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COMISSÕES DE HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL: POR QUEM OS SINOS DEVERIAM DOBRAR?

RACIAL HETEROIDENTIFICATION COMMITTEES: FOR WHOM SHOULD THE BELL TOLLS?

COMITÉS DE HETEROIDENTIFICACIÓN RACIAL: ¿POR QUIÉN DEBEM DOBLAR LAS CAMPANAS?

RESUMO

Neste texto, dedicamo-nos aos princípios orientadores das comissões de heteroidentificação na concorrência às vagas reservadas às pessoas negras nas instituições públicas de Ensino Superior. Partindo da diferenciação conceitual entre “autoidentificação” (da ordem do ser) e “autodeclaração” (da ordem do fazer), analisaremos a possibilidade de invalidação das autodeclarações raciais por aquelas comissões. Com fundamento no direito antidiscriminatório, faremos um cotejamento entre a experiência acumulada das comissões de heteroidentificação no contexto racial e os desafios que já surgem na implementação de políticas de ações afirmativas no contexto de identidade de gênero. Concluímos que o resultado das comissões de heteroidentificação não invalida as autoidentificações raciais, mas tão somente as autodeclarações, sendo uma forma de controle social da política pública de ações afirmativas no Ensino Superior.

Palavras-chave
Autoidentificação; Autodeclaração; Comissão de heteroidentificação; Letramento racial; Identidade de gênero

ABSTRACT

In this text, we dedicate to the guiding principles of hetero-identification commissions in competition for places reserved for black people in public Higher Education institutions. Differentiating the concepts of ‘self-identification’ and ‘self-declaration,’ based on the idea of structural racism, we analyzed the possibility of invalidating racial self-declarations by those commissions. Based on anti-discrimination law, we will compare the accumulated experience of heteroidentification commissions in the racial context and the challenges that already arise in the implementation of affirmative action policies in the context of gender identity. We conclude that the result of the hetero-identification commissions does not invalidate racial self-identifications, but only racial self-declarations, being a form of social control of the public policy of affirmative action in higher education.

Keywords
Self-identification; Self-declaration; Hetero-identification commission; Racial literacy; Gender identity

RESUMEN

En este texto nos dedicamos a los principios rectores de las comisiones de heteroidentificación en competencia por plazas reservadas para negros en instituciones públicas de educación superior. Diferenciando los conceptos de “autoidentificación” y “autodeclaración”, partiendo de la idea de racismo estructural, analizamos la posibilidad de invalidar las autodeclaraciones raciales de esas comisiones. Con base en la ley contra la discriminación, compararemos la experiencia acumulada de las comisiones de heteroidentificación en el contexto racial y los desafíos que ya se presentan en la implementación de políticas de acción afirmativa en el contexto de la identidad de género. Concluimos que el resultado de las comisiones de heteroidentificación no invalida las autoidentificaciones raciales, sino solo las autodeclaraciones raciales, siendo una forma de control social de la política pública de acción afirmativa en la educación superior.

Palabras-clave
Autoidentificación; Autodeclaración; Comisión de heteroidentificación; Alfabetización racial; Identidad de género

Introdução

Morando na cidade de Mariana, em Minas Gerais, rodeada por igrejas barrocas que nos relembram nosso passado colonial, o toque dos sinos das catedrais é mais do que mera manifestação da tradição.1 1 O Toque dos Sinos em Minas Gerais foi registrado como bem cultural imaterial em 2009 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que reconheceu o som dos sinos como Patrimônio Cultural do Brasil. Ver http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/dossie16_toquedossinos.pdf e http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/69/. Agradecemos ao Professor Carlos Magno de Souza Paiva pela contribuição sobre o patrimônio cultural. É uma arte de comunicação. O canto dos sinos cumpre, entre outras, a missão de celebrar a vida e chorar a morte, em um sinal de reverência àqueles que partiram e à sua importância. A expressão “por quem os sinos dobram” foi usada anteriormente em outras ocasiões e aqui a retomamos como metáfora.

Tomando consciência da morte é que o clérigo John Donne usou, pela primeira vez, essa expressão em suas Devotions upon Emergent Occasions (1624). Em 1940, o escritor Ernest Hemingway a utilizou como título de um de seus livros, cujos temas centrais são a finitude e a humanidade. Em 1979, a expressão foi utilizada por Raul Seixas no título e na letra de uma música do seu nono álbum. Em 1984, a banda de rock Metallica também gravou uma música, em seu álbum Ride the Lightning, com o título For Whom The Bell Tolls. Diante da escravização ocorrida no Brasil, bem como do atual genocídio do povo negro brasileiro, compreendido a partir das contribuições da obra de Abdias do Nascimento (2016), propusemo-nos a perguntar “por quem os sinos dobram e por quem deveriam dobrar?” no tocante ao direito fundamental à educação no Ensino Superior do Brasil.

A metáfora dos sinos será mobilizada a partir do contexto do racismo estrutural brasileiro, apontando para o fato de que, também no âmbito educacional, as vidas e corpos negros importaram menos ao longo da nossa história. Justamente para reparação e alcance da equidade racial no ensino público superior é que existem as ações afirmativas de recorte racial e é pelas pessoas negras que esse sino deve dobrar.

Diante dos 388 anos de escravização, é preciso assumir nossa responsabilidade ética intergeracional por essa tragédia humanitária brasileira. Para qualquer consideração sobre os direitos da população negra no Brasil, é necessário começar pela escravização das pessoas trazidas forçosamente para o país por ocasião da colonização. Fomos uma sociedade escravocrata que legou à contemporaneidade uma forma de vida social que constitui e estrutura nossas relações sociais. Esse fenômeno, como forma de produção e reprodução na vida social, está originariamente vinculado à forma capitalista da produção material da vida, afinal, “sem o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido” (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 59). Como parte da estrutura das relações sociais brasileiras, o racismo está implícito (e, tantas outras vezes, está escancarado) nas relações interpessoais e institucionais, sendo quase naturalizado como uma ordenação social inerente à própria cultura.

Partindo da constatação de que vivemos em uma sociedade racista, a argumentação adotará a perspectiva do Direito Antidiscriminatório (MOREIRA, 2020MOREIRA, A. J. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020. v. 1.), cujo princípio é “[...] a necessidade de eliminação de práticas sociais que produzam desvantagens para as pessoas” (MOREIRA, 2017MOREIRA, A. J. O que é discriminação?. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito/Justificando, 2017., p. 197). Ainda segundo o autor,

[...] o ponto central desse preceito está na sua importância na proteção de grupos sociais. Ele estabelece uma correlação direta entre desvantagem social e o pertencimento a grupos minoritários, o que o leva a afirmar que a existência social como membro de certas comunidades tem prioridade sobre a existência social como indivíduo na análise da igualdade

(MOREIRA, 2017MOREIRA, A. J. O que é discriminação?. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito/Justificando, 2017., p. 197).

Se, por um lado, as políticas de ações afirmativas são formas de redução das desigualdades em diversos contextos sociais, por outro, elas causam algumas polêmicas nas sociedades que as adotam. Pode-se, contudo, afirmar que um dos pontos comuns entre as diferentes modalidades de ação afirmativa é a dimensão política, compreendida tanto como a luta por reconhecimento de parcelas sociais marginalizadas2 2 Por “marginalizada” queremos referir tanto às pessoas que estão às margens do acesso aos bens produzidos pela sociedade por figurarem como outsiders do sistema de produção capitalista quanto àquelas que, mesmo incluídas economicamente naquele sistema de produção, sofrem alguma diminuição no seu status de cidadania por outras razões, por exemplo questões de raça e gênero. quanto como a ação efetiva do Estado no tocante a alocação e distribuição de bens/recursos/oportunidades aos cidadãos e cidadãs. Nesse último sentido, as ações afirmativas são políticas públicas que visam transformar a estrutura da sociedade, concretizando alguma ideia de justiça social.

Resultado da luta do movimento negro brasileiro, as ações afirmativas de reserva de vagas nas instituições públicas de Ensino Superior têm por objetivo último reduzir as desigualdades sociais, como forma de políticas de inclusão para pessoas negras. Conforme Santos (2021a, p. 14)SANTOS, S. A. Comissões de heteroidentificação étnico-racial: lócus de constrangimento ou de controle social de uma política pública? O social em questão, Rio de Janeiro, v. 2, p. 11-62, 2021a. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/52256/52256.PDF. Acesso em: 27 jul. 2021. https://doi.org/10.17771/PUCRio.OSQ.52256
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, nas ações afirmativas implementadas pela Lei n. 12.711/12, a reserva de vagas é, inicialmente, social para estudantes da escola pública. Somente em um segundo momento é que a reserva é aplicada às pessoas negras, razão pela qual o autor defende que elas sejam “subcotas”. Um importante aspecto das ações afirmativas,3 3 Os argumentos em defesa de tal política são, em síntese, três: 1) reparação histórica em relação ao passado de escravização no país, no qual ascendentes das pessoas negras foram privados de quaisquer possibilidades de desenvolvimento laboral, educacional e patrimonial pois estavam alijados da própria condição de seres humanos; 2) correção das distorções referentes aos exames de ingresso nas universidades em razão das diferenças existentes entre as formações no ensino de segundo grau; e 3) promoção de maior diversidade no ambiente acadêmico, garantindo que a convivência entre pessoas brancas e negras possa representar melhor a estrutura social e permitindo que todos aprendam a partir dessa convivência e de compartilhamentos, além de fomentar o ingresso de profissionais negros no mercado de trabalho após a graduação, tornando-o também mais diverso e representativo. relacionado ao marcador social4 4 “Marcadores sociais” se relacionam com os padrões de socialização do indivíduo que produzem interferência direta no campo das escolhas disponíveis para as pessoas no interior da sociedade. Agradecemos a Ana Claudia Lopes pelo diálogo sobre o termo. raça, é a necessidade de validação da autodeclaração racial firmada pelas pessoas que concorrem às vagas reservadas no Ensino Superior em instituições públicas.

O termo “autodeclaração” está previsto no art. 1º, inciso IV, do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010), no art. 3º da lei de cotas do Ensino Superior (Lei n. 12.711/2012) e no art. 2º da lei de cotas no serviço público (Lei n. 12.990/2014). O termo também está presente na Recomendação n. 41 do Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL, 2016aBRASIL. Recomendação n. 41, de 9 de agosto de 2016. Define parâmetros para a atuação dos membros do Ministério Público brasileiro para a correta implementação da política de cotas étnico-raciais em vestibulares e concursos públicos. Brasília, DF: Conselho Nacional do Ministério Público, 2016a. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas/norma/4343/. Acesso em: 27 jul. 2021.
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) e na Portaria Normativa n. 04 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (BRASIL, 2018BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 41. Relator: Min. Roberto Barroso. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 17 ago. 2017.).

Analisaremos um efeito produzido pela implementação da política de ações afirmativas prevista na Lei n. 12.711/2012:5 5 Abordamos aqui apenas as comissões de heteroidentificação racial nas instituições públicas de Ensino Superior. a adoção de comissões de heteroidentificação, como espécie de comissão administrativa, para validação da autodeclaração racial firmada para ingresso na universidade pública por meio de vagas reservadas às pessoas negras. Especificamente, pretendemos explicitar os limites da atuação dessas comissões quanto ao seu resultado, argumentando que esse não deve alcançar a dimensão subjetiva da autoidentificação de alguém como pessoa negra, mas tão somente a sua autodeclaração, após verificação do critério fenotípico. Para tanto, é necessária a distinção conceitual.

Aproveitaremos esta análise para fazer uma aproximação dos conceitos de autoidentificação e autodeclaração nos contextos de raça e identidade de gênero, com o objetivo de produzir uma argumentação com dupla implicação. A primeira será uma defesa das comissões de heteroidentificação como medida de controle das políticas de ações afirmativas. A segunda será um apontamento no sentido de que o conhecimento produzido e acumulado pelas comissões de heteroidentificação no contexto racial pode contribuir para o contexto das identidades de gênero.

A Autoidentificação e a Autodeclaração nos Contextos de Raça e das Identidades de Gênero

A interseção entre o contexto racial e de identidade de gênero pode lançar luzes sobre a possibilidade de as pessoas fazerem afirmações sobre si mesmas como parte constitutiva do seu “direito de ser”, conforme aponta Ludmilla Camilloto (2019)CAMILLOTO, L. S. B. Direito de ser: diálogos e reflexões sobre o reconhecimento das identidades trans. Belo Horizonte: Conhecimento Livraria e Distribuidora, 2019.. Contudo, quais seriam as implicações da autoidentificação e da autodeclaração nesses diferentes contextos?

Por “autoidentificação”6 6 Agradecemos à Professora Kassandra da Silva Muniz, pelo diálogo sobre a importância linguística dos termos utilizados nesse debate. nos referimos à identificação subjetiva e particular do sujeito sobre um ou mais aspectos de sua identidade, seja no que diz respeito ao seu pertencimento racial ou ao reconhecimento de seu gênero e de sua sexualidade (identidade de gênero e orientação sexual). Para se autodefinir, basta que o próprio sujeito identifique a si mesmo de determinada forma, mesmo que não a exteriorize.7 7 Não é raro encontrarmos pessoas que passam a vida cientes de sua identidade LGBTQIA+, mas que, por força dos preconceitos existentes e do receio de violências diversas, não a externalizam. Nesse sentido, mesmo que essa pessoa se reconheça como gay, lésbica, bissexual (ou outra orientação sexual) ou como uma pessoa trans (ou outra identidade de gênero), pode não vivenciar explicitamente sua identidade. É importante lembrar que primamos pelo direito de cada um ser como é. Trata-se de sua percepção autônoma, seu sentimento e sua consciência de si. A autoidentificação dos sujeitos advém do exercício da liberdade de autodeterminar quaisquer aspectos de sua identidade, tais como étnico-racial, sexual e de gênero ou religioso. A autoidentificação é da ordem do ser.

Por “autodeclaração” nos referimos a uma manifestação que vai além da identificação subjetiva e particular, na qual o sujeito manifesta “publicamente” algum aspecto de sua autoidentificação. Nesse caso, ele exterioriza sua autoidentificação para o conhecimento de outrem, declarando-a em alguma oportunidade de sua vida. Exemplos de autodeclaração podem ser encontrados no censo do IBGE, na candidatura à cota racial ou para pessoas trans em uma universidade pública, ocasiões em que o sujeito informa sua raça ou identidade de gênero, ou, ainda, ao declarar seu gênero na solicitação de alteração de seu registro civil e/ou ingresso no processo transexualizador do SUS para modificações corporais. A autodeclaração, assim, é da ordem do fazer.

Como pertencente à ordem do fazer, a autodeclaração é um documento firmado por ato volitivo do próprio interessado e que diz respeito a uma situação para um determinado fim. Autodeclarar-se é uma prática conhecida e utilizada por diversos campos do Direito. Por exemplo, no sistema judicial brasileiro, a declaração de hipossuficiência financeira é uma autodeclaração feita pelo cidadão informando que não possui condições econômico-financeiras para pagar as despesas processuais cobradas pelo Estado (BRASIL, 2015BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 27 jul. 2021.
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). A primeira característica dessa declaração é que ela possui presunção relativa de veracidade, isto é, a autodeclaração de “ser pobre em sentido legal” pode ser questionada e invalidada no curso do processo judicial. A segunda é que seu conteúdo não significa o atestado de uma posição absoluta em relação à pobreza. Não se trata de uma análise econômica detalhada nem de um encaixe em padrões de riqueza e pobreza estabelecidos por órgãos governamentais (por exemplo, do IBGE). Essa declaração diz respeito à compreensão do declarante em relação à sua realidade econômica diante dos valores cobrados pelo Estado brasileiro para o desenvolvimento do processo judicial. Desta forma, a autodeclaração de pobreza é um documento que configura uma condição necessária, mas não é suficiente à concessão dos benefícios da justiça gratuita, podendo não ser acatada pelo magistrado.

No tocante ao contexto racial, a Lei n. 12.711/2012 consagrou a autodeclaração para titularização das pessoas negras (pretas e pardas) à reserva de vagas. O direito de se autodeclarar publicamente como sendo uma pessoa negra está relacionado com a autonomia que todo indivíduo possui de dizer algo sobre si mesmo. Registre-se, por oportuno, que a autodeclaração da identidade racial é uma conquista muito importante do Movimento Negro brasileiro e que deve, prima facie, ser reconhecida publicamente.

Após a aprovação da lei de cotas, a administração pública começou a implementá-la, especificando as vagas reservadas às pessoas negras nos referidos editais e enfrentando as dificuldades diante da realidade social brasileira estruturada racialmente.8 8 O processo de racialização da sociedade não diz respeito somente às pessoas negras, uma vez que as pessoas brancas também são racializadas. Também é importante destacar que, num país continental como o Brasil, o contexto social é constituído pela diversidade populacional e cultural que complexifica a análise sobre o processo de racialização. Nesse sentido, há esforços intelectuais e práticos na construção de um diálogo de amplitude nacional, por exemplo os I e II Seminários Nacionais Políticas de Ações Afirmativas nas Universidades Brasileiras, realizados pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), respectivamente. As universidades públicas estavam diante dos desafios políticos e jurídicos inerentes à implementação da política de ações afirmativas. Em resposta administrativa às denúncias de fraudes recebidas, emergiu a figura das “comissões de heteroidentificação”, cuja proposta é validar a autodeclaração fornecida pelo/a candidato/a concorrente à vaga na modalidade reservada. As referidas comissões não possuem o objetivo de suprimir, reduzir ou afastar a autoidentificação do sujeito, mas de validar a autodeclaração emitida exclusivamente para fins de acesso à vaga reservada no Ensino Superior.

Nesse contexto, a autodeclaração firmada por uma pessoa socialmente reconhecida como branca, que não sofre, portanto, preconceito racial, caso não seja verificada, implicará a exclusão dos sujeitos titulares da política de ação afirmativa: as pessoas negras. A não conformidade da autodeclaração racial produz danos aos direitos da população negra, que fica excluída das políticas públicas distributivas.

As comissões de heteroidentificação racial têm, portanto, a finalidade de garantir a integridade da política de ações afirmativas, como forma de efetivação do princípio antidiscriminatório. Elas não afastam a possibilidade de uma pessoa autoidentificar-se negra, não afetando sua identidade ou seu pertencimento racial, sua história familiar e de seus ascendentes, seus agrupamentos sociais em razão da raça autoidentificada e sua eventual filiação aos costumes, tradições, trajes e/ou religiões de matrizes africanas. Esses aspectos são exclusivamente de ordem subjetiva. Também segue inalterada a sua identidade informada no censo demográfico realizado pelo IBGE, no qual a pessoa declara, com total e inconteste autonomia, sua raça em uma das cinco categorias previstas (brancos, pardos, pretos, amarelos e indígenas).

Há que se considerar nesta discussão duas situações distintas: 1) a primeira diz respeito àquela pessoa que faz a autodeclaração com a intencionalidade explícita de fraudar a política de ações afirmativas; e 2) a segunda diz respeito às pessoas que se declaram pardas por acreditarem que não são nem negras nem brancas, ou seja, não se dão conta de que o pardo faz parte da categoria político-jurídico-social de pessoa negra.9 9 A experiência acumulada com as bancas de heteroidentificação racial permite fazer essa distinção com segurança. Quando não há intencionalidade, a autodeclaração de pessoa parda firmada por pessoa branca decorre da falta de uma compreensão adequada das relações étnico-raciais, bem como da finalidade da legislação. Enquanto na primeira situação existe má-fé, na segunda entendemos que haja uma ausência de letramento racial. Nos dois casos, a atuação administrativa das comissões de heteroidentificação não invalidam a autoidentificação baseada na autonomia e na experiência social dos sujeitos, mas dizem respeito apenas à titularização de sujeitos diante da política pública de ação afirmativa racial, sendo um importante mecanismo de controle social e de evitação de fraudes, quer por ação intencional, quer por falta de compreensão do pleiteante.

Destaca-se que a ausência de um procedimento administrativo padronizado e com regência normativa uniforme para todas as universidades públicas foi diagnosticado por Camilloto e Oliveira (2020)CAMILLOTO, B.; OLIVEIRA, R. C. Comissões de heteroidentificação étnico-racial de autodeclaração no sistema de cotas para negros e negras: divergências, convergências e efetividade. Revista Ensaios e Pesquisas em Educação e Cultura, Rio de Janeiro, v. 5, p. 86-100, 2020. e Santos (2021b)SANTOS, S. A. Mapa das comissões de heteroidentificação étnico-racial das universidades federais brasileiras. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, [s. l.], v. 13, n. 36, p. 365-415, maio 2021b. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1255. Acesso em: 27 jul. 2021. https://doi.org/10.17771/PUCRio.OSQ.52256
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, apontando que, diante da falta de regulamentação específica, as universidades públicas acabaram experimentando diversas formas de realizar a heteroidentificação. Sales Augusto dos Santos (2021b)SANTOS, S. A. Mapa das comissões de heteroidentificação étnico-racial das universidades federais brasileiras. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, [s. l.], v. 13, n. 36, p. 365-415, maio 2021b. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1255. Acesso em: 27 jul. 2021. https://doi.org/10.17771/PUCRio.OSQ.52256
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, em seu trabalho “Mapa das comissões de heteroidentificação étnico-racial das universidades federais brasileiras”, faz uma sistematização e propõe uma cartografia do funcionamento dos procedimentos de heteroidentificação adotados pelas universidades públicas.

A constitucionalidade da Lei n. 12.711/2012 e a legalidade das comissões de heteroidentificação já foram decididas pelo STF no julgamento da ADPF 186 (reafirmada no julgamento da ADC n. 41, que tratou da constitucionalidade da Lei n. 12.990/2014), podendo ser adotadas desde que resguardem os princípios processuais (isonomia, ampla defesa e contraditório) e a dignidade humana. Diante disso, é possível afirmar que o direito brasileiro possui normatização suficiente para permitir o funcionamento desse procedimento (CAMILLOTO; OLIVEIRA, 2020CAMILLOTO, B.; OLIVEIRA, R. C. Comissões de heteroidentificação étnico-racial de autodeclaração no sistema de cotas para negros e negras: divergências, convergências e efetividade. Revista Ensaios e Pesquisas em Educação e Cultura, Rio de Janeiro, v. 5, p. 86-100, 2020.).

No contexto das identidades de gênero, essa discussão impõe a necessidade de compreensão sobre como transitam as subjetividades trans para além dos discursos binários próprios da heteronormatividade, compreendida como “a produção do preconceito e das diferenças, da tirania e da violência física e psíquica contra os corpos que se opõem ao modelo hegemônico” (CAMILLOTO; CAMILLOTO, 2017CAMILLOTO, B.; CAMILLOTO, L. Tolerância liberal e pluralismo. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, Guanambi, v. 4, n. 1, p. 25-41, 13 out. 2017. Disponível em: http://revistas.faculdadeguanambi.edu.br/index.php/Revistadedireito/article/view/131. Acesso em: 27 jul. 2021. https://doi.org/10.29293/rdfg.v4i01.131
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, p. 31). Essa questão já traz em seu bojo a tarefa de equalizar dois tipos de reconhecimento, de modo a se alcançar, em última instância, o “direito de ser”: o primeiro de cunho formal, ou “reconhecimento jurídico”, e o segundo de cunho subjetivo, ou “reconhecimento de si”.

Quanto ao primeiro tipo de reconhecimento, sabemos que o direito opera por meio de categorias conceituais binárias no que diz respeito ao gênero dos sujeitos (masculino-feminino ou homem-mulher), atribuindo direitos e deveres a partir da classificação firmada no nascimento de uma criança no Brasil (CAMILLOTO, 2019CAMILLOTO, L. S. B. Direito de ser: diálogos e reflexões sobre o reconhecimento das identidades trans. Belo Horizonte: Conhecimento Livraria e Distribuidora, 2019.). Ocorre que há sujeitos que não se enquadram nessas duas redutivas categorias identitárias, embora também sejam sujeitos de direitos. São os sujeitos trans ou as identidades gênero-dissidentes, que transgridem os dispositivos binários ao se reconhecerem em não conformidade com o gênero que lhes fora designado em seu nascimento em razão do sexo genital. Especialmente no campo da sexualidade e do gênero, as tentativas de classificações essencialistas baseadas na lógica heteronormativa, na qual se espera a total coerência entre sexo, gênero e sexualidade, estão fadadas à impossibilidade (BUTLER, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Destacamos que há ordenamentos jurídicos em outros países que preveem a possibilidade de registro civil com gênero neutro ou terceiro gênero. Embora, no Brasil, o ordenamento jurídico preveja e reconheça apenas o binarismo de gênero, há sentenças judiciais reconhecendo o direito de registro de nascimento com gênero neutro (IBDFAM, 2021IBDFAM [INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMILIA]. Pioneirismo: pessoa obtém o direito de registrar que seu gênero é neutro; especialistas comentam. IBDFAM, 15 abr. 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8378/Pioneirismo%3A+Pessoa+obt%C3%A9m+o+direito+de+registrar+que+seu+g%C3%AAnero+%C3%A9+neutro%3B+especialistas+comentam. Acesso em: 27 jul. 2021.
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).

O segundo tipo de reconhecimento diz respeito ao modo como o sujeito reconhece a si mesmo em relação à sua identidade de gênero. Partimos do pressuposto de que, muito embora o reconhecimento se dê no interior de relações intersubjetivas, nas quais a alteridade é um elemento fundamental, cabe ao próprio sujeito a manifestação de sua identidade de gênero (quando e se assim desejar), de acordo com sua subjetividade e em exercício de sua autonomia. Somente ao próprio sujeito, portanto, deve ser legitimado exteriorizar ao mundo a sua identidade de gênero, no caso, a sua subjetividade dissidente.

A reflexão sobre a centralidade da autonomia em dizer sobre si é fundamental para os estudos trans. Daí o desafio na construção das políticas antidiscriminatórias quanto às reivindicações de gênero e orientação sexual, para evitar que se façam categorizações arbitrárias e reducionistas da subjetividade humana, corroborando a lógica dominante de opressão em uma sociedade heteronormativa.

Entre as questões que atravessam a temática central dos “direitos trans” e nos colocam diante da discussão sobre a autoidentificação e a autodeclaração, a alteração de prenome e/ou gênero no registro civil requer atenção.10 10 A efetivação desse direito tem implicação direta no reconhecimento de outros direitos que também compõem a pauta das lutas por reconhecimento de pessoas trans, como casamento civil, adoção, alistamento militar, direitos previdenciários, uso de banheiros públicos etc. Em suma, o direito de ser e de existir. No que se refere à autonomia para realizar mudanças em seu prenome e/ou alterar o “sexo jurídico” no registro civil de nascimento (de feminino para masculino ou de masculino para feminino, visto que operamos somente nessa dualidade até o momento), a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.275/2018 foi paradigmática.

Ao reconhecer o direito à alteração de prenome e gênero diretamente no registro civil, independentemente de laudo médico, cirurgia de transgenitalização ou realização de tratamentos hormonais, o STF decidiu em favor da autonomia e da autodeterminação dos sujeitos transgêneros, uma vez que, anteriormente à decisão, para proceder a tal alteração, era necessário apresentar laudo diagnóstico atestando a transexualidade (BRASIL, 2018BRASIL. Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 16 jul. 2022.
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).11 11 Antes dessa decisão, o pedido deveria ser judicializado e a decisão era manifestada mediante a apresentação de provas cabais de sua transexualidade, inclusive da realização de cirurgia de transgenitalização, muitas vezes requerida pelo juízo como prova. Até a decisão do STF, em 2018, o pedido de retificação civil por pessoas trans era precedido da necessidade de uma heteroidentificação (ou identificação feita por outra pessoa) acerca de sua identidade trans, fosse via laudos médicos e psicológicos, fosse via sentença judicial. Para essa finalidade, atualmente, basta que a pessoa interessada vá ao cartório de registro civil e solicite a alteração em seu documento, mediante pagamento das taxas. Ou seja, a autodeclaração é condição necessária e suficiente para a alteração do registro civil.

No contexto das identidades de gênero, via de regra, apenas ao sujeito interessa a sua autodeclaração, de maneira que, ao se exigir reconhecimento estatal para alterações em seu registro civil, restringia-se sua esfera de reconhecimento de si, reduzindo, portanto, sua autonomia e seu direito de ser quem é. Nesse sentido, a autodeclaração firmada por uma pessoa trans não implica ou produz quaisquer danos a terceiros, dizendo respeito somente à próprias identidade e corporeidade do sujeito declarante.

Seguindo esse raciocínio, quanto à alteração de registro civil por pessoas trans (ou cirurgias de modificações corporais),12 12 Outra situação vivenciada por pessoas trans, na qual também interessa a discussão sobre autoidentificação e autodeclaração, é o acesso ao Processo Transexualizador junto ao Sistema Único de Saúde, que contempla a realização de modificações corporais e/ou genitais por meio de procedimentos cirúrgicos, além de hormonização e atendimento multidisciplinar por profissionais da saúde. Entendemos que, nesse caso, a autodeclaração da condição de transgeneridade deveria configurar exercício pleno de autonomia do sujeito, sem a necessidade de validação dessa condição pela Medicina, da Psiquiatria e/ou da Psicologia, por meio de laudos diagnósticos, como requer as resoluções vigentes. Contudo, no momento em que escrevemos este texto, essa discussão está pautada na arena pública, com alterações nas resoluções do Conselho Federal de Medicina (pela publicação da Resolução n. 2265/2019), a partir da despatologização preconizada pela Organização Mundial da Saúde (com a publicação da CID-11 em 2018) e pelo Conselho Federal de Psicologia (Resolução CFP n. 01/2018). ficamos a elucubrar: quem desejaria deliberadamente se autodeclarar trans no Brasil, sem que realmente o seja? E para quê? Considerando um cenário interno de apagamento social e de violências de toda sorte contra corpos e subjetividades dissidentes, no qual os índices de assassinatos de pessoas trans com emprego de crueldade e violências hiperbolizadas são os maiores do mundo, perguntamo-nos que outro motivo impulsionaria alguém a autodeclarar-se trans além do exercício do seu direito de ser quem é? Sobre os alarmantes índices de assassinatos no Brasil, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2022ANTRA [ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS]. Dossiê de Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. [S. l.]: ANTRA, 2022. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf. Acesso em: 4 maio 2022.
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) afirma que “sozinho, o país acumula 38,2% de todas as mortes de pessoas trans do mundo”. Considerando as modificações estéticas comumente realizadas por pessoas trans em seu corpo, seu vestuário, seus comportamentos e hábitos, a fim de vivenciar plenamente a sua identidade de gênero (apesar de não serem determinantes para a afirmação de sua identidade), uma pessoa evidentemente cisgênera seria capaz de sustentar essas mudanças a longo prazo apenas com a finalidade de lesar terceiros ou de beneficiar-se de alguma maneira? Embora possa haver situações pontuais e excepcionais, não nos parece crível que seja corriqueiro o fato de que alguém se colocaria, propositalmente, em situações de vulnerabilidade e exclusão social, ao forjar uma subjetividade “fake” com a intenção de beneficiar-se indevidamente.

Apesar disso, no que diz respeito à previsão de reserva de vagas nas universidades federais para pessoas trans, nosso entendimento é diferente e excepcional em relação à autodeclaração para alteração do registro civil, seguindo o posicionamento da ANTRA (2020)ANTRA [ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS]. Nota pública da ANTRA sobre cotas e reservas de vagas em universidades destinadas às pessoas trans. [S. l.]: ANTRA, 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/12/nota-sobre-cotas-trans-antra.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
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. Nesse caso, acreditamos que a autodeclaração firmada pelo sujeito pode produzir efeitos sobre a distribuição de vagas no Ensino Superior, que é um bem valioso e escasso e, portanto, pode requerer a adoção de comissões de heteroidentificação.

Nesse sentido, a nota pública divulgada pela ANTRA (2020)ANTRA [ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS]. Nota pública da ANTRA sobre cotas e reservas de vagas em universidades destinadas às pessoas trans. [S. l.]: ANTRA, 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/12/nota-sobre-cotas-trans-antra.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
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trata da importância da identificação dos destinatários da política de cotas para pessoas trans, “sem o qual compromete-se a legitimidade e a efetividade das medidas positivas”, uma vez que se tem a possibilidade de eventuais tentativas de fraude:

Atualmente, o principal fator que está prejudicando a efetividade das cotas raciais para o ingresso de travestis e demais pessoas trans nas universidades tem sido a utilização das mesmas por pessoas desonestas ou que não entenderam os objetivos que permeiam a criação da reserva de vagas, se utilizando de autodeclarações duvidosas ou de situações que não coadunam com a realidade socioeconômica, vivências ou expressão de gênero que as condicionem à discriminação e marginalização apregoadas a partir da leitura social identitária para usufruírem de direitos que não lhes são legalmente pertencentes

(ANTRA, 2020ANTRA [ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS]. Nota pública da ANTRA sobre cotas e reservas de vagas em universidades destinadas às pessoas trans. [S. l.]: ANTRA, 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/12/nota-sobre-cotas-trans-antra.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
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, grifos nossos).

Por esse motivo, a ANTRA (2020)ANTRA [ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS]. Nota pública da ANTRA sobre cotas e reservas de vagas em universidades destinadas às pessoas trans. [S. l.]: ANTRA, 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/12/nota-sobre-cotas-trans-antra.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
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recomenda a previsão de comissões de heteroidentificação no contexto das políticas de cotas para pessoas trans nas universidades, pelo receio de que, diante de eventuais fraudes, a própria política – tão cara e importante para as pessoas trans – seja negada ou extinta, “ao invés de criar e melhorar mecanismos capazes de enfrentar possíveis fraudadores que representam uma parcela mínima, apesar de existirem”. E acrescenta: “não se combatem as fraudes excluindo a política, mas identificando e responsabilizando possíveis fraudadores” (ANTRA, 2020ANTRA [ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS]. Nota pública da ANTRA sobre cotas e reservas de vagas em universidades destinadas às pessoas trans. [S. l.]: ANTRA, 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/12/nota-sobre-cotas-trans-antra.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
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). Importa reafirmar que a verificação pela comissão, entretanto, não tem o condão de adentrar à subjetividade de uma pessoa atestando, peremptoriamente, que se trata ou não uma pessoa trans “de verdade”, até porque tal autoidentificação compete tão somente ao sujeito. Em nota, a ANTRA reafirma seu posicionamento de que

[...] a discussão não deve ser pautada sobre dizer quem é ou quem não é trans. Quando a regulamentação da política de cotas fala de “aferir”, “verificar” a “veracidade”, não se trata de uma pretensa “verdade sobre a identidade”, no sentido de um realismo ontológico, apelando para dados biológicos, essências irredutíveis, fixas e cristalizadas, ou porta-vozes indiscutíveis e “donos da verdade”. [...] Nesse sentido, a criação de comissões de validação de autodeclaração, com a participação de pares dos sujeitos avaliados, tem se mostrado medida urgente e necessária para o alcance pleno das políticas públicas de inclusão da população trans nas universidades públicas brasileiras, pois as cotas, isoladamente, garantem apenas as vagas, não garantindo que os verdadeiros destinatários dessa ação afirmativa usufruirão destas. [...] No exercício de sua tarefa heteroidentificatória, a comissão deve corrigir eventual auto-atribuição [sic] identitária equivocada, à luz dos fins da política pública, iniciativa que não se confunde com lugar para a confirmação de percepções subjetivas ou satisfação de sentimentos pessoais, cuja legitimidade não se discute nem menospreza, mas que não vinculam, nem podem dirigir, a política pública

(2020).

Discussões dessa natureza são relevantes porque, cientes do histórico de violação de direitos e ciclo de exclusão experimentado por grande parte das pessoas trans, que se inicia na família e passa pela escolarização e pelo trabalho (por evasão escolar e transfobia), algumas universidades federais sinalizam em suas políticas internas de ação afirmativa a proteção de direitos e inclusão de pessoas trans, tanto para graduação quanto para pós-graduação. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE, 2019IBTE [INSTITUTO BRASILEIRO TRANS DE EDUCAÇÃO]. As fronteiras da educação: a realidade dxs estudantes trans no Brasil. [S. l.]: IBTE, 2019. Disponível em: https://storage.googleapis.com/wzukusers/user-31335485/documents/5c50350f95db81ka6cN8/ibte2019.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.
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), ao menos quinze universidades públicas brasileiras já oferecem cotas para pessoas trans. Não há, todavia, regulamentação expressa e unificada, ficando a cargo de cada universidade decidir tanto pela implementação da política de cotas quanto pela adoção de comissões de heteroidentificação.

As ações afirmativas vigentes nas universidades vão desde a previsão de uso de nome social para pessoas trans que não procederam à retificação civil, medidas educativas de conscientização do corpo discente e docente quanto à temática da identidade de gênero e sexualidade e o uso de banheiros em conformidade com o gênero vivenciado até a previsão expressa de cotas para pessoas trans, facilitando o acesso à universidade ou o acréscimo de pontuação para graduados trans que participem dos processos seletivos dos programas de pós-graduação, como explica Jaqueline Gomes de Jesus (2016)JESUS, J. G. Pessoas trans também precisam de cotas. AzMina, 23 nov. 2016. Disponível em: https://azmina.com.br/colunas/pessoas-trans-tambem-precisam-de-cotas/. Acesso em: 27 jul. 2021.
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.

Em síntese, quando se trata de reserva de vagas às universidades federais para pessoas negras e/oupara pessoas trans, a autodeclaração é um documento necessário, mas não suficiente, justamente por se tratar da titularização de acesso à distribuição de um bem público. Nesses casos, a autodeclaração racial e/ouda identidade trans não diz respeito somente ao sujeito e sua própria percepção, mas à integridade de uma política específica na qual a comissão de heteroidentificação funciona como uma medida secundária à autodeclaração feita pelo/a candidato/a.

Qual o Fundamento Jurídico das Comissões de Heteroidentificação Racial?

Denominadas pejorativamente “tribunais raciais”, os críticos argumentavam que as comissões de heteroidentificação racial atuavam nos moldes de uma “inquisição racial”, de acordo com quantidade de melanina na pele de cada um/a dos/as candidatos/as, e que esse não seria um critério objetivo capaz de ofertar segurança ao julgamento heterônomo da autodeclaração. Sales Augusto dos Santos lembra que “alguns/as intelectuais brasileiros/as, dentre os quais Ricardo Ventura Santos (2004)SANTOS, A. P. Políticas de ação afirmativa, novo ingrediente na luta pela democratização do ensino superior: a experiência da Universidade Federal de Ouro Preto. 2011. 258 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, 2011. e Peter Fry et al. (2007), endossaram, a partir de 2004, a expressão ‘Tribunal Racial’, que foi cunhada para se referir pejorativamente à comissão de heteroidentificação racial da UnB” (2021aSANTOS, S. A. Comissões de heteroidentificação étnico-racial: lócus de constrangimento ou de controle social de uma política pública? O social em questão, Rio de Janeiro, v. 2, p. 11-62, 2021a. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/52256/52256.PDF. Acesso em: 27 jul. 2021. https://doi.org/10.17771/PUCRio.OSQ.52256
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, p. 42-43). Esse argumento pode ser fruto da ausência de letramento racial ou desconhecimento dos saberes já produzidos pela literatura, especialmente pelo movimento negro, que é um importante ator político na produção de saberes comprometidos com a construção de um projeto educativo emancipatório. Nesse caso, acreditamos que a educação antirracista proposta por Nilma Lino Gomes (2017, p. 27-38)GOMES, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017. seja uma forma potente para a superação desse estado de desconhecimento, bem como para o aprendizado sobre as relações étnico-raciais.

Daí a relevância de normatividade e políticas públicas que sustentem a prática de uma educação antirracista, como a Lei n. 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africanas e afro-brasileiras, bem como a educação das relações étnico-raciais na educação básica (pública e privada). Referindo-se à educação antirracista em correlação com a lei citada, Nilma Lino Gomes reforça que,

[...] nesse sentido, a mudança estrutural proposta por essa legislação abre caminhos para a construção de uma educação anti-racista [sic] que acarreta uma ruptura epistemológica e curricular, na medida em que torna público e legítimo o “falar” sobre a questão afro-brasileira e africana. Mas não é qualquer tipo de fala. É a fala pautada no diálogo intercultural. E não é qualquer diálogo intercultural. É aquele que se propõe ser emancipatório no interior da escola, ou seja, que pressupõe e considera a existência de um “outro”, conquanto sujeito ativo e concreto, com quem se fala e de quem se fala

(GOMES, 2012GOMES, N. L. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, Braga, v. 12, n. 1, p. 98-109, jan./abr. 2012., grifos nossos).

Um projeto político-pedagógico que adote a educação antirracista e uma pedagogia intercultural crítica e emancipatória como práticas de enfrentamento ao racismo estrutural e às iniquidades em razão da raça desde a educação básica podem contribuir enormemente para a compreensão do que é ser negro e ser branco em uma sociedade racista. A nossa aposta é de que, no caso de crianças negras, uma representação positiva da negritude na escola possa contribuir para nutrirem uma autoconscientização de saberem-se negras, com fortalecimento da autoestima e da autoconfiança, além do sentimento de pertencimento e de reconhecimento de si e do outro. Conforme Neusa Santos Souza, o sujeito torna-se negro, experiência que está para além da óbvia constatação da negrura de sua epiderme: “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir-a-ser. Ser negro é tornar-se negro” (2021, p. 115)SOUZA, N. S. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., em um processo de autoidentificação e reconhecimento de si mesmo como pessoa negra, seja preta, seja parda. No caso de crianças brancas, entendemos que o contato precoce com representações positivas da negritude possa produzir o tensionamento da supremacia da branquitude, a conscientização dos privilégios e sua racialização como pessoa branca, bem como a adoção de uma postura antirracista ao longo da vida.

Considerando as implicações do racismo estrutural, a autodeclaração racial firmada com fundamento apenas na vontade do declarante se mostrou insuficiente. Se alguém faz uma afirmação pública sobre sua identidade racial para fins de disputa de vagas do Ensino Superior reservadas às pessoas negras, a veracidade de seu conteúdo não deve estar limitada apenas aos termos consignados pelo sujeito que a subscreve, uma vez que, caso o instrumento de autodeclaração seja admitido com veracidade absoluta,13 13 No Direito, utiliza-se o estatuto das presunções para o estabelecimento da veracidade de alguma situação. Tem-se a presunção absoluta (juris et de jure), que é estabelecida por lei e não admite prova em contrário, e a relativa (juris tantum), que vale de forma condicionada à futura refutação por prova em sentido contrário. A adoção da autodeclaração com força de presunção absoluta significaria que o documento de autodeclaração não admitiria prova em contrário. A adoção dessa concepção implica o reconhecimento de que, caso pessoas reconhecidas socialmente como brancas firmem a autodeclaração de pessoa negra (seja com a intencionalidade de fraudar a lei, seja de boa-fé, por sentir-se pertencente à população negra em razão de suas origens, cultura ou religiosidade), tal documento valerá a despeito das características fenotípicas dos declarantes. então a consequência lógica seria que o conteúdo autodeclarado preenche as condições de necessidade e suficiência para garantir a qualquer pessoa que se declare negra (preta ou parda) o acesso às vagas reservadas no ensino público superior, mesmo que essa pessoa seja evidentemente branca e, portanto, não titular dessa política.

A veracidade absoluta da autodeclaração já foi afastada tanto no julgamento da ADPF 186 pelo STF quanto na Recomendação n. 41 do Ministério Público Federal, que explicitou:

Considerando, no entanto, que a autodeclaração não é critério absoluto de definição da pertença étnico-racial de um indivíduo, devendo, notadamente no caso da política de cotas, ser complementado por mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas, tendo o STF, no julgamento da ADPF 186, se pronunciado especificamente sobre a legitimidade do sistema misto de identificação racial (BRASIL, 2016aBRASIL. Recomendação n. 41, de 9 de agosto de 2016. Define parâmetros para a atuação dos membros do Ministério Público brasileiro para a correta implementação da política de cotas étnico-raciais em vestibulares e concursos públicos. Brasília, DF: Conselho Nacional do Ministério Público, 2016a. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas/norma/4343/. Acesso em: 27 jul. 2021.
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, grifos nossos).

Uma das questões que atravessam essa discussão diz respeito à titularidade das pessoas que seriam legalmente beneficiárias dessa política de ação afirmativa. A pergunta de saída é: “afinal, quem é negro no Brasil?” Segundo o Estatuto da Igualdade Racial, considera-se população negra “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga” (BRASIL, 2010BRASIL. Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 16 jul. 2022.
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). A definição legal fixa o conceito normativo. Todavia, é preciso ir além, pois a definição de quem é ou não é negro/a possui dimensões política e social forjadas na luta pelo reconhecimento da população negra brasileira.

Se, normativamente, a resposta à questão “quem é negro no Brasil?” é simples, socialmente a resposta é bem mais complexa, uma vez que é pela mobilização da categoria “pardo” que a branquitude aproveita, seja pela falta de letramento racial, seja por má-fé, para utilizar indevidamente a política de ações afirmativas. Lia Schucman define branquitude como “um constructo ideológico de poder, em que brancos tomam a sua identidade racial como norma e padrão” (2020, p. 50)SCHUCMAN, L. V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. 2. ed. São Paulo: Veneta, 2020., de maneira que outros grupos não brancos aparecem como marginalizados, desviantes ou inferiores. Considerando as dificuldades teóricas e práticas na execução dessa política no tocante à categoria das pessoas pardas e das experiências administrativas das instituições de Ensino Superior, o problema das comissões de heteroidentificação se apresenta dramático: quem são os pardos no Brasil que compõe a categoria conceitual negro?14 14 Um exemplo público recente da interpelação de uma pessoa parda se deu na edição de 2021 do reality show Big Brother Brasil, quando a negritude do participante Gilberto Nogueira, que se identifica como pessoa negra de pele clara, ou parda, foi questionada por outros participantes negros da mesma edição. Na prática, a teoria sobre as categorias raciais não é tão óbvia e de fácil aplicação.

Por que as Comissões de Heteroidentificação Racial Incomodam?

Apesar da legalidade e da constitucionalidade das comissões de heteroidentificação no contexto racial, elas ainda causam incômodo na esfera pública, revelando mais uma face da cultura racista inerente à estrutura da sociedade brasileira.15 15 Percebe-se que, quando se trata de relações étnico-raciais e das pautas antirracistas, sempre há incomodados, seja com a existência da própria política de cotas, seja com a adoção das comissões de heteroidentificação racial. Dentre os incômodos que podem ser observados, um se destaca: o argumento de que a análise realizada pela comissão de heteroidentificação carece de objetividade, sendo totalmente subjetiva. Voltamos aqui à velha (e atual) questão da dicotomia objetividade/subjetividade da epistemologia, especialmente no âmbito do Direito.

A perspectiva subjetiva traz implícita uma aposta epistemológica de que o conhecimento humano sobre as questões raciais se funda exclusivamente na experiência individual quando da enunciação sobre quem pode ou não ser considerada uma pessoa negra. Para essa perspectiva, questões raciais são tão subjetivas que não seria possível concebê-las como algo passível de disputa discursiva, pois estariam condicionadas, de maneira resoluta, às condições do próprio sujeito da enunciação. Sendo assim, não haveria como legitimar o trabalho de uma comissão heterônoma para tratar de algo cujas condições de possibilidade estão depositadas apenas no sujeito titular do direito de dizer sobre si.

A subjetividade na análise da comissão pode ser refletida à luz daquilo que é inerente ao próprio conceito de Direito: o julgamento. O incômodo com a subjetividade das comissões de heteroidentificação racial desconsidera que todo julgamento é realizado por seres humanos que são marcados, inexoravelmente, por uma dimensão subjetiva. Todavia, disso não decorre, necessariamente, que o conhecimento humano produzido se encerre apenas na subjetividade dos indivíduos. É assim no fazer das comissões de heteroidentificação tanto quanto no fazer cotidiano do Poder Judiciário. Em relação a esse último, a questão da subjetividade dos juízes não é, em si mesma, uma razão para se questionar a existência do próprio Poder Judiciário como instância institucional julgadora dos conflitos sociais. Sem aderir a uma exigência perfeccionista, na qual os julgamentos serão sempre corretos do ponto de vista substancial, a pergunta que se coloca é: por que a subjetividade seria um incômodo para a atuação das comissões de heteroidentificação racial quando não o é para a atuação cotidiana dos juízes do Poder Judiciário?

Esse incômodo também desconsidera que todo julgamento humano (quer nas comissões de heteroidentificação, quer no Poder Judiciário) ocorre no interior de um jogo de dar e pedir razões, cujo elemento central é a intersubjetividade. Seres humanos usam conceitos nas práticas sociais e constroem possibilidades de compreensão da realidade a partir de sua própria experiência cognoscitiva-social. A formação de sentido do que “seja correto”, do que “é devido”, do que “é direito”, do que “é o Direito”, do que “é justo” e, last but not least, do que “é uma pessoa fenotipicamente negra” se dá por meio de uma troca de razões por sujeitos que se implicam no compromisso argumentativo de ofertar uns aos outros razões que sustentem algum sentido normativo (CAMILLOTO, 2016CAMILLOTO, B. Direito, democracia e razão pública. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.). Além do mais, assim como no Poder Judiciário, a decisão da comissão de heteroidentificação também é passível de recursos pelo/a candidato/a inconformado/a com o seu resultado, em observância aos princípios da ampla defesa e do contraditório, podendo ser revista.

Acreditamos que a resposta à questão passe pela revisitação dos cânones da hermenêutica jurídica, conforme propõe Adilson José Moreira (2019)MOREIRA, A. J. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.. É necessária a construção de uma hermenêutica jurídica negra que seja capaz de levar a sério as dimensões institucional e estrutural do racismo brasileiro. Como parte de uma educação antirracista, é preciso formar juristas que sejam capazes de mobilizar o princípio antidiscriminatório como forma de efetivar a justiça social. Além disso, uma pergunta deve ser sempre retomada: por que surgiu a necessidade de comissões de heteroidentificação?

O fato do não preenchimento das vagas originariamente reservadas para pessoas negras, [sic] passou a ser problematizado pela sociedade, especialmente pelos movimentos interessados na implementação adequada da legislação, levantando uma hipótese: as autodeclarações não estavam correspondendo às características fenotípicas das pessoas negras que, no caso, seriam as titulares da política pública. Diante dessa hipótese, a UFOP, bem como as demais instituições públicas de ensino, começaram a receber denúncias nas quais se afirmava que alguns estudantes beneficiários das cotas raciais, portanto ocupantes das vagas reservadas, não possuíam características fenotípicas de pessoas negra [sic]

(SANTOS et al., 2022SANTOS, A. P. et al. Comissões de heteroidentificação étnico-racial da Universidade Federal de Ouro Preto: implementação e atuação. In: SISS, A. (org.). As comissões de heteroidentificação étnico-racial no sistema de cotas no acesso às instituições de Ensino Superior públicas federais: implementação e atuação. Nova Iguaçu: Oppas, 2022. p. 37-61., p. 41-42, grifos nossos).

Conforme esse diagnóstico, verificou-se uma não conformidade no fenótipo dos discentes matriculados a partir da aplicação da reserva de cotas legal, diante da qual o Movimento Social Negro (MSN),

[...] representado agora pelos coletivos de estudantes negros, passou a cobrar apuração se tais candidatos, de fato, fariam jus à vaga ocupada. Esse cenário propiciou o ressurgimento de uma questão antiga: quem seria a pessoa negra titular da política de ação afirmativa com recorte racial? Essa é uma velha questão já conhecida de há muito pelo MSN e que sempre vem acoplada ao também velho argumento de que o país é miscigenado, ou seja, não teríamos fronteiras étnico-raciais rígidas entre as pessoas. Esse velho argumento estaria amparado pela experimentação de numa “democracia racial” pela sociedade brasileira.

(SANTOS et al., 2022SANTOS, A. P. et al. Comissões de heteroidentificação étnico-racial da Universidade Federal de Ouro Preto: implementação e atuação. In: SISS, A. (org.). As comissões de heteroidentificação étnico-racial no sistema de cotas no acesso às instituições de Ensino Superior públicas federais: implementação e atuação. Nova Iguaçu: Oppas, 2022. p. 37-61., p. 42, grifos nossos).

O movimento negro tem contribuído para o desenvolvimento das comissões de heteroidentificação, colocando seu conhecimento social a serviço das instituições de Ensino Superior no enfrentamento das fraudes. Participando ativamente dos debates sobre a implementação da política de ações afirmativas no contexto racial, o movimento tem qualificado a discussão, especialmente em relação ao critério de julgamento da validade da autodeclaração firmada pelo candidato à vaga reservada e de sua condição de pessoa negra a partir do fenótipo, que é o critério previsto na Portaria Normativa n. 4/2018, a qual regulamenta as bancas de heteroidentificação no âmbito de aplicação da Lei n. 12.990/2014. Além de ser normativo, esse critério é formulado a partir da realidade social brasileira, na qual uma das características determinantes da desigualdade é o fenótipo, especialmente a cor da pele das pessoas. Essa formulação está cristalizada na ideia do “preconceito de marca”, vivenciado no Brasil desde a colonização, que se diferencia do “preconceito de origem”, vivenciado nos Estados Unidos (NOGUEIRA, 1985NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem – sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. In: NOGUEIRA, O. (org.). Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985.), sobretudo por ocasião do regime segregacionista vigente no país entre 1876 e 1965.

A experiência do racismo no Brasil aponta para a situação de que, quanto mais retinta ou pigmentada for a pele da pessoa e/ou quanto mais os traços de africanidade forem acentuados em seu fenótipo, a opressão vivenciada por ela se sobrelevará enormemente. Isso quer dizer que uma pessoa negra de pele retinta (ou preta) tem maior probabilidade de ser rechaçada socialmente, sendo alvo de preconceitos e discriminações, além de ter maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho do que uma pessoa negra de pele clara (ou parda). Da mesma forma, as pessoas pardas encontram maiores dificuldades que as pessoas brancas em seus trânsitos social e profissional.

As dificuldades levantadas se relacionam com o termo “colorismo”, que, conforme Alessandra Devulski (2021)DEVULSKY, A. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021., é mais uma forma de expressão do racismo estrutural, que reafirma a manutenção de um sistema de privilégios da branquitude. Segundo a autora, o colorismo é uma ideologia sofisticada de hierarquização racial “empregado por brancos sobre negros e por negros sobre negros” (DEVULSKI, 2021DEVULSKY, A. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.).16 16 O colorismo é um tema complexo e multifacetado, especialmente em sociedades marcadas pelas violências do processo de escravização. Cientes da necessidade de aprofundamento do conceito, neste trabalho optamos por fazer uma breve apresentação a fim de evitar o encobrimento do tema.

Entendemos que o colorismo acabe por enfraquecer a luta antirracista, ao segregar as pessoas negras em razão da tonalidade de suas peles. Traz, ainda, a violência implícita que reside na miscigenação da população brasileira, largamente apregoada como uma grande riqueza ou beleza nacional, esquecendo-se da forma brutal como foi produzida, por meio de estupros de mulheres negras por homens brancos ou pelo desejo explícito de embranquecimento da população, em uma evidente política eugenista baseada na supremacia branca.

Não podemos esquecer que pessoas pardas são também negras e, portanto, têm direito à disputa de vaga por meio das cotas raciais. Injusto, portanto, que ocupem o lugar do “hiato”, reservado àqueles que não são pretos e sofrem de maneira mais intensa as mazelas do racismo, nem brancos, que gozam dos privilégios conferidos pela branquitude. Como, então, garantir seus direitos como integrantes da população negra brasileira?

É nesse contexto que a educação antirracista, comprometida com o letramento e a consciência racial, com a denúncia constante do racismo estrutural, com o afastamento do mito da “democracia racial” e com uma hermenêutica negra pautada pelos princípios do Direito Antidiscriminatório, pode ser uma possível saída para a redução das desigualdades no âmbito da educação superior nos contextos de raça.

Considerações Finais

O racismo é um camaleão poliglota17 17 O termo usado aqui é o título de um livro de Arísia Barros, professora, ativista preta e coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas, em Alagoas. O livro O racismo é um camaleão poliglota está no prelo. Agradecemos à Professora Sheila Dias por nos apresentar, inicialmente, a expressão e por ter viabilizado o contato direto com a autora. que possui altíssima capacidade de adaptação e de perpetuação nos ambientes sociais mais diversos e inóspitos à sua sobrevivência. Ao mesmo tempo que se adapta e camufla para seguir constituindo e estruturando as relações sociais, ele intenta passar despercebido, buscando a preservação dos privilégios da branquitude e a manutenção do pacto narcísico que, segundo Maria Aparecida Bento (2002)BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002., é uma espécie de acordo implícito entre as pessoas brancas que implica a negação e o evitamento do problema racial, com vistas à manutenção de privilégios e à desresponsabilização pelas desigualdades raciais. Mudando de cor, de tom de voz e de tudo o mais o que for preciso, o racismo transita nos ambientes sociais brasileiros, incluindo universidades públicas federais e suas políticas de ações afirmativas, como as cotas reservadas às pessoas negras. Nesse caso, o camaleão poliglota é a base que sustenta as candidaturas indevidas por pessoas que não são titulares desse direito, seja por tentativas de fraudes em uma evidente usurpação de direitos, seja por falta de letramento racial e compreensão dos mecanismos do racismo estrutural no Brasil.

Em síntese, as comissões de heteroidentificação racial buscam analisar a autodeclaração que confere o acesso ao Ensino Superior. Suas decisões não invalidam, portanto, a autoidentificação do/a candidato/a, que é da ordem do ser, mas são capazes de invalidar a autodeclaração, evitando que pessoas brancas ocupem indevidamente vagas reservadas pela política de ações afirmativas no Ensino Superior às pessoas negras. Criadas tão somente para resguardar a finalidade da política, as comissões de heteroidentificação racial contribuem para que os sinos dobrem pelos reais titulares da política de ação afirmativa de reserva de vagas: as pessoas negras.

Notas

  • 1
    O Toque dos Sinos em Minas Gerais foi registrado como bem cultural imaterial em 2009 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que reconheceu o som dos sinos como Patrimônio Cultural do Brasil. Ver http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/dossie16_toquedossinos.pdf e http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/69/. Agradecemos ao Professor Carlos Magno de Souza Paiva pela contribuição sobre o patrimônio cultural.
  • 2
    Por “marginalizada” queremos referir tanto às pessoas que estão às margens do acesso aos bens produzidos pela sociedade por figurarem como outsiders do sistema de produção capitalista quanto àquelas que, mesmo incluídas economicamente naquele sistema de produção, sofrem alguma diminuição no seu status de cidadania por outras razões, por exemplo questões de raça e gênero.
  • 3
    Os argumentos em defesa de tal política são, em síntese, três: 1) reparação histórica em relação ao passado de escravização no país, no qual ascendentes das pessoas negras foram privados de quaisquer possibilidades de desenvolvimento laboral, educacional e patrimonial pois estavam alijados da própria condição de seres humanos; 2) correção das distorções referentes aos exames de ingresso nas universidades em razão das diferenças existentes entre as formações no ensino de segundo grau; e 3) promoção de maior diversidade no ambiente acadêmico, garantindo que a convivência entre pessoas brancas e negras possa representar melhor a estrutura social e permitindo que todos aprendam a partir dessa convivência e de compartilhamentos, além de fomentar o ingresso de profissionais negros no mercado de trabalho após a graduação, tornando-o também mais diverso e representativo.
  • 4
    “Marcadores sociais” se relacionam com os padrões de socialização do indivíduo que produzem interferência direta no campo das escolhas disponíveis para as pessoas no interior da sociedade. Agradecemos a Ana Claudia Lopes pelo diálogo sobre o termo.
  • 5
    Abordamos aqui apenas as comissões de heteroidentificação racial nas instituições públicas de Ensino Superior.
  • 6
    Agradecemos à Professora Kassandra da Silva Muniz, pelo diálogo sobre a importância linguística dos termos utilizados nesse debate.
  • 7
    Não é raro encontrarmos pessoas que passam a vida cientes de sua identidade LGBTQIA+, mas que, por força dos preconceitos existentes e do receio de violências diversas, não a externalizam. Nesse sentido, mesmo que essa pessoa se reconheça como gay, lésbica, bissexual (ou outra orientação sexual) ou como uma pessoa trans (ou outra identidade de gênero), pode não vivenciar explicitamente sua identidade. É importante lembrar que primamos pelo direito de cada um ser como é.
  • 8
    O processo de racialização da sociedade não diz respeito somente às pessoas negras, uma vez que as pessoas brancas também são racializadas. Também é importante destacar que, num país continental como o Brasil, o contexto social é constituído pela diversidade populacional e cultural que complexifica a análise sobre o processo de racialização. Nesse sentido, há esforços intelectuais e práticos na construção de um diálogo de amplitude nacional, por exemplo os I e II Seminários Nacionais Políticas de Ações Afirmativas nas Universidades Brasileiras, realizados pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), respectivamente.
  • 9
    A experiência acumulada com as bancas de heteroidentificação racial permite fazer essa distinção com segurança. Quando não há intencionalidade, a autodeclaração de pessoa parda firmada por pessoa branca decorre da falta de uma compreensão adequada das relações étnico-raciais, bem como da finalidade da legislação.
  • 10
    A efetivação desse direito tem implicação direta no reconhecimento de outros direitos que também compõem a pauta das lutas por reconhecimento de pessoas trans, como casamento civil, adoção, alistamento militar, direitos previdenciários, uso de banheiros públicos etc. Em suma, o direito de ser e de existir.
  • 11
    Antes dessa decisão, o pedido deveria ser judicializado e a decisão era manifestada mediante a apresentação de provas cabais de sua transexualidade, inclusive da realização de cirurgia de transgenitalização, muitas vezes requerida pelo juízo como prova. Até a decisão do STF, em 2018, o pedido de retificação civil por pessoas trans era precedido da necessidade de uma heteroidentificação (ou identificação feita por outra pessoa) acerca de sua identidade trans, fosse via laudos médicos e psicológicos, fosse via sentença judicial.
  • 12
    Outra situação vivenciada por pessoas trans, na qual também interessa a discussão sobre autoidentificação e autodeclaração, é o acesso ao Processo Transexualizador junto ao Sistema Único de Saúde, que contempla a realização de modificações corporais e/ou genitais por meio de procedimentos cirúrgicos, além de hormonização e atendimento multidisciplinar por profissionais da saúde. Entendemos que, nesse caso, a autodeclaração da condição de transgeneridade deveria configurar exercício pleno de autonomia do sujeito, sem a necessidade de validação dessa condição pela Medicina, da Psiquiatria e/ou da Psicologia, por meio de laudos diagnósticos, como requer as resoluções vigentes. Contudo, no momento em que escrevemos este texto, essa discussão está pautada na arena pública, com alterações nas resoluções do Conselho Federal de Medicina (pela publicação da Resolução n. 2265/2019), a partir da despatologização preconizada pela Organização Mundial da Saúde (com a publicação da CID-11 em 2018) e pelo Conselho Federal de Psicologia (Resolução CFP n. 01/2018).
  • 13
    No Direito, utiliza-se o estatuto das presunções para o estabelecimento da veracidade de alguma situação. Tem-se a presunção absoluta (juris et de jure), que é estabelecida por lei e não admite prova em contrário, e a relativa (juris tantum), que vale de forma condicionada à futura refutação por prova em sentido contrário. A adoção da autodeclaração com força de presunção absoluta significaria que o documento de autodeclaração não admitiria prova em contrário. A adoção dessa concepção implica o reconhecimento de que, caso pessoas reconhecidas socialmente como brancas firmem a autodeclaração de pessoa negra (seja com a intencionalidade de fraudar a lei, seja de boa-fé, por sentir-se pertencente à população negra em razão de suas origens, cultura ou religiosidade), tal documento valerá a despeito das características fenotípicas dos declarantes.
  • 14
    Um exemplo público recente da interpelação de uma pessoa parda se deu na edição de 2021 do reality show Big Brother Brasil, quando a negritude do participante Gilberto Nogueira, que se identifica como pessoa negra de pele clara, ou parda, foi questionada por outros participantes negros da mesma edição.
  • 15
    Percebe-se que, quando se trata de relações étnico-raciais e das pautas antirracistas, sempre há incomodados, seja com a existência da própria política de cotas, seja com a adoção das comissões de heteroidentificação racial.
  • 16
    O colorismo é um tema complexo e multifacetado, especialmente em sociedades marcadas pelas violências do processo de escravização. Cientes da necessidade de aprofundamento do conceito, neste trabalho optamos por fazer uma breve apresentação a fim de evitar o encobrimento do tema.
  • 17
    O termo usado aqui é o título de um livro de Arísia Barros, professora, ativista preta e coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas, em Alagoas. O livro O racismo é um camaleão poliglota está no prelo. Agradecemos à Professora Sheila Dias por nos apresentar, inicialmente, a expressão e por ter viabilizado o contato direto com a autora.

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Editor de seção: Salomão Barros Ximenes
Editores convidados: Nilma Lino Gomes, José Eustáquio Brito e Paulo Vinicius Baptista da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2021
  • Aceito
    25 Jun 2022
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