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Psicologia Escolar e a COVID-19

A ideia de elaborar um dossiê abordando a Psicologia Escolar e a COVID-19 nasce da proposição do Grupo de Trabalho de Psicologia Escolar e Educacional (GT-PEE) da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, que, em consonância com seu posicionamento ativo frente às demandas mais diversas da sociedade, considerou de grande relevância socializar ações e reflexões produzidas pela área durante a pandemia, focalizando a atuação dos membros do GT-PEE em diferentes localidades e de diversas naturezas. Ao mesmo tempo em que esses grupos de pesquisadores avançavam em modos criativos de desenvolver seus trabalhos, visto o fechamento das instituições de ensino em todos os níveis, também foram desvelando novos desafios que se apresentavam à área: alguns já velhos conhecidos, como a desigualdade social, por exemplo, e outros novos, como as práticas psicológicas remotas e sua efetividade. É sobre essas questões que versa este texto que introduz os artigos que compõem este dossiê sobre o tema proposto.

Abordar a Psicologia Escolar com foco na COVID-19 como tema especial implica posicioná-la dentro do contexto social, político, legal e econômico da atualidade. A COVID-19 se instituiu no Brasil em 2020, tendo surgido no final de 2019, na China e, ao se espalhar pelo mundo, deu origem ao que se denominou de pandemia de COVID-19. Desde então, muito se evoluiu no campo da ciência, seja na compreensão do comportamento do vírus ou na fabricação de vacinas - responsáveis por salvar a população de casos graves da doença e, sobretudo, da morte. No campo da psicologia, nas áreas da saúde, do trabalho ou da educação, também se avançou no que concerne às práticas de atendimento ao público, produzindo-se melhoras na saúde mental das pessoas por meio de atendimentos remotos tomados como saída ao isolamento social imposto pelas medidas sanitárias de prevenção ao espalhamento do vírus, conforme demonstram as práticas relatadas nos artigos que compõem este dossiê.

Atualmente, ainda vivendo a pandemia - visto que a contaminação pela Ômicron, variante do vírus causador da COVID-19, continua acometendo muitas pessoas -, os efeitos menos danosos da contaminação permitiram, desde o final de 2021, a volta das pessoas às atividades cotidianas, entre as quais o ensino presencial. Essa situação tem conduzido pesquisadores, educadores e psicólogos a questionarem os efeitos do afastamento do público infantil e adolescente, que perdurou por quase dois anos, dos bancos escolares (Novaes, 2020Novaes, A., Pagaime, A., Artes, A., Pimenta, C., Nunes, M., & Gava, T. Educação escolar em tempos de pandemia na visão de professoras/es da Educação Básica - Informe 1. Fundação Carlos Chagas, 2020. https://www.fcc.org.br/fcc/wp-content/uploads/2020/06/educacao-pandemia-a4_16-06_final.pdf
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, Souza et al., 2022Souza, V. L. T., Dugnani, L. A. C., Jesus, J. S., & Medeiros, F. P. (2022) Imaginar, realizar e transformar: a psicologia da arte mobilizando potência de ação na escola. Ed Loyola.). Logo, falar da Psicologia Escolar e COVID-19 demanda considerar as novas demandas e desafios que se apresentam à área da psicologia em decorrência da crise sanitária vivida pela sociedade.

Que mundo emerge após a passagem drástica dos primeiros dois anos da pandemia que, só no Brasil, causou a morte de mais de 600 mil pessoas, deixou milhões de desempregados e empurrou outros milhões para a miséria?

Essas consequências anunciam os efeitos deletérios da pandemia na economia e a necessidade de investimentos urgentes em políticas de emprego, moradia e alimentação para atender a população mais carente.

No que concerne à educação escolar, sabe-se, segundo várias pesquisas realizadas sobre o ensino remoto, que a maioria dos estudantes da educação básica pública não conseguiu acessar as aulas remotas, principalmente por falta de acesso à tecnologia: equipamentos e rede de internet. Houve ainda quem enfrentasse a inadequação dos locais destinados para o estudo em suas casas, muitas vezes com famílias inteiras transitando pelos espaços em decorrência do isolamento social (Novaes, 2020Novaes, A., Pagaime, A., Artes, A., Pimenta, C., Nunes, M., & Gava, T. Educação escolar em tempos de pandemia na visão de professoras/es da Educação Básica - Informe 1. Fundação Carlos Chagas, 2020. https://www.fcc.org.br/fcc/wp-content/uploads/2020/06/educacao-pandemia-a4_16-06_final.pdf
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, Souza et al., 2022Souza, V. L. T., Dugnani, L. A. C., Jesus, J. S., & Medeiros, F. P. (2022) Imaginar, realizar e transformar: a psicologia da arte mobilizando potência de ação na escola. Ed Loyola.).

Na volta às aulas presenciais, inúmeros problemas foram sendo constatados, como a dificuldade dos estudantes em se apropriar dos conhecimentos curriculares, questões de relacionamento entre os estudantes e entre estudantes e professores, dificuldades dos profissionais em ajustar as atividades à dinâmica comportamental dos alunos, manifestações de ansiedade e de comportamentos depressivos dos estudantes, alterações de humor e certa instabilidade dos profissionais, comportamentos autolesivos e ideação suicida dos estudantes.

Essas manifestações têm colocado grandes desafios à atuação dos profissionais da educação, da assistência social e da psicologia. No âmbito da Psicologia Escolar, algumas delas já vinham sendo apontadas por pesquisadores desde o início da pandemia (Facci et al., 2020Facci, M. G. D, Silva, S. M. C., & Souza, M. P. R. (2020). A psicologia escolar e educacional em tempos de pandemia. Psicologia Escolar e Educacional, 24, 1-3. http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392020editoria.
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; Guzzo et al., 2021Guzzo, R. S. L., Silva, S. S. G. T., Martins, L. G., Castro, L., & Lorenzetti, L. (2021). Psicologia na escola e a Pandemia: buscando um caminho. In F. Negreiros, B. O. Ferreira (Orgs.), Onde está a psicologia escolar no meio da pandemia? (pp. 654-682). Pimenta Cultural.; Oliveira et al., 2021Oliveira, W. A., Andrade, A. L. M., Souza, V. L. T., Micheli, D., Fonseca, L. M. M., Andrade, L. S., & Santos, M. A. (2021). COVID-19 pandemic implications for education and reflections for school psychology. Psicologia: Teoria e Prática, 23(1), 1-26. http://doi:10.5935/1980-6906/ePTPC1913926
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; Souza et al., 2022Souza, V. L. T., Dugnani, L. A. C., Jesus, J. S., & Medeiros, F. P. (2022) Imaginar, realizar e transformar: a psicologia da arte mobilizando potência de ação na escola. Ed Loyola.; Verztman & Romão-Dias, 2020Verztman, J., & Romão-Dias, D. (2020). Catástrofe, luto e esperança: o trabalho psicanalítico na pandemia de Covid-19. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(2), 269-290. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n2p269.7
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).

Ou seja, os profissionais que atuam na educação como docentes ou psicólogos vivem um momento de crise resultante de uma confluência de acontecimentos que colocam alunos e profissionais em situação de vulnerabilidade, à mercê da incerteza que tem caracterizado suas vidas em todos os âmbitos.

Os alunos colhem o resultado de dois anos fora da escola, alguns sem qualquer acesso a atividades de ensino-aprendizagem durante esse tempo; os profissionais, além de terem de lidar com as questões de aprendizagem dos estudantes e adequações do ensino, com o desafio de construir novas formas de relação com os alunos e entre eles, enfrentam reformas na carreira docente que envolvem perdas de direitos em uma profissão que já sofria com a precarização de suas condições materiais de trabalho (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2021Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2021). Cenário da Exclusão Escolar no Brasil um alerta sobre os impactos da pandemia da COVID-19 na Educação. https://www.unicef.org/brazil/media/14026/file/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil.pdf
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; Neri, 2020Neri, M. (2020). Efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro: Desigualdades, ingredientes trabalhistas e o papel da jornada. Fundação Getúlio Vargas. https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/Covid&Trabalho-Marcelo_Neri-FGV_Social.pdf
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).

Parece que, diante do contexto que se apresenta nas escolas na atualidade, é necessário um reposicionamento dos profissionais que atuam na educação, demandando que olhem para os sujeitos, suas necessidades e interesses, e assumam o compromisso de enfrentar essas novas demandas.

Conhecer, ampliar a visão, se reposicionar frente às antigas e novas realidades e olhar além, buscando o futuro e suas possibilidades para os estudantes, é o que se demanda da Psicologia neste momento de retorno às aulas presenciais. Será que os conhecimentos sobre o desenvolvimento, a educação, a psicologia, as epistemologias e as práticas psicológicas são suficientes a esse reposicionamento? Que desafios é preciso enfrentar?

As ideias de Freire (1987, p. 78)Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra. servem de inspiração: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.

O que se propõe com esse tema especial expresso nos textos que compõem este dossiê é que o psicólogo “mergulhe” nas dinâmicas escolares e encontre pontos de abertura que lhe possibilitem refletir sobre possibilidades de ação, resistindo e agindo no enfrentamento das circunstâncias que atravessam as vidas das pessoas que frequentam a instituição escolar.

Nesse movimento, que deve se caracterizar como ação-reflexão, o psicólogo necessita desconstruir seus pontos de vista para enxergar o novo, pois, como diz Guimarães Rosa (2001, p. 327)Guimarães Rosa, J. (2001). Grande Sertão Veredas (19th ed.). Nova Fronteira.: “Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão por haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”.

São muitos os avanços e conquistas da Psicologia Escolar Educacional como disciplina dentro da ciência psicológica nos últimos anos, seja no âmbito da produção de conhecimentos teórico-metodológicos ou do desenvolvimento de práticas profissionais. Há clareza quanto ao seu objeto e aportes teórico-metodológicos: trata-se de um corpo de conhecimentos teórico-práticos que visa ao coletivo, focaliza as relações e atua na promoção do desenvolvimento dos sujeitos em espaços educativos. Vê o sujeito como constituído no e pelo social, em suas dimensões afetivas, cognitivas, sociais e políticas, que se desenvolvem de modo integrado, conferindo-lhe condições para agir e transformar o mundo - mundo passível de ser conhecido e transformado somente nas interações das quais participam os humanos, em sua diversidade e multiplicidade de valores e crenças; meio social que é fonte de desenvolvimento (Dazzani & Souza, 2016Dazzani, M. V., & Souza, V. L. T. (2016). Psicologia Escolar Crítica: teoria e prática nos contextos educacionais. Alínea Editora.; Souza et al., 2018Souza, V. L. T., Aquino, F. S. B., Guzzo, R. S. L., & Marinho-Araujo, C. M. (2018). Psicologia Escolar Crítica: atuações emancipatórias nas escolas públicas. Alínea Editora., Souza et al., 2022Souza, V. L. T., Dugnani, L. A. C., Jesus, J. S., & Medeiros, F. P. (2022) Imaginar, realizar e transformar: a psicologia da arte mobilizando potência de ação na escola. Ed Loyola.).

Com a aprovação da Lei nº 13.935 de 2019, após anos de luta de profissionais da área, é urgente que o psicólogo escolar mude sua perspectiva de ação junto às escolas: agora ele é um profissional na e da escola e necessita saber de seus processos, de dentro, por dentro, com ela e com seus atores. Assumir essa perspectiva demanda ter clareza dos desafios que durante a pandemia, com o fechamento das escolas, assumem novos contornos, se aprofundam e se ampliam.

Se a Psicologia Escolar tem como alvo a promoção do desenvolvimento dos sujeitos, e se esse desenvolvimento ocorre de modo imbricado com o meio físico e social, cabe pensar que sujeitos são esses, em que sociedade vivem e viverão, em suas dimensões local e global e que questões devem perpassar o processo educativo de modo a formar futuras gerações aptas a construir seu futuro e superar condições de vida precárias.

Uma breve olhada ao redor revela uma enormidade de problemas ocorrendo no mundo. Os efeitos do clima, as queimadas, as questões indígenas, a fome e a miséria, a violência contra crianças e mulheres, o racismo, os conflitos políticos e disputas de territórios - só para citar alguns.

Os profissionais da Psicologia Escolar não podem ignorar esses problemas. O reposicionamento mencionado anteriormente demanda incluir essas questões como objetivos a serem buscados na promoção do desenvolvimento dos sujeitos em um trabalho coletivo e colaborativo que deve caracterizar a ação do psicólogo na escola, pois, como afirma Freire (2005, p. 112)Freire, P. (2005). Pedagogia da autonomia. Paz e Terra.: “Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? Lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele.”

Esses desafios têm se constituído como objetivos do GT-PEE de Psicologia Escolar e Educacional, que tem investido no trabalho coletivo e colaborativo de seus pesquisadores integrantes de modo a fazer frente aos problemas agudizados pela COVID-19 e desenvolver teorias, práticas e políticas que avancem no campo de conhecimento teórico-prático da área. Espera-se que os artigos apresentados contribuam com esse avanço.

References

  • Dazzani, M. V., & Souza, V. L. T. (2016). Psicologia Escolar Crítica: teoria e prática nos contextos educacionais Alínea Editora.
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  • Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido Paz e Terra.
  • Freire, P. (2005). Pedagogia da autonomia Paz e Terra.
  • Fundo das Nações Unidas para a Infância. (2021). Cenário da Exclusão Escolar no Brasil um alerta sobre os impactos da pandemia da COVID-19 na Educação https://www.unicef.org/brazil/media/14026/file/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil.pdf
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  • Guimarães Rosa, J. (2001). Grande Sertão Veredas (19th ed.). Nova Fronteira.
  • Guzzo, R. S. L., Silva, S. S. G. T., Martins, L. G., Castro, L., & Lorenzetti, L. (2021). Psicologia na escola e a Pandemia: buscando um caminho. In F. Negreiros, B. O. Ferreira (Orgs.), Onde está a psicologia escolar no meio da pandemia? (pp. 654-682). Pimenta Cultural.
  • Neri, M. (2020). Efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro: Desigualdades, ingredientes trabalhistas e o papel da jornada Fundação Getúlio Vargas. https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/Covid&Trabalho-Marcelo_Neri-FGV_Social.pdf
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  • Novaes, A., Pagaime, A., Artes, A., Pimenta, C., Nunes, M., & Gava, T. Educação escolar em tempos de pandemia na visão de professoras/es da Educação Básica - Informe 1 Fundação Carlos Chagas, 2020. https://www.fcc.org.br/fcc/wp-content/uploads/2020/06/educacao-pandemia-a4_16-06_final.pdf
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  • Oliveira, W. A., Andrade, A. L. M., Souza, V. L. T., Micheli, D., Fonseca, L. M. M., Andrade, L. S., & Santos, M. A. (2021). COVID-19 pandemic implications for education and reflections for school psychology. Psicologia: Teoria e Prática, 23(1), 1-26. http://doi:10.5935/1980-6906/ePTPC1913926
    » https://doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPC1913926
  • Souza, V. L. T., Aquino, F. S. B., Guzzo, R. S. L., & Marinho-Araujo, C. M. (2018). Psicologia Escolar Crítica: atuações emancipatórias nas escolas públicas Alínea Editora.
  • Souza, V. L. T., Dugnani, L. A. C., Jesus, J. S., & Medeiros, F. P. (2022) Imaginar, realizar e transformar: a psicologia da arte mobilizando potência de ação na escola. Ed Loyola.
  • Verztman, J., & Romão-Dias, D. (2020). Catástrofe, luto e esperança: o trabalho psicanalítico na pandemia de Covid-19. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(2), 269-290. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n2p269.7
    » https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n2p269.7

Como citar este artigo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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