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O LEGADO DE LÉLIA GONZALEZ

THE LEGACY OF LÉLIA GONZALEZ

EL LEGADO DE LÉLIA GONZALEZ

O debate sobre raça e gênero no Brasil foi inegavelmente revigorado e fortalecido pela ampliação do ingresso de estudantes negros e negras nas Instituições de Ensino Superior via políticas de cotas raciais1 1 As políticas públicas em torno do direito universal de acesso ao ensino, principalmente Superior, começaram a ser reivindicadas pelo movimento negro já nas discussões das comissões que debatiam o processo constituinte nos anos 1980. No entanto, só em 2012 a questão das cotas foi votada pelo Supremo Tribunal Federal como constitucional. Em 2000, porém, por meio de uma lei estadual, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi pioneira em conceder uma cota de 50% em cursos de graduação para estudantes de escolas públicas. Posteriormente, a Universidade de Brasília (UnB) estabeleceu ações afirmativas para negros no vestibular de 2004. Desde então, várias instituições vêm adotando sistemas de ações afirmativas para os vestibulares e exames admissionais. e ações afirmativas, as quais geraram a ocupação de outro perfil de alunos nos cenários universitários. Consequentemente, instaurou-se uma diversidade social e racial no meio acadêmico, historicamente branco, que passou a incorporar outras cores ao corpo discente das instituições. Em uma sociedade racista e desigual, essa mudança tornou-se um dos temas mais polêmicos entre políticos, estudantes e vários segmentos sociais. Todavia, para além das polêmicas suscitadas, verificou-se a redefinição das agendas de pesquisa a partir das inquietações políticas, das experiências de vida e das trajetórias da juventude negra oriunda de escolas públicas.

Por outro lado, o debate público iniciado por jovens feministas negras nas redes sociais e na mídia em geral foi pautado não apenas pelas questões que envolvem raça, classe e gênero, mas também território, política, sexualidade e outras esferas importantes na construção de um pensamento crítico – tão caro ao campo educativo – sobre as desigualdades sociais no Brasil. Nesse contexto, a obra de Gonzalez vem sendo retomada pelas novas gerações de pesquisadoras e pesquisadores.

Tradutora, professora, antropóloga, filósofa, feminista e militante antirracista, a mineira Lélia Gonzalez (1935–1994) transitava da Filosofia às Ciências Sociais, da Psicanálise ao samba e aos terreiros de candomblé. Lecionou em escolas dos ensinos Fundamental e Médio e, posteriormente, tornou-se professora universitária na capital fluminense, integrando o corpo docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Participou ativamente das lutas contra a ditadura militar, pela redemocratização do Brasil e contra o Apartheid na África do Sul. Foi fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) e da organização Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras. Gonzalez colaborou com subcomissões que discutiram o processo constituinte (1986-1988), além de ter integrado o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Com organização de Flávia Rios2 2 Professora do Departamento de Sociologia e Metodologia da Universidade Federal Fluminense (GSO/UFF), coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa “Guerreiro Ramos e pesquisadora do Afro – Núcleo de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial” do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). e Márcia Lima,3 3 Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e pesquisadora sênior associada ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Por um Feminismo Afro-latino-americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos reúne um amplo panorama da obra dessa autora, uma das mais importantes intelectuais negras do século XX. As organizadoras prepararam uma coletânea inédita da obra de Gonzalez, concentrando em um único volume ensaios, intervenções e diálogos realizados pela autora entre 1975 e meados dos anos 1990 – período que marca a efervescência das discussões em torno dos anseios pela redemocratização do Brasil e de outros países da América Latina e do Caribe, além das lutas pela igualdade racial nos Estados Unidos e pela independência dos países africanos.

Os escritos reunidos no livro foram recolhidos de fontes variadas, desde livros raros que não circulam em livrarias e dificilmente são encontrados em sebos até artigos publicados em periódicos da imprensa alternativa nos tempos sombrios da ditadura militar. Esses escritos não estão restritos a poucos leitores. Neles, as culturas erudita e popular estão o tempo todo em diálogo. É possível encontrar na produção escrita de Gonzalez referências clássicas da Filosofia ou das Ciências Sociais ao lado de citações do latim, do banto ou mesmo daquilo que ela denominou de “pretoguês” – uma forma de africanização do idioma falado no Brasil. Essa polifonia marca toda a sua produção bibliográfica.

O livro está estruturado em três partes. A primeira é destinada aos ensaios e artigos inéditos apresentados em congressos internacionais e em universidades estrangeiras. Dentre os onze ensaios apresentados destacamos: “Por um feminismo latino americano” (RIOS; LIMA, 2020RIOS, F.; LIMA, M. (orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 139) – trabalho que dá título ao livro e que foi apresentado em um congresso feminista latino-americano em 1988 na Bolívia. Nesse artigo, originalmente publicado em espanhol, encontram-se referências às intelectuais latino-americanas bem como às mulheres campesinas, indígenas e negras as quais a autora classificou como amefricanas no célebre artigo “A categoria político-cultural de amefricanidade” (RIOS; LIMA, 2020RIOS, F.; LIMA, M. (orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 127). Essa categoria é uma chave importante para a leitura da obra de Gonzalez.

Na segunda parte do livro, chamada de “Intervenções”, podem ser encontrados artigos curtos, discursos e participações em debates na vida política brasileira e no enfrentamento de questões controversas suscitadas pela mídia em geral. Passadas mais de três décadas, é impressionante a atualidade desse material no que diz respeito às críticas à persistência do racismo e do sexismo na cultura brasileira. Além disso, chama atenção a relevância dada à atuação política dos conselhos e organizações partidárias no parlamento, bem como a importância das candidaturas negras e de mulheres. Nessa seção, destacamos o discurso de Gonzalez na Constituinte. Um texto inédito revela a participação da intelectual ativista negra na construção do pacto constitucional. Seu pronunciamento antecipa muitas questões importantes para as nossas lutas de hoje pelas políticas de cotas e de ações afirmativas.

Na sequência, um conjunto de entrevistas constitui a terceira parte, denominada “Diálogos”. Essa seção é destinada às conversas da autora com jornalistas sobre aspectos biográficos da sua trajetória e da sua interpretação em torno das questões sociais, culturais e políticas do Brasil. Por fim, o livro apresenta um “Apêndice” com um texto raro chamado “A propósito de Lacan” (RIOS; LIMA, 2020, p. 337), um estudo analítico no qual o pensamento lacaniano desperta interesse como dispositivo teórico para outras reflexões sobre cultura e política no Brasil e na América Latina.

Gonzalez possuía vasto arcabouço teórico, transitando por Psicanálise, Antropologia e Sociologia. Ao mobilizar conceitos de diversos campos, a autora buscava interpretar, a partir do tema da mulher negra, a experiência da escravidão na sociedade capitalista, bem como as formas de dominação e as ideologias políticas que reproduzem representações coloniais geradoras de desigualdades. O pensamento de Franz Fanon será referência importante para a autora desenvolver suas análises sobre as formas de subjetivação da dominação. Referências como Abdias do Nascimento, Joel Rufino, Beatriz Nascimento, Florestan Fernandes e Octávio Ianni serão igualmente importantes, especialmente nas reflexões sobre a necessidade de superação do mito da democracia racial no combate ao racismo.

Nos nossos dias, a obra de Gonzalez é referência para os movimentos sociais antirracistas e feministas do Brasil, da América Latina e dos Estados Unidos, assim como para o feminismo europeu, especialmente o francês. Na sua produção, destacam-se três abordagens importantes: a decolonial, a interseccional e a psicanalítica. A primeira relaciona-se à sua crítica ao eurocentrismo nas Ciências Sociais e no feminismo ocidental. A segunda refere-se aos estudos em torno das intersecções ou sobreposições de identidades sociais e sistemas de opressão. Essa abordagem tem como referências Angela Davis, Patricia Hill Collins e Kinberlé Crenshaw – responsável por cunhar o termo “interseccionalidade”. A terceira abordagem parte de estudos de Jacques Lacan e Sigmund Freud para uma reflexão interdisciplinar sobre a cultura, especialmente do cotidiano nos espaços do não dito, do interdito e das subversões de linguagem na esfera da reprodução social.

Importante ressaltar as preocupações da autora com o campo educativo em suas abordagens, sobretudo durante a década de 1980, quando o movimento negro brasileiro se afirmou como importante sujeito político no processo de redemocratização do país. Nesse momento, as mulheres negras e seus companheiros de militância elegeram o acesso à educação como uma das principais bandeiras de emancipação política, por considerá-lo importante não apenas na conquista de direitos e melhores condições de vida, mas fundamental no processo de reconhecimento étnico-racial e descolonização cultural e epistemológica.

Em Por um Feminismo Afro-latino-americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos, encontram-se escritos que revelam o vigor do pensamento de uma das mais importantes intelectuais negras da nossa contemporaneidade – referência na luta pela descolonização da educação e nas batalhas contra as opressões de gênero, raça e classe no Brasil.

Notas

  • 1
    As políticas públicas em torno do direito universal de acesso ao ensino, principalmente Superior, começaram a ser reivindicadas pelo movimento negro já nas discussões das comissões que debatiam o processo constituinte nos anos 1980. No entanto, só em 2012 a questão das cotas foi votada pelo Supremo Tribunal Federal como constitucional. Em 2000, porém, por meio de uma lei estadual, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi pioneira em conceder uma cota de 50% em cursos de graduação para estudantes de escolas públicas. Posteriormente, a Universidade de Brasília (UnB) estabeleceu ações afirmativas para negros no vestibular de 2004. Desde então, várias instituições vêm adotando sistemas de ações afirmativas para os vestibulares e exames admissionais.
  • 2
    Professora do Departamento de Sociologia e Metodologia da Universidade Federal Fluminense (GSO/UFF), coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa “Guerreiro Ramos e pesquisadora do Afro – Núcleo de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial” do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
  • 3
    Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e pesquisadora sênior associada ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).

Referências

  • RIOS, F.; LIMA, M. (orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
Editora de Seção: Ivany Pino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2022
  • Aceito
    21 Mar 2022
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