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Novo marco legal do saneamento básico: alterações e perspectivas

New legal framework for basic sanitation: changes and perspectives

RESUMO

O presente estudo teve como finalidade apresentar e discutir as principais alterações trazidas pelo novo marco legal para a execução das políticas públicas de saneamento básico (Lei n° 14.026/2020), especialmente em relação a titularidade, contratos, concessões, universalização, sustentabilidade econômico-financeira, vetos, resíduos sólidos, entre outras. Além do caráter de análise normativa, buscou-se verificar a interligação entre o marco legal do saneamento básico e as demais políticas públicas de desenvolvimento urbano presentes na Constituição Federal, bem como a perspectiva de cumprimento das metas expostas pela nova lei. Infere-se, ao termo, que o cumprimento das metas estipuladas para tornar universal o direito ao saneamento básico, além da regulação criteriosa a ser realizada pelos entes responsáveis, necessita da avaliação periódica da efetividade dos instrumentos legais trazidos pelo novo marco legal.

Palavras-chave:
saneamento básico; novo marco legal; mudanças; perspectivas

ABSTRACT

The purpose of this study was to present and discuss the main changes brought about by the new regulatory framework for the application of public policies on basic sanitation (Law No. 14.026/2020), especially in relation to ownership, contracts, concessions, universalization, economic-financial sustainability, vetoes, solid waste, among others. In addition to the character of normative analysis, it was sought to verify the interconnection between the regulatory framework for basic sanitation and other public policies for urban development present in the Federal Constitution, as well as the perspective of achieving the goals set out by the new law. It is inferred, at the end, that the fulfillment of the claimed goals to make universal the right to basic sanitation, in addition to the careful regulation to be carried out by responsible agencies, requires the periodic evaluation of the effectiveness of the legal instruments brought by the new regulatory framework.

Keywords:
basic sanitation; new regulatory framework; changes; perspectives

INTRODUÇÃO

O saneamento básico é uma questão que ressoa também como preocupação mundial, fruto de crescente discussão nos foros internacionais. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as respectivas metas fixadas, traz expressamente, entre eles, o debate acerca da água e saneamento (Objetivo n° 6) (ONU, 202016 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Agenda 2030. Nações Unidas. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em: 20 ago. 2020.
https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2...
).

No Brasil, o saneamento básico ainda apresenta índices negativos alarmantes, especialmente por se tratar de um país com elevado grau de urbanização, cujo déficit atinge de forma direta a parcela da população mais carente, localizada nas periferias das cidades e nas áreas rurais (SANTOS et al., 201817 SANTOS, F.F.S.; DALTRO FILHO, J.; MACHADO, C.T.; VASCONCELOS, J.F.; FEITOSA, F.R.S. O desenvolvimento do saneamento básico no Brasil e as consequências para a saúde pública. Revista Brasileira de Meio Ambiente, v. 4, n. 1, p. 241-251, 2018.). A ausência de uma rede adequada de saneamento surge, então, como um dos maiores e mais persistentes problemas socioambientais do Brasil, com consequências em vários setores, como saúde pública e meio ambiente.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), gerenciado pela Secretaria Nacional de Saneamento do Ministério do Desenvolvimento Regional (SNS/MDR), em relação aos níveis de atendimento com água e esgoto nos municípios participantes do sistema nacional, considerando o ano base de 2020, a rede de abastecimento de água chegava a 84,1% da população, enquanto a rede de esgoto a 55%. Além disso, do total de esgoto gerado, ou seja, da água que se torna esgoto após o uso doméstico, apenas 50,8% é tratado, e do esgoto efetivamente coletado, 79,8% (BRASIL, 2021b10 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento – SNS. Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto. Visão Geral: ano de referência 2020. Brasília: SNS/MDR, 2021b. 180 p.).

A seu turno, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), ao tempo em que alçou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1°, III), elencou vários comandos interrelacionados ao saneamento básico, tais como: defesa do meio ambiente como princípio da ordem econômica e financeira (art. 170, VI); política de desenvolvimento urbano (art. 182); e meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) (BRASIL, 19881 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

Outrossim, a CF/88 expôs a competência administrativa comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para promover programas de saneamento básico (BRASIL, 19881 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Con...
). Cabe, pois, a todos os entes federativos a promoção de programas de saneamento básico, consoante à lição de Nohara e Postal Júnior (2018, p. 4). Por outro lado, a Constituição incumbiu à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação e saneamento básico (BRASIL, 19881 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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). Assim, foi editada a Lei n° 11.445/2007 como o marco legal para o saneamento básico, traçando diretrizes nacionais para o setor.

Por sua vez, em 15 de julho de 2020, após aprovação pelas Casas Legislativas, foi publicada a Lei n° 14.026/2020, resultando em profundas alterações na sistemática legal relativa ao saneamento básico, especialmente em relação a titularidade, contratos, concessões, universalização, resíduos sólidos, entre outras mudanças (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). Nesse sentido, o presente artigo teve como objetivo, a partir das principais alterações promovidas pela Lei n° 14.026/2020, discutir o novo marco legal para a execução das políticas públicas de saneamento básico, bem como as perspectivas para a concreta implementação dos objetivos nele presentes.

METODOLOGIA

Inicialmente, parte-se da análise do normativo original que estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico (Lei n° 11.445/2007), realizando o cotejo com as modificações introduzidas pela Lei n° 14.026/2020, a partir de blocos específicos (titularidade, contratos, concessões, universalização, sustentabilidade econômico-financeira, vetos, regulação, resíduos sólidos, entre outros).

Posteriormente, busca-se verificar a interligação entre o marco legal do saneamento básico e outras políticas públicas de desenvolvimento urbano presentes na Constituição Federal, a exemplo das políticas hídrica e de desenvolvimento urbano. Ao arremate, intenta-se vislumbrar a perspectiva de cumprimento das metas expostas pela nova lei.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Saneamento básico: conceito e normas principais

De acordo com o art. 3°, I, da Lei n° 11.445/2007, modificada pela Lei n° 14.026/2020, saneamento básico correspondente a um conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem e manejo das águas pluviais urbanas (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Nesse ponto, o novo marco legal manteve as espécies relativas ao gênero saneamento básico, trazendo entre as inovações conceituais a disponibilização da infraestrutura da rede de água e esgoto, o que denota repercussões significativas, especialmente para os objetivos de universalização do sistema. Infere-se, daí, que as regras legais dizem respeito às prestações referentes à execução de uma ampla variedade de intervenções públicas: abastecimento de água; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

Contudo, as políticas públicas de saneamento básico não devem ser concebidas de forma individualizada, devendo ser agregadas a outras políticas trazidas pela Constituição Federal, a exemplo da questão hídrica. Assim, para articular todo esse arcabouço jurídico, o novo marco apontou, entre os princípios fundamentais a serem observados para a prestação dos serviços públicos de saneamento, que as políticas e as ações da União de desenvolvimento urbano e regional, de recursos hídricos, entre outras de relevante interesse social direcionadas à melhoria da qualidade de vida, devem considerar a necessária articulação com o saneamento básico, inclusive no que se refere ao financiamento e à governança (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Além disso, previu a integração das infraestruturas e dos serviços com a gestão eficiente dos recursos hídricos (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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), inclusive com a modificação da estrutura da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a fim de que referida autarquia passasse a ser o ente emissor de normas de referência dos sistemas hídrico e de saneamento básico (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). Nesse contexto, com o objetivo de articulação com a política de desenvolvimento urbano inserida na Constituição Federal (BRASIL, 19881 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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), a Lei n° 14.026/2020 incluiu a previsão de que a estrutura de governança para as unidades regionais de saneamento básico seguirá o disposto no Estatuto da Metrópole (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

A Lei n° 14.026/2020, outrossim, indicou que o exercício da titularidade dos serviços de saneamento poderá ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). Vê-se, portanto, que o novo marco legal reforça a concertação de seus objetivos próprios com as demais políticas públicas constitucionais, mormente as que dizem respeito ao desenvolvimento urbano.

Por fim, o novo marco, alinhado com as modernas diretrizes de transparência do ordenamento jurídico pátrio, especialmente as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, manteve o controle social como princípio fundamental de execução da política de saneamento básico (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Titularidade

No que concerne aos serviços relativos à destinação de resíduos sólidos e à drenagem urbana, pelo interesse local da municipalidade, bem como a partir do fato de o serviço ocorrer naturalmente nas circunscrições municipais, não houve maiores questionamentos quanto à titularidade de tais serviços ser atribuída aos municípios. Contudo, a titularidade sobre a prestação dos serviços de saneamento básico, especialmente o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, sempre foi tormentosa no sistema jurídico brasileiro, ante a concepção do arranjo federativo trazido pela CF/88. Aliás, o novo marco legal trouxe, entre os princípios fundamentais nele previstos, a prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Não se encontra entre os objetivos deste artigo o aprofundamento sobre a repartição de competências definidas na Carta Constitucional, contudo soa importante pontuar que a CF/88 empregou o princípio geral da predominância do interesse. Por meio de tal princípio, cabe à União tratar de assuntos cujo interesse seja predominantemente nacional, cabendo aos estados os assuntos de repercussão regional e aos municípios os assuntos de predominância local (GONDIM, 201212 GONDIM, L.S. Limites à atuação das agências reguladoras em relação a saúde, ambiente e recursos hídricos. In: PHILIPPI JR., A.; GALVÃO JR., A.C. (org.). Gestão do saneamento básico: abastecimento de água e esgotamento sanitário. Barueri: Manole, 2012. p. 600-623., p. 602).

Tradicionalmente, aos municípios coube preponderantemente a titularidade para as ações afeitas à execução do saneamento básico, com a usual delegação dos serviços de água e esgotamento sanitário às empresas estatais dos respectivos Estados-membros. Na prática, corresponde à materialização do que Melo (201213 MELO, Á.J.M. Gestão associada para regulação do saneamento básico. In: PHILIPPI JR., A.; GALVÃO JR., A.C. (org.). Gestão do saneamento básico: abastecimento de água e esgotamento sanitário. Barueri: Manole, 2012. p. 689-717., p. 695) denomina “princípio da colaboração federativa”, baseado no ideal de solidariedade imposto implicitamente pelo texto constitucional.

A racionalidade regional, muitas vezes, tem o condão de suplantar as dificuldades encontradas pelas gestões municipais, especialmente no que diz respeito aos recursos financeiros (investimentos) e à logística, em face das díspares realidades existentes entre os diversos municípios. A seu tempo, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.842, decidiu que, nos casos de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, a titularidade relativa ao saneamento deve ser exercida por gestão compartilhada entre o Estado-membro e os municípios que compõem o respectivo ajuntamento urbano, considerando o predomínio do interesse regional (BRASIL, 201311 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI n° 1.842. Relator: Min. Luis Fux, Redator do Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Data de julgamento: 06/03/2013, Plenário, Data de publicação: Dje n° 181 – 16/09/2013. Brasil, 2013.).

Nessa toada, a nova legislação vai ao encontro da lógica interpretativa adotada pelo STF, ao incluir, como princípio fundamental da prestação de serviço público de saneamento básico, a prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia de universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

A Lei n° 14.026/2020 trouxe uma nova definição acerca do que vem a ser “prestação regionalizada”, definindo-a como “modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município” (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). O mesmo diploma legal indica que a aludida regionalização pode, em suma, ser estruturada da seguinte maneira: região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; unidade regional de saneamento básico; bloco de referência.

O novo marco legal ainda traz expressamente a diferenciação entre serviços públicos de saneamento básico de interesse local e aqueles de interesse comum. Aos primeiros, de acordo com a lei (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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), correspondem as funções públicas e serviços cujas infraestruturas e instalações operacionais atendam a um único Município. Por outro plano, os de interesse comum correspondem àqueles prestados em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões instituídas por lei complementar, em que se verifique o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre dois ou mais municípios (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Em consonância com as definições trazidas no corpo legal, a Lei n° 14.026/2020, ao modificar a Lei n° 11.445/2007, coerentemente, traz nova abordagem sobre a titularidade do serviço público de saneamento básico, levando em consideração a distinção entre os interesses local e comum. Dessa forma, em conformidade com o novo marco legal, tem-se o seguinte:

Art. 8° Exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico: I - os Municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local; II - o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

O exercício da titularidade dos serviços públicos de saneamento pode ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público (formado apenas por Municípios) ou convênio de cooperação (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). De mais a mais, o novo marco legal deixou consignada a faculdade de o titular dos serviços públicos de saneamento de interesse local aderir às estruturas das formas de prestação regionalizada (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). Nessa esteira, a Lei n° 14.026/2020 prevê, ainda, que o serviço regionalizado de saneamento básico poderá obedecer a plano regional elaborado para o conjunto de municípios atendidos, sendo que as disposições constantes do plano regional se sobrepõem àquelas constantes nos planos municipais (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). Consolidando a ideia de regionalização da prestação de serviços, a nova lei aponta que o plano regional de saneamento básico dispensa a necessidade de elaboração e publicação dos planos municipais (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Mudança nos contratos e concessões

Pode-se afirmar que a mudança mais significativa prescrita pelo novo marco legal do Saneamento Básico (Lei n° 14.026/2020) foi a alteração imposta ao modelo de contratualização e concessões administrativas. Historicamente, como mencionado alhures, a execução fática da política de saneamento no país tem sido, em boa parte, realizada por meio de empresas estaduais (empresas públicas ou sociedades de economia mista). Por sua vez, na redação original da Lei n° 11.445/2007 (art. 9°, II) (BRASIL, 20076 BRASIL. Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico. Brasil, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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), o titular dos serviços públicos de saneamento básico prestaria diretamente ou autorizaria a delegação dos aludidos serviços, com a definição do ente responsável pela sua regulação e fiscalização, bem como dos procedimentos de sua atuação. Com a nova redação trazida pelo novo marco legal, o art. 9°, II, da Lei n° 11.445/2007 findou com a seguinte redação:

Art. 9° O titular dos serviços formulará a respectiva política de saneamento básico, devendo, para tanto:

[…]

II - prestar diretamente os serviços, ou conceder a prestação deles, e definir, em ambos os casos, a entidade responsável pela regulação e fiscalização da prestação dos serviços públicos de saneamento básico (BRASIL, 20076 BRASIL. Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico. Brasil, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

Dessa forma, até o advento do novo marco legal, os municípios, de forma geral, realizavam a delegação dos serviços de saneamento ao Estado-membro por intermédio do convênio de cooperação. Em seguida, o ente estatal utilizava-se de uma empresa pública ou sociedade de economia mista estadual, por meio de um contrato de programa firmado com a municipalidade, para a execução dos serviços de saneamento básico, notadamente abastecimento de água e esgotamento sanitário.

O referido procedimento era balizado pela redação original do art. 10 da Lei n° 11.445/2007 (BRASIL, 20076 BRASIL. Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico. Brasil, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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), que permitia a prestação de serviço público de saneamento, após a celebração do contrato correspondente, por entidade não pertencente à administração do titular do serviço (BRASIL, 20076 BRASIL. Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico. Brasil, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). O contrato de programa firmado pelo município com a empresa concessionária estadual, com base no permissivo legal anterior, tinha como dispensável o procedimento licitatório, consoante previsão legal expressa (BRASIL, 19934 BRASIL. Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Lei de Licitações. Brasil, 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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). Referidos contratos estavam em consonância com a definição legal de “gestão associada”, conforme explicitado anteriormente. Ocorre, porém, que a Lei n° 14.026/2020, ao modificar a Lei n° 11.445/2007, alterou profundamente o regime de concessão e contratação da execução da política de saneamento básico, conforme descrito a seguir:

Art. 10. A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

Ou seja, pela nova norma não mais será possível aos municípios, sem prévia licitação, realizar novas concessões aos Estados-membros nem celebrar contrato de programa com os entes estaduais ou empresas estatais de outra unidade federativa. À vista disso, pode-se afirmar que o paradigma contratual da execução da política pública de saneamento básico no Brasil foi inteiramente modificado.

Ressalte-se, ainda, o permissivo legal para que os contratos de concessão e os contratos de programa para prestação dos serviços públicos de saneamento básico existentes na data de publicação da Lei n° 14.026/2020 vigorem até o advento do seu termo contratual (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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). Assim, um município, cujo contrato de concessão com o ente estatal (ou contrato de programa com a empresa estatal do Estado-membro) tenha chegado a termo, poderá passar a prestar diretamente o serviço ou realizar licitação para a delegação dos serviços de saneamento básico a que lhe competem. Nesse caso, a concessionária estadual (empresa pública ou sociedade de economia mista), cujo contrato de programa firmado tenha se encerrado, poderá participar do novo procedimento licitatório, em igualdade de condições, com outras empresas públicas ou privadas. É possível, ainda, ao prestador de serviços públicos de saneamento básico, além de realizar licitação e contratação de parceria público-privada, subdelegar o objeto contratado, observando, nesse caso, o limite de 25% do valor do contrato (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

Outra importante inovação consiste na estipulação do conteúdo mínimo dos contratos relativos à prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Além de conterem as cláusulas essenciais previstas na Lei n° 8.987/95 (BRASIL, 19955 BRASIL. Lei n° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Regime de Concessão e Permissão da Prestação de Serviços Públicos. Brasil, 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8987compilada.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
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), a nova lei adicionou diversas exigências (metas de expansão dos serviços, possíveis fontes de receitas alternativas, cálculo de indenização sobre os bens reversíveis não amortizados, repartição de riscos, entre outras) (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

A opção política do novo marco legal de saneamento básico foi claramente abrir o nicho da exploração dos serviços de água e de esgoto sanitário para a iniciativa privada, com o objetivo de torná-la um ator preponderante na prestação de tais funções. No entanto, a preponderância da iniciativa privada no setor não significa necessariamente o alcance da efetividade das políticas oficiais para o saneamento básico. Consoante Souza et al. (201518 SOUZA, C.M.N.; COSTA, A.M.; MORAES, L.R.S.; FREITAS, C.M. Saneamento: promoção da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015., p. 52), após o processo de privatização ocorrido nos anos 1980 na Europa, bem como nos anos 1990 na América Latina e na África, o modelo privado de gestão do saneamento vem sendo questionado e muitas concessões têm sido desfeitas, especialmente pelo aumento tarifário, pela precarização dos serviços e pelos investimentos aquém dos previstos.

Nesse aspecto, ecoa imperioso o trabalho das entidades de regulação e de controle, a fim de que a assunção do novo modelo realmente logre êxito no atendimento das metas fixadas no novo marco legal do saneamento básico, evitando ou minimizando as deficiências apontadas em países optantes pelo paradigma privado semelhante às novas regras brasileiras.

Outro ponto bastante polêmico foi o veto imposto pelo Presidente da República ao art. 16 da Lei n° 14.026/2020, especialmente o seu parágrafo único, referente à regularização (caso não houvesse contrato de programa formalizado ou cuja vigência estivesse espirada) e à renovação, por até 30 anos, dos contratos de programa vigentes e das situações de fato de prestação de serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista. O referido veto pode ocasionar grandes prejuízos à própria política de saneamento básico, pois, como visto, boa parte da execução atual do abastecimento de água e do tratamento de esgoto sanitário ainda é realizada pelas companhias estaduais de saneamento, ainda que não haja contrato de programa formalizado ou em vigor. Ademais, outros questionamentos podem advir, a exemplo do ressarcimento do montante investido pelas companhias estaduais e de eventuais subconcessões a empresas privadas.

Universalização dos serviços de água e de esgoto

A Lei n° 14.026/2020 fixou, de forma peremptória, prazos para a universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Ficou estabelecido que os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033 (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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), e os contratos em vigor que ainda não possuírem as referidas metas terão até o dia 31 de março de 2022 para viabilizar a inclusão (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

Todavia, quando os estudos para a licitação da prestação regionalizada apontarem para a inviabilidade econômico-financeira da universalização até 31 de dezembro de 2033, mesmo após o agrupamento de Municípios de diferentes portes, fica permitida a dilação do prazo, desde que não ultrapasse 1° de janeiro de 2040 e haja anuência prévia da agência reguladora (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). As metas de universalização deverão ser observadas no âmbito municipal, se exercida a titularidade de forma individual, ou no âmbito da prestação regionalizada, quando aplicável tal modalidade (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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), sendo a existência de metas e cronograma de universalização dos serviços de saneamento básico uma das condições de validade dos contratos de execução firmados (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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).

É importante mencionar que os contratos em vigor, incluídos aditivos e renovações, bem como aqueles provenientes de licitação para prestação ou concessão dos serviços públicos de saneamento básico, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na data programada (31 de dezembro de 2033) (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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). A efetividade do alcance das metas fixadas, por óbvio, implica o acompanhamento contínuo das entidades reguladoras, das instituições de controle e das entidades da sociedade civil organizada.

Sustentabilidade econômico-financeira, subsídios e renúncia de receitas

O arranjo institucional idealizado para a prestação dos serviços públicos de saneamento básico pressupõe o equilíbrio econômico-financeiro, balizados especialmente por meio da remuneração paga pelos correspondentes usuários, nos termos previstos no novo marco legal (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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). Cabe lembrar, também, que a sustentabilidade econômica faz parte expressamente dos princípios fundamentais em que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico se baseia (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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). Igualmente, na hipótese de prestação sob regime de delegação, o titular do serviço deverá obrigatoriamente demonstrar a sustentabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços, bem como deverá comprovar a existência de recursos suficientes para o pagamento dos valores incorridos na delegação, por meio da demonstração de fluxo histórico e projeção futura de recursos (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

É certo, ainda, que as taxas ou as tarifas decorrentes da prestação de serviço de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos considerarão a destinação adequada dos resíduos coletados e o nível de renda da população da área atendida (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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). De forma análoga, a cobrança pela prestação do serviço público de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas pode considerar também o nível de renda da população da área atendida (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

No que toca às políticas de subsídio, a nova redação do marco legal as define como “instrumentos econômicos de política social que contribuem para a universalização do acesso aos serviços públicos de saneamento básico por parte de populações de baixa renda” (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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). Informa, ainda, a lei, que poderão ser adotados subsídios tarifários e não tarifários para os usuários que não tenham capacidade de pagamento suficiente para cobrir o custo integral dos serviços (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

Além do mais, a política de subsídios é uma das condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico-financeiro listadas no texto do marco legal do saneamento básico (BRASIL, 2020a2 BRASIL. Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Brasil, 2020a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10588.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.588%2C%20DE%2024,de%20que%20trata%20o%20art. Acesso em: 23 set. 2022.
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). Pode-se mencionar, por exemplo, a previsão constante no art. 45, § 8°, da Lei n° 11.445/2007, com a redação dada pela Lei n° 14.026/2020, em que o serviço de conexão de edificação ocupada por famílias de baixa renda à rede de esgotamento sanitário poderá gozar de gratuidade, mesmo quando seja prestado por concessão, observado o reequilíbrio econômico dos contratos (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). A ideia motriz, assim, é que a geração de qualquer subsídio ou gratuidade seja acompanhada de mecanismos impeditivos de desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos firmados.

Regulação

No tocante às atividades de regulação dos serviços de saneamento básico, a Lei n° 14.026/2020 desencadeou uma grande mudança no setor, ao modificar a Lei n° 9.984/2000, atribuindo à então Agência Nacional de Águas, atualmente Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a responsabilidade pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.

No modelo anterior, cada titular do serviço poderia regular individualmente a prestação dos serviços de saneamento básico, sendo que parte dos municípios criou um órgão específico para a regulação e a fiscalização. Esse desenho regulatório, descentralizado, sem a edição de normas gerais gerava insegurança aos contratos firmados e à fiscalização da própria execução dos serviços, dado o baixo nível de governança regulatória das agências infranacionais.

Dessarte, o objetivo do novo marco legal foi a mudança de paradigma regulatório para o setor, cabendo à ANA a responsabilidade pela edição de normas gerais de regulação acerca do saneamento básico, consubstanciando, assim, uma espécie de nacionalização normativa setorial, com a intenção de propiciar mais certeza jurídica aos entes envolvidos e aos respectivos contratos eventualmente firmados.

Ressalte-se que o poder de regular continua presente nas atribuições dos titulares dos serviços públicos de saneamento básico; todavia, os Municípios e os Estados (de acordo com a titularidade prevista no novo marco legal) deverão observar as normas gerais de referência exaradas pela ANA. Nessa ideia, a Lei n° 14.026/2020 permite aos titulares legais delegar a regulação dos serviços de saneamento básico a qualquer entidade reguladora, sendo que o ato de delegação deve explicitar a forma de atuação e a abrangência das atividades a serem desempenhadas pelas partes envolvidas (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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), podendo até mesmo o titular optar por aderir a uma agência reguladora situada em outro Estado da Federação (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). Entre as atribuições das agências reguladoras, destaca-se a verificação do cumprimento das metas de universalização (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
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).

Pelo exposto, mostra-se acertado o novo arranjo legal de regulação, com a edição de normas referenciais pela ANA. Aliás, a própria Lei n° 14.026/2020 afirma expressamente que a ANA contribuirá para a articulação entre o Plano Nacional de Saneamento Básico (PNSB), o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e o Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
).

Impacto na Política Nacional de Resíduos Sólidos

Vários municípios brasileiros não possuem uma adequada gestão dos resíduos sólidos, notadamente no que diz respeito à falta de políticas de coleta seletiva e destinação final dos rejeitos. Embora se perceba, nos últimos anos, um avanço na reciclagem, os números ainda continuam muito tímidos (MIRANDA; MATTOS, 201814 MIRANDA, N.M.; MATTOS, U.A.O. Revisão dos modelos e metodologias de coleta seletiva no Brasil. Sociedade & Natureza, v. 30, n. 2, p. 1-22, 2018. https://doi.org/10.14393/SN-v30n2-2018-1
https://doi.org/10.14393/SN-v30n2-2018-1...
). A Lei n° 12.305/2010 foi a responsável por instituir formalmente a PNRS, sendo considerada um dos mais importantes marcos para o setor. Uma das principais modificações trazidas pelo novo marco legal do saneamento básico foi a adoção de novas datas para a implementação efetiva da disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos sólidos, que variam de 31 de dezembro de 2020 a 02 de agosto de 2024, dependendo do porte e da situação do município (BRASIL, 20107 BRASIL. Lei n° 12.305, de 2 de agosto de 2010. Política Nacional de Resíduos Sólidos. Brasil, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Trata-se da concessão de novo prazo, uma vez que a Lei n° 12.305/2010 previa a regularização ambiental dos resíduos sólidos no prazo de até quatro anos após a publicação da lei (BRASIL, 20107 BRASIL. Lei n° 12.305, de 2 de agosto de 2010. Política Nacional de Resíduos Sólidos. Brasil, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Todavia, a previsão não foi cumprida, permanecendo, de forma pública e notória, vários lixões a céu aberto nos municípios brasileiros, mormente nas regiões mais pobres do país.

Registre-se, por fim, o veto (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
) ao apoio técnico e financeiro, por parte da União e dos Estados aos Municípios, para o cumprimento dos novos prazos de destinação correta dos resíduos sólidos, o que pode inviabilizar os novos prazos previstos na PNRS.

Regulamentação legal

Após a publicação da Lei n° 14.026/2020, foi editado o Decreto n° 10.588, de 24 de dezembro de 2020, dispondo sobre o apoio técnico e financeiro da União à adaptação dos serviços públicos de saneamento básico, conforme preconizado pelo art. 13 da Lei n° 14.026/2020, disciplinando inclusive a alocação de recursos públicos federais para o setor, bem como os financiamentos com recursos da União ou de suas entidades, ficando condicionado ao atendimento das exigências formais necessárias à prestação regionalizada (BRASIL, 2020b9 BRASIL. Mensagem n° 396, de 15 de julho de 2020. Brasil, 2020b Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-396.htm Acesso em: 20 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). Foi publicado, ainda, o Decreto n° 10.710, de 31 de maio de 2021 (BRASIL, 2021a3 BRASIL. Decreto n° 10.710, de 31 de maio de 2021. Regulamenta o art. 10-B da Lei n° 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para estabelecer a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário, considerados os contratos regulares em vigor, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização previstas no caput do art. 11-B da Lei n° 11.445, de 2007. Brasil, 2021a. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.710-de-31-de-maio-de-2021-323171056. Acesso em: 30 ago. 2021.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decre...
), estabelecendo a metodologia para a comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário que detenham contratos regulares em vigor.

Como se percebe, a regulamentação do novo marco legal de saneamento básico, nesse primeiro momento, teve como intento principal o estabelecimento de diretrizes mínimas aos entes envolvidos (União, Estados, Municípios, empresas privadas e estatais) para o reforço da segurança jurídica necessária à execução dos objetivos do PNSB, especialmente as metas de universalização nele previstas.

CONCLUSÕES

A efetividade da execução atual das políticas públicas de saneamento básico ainda está longe de inserir o Brasil entre os países com índices satisfatórios para o setor, o que resulta em graves implicações sociais e econômicas, especialmente para a população mais pobre, em descompasso com os objetivos previstos na Constituição Federal e na Agenda 2030 da ONU.

A Lei n° 14.026/2020 modificou significativamente o arranjo institucional da política de saneamento básico no país, estabelecendo prazos para a universalização de vários serviços, a exemplo do abastecimento de água e esgotamento sanitário, bem como para a destinação final dos resíduos sólidos. Para isso, o novo marco legal optou pelo incentivo à abertura do mercado para a iniciativa privada, rompendo com o predomínio, até então reinante, das companhias estaduais de saneamento na execução dos serviços. Nesse contexto, a nova lei alterou o modelo de contratualização e concessões administrativas, não mais sendo possível aos municípios, sem prévia licitação, realizar novas concessões aos Estados, nem celebrar contrato de programa com empresas estatais de outra Unidade Federativa. A nova lei passou a exigir, ainda, a padronização mínima dos contratos a serem firmados, além de regras mais precisas sobre as condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico-financeiro.

Outrossim, visando minimizar as dificuldades gerenciais e financeiras dos Municípios, consolidou-se a ideia de regionalização do serviço de saneamento básico, especialmente no que se refere à água e ao esgotamento sanitário. Todavia, a manutenção do veto à renovação por 30 anos dos contratos de programa vigentes e das situações de fato de prestação de serviços públicos de saneamento por empresa pública ou sociedade de economia mista traz a possibilidade de prejuízos imediatos à política do setor, uma vez que grande parte da execução atual do abastecimento de água e do tratamento de esgoto ainda é realizada pelas companhias estaduais de saneamento.

Na verdade, não obstante parte das atuais empresas estatais possa pontualmente não atender aos novos requisitos contratuais previstos na lei, abre-se fortemente a possibilidade da quebra de experiências estáveis relativas ao serviço por elas prestado, com prejuízo para a continuidade e a eficiência do sistema. Cabe registrar, também, o fato de que referidas empresas, possivelmente, poderiam não participar de novos certames licitatórios, o que oneraria ainda mais os entes públicos, em virtude das eventuais indenizações devidas pelos dispêndios realizados pela infraestrutura até então existente. E, pelo artigo vetado, ainda que as empresas estaduais ou os Serviços Autônomos de Água e Esgoto (SAAE) dos municípios operassem de forma irregular, a casual prorrogação teria expressamente como requisito a exigência das cláusulas essenciais previstas na nova lei, sob pena de nulidade, o que serviria como um anteparo para o equilíbrio e avanço do sistema, evitando descontinuidade e inefetividade.

Ademais, com a conservação do veto sobre a possibilidade da União e dos Estados promoverem ações de apoio técnico e financeiro relativamente à destinação ambiental dos resíduos sólidos pelas municipalidades, mostra-se reduzida a possibilidade de os municípios cumprirem os novos prazos que passaram a vigorar na PNRS.

Percebe-se, pois, apesar das mudanças no marco legal de saneamento básico, que ainda não é possível afirmar se as metas de universalização nele presentes serão efetivamente alcançadas. A abertura generalizada ao mercado, com o objetivo de atrair investimentos privados para o setor de saneamento básico, não traz a certeza se a universalização dos serviços será alcançada no prazo previsto ou se a exploração dos blocos regionais será realizada com eficiência e sem a cobrança de tarifas excessivas.

O alarmante déficit dos serviços de saneamento básico no país, aliado à fragilidade econômica de grande parte da população atualmente desprovida de tais serviços, parece exigir, ao lado da iniciativa privada, a atuação concomitante do poder público nos investimentos e na execução das políticas públicas.

Desse modo, mostra-se imperioso para o atingimento das metas estipuladas, além da regulação criteriosa a ser realizada pelas entidades reguladoras responsáveis, o controle social democrático da execução dos serviços públicos de saneamento, permeado pela avaliação periódica da efetividade dos instrumentos trazidos pelo novo marco legal.

  • Financiamento:
    nenhum.
  • Reg. ABES:
    20210311

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2021
  • Aceito
    02 Jun 2022
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