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Hipnose e subjetividade: utilização da experiência religiosa em psicoterapia

Hypnosis and subjectivity: the use of religious experiences in psychotherapy

Resumos

O presente trabalho destaca algumas possibilidades de atuação da psicoterapia junto a clientes que possuem demandas de experiência religiosa. Partindo de um breve estudo de caso de uma cliente, busca-se atingir dois objetivos: demonstrar como é possível ao psicoterapeuta compreender as experiências sagradas do sujeito sem dissolvê-las em categorias prévias e consagradas de seu aporte teórico e destacar a relevância da técnica hipnótica como um importante instrumento para demandas dessa natureza, isto é, uma técnica que procura utilizar as experiências religiosas do sujeito a favor de seu processo terapêutico. O artigo conclui que as possibilidades de atuação do psicoterapeuta diante de tais demandas passam necessariamente pela questão dos sentidos próprios produzidos pelo cliente, pelo contexto de diálogos e potencialidades e pela postura de mimetismo para interação com o mundo religioso do sujeito.

Experiência religiosa; Hipnose; Psicoterapia; Subjetividade


This article highlights the possible effects of psychotherapy on clients who live under a regime which involves religious demands. It is based on a brief case study of a client and has two objectives. Firstly, to demonstrate that it is possible for psychotherapists to understand the inviolate experiences of their clients without breaking them down into previously established theories. Secondly, it emphasizes the use of hypnotic techniques as relevant and important tools for demands of this nature, that is, they are techniques that can incorporate religious experiences of the subjects into the process of therapy in a positive way. The article concludes that psychotherapists faced with such demands must examine the individual feelings generated by their client, the context of their dialogues and capabilityies, and the postural mimicry they adopt when interacting in their religious dominion.

Religious experience; Hypnosis; Psychotherapy; Subjectivity


ARTIGOS

Hipnose e subjetividade: utilização da experiência religiosa em psicoterapia

Hypnosis and subjectivity: the use of religious experiences in psychotherapy

Maurício da Silva Neubern

Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, 70910-900, Brasília, DF, Brasil

RESUMO

O presente trabalho destaca algumas possibilidades de atuação da psicoterapia junto a clientes que possuem demandas de experiência religiosa. Partindo de um breve estudo de caso de uma cliente, busca-se atingir dois objetivos: demonstrar como é possível ao psicoterapeuta compreender as experiências sagradas do sujeito sem dissolvê-las em categorias prévias e consagradas de seu aporte teórico e destacar a relevância da técnica hipnótica como um importante instrumento para demandas dessa natureza, isto é, uma técnica que procura utilizar as experiências religiosas do sujeito a favor de seu processo terapêutico. O artigo conclui que as possibilidades de atuação do psicoterapeuta diante de tais demandas passam necessariamente pela questão dos sentidos próprios produzidos pelo cliente, pelo contexto de diálogos e potencialidades e pela postura de mimetismo para interação com o mundo religioso do sujeito.

Unitermos: Experiência religiosa. Hipnose. Psicoterapia. Subjetividade.

ABSTRACT

This article highlights the possible effects of psychotherapy on clients who live under a regime which involves religious demands. It is based on a brief case study of a client and has two objectives. Firstly, to demonstrate that it is possible for psychotherapists to understand the inviolate experiences of their clients without breaking them down into previously established theories. Secondly, it emphasizes the use of hypnotic techniques as relevant and important tools for demands of this nature, that is, they are techniques that can incorporate religious experiences of the subjects into the process of therapy in a positive way. The article concludes that psychotherapists faced with such demands must examine the individual feelings generated by their client, the context of their dialogues and capabilityies, and the postural mimicry they adopt when interacting in their religious dominion.

Uniterms: Religious experience. Hypnosis. Psychotherapy. Subjectivity.

O interesse pelo tema religião por parte de psicólogos e psicoterapeutas não consiste em algo recente, pois desde o início do projeto moderno de ciência da psicologia, importantes nomes focaram suas pesquisas em torno do assunto (Carroy, 1991; Ellenberger, 1970; Neubern, 2009). No entanto, apesar de interesse tão antigo, a relação entre psicologia e religião é marcada por alguns problemas epistemológicos que se configuram como verdadeiros obstáculos para a relação clínica, principalmente devido à tendência, muito frequente nas ciências humanas, de reduzir o fenômeno religioso a outro campo já colonizado pelas pretensões modernas de ciência (Carvalho, 1994). Tal fenômeno pode ser interpretado, assim, como um processo psicopatológico ou ainda como um elemento importante da configuração social de poder entre as pessoas que o presenciam, sem uma compreensão que abarque as construções e experiências singulares dos sujeitos. É comum que se imponha na relação terapêutica uma necessidade de tradução da experiência religiosa em termos teóricos já conhecidos, de maneira que o psicoterapeuta parece sentir mais necessidade de ter sua teoria confirmada diante de um fenômeno complexo do que acessar a experiência do sujeito, conhecendo suas particularidades.

Desse modo, quando o psicoterapeuta se vê diante de um cliente em conflito com alguma temática religiosa ele pode se deparar com as consequências de semelhantes obstáculos. É possível que se perceba despreparado para lidar com o tema, seja por não possuir conhecimentos sobre ele (Paiva, 2002; Pargament & Saunders, 2007), seja por não conseguir divisar os limites de seu papel a ponto de poder ser confundido com algum papel religioso (Aponte, 1996; Plante, 2007). Pode também ceder à tentação de enquadrar a experiência religiosa do cliente em algum conceito teórico que lhe seja familiar, mas que não condiga com as construções singulares de sentido do sujeito, seja uma categoria teórica de conteúdos universais, seja uma teoria de relações e papéis sociais ou ainda um quadro psicopatológico (Nathan, 1999). Tais operações cognitivas levam à criação de um considerável distanciamento na relação terapêutica, pois o cliente não se sente compreendido e acaba se vendo na necessidade de ocultar importantes momentos de sua experiência cotidiana (McVittie & Tiliopoulos, 2007).

Por outro lado, existem contribuições significativas que apontam para uma postura e compreensão que priorizam o próprio cenário do sujeito. Certos autores enfatizam a necessidade de compreender as construções de sentido do sujeito na singularidade de sua subjetividade e relações sociais (Hycner, 1995; Neubern, 2004), o que vem ao encontro das perspectivas de James (1987), para quem a experiência religiosa consiste nos sentimentos que o sujeito constrói na relação com aquilo que ele considera divino. Existe, no caso, a perspectiva de que o psicoterapeuta crie um contexto de aceitação na relação com o cliente de maneira a mergulhar em seu universo subjetivo e daí a estabelecer um conhecimento mais legítimo sobre sua experiência. Por outro lado, outros autores propõem diferentes intervenções técnicas que priorizam a experiência religiosa dos sujeitos, seja por meio da utilização de recursos técnicos já disponíveis nas redes sociais e simbólicas do sujeito, seja aproveitando experiências religiosas já trazidas por ele (Akstein, 1972; Nathan, 1999; Richeport, 1994). Em tais casos, o psicoterapeuta acolhe, no setting terapêutico, determinadas práticas espirituais familiares ao sujeito para que, a partir desse acolhimento, torne-se-lhe possível a reconstrução de sentidos e novas formas de inserção em sua rede social. Em tais propostas, em vez de um processo de imposição narrativa (Gergen & Kaye, 1998), a psicoterapia se torna um espaço de legitimação do sistema de crenças do cliente, um espaço no qual ele pode, dentro de certos limites, estabelecer novas relações com tal sistema de maneira a construir, com e a partir dele, novas configurações de sentido.

Desse modo, numa perspectiva semelhante, o presente artigo procura esboçar, por meio de um breve estudo de caso, algumas possibilidades de atuação do psicoterapeuta diante de pessoas que possuem demandas religiosas ligadas ao sagrado1 1 O termo religião remete a uma complexidade de processos que se entrecruzam nas práticas dos sujeitos, como processos sociais, institucionais, sagrados, culturais etc. Para este trabalho, o termo experiência religiosa ou simplesmente sagrada será ligado a um tipo de experiência subjetiva que o sujeito considera como divina e transcendente (James, 1902/1987). , utilizando, para tanto, técnicas hipnóticas. Buscou-se atingir aqui dois objetivos fundamentais, intimamente ligados. Primeiramente, houve o intento de ilustrar como é possível ao psicoterapeuta compreender as construções de sentido religioso do sujeito em sua singularidade em vez de enquadrá-las em categorias teóricas consagradas. Nessa perspectiva, compreende-se que a experiência religiosa cria, junto aos sujeitos, realidades subjetivas na forma de sentidos, significados e emoções (Gonzalez Rey, 2005; 2007; Otto, 1907/2007) e é importante que o psicoterapeuta estabeleça um contexto acolhedor no qual as construções do sujeito sejam qualificadas em suas próprias particularidades.

Em segundo lugar, procurou-se demonstrar a relevância da técnica hipnótica aqui trazida (Erickson, 1958; Erickson & Rossi, 1979; Zeig, 2006) devido a suas possibilidades técnicas e relacionais que permitem ao psicoterapeuta utilizar a experiência religiosa do sujeito a favor de seu próprio processo em intervenções relativamente breves. Em outras palavras, em vez de ser a hipnose usada como uma forma de colonização do pensamento religioso, como muitas vezes aconteceu, (Carroy, 1991; Ellenberger, 1970), demonstra-se aqui que ela também possui possibilidades de acolher e propiciar o uso das experiências religiosas do sujeito a favor de seu processo terapêutico. Em suma, ambos os objetivos acima descritos ilustram as alternativas da construção de um processo terapêutico com demandas religiosas tanto em termos de uma qualidade da relação, em que há aceitação da singularidade dos sentidos cotidianos, como de intervenções técnicas que se utilizam da própria experiência do sujeito.

O Caso de Joana

Joana Duarte, viúva, 55 anos, funcionária pública, era mãe de três filhos e uma pessoa muito devotada ao catolicismo, principalmente à Nossa Senhora das Graças. Padecia de várias dores pelo corpo, mas duas delas a incomodavam mais: a do joelho esquerdo, que já durava 40 dias devido a uma artrose, e a da região superior da coluna próxima à nuca, bem mais antiga. Uma de suas principais preocupações se dava quanto à possibilidade de concluir seu novo curso superior, pois os médicos lhe pediam repouso absoluto e isso poderia atrapalhar o cumprimento das tarefas do curso. A indicação médica também se baseava na preocupação com uma trombose que já a acometia há alguns meses e inspirava cuidados, pois sua perna costumava ficar inchada com freqüência. Joana também se preocupava muito com sua família, já que era ela quem assumia o cuidado de seus filhos, de sua mãe, já idosa, e de parentes, em termos financeiros e pessoais. A carga desse compromisso entrava em conflito com seu novo projeto - o de mudar de cidade para se casar novamente com seu atual namorado, o que proporcionaria a distância física de seus familiares. Desse modo, ela solicitou ajuda ao pesquisador para que suas dores pudessem ser aliviadas por meio da hipnose, que foi realizada em seis sessões.

É interessante notar que, em termos de configurações de sentido (Gonzalez Rey, 2005; 2007), uma forte contradição impunha-se a Joana. Suas atividades de cuidado dos outros, ao mesmo tempo marcadas pelo prazer e por uma missão familiar, entravam em profundo conflito com sua condição atual de saúde, de muitas limitações físicas, que a impedia de ter as mesmas possibilidades de estar próxima dos outros. Ao mesmo tempo, sempre tendo sido uma mulher ativa, essas mesmas limitações de saúde a impediam de cumprir importantes projetos pessoais, como sua formatura e seu novo casamento, o que lhe trazia sentimentos de medo, ansiedade e sofrimento. Daí seu semblante, segundo pessoas de sua família, estava pesado e sem brilho e as dores eram muito frequentes. Embora dissesse não ter esmorecido em sua fé, esse elemento ainda não havia entrado nessas configurações como algo que pudesse lhe trazer uma solução para tais dilemas.

Foram realizadas oito sessões hipnóticas com Joana no enfoque de Erickson (Erickson & Rossi, 1979), segundo o qual o transe hipnótico se caracteriza por um estado em que os processos inconscientes, geralmente inacessíveis na vigília, afloram e podem ser usados em termos terapêuticos. É assim que o sujeito pode acessar percepções, recursos e aprendizados de sua própria subjetividade que dizem respeito a seu mundo interno e não à realidade consensualmente partilhada. As técnicas terapêuticas utilizadas nesse estado, como as descritas a seguir, demandam um processo estético de criação do terapeuta que envolve metáforas, paradoxos e dramatização, que possuem estreita relação com os sentidos singulares vividos pelo sujeito naquele instante (Zeig & Geary, 2000).

Utilização e ancoragem

Logo ao início da sessão, Joana desenvolveu um estado de transe e pôs-se a chorar, alegando sentir muitas dores, o que foi seguido do seguinte diálogo:

"J) Estou sentindo uma dor horrível nos ombros, muito intensa, muito forte...

P) Uma dor horrível nos ombros ... e como é essa dor?

J) Parece que estou carregando um pacote enorme nas costas ... bem pesado nos ombros... .

P) e o que tem nesse pacote?

J) minha mãe, que já é bem idosa ... meus irmãos ... meus filhos... .

P) Ah, então, você precisa de ajuda pra poder carregar esses pacotes. Vou pedir a você que pegue essa medalhinha e aperte-a bem (Medalha de Nossa Senhora das Graças, bela e em ouro). Isso ... respire e aperte sua medalhinha ... e peça ajuda pra santa ... e a sensação de estar no altar, diante da santa de devoção é algo muito especial para quem crê ... e a pessoa pode sentir até no próprio corpo esse contato ... como se o corpo fosse tocado por algo ... e você sente alguma coisa?

J) Sim, uma paz muito grande entrando pela minha cabeça ... .

P) uma paz muito grande ... e ela vai entrando pela sua cabeça ... e o que ela faz com seu corpo?

J) ela entra pela minha cabeça e desce até os ombros ... é uma paz muito grande ... .

P) OK, ela entra pela sua cabeça e desce até seus ombros... eles estão melhorando ... e talvez você possa deixá-los mais soltos, mais livres... e continuar aproveitando a sua respiração...".

Nessa passagem, a cliente apresentou uma metáfora bastante significativa como forma de expressão de sua dor. Seus ombros, que não tinham anomalia ou lesão orgânica conhecida, concentraram uma dor muito intensa de maneira a significar para ela a carga do cuidado de seus familiares. Tratava-se de um pacote pesado e de difícil manuseio por ser ligado a uma herança familiar de obrigação quanto aos outros, o que aponta para o caráter fortemente social de sua dor. É possível que, por tal herança familiar, Joana assumisse uma postura radical de cuidado do outro que a colocasse numa posição, por vezes, de submissão, mesmo que isso trouxesse sofrimento para ela. Sendo pego de surpresa com tal manifestação de dor da cliente, o pesquisador cortou sua sequência de pensamento e olhou fixamente para ela, buscando alguma informação que pudesse ser utilizada para ajudá-la a dar algum tipo de encaminhamento para essa dor. Deparando-se com uma brilhante medalha de ouro de Nossa Senhora das Graças, pediu que ela a segurasse, pedisse ajuda para a santa e descreveu as sensações físicas que um devoto sente diante do altar. Indagou ainda o que percebia em seu corpo nessa experiência. Tratava-se da técnica da ancoragem, que consiste em sugestões de intensificação da percepção do sujeito quanto às emoções experimentadas em seu próprio corpo.

Esse momento, em que obteve êxito inicial no alívio de sua dor, foi perpassado pela presença de uma figura sagrada para a cliente a santa. Essa figura, familiar à experiência de Joana, representava um poder cuja influência ia além das palavras e das limitações e capacidades humanas, capaz de transcender os obstáculos do tempo e do espaço humanos (Otto, 1917/2007). Tratava-se da própria mãe de Deus, que também assumia um papel materno com a cliente, cuidando dela com seu poder e sua presença desde sua infância. Concebendo o considerável impacto na crença de Joana, o pesquisador se utilizou de três estratégias terapêuticas intimamente entrelaçadas. A princípio, houve o acolhimento da figura sagrada trazida pela cliente quando o pesquisador incluiu sua participação ativa no setting terapêutico. Dito de outro modo, a grande dor de carregar os outros obteve um cuidado desse ser especial, cujo poder e sabedoria transcendem as possibilidades humanas. Isso foi particularmente importante, pois Joana tinha muita dificuldade em delegar suas funções para outras pessoas (profissionais, familiares ou amigas), o que lhe valia críticas acentuadas de seus próprios familiares. Logo, não lhe sendo possível entregar o pacote aos homens, naquele momento havia a possibilidade de entregá-lo a uma figura sagrada que sempre esteve presente em sua vida e em diferentes ocasiões demonstrou seu poder.

Em segundo lugar, a repetição, por meio do transe, de um cenário bastante familiar para ela, ou seja, o de estar diante da imagem da santa no altar, propiciou uma sugestão semelhante à experiência de muitos crentes: a de que saem do momento de oração como tendo recebido alguma dádiva que é percebida em seu próprio corpo. Desse modo, Joana traduziu tais sugestões de forma cinestésica, referindo-se a uma paz entrando pela sua cabeça e descendo até seus ombros de maneira a reduzir consideravelmente a dor nessa região. É o momento em que o pesquisador aproveita para lhe propor a ancoragem dessas emoções de paz não só como forma de aliviar a dor, mas também como forma de lhe ratificar uma conquista a partir de seus recursos.

Em terceiro lugar, o pesquisador se utilizou de um recurso de linguagem muito sutil para facilitar o processo ao usar a palavra "pacote", trazida pela cliente no plural - "pacotes". Tal sugestão foi proposta porque, para a cliente, tratava-se de uma carga grande e seria difícil para ela deixá-la de uma vez, mesmo que aos pés de sua santa de devoção. Porém, com a carga dividida, era-lhe oferecida a possibilidade de deixá-la em partes, de maneira que ela mesma poderia escolher quais partes seriam deixadas, e em que ordem, no altar. Essa forma de sugestão, comumente metafórica, também é conhecida por Erickson (1985) como "dividir para reinar" e é de grande importância para o alívio da experiência dolorosa, já que oferece a possibilidade de ação do sujeito em pequenas partes da experiência dolorosa e não na experiência em sua totalidade. Porém, uma vez que uma parte da experiência é influenciada e modificada, há uma transformação nas configurações gerais da dor.

Visualização

Em um dos momentos da sessão, Joana pôs-se a chorar novamente ao relatar estar diante da presença de seu pai, que havia morrido há alguns anos. Relatou o modo como ocorreu sua morte no hospital, que ela era a única pessoa que lhe prestava cuidados e que no exato momento da morte ela não estava presente, embora tivesse recebido uma intuição espiritual de que sua morte ocorreria naquele dia. O seguinte trecho ilustrou o uso das próprias construções da cliente sobre a situação em forma de visualização, ou seja, um processo em que o sujeito produz imagens em estado de transe sob sugestões ou espontaneamente (Erickson & Erickson, 1962).

J) "Vejo meu pai (choros) ... lembro-me que ele me disse que nem ele nem minha mãe estariam vivos no momento da formatura.

P) "Nem ele, nem sua mãe estariam vivos em sua formatura. E o que ele diz agora?".

J) "Nada, ele apenas me olha sem dizer nada ... eu queria tanto que eles estivessem aqui ... ele já foi e, agora, minha mãe vai também ..." (choros).

P) "Bom, ele está olhando pra você agora, não é?

J) "É".

P) "Você consegue perceber o cabelo dele, a roupa dele, como ele está vestido?"

J) "Sim, consigo vê-lo bem".

P) "Consegue perceber o semblante dele?"

J) "Sim".

P) "Então, chegue mais perto dele e me diga o que ele fará...".

J) "Ele está me dando um beijo ... e me disse que ele não tem poder de saber de nada sobre a hora das pessoas irem ... que ele não tem esse poder...".

P) "E o que você sente agora?".

J) "Uma paz ... uma paz grande ... e uma saudade muito grande...".

É interessante notar como a figura do pai aparece marcada por considerável sofrimento. Isso porque, ao mesmo tempo em que Joana relatava amá-lo profundamente, os sentidos sobre ele estavam marcados pela fúnebre profecia que havia feito antes de morrer - a de que nem sua esposa nem ele estaria vivo na formatura de Joana. Tendo-se em vista a importância dessa formatura, a perspectiva de estar sem a mãe configurava-se como algo muito dolorido para a cliente. É importante destacar que essa aparição do pai não era vivida por ela como um processo imaginativo, mas como uma autêntica comunicação espiritual, onde havia uma pendência emocional entre ela, ainda no mundo terreno, e seu pai, já no mundo espiritual. Percebendo que Joana tinha muita facilidade de visualização, o pesquisador propôs colocá-la para interagir com a imagem do pai de maneira a buscar novas possibilidades de interação e resolução desses conflitos inerentes à história da relação entre ambos.

Desse modo, ocorreu uma série de sugestões que ressaltavam o aspecto visual da cliente, com ênfase em verbos que transmitem uma mensagem de comunicação visual, como "perceber, olhar e ver". Como Joana havia construído configurações contraditórias quanto a seu pai e encontrava dificuldade em construir novos sentidos, buscou-se utilizar esses verbos como metáforas que a auxiliassem a contemplar o problema de outra maneira ao encará-lo diretamente. Considerando o histórico de sua relação, marcada por experiências e sentidos positivos, o desenvolvimento de uma nova postura poderia facilitar a construção de novos sentidos para seu pai, tirando-o da posição de alguém que anuncia a morte de sua mãe em um momento importante de sua vida. Assim, aproveitando sua facilidade de visualização, o pesquisador procedeu a uma aproximação gradativa entre Joana e a figura de seu pai: a princípio, ele não diz nada; depois, pede que ela perceba certos detalhes da aparência de seu pai - roupa, semblante, cabelos - e, em seguida, que se aproxime dele para ouvir o que ele poderia lhe dizer. A resposta final foi bastante significativa para o andamento do trabalho, pois a própria figura do pai apresentava um argumento lógico e dentro de suas crenças - só Deus possui o poder de dizer quando as pessoas morrerão - para desfazer a profecia mórbida feita havia alguns anos.

Regressão de idade

Na sequência da sessão, o pesquisador optou por um processo de regressão de idade, uma técnica em que o sujeito tem acesso, em estado hipnótico, a suas experiências passadas (Erickson & Kubie, 1941), conforme ilustra o trecho abaixo.

"P) ... e também é muito agradável a experiência de deitar-se aos pés da santa ... e ficar ali, sentir que ela toca seu cabelo, que a coloca em seu colo ... e você pode descansar ... enquanto sua respiração flui e algumas partes de seu corpo se soltam, e outras se soltam menos ... e uma das coisas mais impressionantes que podemos ver é quando uma criança faz uma prece ... elas não entendem ainda o que é uma prece, nem sempre o mundo delas tem muita lógica pra nós ... mas a prece das crianças é feita com o que existe de mais bonito e poderoso ... é feita com pureza de coração ... e o que elas pedem, elas pedem com muita pureza de coração ... um pedido que vem de lá de dentro, ... com toda devoção ... mesmo que não entendam direito o que querem ... e esse pedido acaba sendo atendido de alguma forma ... com toda a pureza ... com toda devoção ... esse pedido ... é feito ..." .

Essa técnica foi utilizada visando alguns objetivos específicos, a começar pela tentativa de ressaltar e dar maior visibilidade a experiências e potencialidades presentes na própria história de Joana. A regressão foi particularmente útil pelo fato de a cliente estar num momento difícil de vida, com dilemas que conscientemente ainda não havia conseguido resolver. Desse modo, estando diante de duas opções incompatíveis - a de cuidar de si e dos outros - Joana poderia retornar a sua história e resgatar experiências que pudessem destacar novas possibilidades diante das situações paralisantes em que se encontrava. De modo semelhante ao que se busca na terapia narrativa (Anderson, 1997; White & Epston, 1993), tais experiências podem favorecer a reconstrução de novos sentidos do sujeito sobre si e os outros, rompendo a sensação de paralisia típica desses dilemas.

Essa retomada da própria história, porém, era feita ali no próprio altar visualizado pela cliente, num espaço marcado pelo sagrado. Note-se também que o pesquisador fez uso do termo "pureza de coração", que, nesse contexto, apontou para uma série de possibilidades para as reconstruções de sentido de Joana. Por um lado, trata-se de uma expressão familiar para o cristianismo, retratada em diferentes passagens bíblicas como uma condição para a ascensão ou relação com o mundo espiritual e, por outro, de uma característica atribuída com frequência a Joana por sua família: a de não guardar mágoas de outras pessoas.

Assim, diante da figura sagrada de Nossa Senhora, Joana relatou ter-se visto ainda criança, aprendendo a fazer suas preces de maneira a sentir uma paz muito grande no peito e nas costas, como a se relembrar do primeiro momento em que sentiu estar conversando com a santa. Para ela, esse momento era significativo porque representava o início de uma relação especial com a santa, que a acompanharia ao longo de sua vida, dando-lhe apoio e consolo, principalmente nos momentos mais difíceis, como esse pelo qual ela estava passando. Tratou-se da inclusão de um novo e especial elemento que estava fora das narrativas de incapacidade que havia desenvolvido nos últimos meses; essa forma de relação próxima e afetuosa com a santa já existia em sua subjetividade, mas ainda não havia sido reconhecida por ela nesse contexto específico. De fato, é correto dizer que, para Joana, a solução ainda não havia se delineado, mas, naquele momento, retomar uma relação de muitos anos com o sagrado consistia, sem dúvida, na possibilidade de vivenciar a situação de outra maneira.

Distorção do tempo

Outro procedimento utilizado com a cliente em transe foi a técnica da distorção do tempo, na qual o sujeito tem a sensação de reviver vários acontecimentos num curto intervalo de tempo ou alargar consideravelmente a experiência de alguns segundos (Cooper & Erickson, 1950), como ilustra a seguinte passagem:

"E vou pedir a você que se prepare para que seu inconsciente faça algo importante agora. Mas antes vou lhe contar outra coisa... há momentos na vida em que podemos viver o tempo de forma bem diferente. Os segundos dos sinais de trânsito podem parecer uma eternidade quando estamos com pressa... quando estamos num bom filme ou exposição de arte, as horas podem passar como se fossem minutos... os segundos do elevador que esperamos podem ser horas, se precisamos rápido dele... e podem ser segundos se não estamos apressados... e há situações em que as pessoas relatam passar um filme da vida diante dos olhos... como se toda a vida passasse em alguns segundos... e eu fico imaginando que filme passaria em sua mente, se você estivesse agora no seu altar diante de Nossa Senhora... que cenas, pessoas, acontecimentos... isso tudo em alguns segundos... de coisas significativas, importantes pra você... e você pode deixar isso acontecer agora... suavemente... olhando como se fosse um filme... olhando de fora pra esse filme..." .

Nesse trecho, verifica-se que o pesquisador antecipa sua sugestão de revisão de vida, utilizando-se de exemplos cotidianos de distorção de tempo, ou seja, experiências em que o tempo subjetivo pode se alargar ou apressar independentemente do tempo cronológico. Tal técnica reproduz o que ocorre, não raro, com sujeitos que, ao se encontrarem em situações críticas de vida, relatam ver toda a vida passando em alguns segundos e também nos momentos de mudança radical de vida, como as conversões religiosas. Ela pode ser útil na psicoterapia, pois o sujeito se desembaraça de um ponto doloroso do presente ou do passado, transportando-se entre as diferentes experiências de sua vida, possibilitando a produção de novas configurações sobre sua história e seu porvir (Erickson & Rossi, 1979).

No caso de Joana, a distorção do tempo foi pertinente por se tratar de um momento crucial de sua vida, pois seus problemas médicos, que causavam suas dores, poderiam impedir importantes projetos de sua realização pessoal. Aquele momento era o de tomada de importantes decisões que deveriam se traduzir em medidas concretas, pois, do contrário, sua trajetória de vida poderia ser marcada por um sofrimento nada desprezível. Isso justificava a necessidade de lidar com seus recursos, principalmente os ligados ao sagrado, que implicavam, para ela, ao mesmo tempo, segurança, confiança e possibilidade de transformação. Assim, partindo de situações cotidianas, o pesquisador enfatizou a dimensão visual, que consistia em um canal de comunicação muito familiar para Joana, em que as pessoas enxergam situações já vividas por elas num tempo muito curto, como se assistissem a um filme.

Nesse sentido, essa sugestão para Joana implicou duas condições importantes para o momento. A primeira foi que tal revisão ocorria diante da figura sagrada, cujo poder poderia lhe levar a novas considerações até então não percebidas por ela. Sob a inspiração da figura sagrada, havia uma maior possibilidade de entrega de maneira que pudesse lidar com experiências de sofrimento, mas sob a perspectiva de que alguma solução também fosse desenvolvida. Em segundo lugar, como enfatizado nas sugestões, ela veria a revisão de fora, "como se assistisse a um filme", o que pode consistir num recurso dissociativo de grande valia para pessoas que se sentem paralisadas, pois olhar-se de fora proporciona ao sujeito um modo de se transportar de modo confortável e seguro para fora da situação paralisante, de maneira a poder analisar suas outras facetas e daí visualizar novas possibilidades.

Algumas mudanças alcançadas

Os relatos de melhora sobre a dor foram explícitos e numerosos, tanto por parte de Joana como de seus familiares, que se diziam surpresos com suas novas expressões e vitalidade. Também foi possível verificar mudanças físicas, como seu semblante descontraído, e na forma de caminhar, com menos dificuldade, e a retomada de algumas atividades importantes, como hidroginástica, antes interrompida devido às dores. Dentro do enfoque aqui discutido, algumas mudanças significativas puderam ser verificadas nas construções sobre a experiência de dor (Erickson & Rossi, 1979) de Joana, profundamente marcada pelas formas com as quais ela lidava consigo e com os outros. Sorrindo para o pesquisador, acrescentou:

"Agora estou com uma nova postura ... fico quase que o tempo todo de repouso, como o médico disse pra fazer. Só venho pro estágio e pro trabalho final porque tenho que me formar... . Segui o conselho que você me deu de falar o que gostaria de escrever num gravador e pagar pra alguém digitá-la para mim... a secretária de um amigo estava precisando de grana e vai ser bom pra ela também. Meu trabalho já está no segundo capítulo e eu estou conseguindo repousar como o médico disse. Sempre faço a auto-hipnose que me ajuda muito. Estou muito feliz com isso".

Esse trecho é significativo por ilustrar a construção de uma solução que anteriormente parecia impossível, já que cumprir com seus projetos se mostrava algo incompatível com os cuidados com sua própria saúde. Seguindo as sugestões do pesquisador, ela conseguia se organizar de maneira a cuidar de si mesma e continuar com seus projetos pessoais, cuja importância era grande para ela. Chama-se a atenção aqui para um ponto de vista configuracional (Gonzalez Rey, 2005): a inclusão do cuidado de si como um elemento importante em suas construções de sentido. O cuidado de si sai de um significado de algo oposto a seus projetos para o de uma condição para sua realização, ao mesmo tempo em que passa do significado de uma insistência externa dos médicos e familiares para uma conquista pessoal que ela própria poderia produzir e ter satisfação com isso.

É possível cogitar que sua relação com o sagrado tenha contribuído significativamente nesse processo, pois a figura que o representava - Nossa Senhora - era chamada a favorecer algum tipo de solução para o problema, como no caso dos pacotes, que representavam seus parentes, colocados ao pé do altar. Outro ponto que merece destaque são as mudanças de sentido quanto à figura de seu pai, marcada, inicialmente, pela contradição - uma história de afeto e boas experiências com a filha, de um lado, e a terrível previsão, feita antes de morrer, de que sua mãe também não estaria mais viva em sua formatura, de outro.

Após o momento inicial aqui descrito, no qual se criou um contexto interativo com essa figura, o pai passou a aparecer de outras formas: com um sorriso no rosto; em lugares floridos e de paisagens; e sempre demonstrando afeto pela cliente. Mas o que talvez seja mais interessante é o fato de que, após o primeiro diálogo, seu pai geralmente apareceu acompanhado de Nossa Senhora, o que permite considerar sua ligação com o elemento sagrado da experiência de Joana. É possível considerar que essa associação tenha sido um dos elementos significativos de uma série de mudanças subjetivas quanto à figura de seu pai. Joana não mais relata sua visualização com expressões de sofrimento e dor, mas refere-se a ele com expressões de carinho e apoio, como alguém que surge para cuidar dela e de seu sofrimento. Acresce-se ainda que ele não surge mais como um entrave a seus planos de formatura, mas como alguém que busca ajudá-la em sua concretização.

Por fim, vale destacar que Joana apresentou uma mudança significativa na forma de recontar sua história, o que ocorreu principalmente devido aos trabalhos de distorção do tempo e regressão de idade que se tornaram comuns nos momentos da hipnose e nos processos autoinduzidos pela própria cliente em sua casa. As técnicas de reconstrução narrativa (Anderson, 1997; White & Epston, 1993) ressaltam a importância de que determinadas experiências, que fogem à lógica paralisante de uma narrativa, ganhem visibilidade para o sujeito de maneira a lhe oferecer novas possibilidades de reconstrução de sentido. Entretanto, no caso de Joana, esse processo de revisão ocorria na presença do sagrado, o que lhe conferia um potencial de transformação considerável, seja na forma de construir sentidos sobre determinados temas, seja no que se refere a processos emocionais das quais ela mesma não tinha consciência.

Joana relatava que era Nossa Senhora quem lhe mostrava as sequências de seus momentos de vida: a infância; a rivalidade com a irmã pelo amor do pai; o desenvolvimento da obesidade; a mocidade; o casamento; a vinda dos filhos; as situações de saúde em que quase perdeu a vida e seu momento atual. O fato de ser a santa a lhe mostrar tal sequência trazia-lhe uma intensa e viva sensação de que sempre esteve acompanhada, o que ainda não havia ocorrido até o começo das sessões, quando parecia viver uma situação insolúvel.

Joana alegava perceber as razões que a levaram à obesidade: como não havia mais necessidade de chamar a atenção de seu pai, de modo quase repentino, perdeu seis quilos em apenas um mês. Porém, essa aproximação intensa com o sagrado, que se configurou como a construção de um recurso de autoproteção, permitiu-lhe ainda algo muito específico: reconhecimento de mágoas muito profundas quanto a sua irmã, o que era particularmente difícil para alguém que, em nome de sua missão familiar, dizia jamais guardar mágoas. O momento de transe em que pôde verificar por si mesma que se sentia magoada com várias atitudes da irmã foi marcado por intensas explosões emocionais, que não lhe trouxeram maiores problemas por estar se sentindo segura sob a proteção do contexto acolhedor e da figura da santa que a acompanhava. Após esse momento, Joana relatou ter dado, pela primeira vez, um abraço legítimo em sua irmã, o que permite compreender que essa legitimidade derivou de uma percepção mais amadurecida desse relacionamento, em que se tornou possível aceitar aspectos positivos e negativos da relação com pessoas significativas de sua rede.

Considerações Finais

Diante do caso clínico aqui discutido, é importante ressaltar algumas considerações sobre limites e potencialidades do papel do psicoterapeuta para que o diálogo entre psicoterapia e religião seja possível. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o caso de Joana aconteceu na forma aqui descrita por se tratar, primeiramente, de uma experiência que era própria à cliente e que foi profundamente aceita e acolhida no setting psicoterápico. Isso leva a considerar que é possível que muitos outros casos não pudessem atingir mudanças tão significativas, já que nem todas as demandas perpassadas pelo tema religião possuem relação com o sagrado (James, 1902/1987; Otto, 1917/2007). Daí a importância de que o psicoterapeuta aprenda a reconhecer o que caracteriza a experiência sagrada, pois, apesar de suas interfaces com processos sociais, institucionais e culturais, ela não se esgota em qualquer um deles e consiste numa dimensão particular. Acompanhando-se o raciocínio de James (1902/1987), existe sempre o risco de que um cliente se refira ao termo "religião" e que suas demandas não estejam ligadas ao sagrado, mas a processos sociais comuns, como disputas de poder no seio de uma família, grupo ou instituição.

É necessário que o psicoterapeuta se invista, em sua própria subjetividade, de uma sensibilidade para compreender a importância e o impacto que a experiência religiosa possui para os sujeitos. Não se trata de um diagnóstico frio, distante e calcado em critérios externos, mas de uma condição humana de compreensão empática daquilo que constitui a subjetividade do outro em suas experiências mais íntimas e profundas. Caso o pesquisador não reconhecesse e manifestasse interesse e respeito pelas figuras da santa e do pai de Joana no sentido espiritual que ela lhes atribuía, possivelmente a terapia não se estenderia sobre momentos significativos de sua subjetividade. Tais figuras ocupavam uma posição central em sua subjetividade, fosse em termos de sua história, fosse nas tramas atuais ligadas a sua dor e que, portanto, não poderiam ser excluídas ou descaracterizadas para poderem participar ativamente do processo terapêutico.

Nessa mesma linha de reflexão, vale destacar que o pesquisador se utilizou de uma vivência já trazida pelo sujeito em vez de procurar induzi-la a construir uma. É importante que o interesse que o psicoterapeuta possui sobre um tema como a religião não se transforme numa "themata" (Morin, 1990), isto é, um conjunto de ideias que se caracterizam pela obsessão de pensamento que se impõe em qualquer situação clínica, mesmo que esteja distante das construções cotidianas do sujeito. Assim, tanto a negação quanto a supervalorização do tema podem implicar, num processo psicoterápico, o distanciamento relacional e a exclusão dos sentidos singulares construídos pelo sujeito. No caso de Joana, sua experiência com o sagrado foi escolhida como recurso terapêutico devido à importância central que ocupava em sua vida, e, como já levantado, esse não foi o único tema abordado pelo pesquisador.

Porém, embora não seja novidade a proposta de acolhimento das questões religiosas do cliente, é importante destacar também o que o papel do psicoterapeuta permite quando há demandas dessa natureza. Não sendo o terapeuta um mestre do oculto ou sacerdote, seu papel está muito mais ligado às possibilidades de reconstrução de sentido, o que abrange basicamente três aspectos intimamente ligados. Em primeiro lugar, cabe destacar que, embora a psicoterapia seja um procedimento laico que remete à solidão do homem ocidental (Nathan, 1999), que está num mundo desprovido de deuses ou demônios, num mundo onde se encontra sozinho, o psicoterapeuta deve conceber as expressões e as figuras religiosas nos sentidos que os sujeitos produzem sobre elas. O caso de Joana é bastante ilustrativo nesse ponto, principalmente devido ao tipo de construção que o contexto terapêutico lhe proporcionou. De modo geral, o contexto que envolveu o pesquisador e sua cliente acolheu com bastante aceitação as crenças de Joana para mostrar interesse por elas, e colocá-las ativamente a favor da psicoterapia. Vale lembrar que é o próprio pesquisador quem, ao visualizar a medalha de ouro brilhando, incitou a cliente a evocar suas relações com sua santa de devoção, que, para ela, não consistia num processo imaginativo ou mítico, mas em sua santa de devoção.

Em segundo lugar, cabe destacar a importância do diálogo e da relação terapêutica. O psicoterapeuta, nesse sentido, não possui uma fórmula para eliminar suas concepções prévias, mas possui condições para se colocar francamente disponível para o outro, mostrando um interesse genuíno pelo cliente, suas expressões e narrativas. Mas tal interesse não exclui as vozes internas do próprio terapeuta, principalmente suas teorias que, em vez de consistirem em representantes fidedignos da realidade, o auxiliam a se posicionar diante de seu cliente de maneira que, escutando a si mesmo, ele possa também escutar a pessoa com quem se relaciona naquele momento (Anderson & Goolishian, 1988; 1998; Anderson, 1997). Em meio a tal aceitação, o sujeito também pode se colocar num processo reflexivo de maneira a se repensar e se reconstruir em importantes momentos de sua subjetividade. No caso específico de Joana, ela relatou "se sentir em casa", principalmente por poder trazer as figuras ao mesmo tempo tão sobrenaturais e significativas para um espaço onde fosse possível com elas interagir e tecer novas formas de relação. Assim, ela pôde mergulhar num processo reflexivo de maneira a repensar e reconstruir sua própria história em momentos bastante significativos de sua subjetividade.

Por fim, existe aquilo que se pode considerar uma postura de mimetismo (Nathan, 1999) adotada pelo pesquisador, em que ele, para mergulhar no mundo subjetivo do sujeito, adota uma postura de diálogo com as forças desse mundo tal como fosse um mestre do oculto ou sacerdote.

No caso aqui discutido, o foco foi sempre a transformação de sentidos e relações e, para tanto, seguindo a hipnose de Erickson (1958), utilizou-se de uma linguagem geral que aproveitava as situações trazidas pela cliente e a auxiliava a estabelecer novas relações entre os diferentes personagens e elementos presentes em suas configurações. Desse modo, não existiu uma imposição de sentidos e narrativas nem uma desqualificação por parte do pesquisador, mas um processo em que ele auxiliou a cliente a alterar suas relações de tempo, corpo, espaço e pessoas, que consistem em elementos fundamentais de suas crenças religiosas, para que pudesse lidar com seu próprio sofrimento. Tal situação é comparável a um jogo de tabuleiro com várias peças trazidas pela cliente, em que o pesquisador a auxiliou, dentro das regras da psicoterapia, a rearranjá-las em configurações mais terapêuticas e interessantes que promoveram novas possibilidades de construção de sentido sobre si e suas relações, como ainda um alívio considerável de suas dores físicas.

Recebido em: 27/1/2009

Versão final reapresentada em: 22/6/2009

Aprovado em: 26/6/2009

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  • 1
    O termo religião remete a uma complexidade de processos que se entrecruzam nas práticas dos sujeitos, como processos sociais, institucionais, sagrados, culturais etc. Para este trabalho, o termo experiência religiosa ou simplesmente sagrada será ligado a um tipo de experiência subjetiva que o sujeito considera como divina e transcendente (James, 1902/1987).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      27 Jan 2009
    • Revisado
      22 Jun 2009
    • Aceito
      26 Jun 2009
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