultados apontam que no Brasil, no primeiro semestre de 2020, a maioria das instituições de ensino superior aderiu ao ensino remoto emergencial no período da pandemia, mais prevalente entre as instituições privadas; contudo, não houve um período de planejamento na transição do ensino presencial para o ensino remoto.

Apesar das decisões institucionais em sua maioria não terem sido realizadas de maneira compartilhada com a comunidade acadêmica, a maior parte dos participantes acredita que a instituição adotou a melhor estratégia, embora considerem que houve prejuízo no desenvolvimento de competências.

A transição do ensino presencial para o ERE refere-se a um momento extremamente delicado no qual docentes e estudantes vivenciam um processo de ressignificação de suas práticas, ao mesmo tempo em que necessitam conciliar todas as suas atividades, e tal situação pode ter contribuído para o elevado número de docentes que relataram que não estão desenvolvendo suas atividades com a qualidade que desejavam.

O presente trabalho se apresenta como importante referencial por retratar a situação do ensino em fisioterapia em um momento singular para a saúde global, em especial por fornecer aporte teórico para a discussão acerca do ensino em fisioterapia no Brasil, tendo em vista que não foram identificadas na literatura pesquisas de abrangência nacional que descrevessem o perfil dos docentes dos cursos de graduação em fisioterapia no país.

Faz-se necessário, contudo, destacar que o método de pesquisa empregado (pesquisa de opinião) apresenta algumas limitações. Posto que não é possível produzir informações que, individualmente ou agregadas, sejam passíveis de identificação dos participantes, torna-se impossível o aprofundamento de algumas informaçõe. Ainda, é importante ressaltar que diante do objetivo principal do estudo não foram realizados questionamentos específicos acerca do processo de trabalho dos docentes participantes.

Assim, vislumbra-se a necessidade de realização de estudos primários que busquem, além de descrever o cenário do ensino em fisioterapia no país, conhecer e analisar o processo de trabalho dos docentes dos cursos de fisioterapia.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Além disso, os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) pela bolsa de pós-doutorado a Arthur de Almeida Medeiros (processo 88887.372306/2019-00).

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Editado por

Editor associado:

Clynton Lourenço Correa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2020
  • Revisado
    28 Set 2020
  • Aceito
    11 Nov 2020
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