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1968 – MOVIMENTOS ESTUDANTIS E OPERÁRIOS: ENTREVISTA COM REGINALDO CARMELLO CORRÊA DE MORAES

1968 – STUDENT AND WORKER MOVEMENTS: INTERVIEW WITH REGINALDO CARMELLO CORRÊA DE MORAES

1968 – MOVIMIENTOS DE ESTUDIANTES Y TRABAJADORES: ENTREVISTA CON REGINALDO CARMELLO CORRÊA DE MORAES

Na manhã do dia 2 de maio de 2019, tivemos a honra e a satisfação de entrevistar, em sua residência, o professor Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes, no âmbito de um projeto de pesquisa sobre a memória de 1968. Procurávamos recolher depoimentos e memórias de protagonistas e intérpretes dos acontecimentos daquele ano, entre os quais o então professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por sua proximidade e sua participação junto aos movimentos operários dos anos 1960. Era impensável que, pouco tempo depois, em 26 de agosto de 2019, ele não mais estaria conosco.

Essa irreparável perda para as Ciências Sociais brasileiras conduz-nos por uma reflexão acerca da permanência das memórias e dos relatos de protagonistas e interpretes de 1968, mesmo que muitos deles não mais estejam vivos. Reginaldo de Moraes, nesta sua última entrevista, apresenta suas memórias dos movimentos operários e estudantis, resgatando um momento fundamental de nossa história recente, iniciada com a Greve de Osasco de 1968. Sua perspectiva crítica é inconfundível, de uma memória nítida e lúcida, construída no paralelismo de sua vida pessoal e dos acontecimentos do passado. Por tamanha contribuição, prestamos aqui a nossa homenagem.

Reginaldo de Moraes foi um exímio intelectual das Ciências Sociais, trilhando os caminhos da Educação, da Ciência Política e das Relações Internacionais. Suas pesquisas, que repercutiam em suas inspiradoras aulas e em sua intervenção política, trouxeram as diversas dimensões do neoliberalismo, da educação superior, do desenvolvimento e das políticas públicas, com enfoques no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos.

Seu ingresso na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, em 1984, foi junto ao antigo Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação (DECISAE). Assim como outros intelectuais, entre eles os filósofos Roberto Romano e Patrízia Piozzi (falecidos em 2021 e 2015, respectivamente), participou de um momento em que se construíram os primeiros diálogos interdisciplinares nas Ciências da Educação, em meio a um clima político otimista com a abertura democrática. Desde então, participou ativamente como editor e autor da revista Educação & Sociedade (E&S), com destaque para o artigo “Universidade hoje – ensino, pesquisa, extensão” (MORAES, 1998MORAES, R. C. C. Universidade hoje – ensino, pesquisa, extensão. Educação & Sociedade, Campinas, v. 19, n. 63, p. 19-37, ago. 1998. https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000200003
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), o qual analisa os caminhos e as escolhas político-institucionais que incidiam sobre a universidade no final do século XX e possibilitariam maior integração da universidade na sociedade e na formação de um pensamento crítico.

Anos depois, ao migrar para o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), integrou os quadros docentes do Departamento de Ciência Política, equilibrando, em sua trajetória pessoal, a militância política e a expressão pública de sua opinião, algo que realizou até seus últimos dias. Como intelectual público, por anos escreveu regularmente no Jornal da Unicamp, abordando com excelência e criticidade diversos temas, como o recente conservadorismo norte-americano e sua relação com a religião.

Entre muitas de suas obras, destacam-se duas, a saber: Estado, desenvolvimento e globalização (MORAES, 2006MORAES, R. C. C. Estado, desenvolvimento e globalização. São Paulo: Editora Unesp, 2006), em que desvendou alguns dos dilemas da relação entre Estado e neoliberalismo nos anos 1990 e 2000; e Educação superior nos Estados Unidos – história e estrutura (MORAES, 2015MORAES, R. C. C. Educação superior nos Estado Unidos – história e estrutura. São Paulo: Editora Unesp, 2015.), outra obra fundamental para a compreensão da formação universitária e da força de trabalho norte-americana.

Como veremos ao longo da entrevista, Reginaldo de Moraes carregava consigo a precisão de fatos e personagens que estiveram lado a lado na contestação à ditadura militar brasileira. Aqui, os fatos se concatenam com a pesquisa, operando a compreensão precisa de uma realidade que aparentemente não se faz tão distante. É importante ressaltar que, em sua entrevista, Reginaldo de Moraes compõe um panorama dos conflitos sociais do ano de 1968 e argumenta com muita acuidade sobre a continuidade das lutas sociais iniciadas naquele ano, observando também as mudanças de discursos e de atores que ocorrem nesse campo. Ademais, ele compõe cruzamentos de sua história de vida com os fatos, lugares e personagens, desvelando um complexo campo político marcado pela resistência à repressão e à violência da ditadura civil-militar. Seu olhar sobre a Greve de Osasco de 1968 – objeto de estudo pelo qual queríamos conhecer suas memórias para a incorporação em nossa pesquisa – enfatiza não apenas os fatos em si, mas os posicionamentos políticos, os rumos e as trajetórias de diversos atores, além das suas próprias. Suas posturas como ator, narrador e observador se sobrepõem, de modo a construir uma poderosa narrativa de crítica do passado e das consequências no tempo presente.

O sentido de “inexistencialismo” da ditadura, como afirmou Cardoso (2003)CARDOSO, I. Para uma crítica do presente. São Paulo: Editora 34, 2003., produzido por forças dominantes e por apologistas da violência e da tortura, visões que hoje consideramos parte do negacionismo histórico, são fortemente rechaçadas por relatos memorialísticos como o aqui apresentado. A construção de Reginaldo de Moraes como intelectual e personagem dessa história nos deixa seguros de que sua vivência foi um primoroso sopro de lucidez e democracia contra a violência do obscurantismo autoritário.

Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é graduado (1972), mestre (1982) e doutor (1987) em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Foi professor da Faculdade de Educação (FE) e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 1984 e 2012. Pesquisou temas relacionados ao neoliberalismo e à educação superior, com destaque para as obras Estado, desenvolvimento e globalização (2006) e Educação superior nos Estados Unidos – história e estrutura (2015), ambas publicadas pela Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Entrevista

Maria Ribeiro do Valle: Gostaríamos de saber sobre “1968” e suas memórias daquele período.

Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes: Quando se fala nessa “palavra mágica” que é “1968”, muita gente pensa logo nas passeatas dos estudantes, das universidades, no “meia oito” francês, depois aqui, nas grandes passeatas dos estudantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, que era o movimento estudantil no Ensino Superior. Mas 1968 foi bem mais do que isso. Havia uma crise muito grande, uma mobilização social que não estava só na universidade. Qual era o tamanho do movimento estudantil universitário em 68? Não mais do que cento e vinte mil pessoas, no máximo. Não havia mais que isso no Brasil inteiro. Esses movimentos estavam basicamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas havia também um movimento estudantil secundarista muito forte em alguns lugares. Aliás, muitos quadros da esquerda começaram a ser recrutados no movimento estudantil secundarista. Aqui em São Paulo, o pessoal da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) vinha do Colégio Aplicação (que ficava na Barra Funda). No Rio, o César Benjamin, do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), também vinha do movimento secundarista. Em Osasco, teve um movimento grevista importante e uma porção de operários que fizeram a greve da Companhia Brasileira de Material Ferroviário (COBRASMA) também vinha do movimento estudantil secundarista de Osasco, onde havia, por exemplo, o Centro de Estudantes de Osasco (CEO). Há uma ruptura muito grande entre o ambiente do movimento estudantil do Ensino Médio e aquele da universidade. Escola média é uma coisa entre o quartel e o convento, você tem que ter uma vida disciplinada, tem prova, vigilância, uniforme, não pode fumar, não pode isso, não pode aquilo. Quando se vai para a universidade, é outra coisa, não tem nada disso. Você tem então ambientes diferentes, que suscitam comportamentos ou possibilidades de comportamentos diferentes, principalmente em algumas áreas do Ensino Superior. É um pouco diferente estudar na Escola Politécnica (POLI) da USP ou na Filosofia. Na POLI, você também tem “lição de casa”, tem três provas de cálculo no primeiro semestre e assim por diante. Então, aquilo funciona em parte como uma escola de Ensino Médio, mas, se você vai para um ambiente como o da Filosofia ou da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo (FAU) da USP, já é outra coisa. Essas coisas devem ser consideradas para entender como o movimento se manifesta, como ele se organiza etc. O movimento de 68 tem esse lado, dos estudantes, mas também o dos segmentos populares, como dos operários de Osasco, que têm outra dinâmica e que aparecem menos, são menos espalhafatosos. O movimento estudantil saía no centro da cidade causando aquela confusão toda, parando o trânsito, a polícia jogava bombas, aquelas coisas que chamavam muita atenção, e atingia um público que lia jornal, que via televisão, que era a classe média. Os estudantes eram muito vinculados a essa origem. Em 1968, não havia televisão brasileira, nacional; havia televisões locais, mas uma rede nacional só passa a existir a partir de 1970, com a rede via satélite. Até 1968, o que acontecia em São Paulo só era transmitido em São Paulo, nem jogo de futebol do Rio era visto em São Paulo, então também as notícias eram muito locais. Daí a importância das manifestações de rua que paralisavam a cidade, porque na cidade todo mundo ficava sabendo, aquilo virava uma “zorra”.

Passei a militar politicamente no meio secundarista participando da União Estadual dos Estudantes (UEE). Em 1968, havia uma eleição para a direção que estava sendo disputada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pela Ação Popular (AP), que, na época, já estava se aproximando do maoismo. Então, tinha um movimento no meio secundarista para conquistar gente para, depois, no congresso, cada uma das facções ter os seus delegados. Enfim, as mobilizações eram muito direcionadas. Como eu disse, uma porção de quadros da esquerda começou a ser recrutada no movimento secundarista. É o caso desses nomes que ficaram célebres, como Pérsio Arida, que era estudante no Colégio Aplicação quando entrou na VAR-Palmares, ficando famoso depois como banqueiro, ou aquele que virou arrependido, o Lungaretti.1 1 Celso Lungaretti foi militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no final dos anos 1960, quando foi preso político. Após sua prisão, em 1970, escreveu textos e entrevistas que denotavam seu arrependimento e recusa de participação na luta armada.

MRV: Mas eles não se arrependeram especificamente por causa da tortura?

RCCM: Há teses sobre isso, aqui em São Paulo teve cerca de vinte ou trinta arrependidos. Mas nenhum se arrependeu exclusivamente por causa da tortura. Todos foram torturados, mas, quando eles mudaram de São Paulo, já estavam no Tiradentes. Tinha uma escala da prisão: havia o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. O Inferno era a Operação Bandeirante (OBAN), o Purgatório era o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o [Presídio] Tiradentes só era para cumprir a pena. Esses arrependidos foram ganhos para essa atitude quando já estavam no Tiradentes. Daí as histórias do porquê fizeram isso serem as mais variadas, porque as psicologias eram variadas, as pessoas eram diferentes. A maior parte deles enlouqueceu. Um virou astrólogo, outro se enforcou… Esses caras foram ganhos por uma espécie de teoria meio maluca, de que havia uma divisão dentro da ditadura, entre os entreguistas e os nacionalistas. Os entreguistas eram “linha dura” – naquela ocasião reuniam o pessoal da Junta Militar e do [Emílio Garrastazu] Médici; já os nacionalistas se opunham ao americanismo dos primeiros e queriam uma política de transição para outro regime, menos claramente ditatorial, liderados pelo general Albuquerque Lima. Então, uma das teorias sobre os arrependidos terem feito isso é que eles foram convencidos de que, fazendo isso, eles reforçariam a ala dita nacionalista e democratizante, abrindo o caminho para a redemocratização. Tudo isso acontece com muita força a partir de 1969, após o Ato Institucional n. 5 (AI-5). Antes havia margem para manifestação, as organizações estudantis eram legais, não clandestinas. Até 1968, havia muita publicação de esquerda. No começo de 1969 até saiu uma edição ou outra da editora Paz e Terra, a Civilização Brasileira tinha uns dois ou três jornais nacionalistas no Rio, então ainda existia uma coisa meio pública no que se refere à exposição de ideias. Depois do AI-5, zerou. O movimento estudantil, por exemplo, refluiu para a clandestinidade. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP se tornou clandestino, os centros acadêmicos eram semiclandestinos, as assembleias só reaparecem por volta de 1972-73, com pautas muito internas, quase corporativistas. Em 1975, houve uma passeata de estudantes na USP que chegou até o viaduto da Marginal, depois voltou. Só mais tarde, no ano seguinte, é que o movimento voltou a tomar as ruas.

Pablo Emanuel Romero Almada: Um pouco antes, quando houve a morte do Vladimir Herzog, houve alguma manifestação? Como os estudantes reagiram a isso?

RCCM: Em 1972-73 (não me lembro bem a data), houve uma onda de prisões muito grande e na USP se constituiu um Comitê de Defesa dos Presos Políticos, com o que se começou a ter alguma reação, que depois viria a ser a luta pela anistia, mas isso ainda antes do caso Vladimir. Antes da prisão dele, houve muitas outras, que também foram relativamente importantes, como em 1973-74, quando ocorreram muitas prisões dentro do movimento operário, da Oposição Metalúrgica, da Pastoral Operária etc. Em 1973, teve o assassinato do Alexandre Vannucchi e também a missa na Sé, primeira manifestação contra a tortura em São Paula que teve um grande impacto. Penso que o Paulo Evaristo tinha assumido recentemente a Arquidiocese, entre 1972 e 1973. Essa foi a primeira manifestação que ele organizou. Eu trabalhava no Estadão e me lembro que fui lá para dar só uma olhada, porque tinha que voltar ao trabalho. A Catedral estava muito cheia e, na primeira fila, estavam o Júlio de Mesquita e o Rui de Mesquita, depois tinha o pessoal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que eram dos jornais que estavam sob censura e eram contrários à ditadura. Menos a Folha [de S. Paulo], que era o jornal da OBAN – contratava torturadores e dava a eles um registro na Folha da Tarde, cedia os carros da empresa para campanas etc. O Otávio Frias Filho era um comerciante do setor imobiliário que comprou a Folha e virou dono de jornal. Ele era um dos organizadores da OBAN, recrutava, dava retaguarda. Era um jornal que, enfim, nunca estaria numa manifestação como aquela. No Estadão, havia os interventores, que faziam as provas das páginas de rosto e de opinião, só saindo de lá quando as provas estavam prontas para a impressão, junto da Polícia Federal. Líamos muita matéria que passava lá no setor da revisão e que, no dia seguinte, não saía no jornal. O Estadão substituía as matérias censuradas por poemas de Camões, o Jornal da Tarde substituía por receitas culinárias. Daí a importância das manifestações, pois era impossível fazer desaparecer uma passeata que paralisa o centro de uma cidade como São Paulo. É possível censurar notícias, mas uma manifestação assim vira notícia por ela mesma.

MRV: Mesmo a Passeata dos Cem Mil, que hoje não parece nada quantitativamente grande, em 1968 era muita coisa.

RCCM: A tal da Passeata dos Cem Mil no Rio, mesmo que fossem cinquenta mil pessoas, significava uma tomada do centro da cidade e provocava um estardalhaço.

MRV: O enterro do Edson Luís teve cinquenta mil pessoas, algo comparável ao contingente que saiu às ruas na ocasião do enterro de Getúlio Vargas, em 1954. Também não eram apenas estudantes.

RCCM: Sim, acabava mobilizando intelectuais, a classe média do Rio de Janeiro, que tinha uma tradição de muita gente politizada.

MRV: Como as mães dos estudantes…

RCCM: Sim, eram sobretudo as famílias dos estudantes.

PERA: Nesse período em que você trabalhou no Estadão, era noticiada alguma movimentação do meio secundarista?

RCCM: Não, porque o movimento secundarista era muito menos aparente do que o movimento das universidades. Não se falava muito no assunto.

MRV: O próprio Edson Luís estava na manifestação por acaso quando morreu. Hoje estão dizendo que ele já era militante naquela altura.

RCCM: Provavelmente era. Mas não sei, não conheço a história dele.

MRV: O que sei é que ele era recém-chegado do Pará, que era “pobre”, ou seja, “não subversivo”. Por isso houve tanta comoção, por não se tratar de uma liderança do movimento estudantil.

RCCM: Para um adolescente do Pará, em 1968, a oportunidade de estudar estava no Rio ou em São Paulo. A Universidade Federal do Maranhão e a do Pará só tinham aulas em período diurno até pouco tempo atrás. Quem trabalhava, não entrava em Universidade Federal.

MRV: O José Guimarães, que foi assassinado na batalha da Maria Antônia, era secundarista.

RCCM: A ocupação da Maria Antônia estava cheia de secundaristas.

MRV: Os relatos da imprensa diziam que ele também estava ali por acaso.

RCCM: Não, as organizações de esquerda levaram secundaristas para a ocupação da Maria Antônia, assim como levaram para a manifestação do primeiro de maio de 1968, o Primeiro de Maio Vermelho. A segurança do grupo que ia cercar o Palanque do Primeiro de Maio era feita por secundaristas. Era dirigido por uma articulação sindical chamada Movimento Inter-sindical Anti-arrocho (MIA). Dentro do MIA, havia um lado bem radical, composto pela esquerda e pelos católicos, que tomaram a dianteira de tomar e depois derrubar o palanque. O governador e os dirigentes sindicais tiveram que fugir…

PERA: E nesse momento não teve nenhuma ação da polícia?

RCCM: Teve, claro. Teve a ocupação e teve a desocupação. O choque bateu em todo o mundo, foi bem violento, nada pacífico. Isso foi em maio. Depois, no meio do ano, em Contagem e Osasco, mas depois não se estendeu. Em 1967 e 1968, o PCB estava rachando. Já havia outras organizações políticas fora do Partidão desde antes. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) já existia desde o racha [da União Soviética] com a China. Os grupos trotskistas já existiam muito antes; desde os anos 1950 já eram grupos organizados: a Fração Bolchevique da Quarta Internacional, o Classe Operária Revolucionária Trotskista. Havia a Política Operária (POLOP), já em 1967-68, que tinha certa presença nos meios estudantis e intelectuais. A dissidência dentro do Partidão estava sendo criada naquela época, que era a facção do [Carlos] Marighella. Era um racha dentro do PCB que depois virou a Ação Libertadora Nacional (ALN). E tinha os grupos nacionalistas, que foram dando origem, com dissidências da POLOP, à VAR-Palmares e à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O MR-8 também era uma dissidência do Partidão. O Partido Operário Comunista (POC), por exemplo, foi uma mistura de duas coisas, parte da POLOP foi para o POC e, no Rio de Janeiro e no Rio Grande de Sul, eram dissidências do Partidão. Eram o Marco Aurélio Garcia, o Raul Ponte etc.

MRV: O Primeiro de Maio Vermelho teve relação com a Greve de Osasco?

RCCM: Teve. O pessoal que dirigiu a Greve de Osasco era dirigente do movimento sindical de Osasco. Parte deles era do MIA, a parte mais radical do movimento. O movimento nasceu como parte do que se chamava Comissão da COBRASMA, cuja origem é remota – tinha vários componentes, mas havia um componente católico muito forte, que durou muito tempo, inclusive depois da greve. Era um grupo católico de esquerda, que sempre foi forte em Osasco. E tinha uma parte que era dos padres operários e uma parte de advogados, ligados a uma corrente socialdemocrata cristã chamada Frente Nacional do Trabalho, cujo lema era inspirado nas ações não violentas de Gandhi e que teve grande importância na constituição da Comissão da COBRASMA. Esse pessoal venceu a eleição do sindicato. Então, no 1º de maio, eles já estavam na direção do sindicato, o [José] Ibrahim já era presidente do sindicato. A plataforma principal dos dirigentes de Osasco era multiplicar a criação de comissões de fábrica.

MRV: Que seriam a vanguarda do movimento?

RCCM: Era a vanguarda sindical, na verdade, porque eram comissões de negociação ou de pressão nos locais de trabalho, a chamada organização por local de trabalho.

MRV: A crítica que esse novo sindicalismo dirigia aos sindicatos ditos “pelegos” era sobre o fato de que esses sindicatos só negociavam na hora do dissídio, além de serem contra o arrocho, ou seja, pela melhoria do custo de vida, não somente em torno de reajustes percentuais.

RCCM: O dissídio significa basicamente o seguinte: toda categoria é dividida por ramo e base geográfica. Em São Paulo, tinha os metalúrgicos da capital, os de Osasco, os do ABC, e eram todos separados, Santo André, São Bernardo e São Caetano. Cada uma dessas categorias tinha a sua data de negociação do acordo anual. Para Osasco e capital, essa negociação ocorreria em novembro, para o ABC e interior, ocorreria em maio. Então, as negociações eram separadas. A Greve de Osasco acontece antes da negociação do dissídio. Normalmente, os sindicatos começam a fazer as primeiras reuniões em julho, agosto; quando chega outubro, ocorrem as assembleias maiores e a negociação patronal. Essa greve saiu bem antes, porque correspondia à dinâmica dessas lideranças, que ganharam o sindicato e possuíam uma base muito forte na COBRASMA, a fábrica mais importante de Osasco. Eles já constituíram núcleos em outras fábricas importantes, como a Charles Le Roy, a Brown Boveri, a OSRAM, a BRASEIXOS. Então, eles tinham uma dinâmica própria de mobilização, que aconteceu de estourar antes do dissídio. O movimento radicalizou-se para estourar antes de outubro.

MRV: Enquanto os operários tomavam consciência em seu local de trabalho, as lideranças transitavam entre as diferentes fábricas.

RCCM: A ideia da direção do sindicato, que nasceu a partir da Comissão da COBRASMA, era multiplicar as comissões de fábrica, ou de empresas.

MRV: Acho estranha a designação “empresas”, porque parece algo empresarial.

RCCM: Porque havia também um movimento empresarial para constituir comissões, que é o modelo norte-americano de sindicato: tentar se antecipar e criar um comitê domesticado. Mas a ideia da direção do sindicato era multiplicar as comissões de fábrica e o sindicato funcionar como um elo de integração das comissões, ou como expressão institucional, uma rede interfábricas. Essa era a dinâmica da direção do sindicato em Osasco. Por isso, a greve ocorreu separadamente de São Paulo. Em São Paulo, a direção sindical era bem policial, era outra coisa.

PERA: São Paulo ainda tinha os interventores…

RCCM: Eram os ex-interventores, que foram eleitos depois da primeira intervenção, em 1965 ou 1967, não me lembro bem. Os interventores foram nomeados em 1964, aí houve cassação de muita gente, prisões, desmantelamento do que existia. Depois, promoveram suas próprias eleições, em 1965, 1967, 1969 e outra em 1972, quando passou a ser trianual. Então, em São Paulo, ainda eram os interventores. Um famoso interventor, o “Joaquinzão”, Joaquim dos Santos Andrade, que foi presidente de sindicato durante muito tempo, de 1964 até 1988 ou 1987, só saiu para ser dirigente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), ou seja, um policial, um pelego, um informante… Esse era bem conhecido. Como eu disse, o movimento estudantil secundarista em Osasco era muito ligado ao movimento operário, porque grande parte dos dirigentes sindicais tinha participado do CEO.

MRV: Isso explicaria o fato de que, no 30º Congresso de Ibiúna, há essa polarização…

RCCM: Parte da direção da COBRASMA já militava em organizações de esquerda.

MRV: Pelo material que consultei, o MIA propunha fortalecer as vanguardas. Primeiro, elas vão para a clandestinidade enquanto os operários estão sendo politizados…

RCCM: Eu não sei se a clandestinidade foi uma escolha ou se foi uma imposição…

MRV: Como eles tinham uma força muito grande, supunham que, se não fossem para a clandestinidade, acabaria a organização.

RCCM: Ninguém pode ser da direção do sindicato ficando clandestino, isso é impossível. Esse foi um dos grandes dramas do movimento sindical. Você não pode organizar um movimento sindical clandestino, isso não existe em lugar nenhum do mundo. Nem na Rússia pré-soviética era assim, havia uma parte clandestina e uma parte legal, que combinava o trabalho legal e o extra-legal. Parte grande dessas pessoas já não tinha mais como ficar no movimento sem ser presa.

MRV: Então, não era uma tática…

RCCM: Não era. Para muitos, foi a única possibilidade de continuar fazendo política, eu acho.

MRV: Entre os estudantes, o racha maior era entre os maoístas, que defendiam a constituição de uma vanguarda armada.

RCCM: Não era bem assim, não. Tinha uma parte dos maoístas que ia ficar na legalidade, que concorreria a eleições…

MRV: Estou pensando se essa divisão interna na luta sindical não reproduzia aquela divisão que também acontecia na luta estudantil. Daí a semelhança das discussões…

RCCM: Quando houve essa radicalização, em particular com o AI-5 e com a organização de uma repressão mais profissional, digamos assim, para grande parte das pessoas que tinham se tornado mais visíveis, cair na clandestinidade era quase uma imposição. Contudo, nenhum movimento de massas se organiza na clandestinidade, senão haveria passeatas clandestinas, e isso não existe.

MRV: No 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes, apareceram as alas guevaristas e as alas maoístas…

RCCM: Havia dualidades desse tipo, mas não eram as únicas: transição por via pacífica ou transição via luta armada? Só havia um grupo que defendia a via pacífica, eleitoral, que era o PCB, e só.

MRV: Isso, havia dissidências, havia os guevaristas e os maoístas…

RCCM: Fora do Partido Comunista, havia outras dissidências, não eram só essas duas. Os maoístas eram a favor da combinação da luta legal e da luta extralegal. Com relação à luta armada, eles eram favoráveis à luta armada no campo. Os chamados foquistas, de influência castrista, mas reinterpretada através do Regis Debray, buscavam a formação de focos guerrilheiros nas cidades, a chamada guerrilha urbana, havendo uma porção de grupos que aderiram a isso. Tinha essa pulverização da esquerda, como grupos que não eram nem uma coisa, nem outra – como os grupos trotskistas tradicionais, que eram contra a teoria do foco. Se a memória não me trai, nessa época li Revolução na revolução, do Debray, numa edição clandestina traduzida pela VAR-Palmares em 1969. Portanto, esse livro devia ser já do final de 1968. Ninguém lia em francês naquela época, então a tradução era um sinal de que o livro circulava mais e de que, portanto, já era um tema relevante. Porque o grupo castrista mais importante, e que durou mais, foi a ALN, do Marighella, que tinha sua própria versão do foco guerrilheiro.

PERA: Entre o foquismo e o maoísmo, o que era mais debatido no movimento estudantil?

RCCM: Desde 1969, eu estava ligado com outra coisa, que não era o movimento estudantil, mas o que eu me lembro era de uma polêmica muito forte entre o PCdoB e as outras tendências – não só os foquistas, mas também os trotskistas –, que se referia à oposição entre as lutas específicas e localizadas e as lutas mais gerais.

PERA: E no movimento operário, como se dava esse debate?

RCCM: Fazer política dentro do sindicato operário em 1970 era mais ou menos como você gritar “Fluminense!” no meio da torcida do Flamengo: o clima não era favorável. Mas, entre os grupos que agiam dentro do movimento operário, o Partidão sempre teve uma política de trabalhar não somente dentro das estruturas dos sindicatos, tal como eles existiam na lei, os chamados sindicatos verticais, oficiais, mas também dentro das diretorias constituídas – inclusive com os pelegos e os interventores, negociar com eles.

MRV: A turma do MIA se opunha a essa linha.

RCCM: Sim, era outra orientação. O Partidão tinha essa linha, de botar gente dentro das diretorias pelegas e ficar lá “de submarino”. Já a linha da AP e das organizações próximas da Pastoral Operária etc. era de constituir oposições sindicais e movimentos paralelos aos sindicatos, atuando dentro deles. A política sindical mais clara nessa direção surgiu em São Paulo, tendo depois uma influência nacional muito grande: era um experimento basicamente da Igreja Católica com a Oposição Metalúrgica, o maior sindicato do Brasil na ocasião – um sindicato estratégico, porque tinha o núcleo da indústria mais importante do país, as grandes fábricas de autopeças, com cerca de 350 mil metalúrgicos. Ali se constituiu uma espécie de modelo de organização. Osasco era uma cidade pequena e tinha uma categoria bem pequena, mas teve essa coincidência de estarem concentrados numa fábrica e de haver uma vanguarda que tomou a direção do sindicato e, nessa altura, radicalizou. O que a Oposição Metalúrgica de São Paulo fez foi pegar essa experiência e tentar traduzi-la para uma coisa bem maior e mais diferenciada, que eram São Paulo e o resto do Brasil. Uma política de criar organizações por locais de trabalho e simultaneamente disputar as eleições sindicais. Então, era uma combinação das duas coisas. Não era uma coisa simples: no começo dos anos 1970 tinha gente que dizia que nem se deveria participar de eleições sindicais, porque isso expunha as lideranças a serem mapeadas, vigiadas, presas; e que se deveria construir uma espécie de estrutura paralela aos sindicatos e ignorá-los. Havia outra linha, que era a dos católicos, que consistia em fazer as duas coisas: obter uma participação nas assembleias e nas eleições sindicais e simultaneamente fomentar uma organização de base fabril, isso combinado inclusive com organizações dos bairros populares. Naquela ocasião, havia uma diferença muito radical entre os bairros populares ou operários e os bairros de classe média. Então, essa divisão dentro do movimento sindical foi se consolidando na experiência da Oposição Metalúrgica de São Paulo, que virou como que um padrão de ação, replicado depois em Osasco em 1972-73, em São José dos Campos, em Campinas, no interior de São Paulo, em Minas Gerais, no Rio, nos estados do Nordeste. Onde havia alguma concentração operária, esse modelo foi sendo propagado, inclusive com base na expansão das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja. Quando se constituiu o movimento pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), no final dos anos 1970 e no início dos 1980, essa facção da Igreja e da ultraesquerda representava pelo menos um terço dos grandes congressos. Então, era uma facção importante, grande, e um experimento diferente de organização.

MRV: Essas organizações também atuavam no meio estudantil, como a AP, a POLOP.

RCCM: Também. Toda organização de esquerda cultivava a velha noção bolchevique de que se deve ter uma política específica para cada segmento social. Tem que ter uma fração dentro do movimento estudantil. O PCdoB e a AP tinham uma que se chamava, salvo engano, Caminhando. Os trotskistas tinham duas ou três, porque o grupo maior no movimento estudantil era o Primeiro de Maio, que eram a Liberdade e Luta (LIBELU), o grupo do [Antônio] Palocci, e eu faço questão de dizê-lo, porque isso diz para onde eles iam. O Partidão também tinha uma organização em cada segmento. Quando teve a greve do ABC, em 1979, quem era o dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos da Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA)? Um técnico metalúrgico do Partidão – o nome dele era Arnaldo Gonçalves, se não me engano. Aqui, o Partidão só desapareceu do movimento sindical praticamente nos anos 1980, porque eles infiltraram muita gente nesse meio e os caras adquiriram sua autonomia. No movimento sindical de São Paulo, eles enfiaram gente na diretoria do Joaquinzão, já com cara própria, em 1981. Quem era esse dirigente do Partido Comunista escalado para ser a sombra do Joaquinzão? Um cara chamado Luiz Antônio de Medeiros, um ex-paraquedista amazonense recrutado pelo Partidão, educado na Patrice Lumumba, em Moscou, treinado e reimplantado no Brasil. Algum empresário simpatizante assinou a carteira dele aqui em São Paulo e ele virou metalúrgico e vice-presidente do sindicato em 1981. Então, era uma tática. Acho que, em 1984, ele encabeçou a chapa, porque o Joaquinzão já saiu do sindicato para ser dirigente do CGT, se não me engano. Ele era um ex-militante do Partidão, mas, naquela ocasião, dizia pouco isso, porque o Partidão estava rachando naquela época – racha entre o Prestes e o Comitê Central, aquela briga toda –, então ele ficava fazendo o jogo. Depois, ele se tornou outra coisa, mas a política do Partidão era essa, de compartilhar…

MRV: Um pacto com as elites… Parece que, nessa questão, diferia em relação aos estudantes, porque a impressão que tenho é que o Partidão não tinha mais atuação dentro do movimento, porque aí vieram as dissidências e as organizações armadas.

RCCM: Não sei. Mas talvez tivesse militantes do Partidão fora de São Paulo, porque São Paulo talvez fosse muito diferente, muito radicalizado. Mas em outros lugares pode ser… O que sei é como eles se moviam dentro do movimento operário. O Partidão tinha essa linha e o PCdoB tinha uma linha um pouco diferente – também procurava se articular aqui e ali com os pelegos, mas tinha uma política muito própria. Na verdade, o PCdoB namorou mais a Igreja do que os pelegos. Tinha um dirigente do PCdoB aqui que foi importante, que foi eleito deputado, um cara interessante. Chamava-se Aurélio Peres, dirigente do Movimento do Custo de Vida. Ele chegou a ser coordenador-geral da Pastoral Operária – para você ver como o PCdoB se infiltrava. A Irma Passoni, da AP, de uma parte da AP que estava entrando no PCdoB, era religiosa, uma figura importantíssima dentro da estrutura da Igreja aqui em São Paulo, grande organizadora, muito esperta.

PERA: Uma coisa que aparece muito nos documentos das CEB é essa ideia de que o espaço da Igreja seria um dos espaços democráticos para se debater política, e às vezes aparece aquela questão de que era mais fácil fazer isso nas CEB do que nos sindicatos…

RCCM: Escrevi um capítulo para um livro, que vai sair em breve, sobre São Paulo e a Operação Periferia. Foi uma invenção do Paulo Evaristo [Arns], que queria reinventar a Comissão de Justiça e Paz, botar nela gente nova, um pessoal da Zona Leste – como o bispo Angélico Sândalo Bernardino, que era um cara muito bom, muito inteligente, e que era muito ligado à esquerda operária dos grupos sindicalistas da Igreja. Então, a comissão começou a ser reorganizada e o Evaristo fez uma operação arriscada, muito corajosa. Ele enfrentou a direção da Arquidiocese e vendeu um imóvel valiosíssimo, que ocupava um quarteirão inteiro em Paraíso, onde ficava o Palácio Episcopal. Vendeu aquilo tudo e foi morar numa casinha, pegou todo esse dinheiro e investiu na compra de imóveis, terrenos e barracões na periferia, para instalar centros culturais alternativos que deveriam servir, ao mesmo tempo, como paróquias, igrejas ou templos e espaços para atividades culturais, dos mais variados tipos, desde teatro e música “até o que você quiser”. Foi aí que tudo começou. Isso foi importantíssimo, porque foi por aí que entraram os padrecos de esquerda, a Teologia da Libertação, as CEB etc. Era ali que se reuniam os movimentos populares da eucaristia, o movimento de saúde da Zona Leste, os clubes de mães da periferia, os grupos sindicais, da Pastoral Operária e da Oposição Sindical e assim por diante. Então, esses eram lugares físicos, meio que santuários, porque tinha aquele negócio de que havia uma certa garantia de que, se eles se reunissem lá, a polícia não entraria imediatamente e ali sempre tinha lugares para se reunir, tinha pessoas que se reuniam e que podiam ser recrutadas. Vários deles tinham um instrumento fundamental na época, que se chamava mimeógrafo. Muitos dos panfletos sindicais, do movimento da eucaristia, da oposição sindical foram rodados nos mimeógrafos dessas paróquias. Isso teve uma importância quando eu estava em São Paulo; em 1972-73 isso começa a se propagar e o Dom Paulo meio que vendeu o peixe para o resto do país, para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Aí começou a surgir, na baixada fluminense, no Vale do Paraíba, em Campinas, em Santarém, em Belo Horizonte, Contagem e assim por diante. É aí que a esquerda católica cresce e é por isso que uma das três vertentes da origem do Partido dos Trabalhadores (PT) e da CUT era a esquerda católica.

PERA: Também é um grupo que consegue divulgar bastante as suas ideias. Lembro de textos que o Plínio de Arruda Sampaio publica entre 1978, 1980…

RCCM: Mas aí já estava mais liberalizado. Em 1972, mais ou menos, eu fui à casa do Plínio com um amigo meu que era metalúrgico, o Vito Giannotti. Não me lembro da data exata, mas foi no começo de 1972, porque ele era membro da Comissão de Justiça e Paz e a conversa era justamente sobre abrir as paróquias para as reuniões da Oposição Metalúrgica, para ter lugar para se reunir nos bairros. São Paulo é deste tamanho e a sede do sindicato ficava no centro. Ninguém queria se reunir na sede para não dar sopa para a direção ficar vigiando. Então, era mais fácil, e mais interessante, ter locais descentralizados para se reunir. Na verdade, isso estava sendo estimulado desde cima, pelo Dom Paulo, através do que se chamava Operação Periferia.

MRV: E esse contexto dialoga com a herança da Greve de Osasco?

RCCM: A Greve de Osasco surge antes de todo esse crescimento da Pastoral Operária. Contudo, ela já era muito herdeira de um movimento de renovação da Igreja, que começou com o Concílio do Vaticano, do Papa João XXIII, depois do Episcopado Latino-Americano em Puebla (México), que marca o surgimento da Teologia da Libertação. Havia também uma vasta corrente de padres operários que foi se espalhando muito fortemente pelo Brasil (como também na Argentina, na Espanha, no México, entre outros países). O que houve em São Paulo em 1972 foi um movimento importantíssimo, primeiro porque era o principal núcleo industrial do país e também porque era um movimento organizado em larga escala. Os padres operários trabalhavam em fábricas e tinham suas paróquias em bairros operários, funcionando como estimuladores. Em Osasco, havia esse movimento. Tinha um Centro de Defesa dos Direitos Humanos que existia desde 1966 ou 1967, se não me engano, e esse grupo de católicos reformistas, moderados, formava uma base.

MRV: Hoje haveria em Osasco alguma raiz desse movimento, cinquenta anos depois de 1968?

RCCM: Não. Daquele movimento de 68, conheço duas ou três lideranças que pertenciam à comissão da COBRASMA, mas eles já são senhores…

MRV: Então, não existiria nenhum traço daquele tipo de organização sindical hoje?

RCCM: Não conheço bem os dirigentes sindicais dos metalúrgicos de Osasco de hoje em dia, até porque categorias profissionais aparecem e desaparecem… Mas a diretoria do sindicato dos metalúrgicos, que eu me lembre, hoje, está na Força Sindical (FS). Entretanto, é uma ala da FS crítica à linha do Paulinho [da Força], mais alinhada com um dirigente da Força de apelido Juruna, um antigo militante católico de esquerda, da Juventude Operária Católica (JOC), depois Ação Católica Operária (ACO). O Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco tem uma direção alinhada com a facção dele na FS. Vários dos dirigentes são também filiados ao PT. É um negócio meio confuso, mas alguns deles têm uma relação meio que simbólica, ou nostálgica, com os dirigentes de 68. O movimento hoje é outra coisa, as fábricas mudaram, as categorias se transformaram brutalmente, as questões mudaram…

MRV: Então há sobreviventes do movimento, mas nenhuma herança…

RCCM: Sim, o movimento sindical dos anos 1970 hoje não tem mais espaço. Aconteceram duas coisas brutais depois dos anos 1980 no mundo inteiro – e também no Brasil, embora com um pouco de atraso – que transformaram toda a classe trabalhadora. Primeiro, a automação, num sentido mais geral, pois a automação é uma questão muito ampla, que vai desde o emprego de máquinas e ferramentas com controle numérico, nas quais o torneiro se converte num programador do maquinário… Então, a automação é brutal, no sentido de diminuir o tamanho da classe trabalhadora, para desorganizá-la e separá-la geograficamente. O segundo processo é a reengenharia das empresas, a subcontratação, os empregos temporários etc., que vão fragmentando a classe trabalhadora. A Volkswagen tinha quase quarenta mil trabalhadores no final dos anos 1970, a população de uma cidade; hoje, acho que não tem dez mil. Em parte por causa da automação, porque, no lugar do torneiro, entraram robôs e não tem mais soldadores, porque eles foram substituídos por máquinas controladas numericamente, mas não é só isso. A Volks tinha quarenta mil, porque o pessoal do refeitório era considerado trabalhador; portanto, eles eram representados pelo sindicato dos metalúrgicos. O pessoal que trabalhava no transporte, na logística, na vigilância, na administração, na propaganda, no setor de revendas etc., era considerado metalúrgico. A partir dos anos 1980, a reengenharia da empresa significou uma saída desses profissionais e sua recontratação por uma empresa que faz o serviço para ela. O lançamento de dados da Volks hoje não é feito por ela, mas por uma empresa que vende esse serviço; então, esses empregados não são mais metalúrgicos, mas empregados do setor de serviços. Quanto aos trabalhadores da vigilância, idem, e assim por diante. Então, há uma consumação brutal da classe trabalhadora; ela não se reúne mais nos sindicatos ou não é mais atingida pelas negociações do sindicato. É outra vida.

MRV: Isso também aconteceu nas universidades…

RCCM: Em todo lugar teve terceirização…

MRV: Em geral, as funcionárias terceirizadas são mais politizadas do que as funcionárias contratadas…

RCCM: Sim, do setor de limpeza, vigilância. Mas, no meio fabril, a terceirização foi muito mais forte, foi como um vendaval que transformou brutalmente a classe trabalhadora, não apenas brasileira. Aliás, esse fenômeno começou no final dos anos 1970 nos Estados Unidos e se propagou. Então, a classe trabalhadora de hoje tem outro perfil, outros hábitos. Os bairros operários também mudaram: nos anos 1970, não havia asfalto nem água encanada, era praticamente um inferno. Outra mudança importante foi o avanço das igrejas evangélicas nos bairros periféricos de São Paulo, que não existiam na década de 1970. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foi fundada em 1978. Diferentemente da Igreja Católica, e mesmo da IURD, que são extremamente hierarquizadas, essas pequenas igrejas podem ser multiplicadas por qualquer um que tenha brigado com o pastor de sua antiga igreja. Elas funcionam numa lógica de franquias. Isso muda completamente toda a vida local. Três vezes por semana, as pessoas estão lá, elas vão aos cultos de sábado e domingo, mas também vão nos dias da semana, porque tem curso de corte e costura, tem grupos de mães, de jovens. São centros culturais — aquilo que o Dom Paulo fez nas periferias de São Paulo, e isso não foi casual. O que aconteceu em 1979, no plano mundial? Foi eleito o Papa João Paulo II, o Karol Wojtyla. Qual era o objetivo central do Wojtyla? Acabar com o Leste e com a Teologia da Libertação no terceiro mundo. Dez anos depois, ele conseguiu isso, abrindo o flanco para as [igrejas] neopentecostais. Foi planejado. A JOC, por exemplo, que é dos anos 1920 e que nasceu na Bélgica, carregava o ideário dos católicos europeus que pretendiam disputar com os comunistas o espaço operário. A JOC e a ACO tinham uma política que se resumia a uma frase: “ver, julgar e agir.” Observar a realidade, posicionar-se e criar uma alternativa. A alternativa tinha que ser orientada por outra frase: “quem mastiga sente o gosto.” Então, tinha uma política de estimular as pessoas a fazerem as coisas por si próprias, porque elas sentiriam o gosto da coisa e se tornariam replicadoras. Por isso, os maoístas eram muito próximos deles, por causa das metáforas, do modo de falar etc. É o que agora chamam de “empoderamento”. Essa era uma estratégia de expansão inteligente. Não deu certo por acaso, foi pensado e baseado numa ideia muito simples: as pessoas aprendem através de histórias, de parábolas e, através do exemplo, vão praticando junto…

MRV: Então 68 seria para você algo anacrônico?

RCCM: O que era o movimento estudantil em 68? Cento e vinte mil pessoas no eixo Rio-São Paulo, um pouco em Minas, no Rio Grande do Sul. Hoje temos oito milhões de estudantes no Ensino Superior. O perfil também mudou, dois terços daqueles cento e vinte mil eram de universidades públicas e o outro terço era de universidades privadas, que eram confessionais. Universidade privada era a PUC-SP, o Mackenzie, a Metodista, era isso. Mudou tudo, o tamanho do movimento e sua distribuição. O que era o ensino secundário em 68? Para entrar na escola era preciso sorte. Em 68, escola boa era escola pública, os colégios particulares eram para vagabundos, que não conseguiam ingressar nas escolas públicas. Hoje é o contrário, né? Então, o movimento, nesse novo contexto, tem de ser outro. Em 68, eram as elites que estudavam nas escolas públicas. No bairro onde nasci, não havia escola primária até 1965. Isso vale para as escolas, para as universidades, para as empresas, para as igrejas, vale para tudo.

MRV: Então, 68 ficou em 68?

RCCM: São mudanças muito grandes na sociedade, por isso não dá para imaginar que se vai recriar aquele movimento. É claro, o movimento estudantil de hoje tem outro perfil. Acredito que todo mundo que entrou para o movimento entre 1966 e 1968 desapareceu porque foi para o exílio e perdeu qualquer contato com a realidade. Quem ficou por aqui viu a mudança acontecer devagarinho e foi se adaptando a ela. Já os que saíram começaram a achar que eram “Imperador do Senegal”… Enfim, a realidade muda e os movimentos também.

Notas

  • 1
    Celso Lungaretti foi militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no final dos anos 1960, quando foi preso político. Após sua prisão, em 1970, escreveu textos e entrevistas que denotavam seu arrependimento e recusa de participação na luta armada.

Referências

  • CARDOSO, I. Para uma crítica do presente São Paulo: Editora 34, 2003.
  • MORAES, R. C. C. Universidade hoje – ensino, pesquisa, extensão. Educação & Sociedade, Campinas, v. 19, n. 63, p. 19-37, ago. 1998. https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000200003
    » https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000200003
  • MORAES, R. C. C. Estado, desenvolvimento e globalização São Paulo: Editora Unesp, 2006
  • MORAES, R. C. C. Educação superior nos Estado Unidos – história e estrutura. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
Editor de Seção: Nelson Cardoso do Amaral

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2021
  • Aceito
    01 Fev 2022
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