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O Programa de Educação Tutorial (PET) e a relação de estudantes com o saber referente à escrita acadêmica1 1 Este trabalho é resultado de estágio de pós-doutorado em Educação realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Este estágio e a pesquisa realizada sob a orientação do Prof. Bernard Charlot (Paris 8/UFS), estiveram vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Contemporaneidade (EDUCON) da mesma universidade.

El Programa de Educación Tutorial (PET) y la relación de estudiantes con el saber concerniente a la escritura acadêmica

RESUMO

O artigo discute tendências dominantes na relação de estudantes dos Programas de Educação Tutorial (PET) de uma universidade federal brasileira com o saber escrever, a fim de conhecer os móbeis e sentidos que configuram tal relação e os guiam na apropriação das práticas de letramento acadêmico. Apoia-se na abordagem da relação com o saber de Bernard Charlot e da relação com a escrita de Barré-de-Miniac, bem como no modelo dos letramentos acadêmicos discutido por Lea e Street. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 26 estudantes de graduação e bolsistas do referido programa, sendo 12 do grupo de PET de Pedagogia e os outros 14 de vários cursos da mesma universidade. Três tipos ideais de relação com o saber escrever, formulados a partir dos posicionamentos dos estudantes sobre o aprender a escrever, permitiram identificar e analisar as tendências dominantes e, por conseguinte, os móbeis e sentidos que perpassam a referida relação: base para o futuro, suprimento de necessidades e marca de participação.

Palavras-Chave:
Relação com o Saber; Letramento Acadêmico; Relação com a Escrita

RESUMEN

Este trabajo discute las tendencias dominantes en la relación con el saber escribir de los estudiantes de Programas de Educación Tutorial (PET) de una universidad federal brasileña, con la finalidad de comprender los procesos de movilización y los significados que configuran esta relación con las prácticas de alfabetización académica. Las nociones de relación con el saber de Charlot, relación con la escritura de Barré-De Miniac y el modelo de alfabetización académica de Lea y Street sirvieron de base teórica para el análisis. Entrevistas semiestructuradas fueran realizadas con 26 estudiantes de pregrado que participaban del Programa de Educación Tutorial (PET) de diferentes áreas y disciplinas en la universidad referida. Se identificaron tres tipos ideales de relación con el saber escribir, lo que nos permitió comprender las tendencias dominantes en la relación estudiada: base para el futuro, provisión de necesidades y marca de participación.

Palabras-clave:
Relación con el Saber; Alfabetización Académica; Relación con la Escritura

ABSTRACT

This paper discusses dominant trends in the relationship of Tutorial Education Programs (PET) students with knowing how to write at a Brazilian federal university, to understand what mobilizes and gives meaning to this relationship toward academic literacy practices. The notions of relationship to knowledge of Charlot, the relationship to writing of Barré-De Miniac as well as the academic literacy model discussed by Lea and Street served as the theoretical basis for the analysis. Semi-structured interviews were conducted with 26 undergraduate students of different areas and disciplines, who participated in the Tutorial Education Program (PET). Three ideal types of relationship to knowledge involving writing process were identified, which allowed us to understand the dominant trends in the relationship studied: basis for the future, supply of needs and participation mark.

Keywords:
Relationship to Knowledge; Academic Literacy; Relationship to Writing

Introdução

O Programa de Educação Tutorial (PET) tem como finalidade apoiar inúmeras atividades acadêmicas por meio da integração entre o ensino, a pesquisa e a extensão, visando à formação acadêmica ampla dos estudantes de graduação, com base na interdisciplinaridade, na atuação individual e coletiva por meio do trabalho em grupo. Sua tendência é a de proporcionar integração entre diferentes níveis de formação, pois podem participar dele estudantes de qualquer semestre ao longo dos cursos de graduação. Todas essas atividades estão intrinsecamente relacionadas à produção escrita de gêneros de textos acadêmicos, considerada como um requisito fundamental da boa formação. Assim sendo, o PET se mostra como um amplo contexto de reflexão sobre a aprendizagem dessa escrita, uma vez que os estudantes gozam não apenas de oportunidades para praticá-la coletivamente, como também da orientação de um parceiro mais experiente: no caso, o tutor do programa, que lhes guiará na produção escrita e na publicação desta.

Com base nesses aspectos, interessei-me em estudar as tendências dominantes na relação dos estudantes do PET com o saber escrever, a fim de conhecer os móbeis e sentidos que configuram tal relação e os guiam na apropriação das práticas de letramento acadêmico ali vivenciadas. No momento inicial desta pesquisa, minha intenção era ajustar o foco da análise apenas para a relação de estudantes do PET de Pedagogia, mantido pela Faculdade de Educação de uma universidade federal brasileira. No entanto, no decorrer da execução da pesquisa, os “petianos”, como são chamados os estudantes que compõem o referido programa, ofereceram-me a oportunidade de entrar em contato com estudantes de PETs relacionados a outros cursos dessa mesma universidade, sobre os quais tratarei mais adiante no decorrer deste texto.

A abordagem da relação com o saber e a relação com a escrita

A abordagem da relação com o saber (CHARLOT, 2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.), desenvolvida a partir de estudos sobre a relação de estudantes da periferia parisiense com o saber e a escola, opõe-se à ideia de fracasso escolar, tão discutida nas décadas de 1970 e 1980, como sendo fruto da reprodução das classes sociais, ou seja, da herança sociocultural dos estudantes. Em contrapartida a essa ideia, Charlot (2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.) e a equipe de pesquisa ESCOL (Educação, Socialização e Coletividades Locais) expuseram que, mesmo sendo inegável a correlação entre a “origem social” e a “situação escolar”, é preciso considerar que também há insucessos com a aprendizagem de sujeitos das classes mais favorecidas e consideráveis avanços nas classes menos abastadas. Assim sendo, a abordagem da relação com o saber é uma interessante perspectiva que toma como foco o sujeito e sua ação no mundo, sendo considerada por seu próprio autor como uma Sociologia do Sujeito.

Nesse sentido, o pesquisador que a adota busca compreender o modo “como o sujeito apreende o mundo e, com isso, como se constrói e transforma a si próprio: um sujeito indissociavelmente humano, social e singular” (CHARLOT, 2005CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005., p. 41). Com base nesses aspectos, meu interesse se voltou para a compreensão não apenas da relação mais ampla com o saber dos estudantes do PET, mas também, e de modo mais específico, da sua relação com a escrita (BARRÉ-DE MINIAC, 2006), a qual se configura, neste trabalho, como a apropriação de uma atividade fundamental no contexto do ensino superior, que é a escrita acadêmica. Justifico esse interesse pelo fato de que, em uma sociedade como a nossa, que tem se organizado predominantemente em torno das práticas escritas de linguagem (BAUTIER, 1995BAUTIER, Élisabeth. Pratiques langagières, pratiques sociales. Paris: L’Harmattan, 1995.) e, por conseguinte, de uma cultura escrita (LAHIRE, 1993LAHIRE, Bernard. Culture écrite et inégalités scolaires. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1993.), não é suficiente que os indivíduos construam saberes apenas superficiais sobre essa atividade, mas sobretudo que aprendam a realizá-la proficientemente, isto é, que saibam escrever com propriedade, seja qual for o contexto em que se encontrem.

Por essa razão, “saber escrever” implica ser letrado, ou seja, ser alguém que se apropriou não somente de regras sintáticas e ortográficas de sua língua, mas especialmente que compreendeu a adequação da linguagem escrita aos mais variados contextos de seu uso. Ao apresentar seus argumentos sobre a teoria da relação com o saber, Charlot (2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.) afirma que para um sujeito se engajar e desenvolver uma atividade intelectual na aprendizagem/apropriação de um determinado saber, como esse sobre o qual estou discutindo, é preciso que ele se mobilize, isto é, é preciso que encontre móbeis (boas razões) os quais o impulsionam a “fazer uso de si próprio como recurso” de aprendizagem. No entanto, para que o sujeito se mobilize, é preciso que ele encontre algum sentido em desenvolver tal atividade, ou seja, que atribua um valor, uma importância para ela em sua vida. Assim sendo, como professor universitário, penso que é preciso refletir um pouco mais sobre o que estamos oferecendo aos nossos estudantes, a fim de que eles se mobilizem a engajar-se na atividade de escrita acadêmica, atribuindo-lhe um sentido que não seja apenas o de cumprir com as tarefas da universidade.

Afinal, a mobilização para qualquer atividade reside e se potencializa na apropriação gradativa de certos domínios de saber, o que se justifica, porque, consoante também defende Bruner (1966BRUNER, Jerome. Uma nova teoria de aprendizagem. Rio de Janeiro: Bloch, 1966., p. 118), nós nos interessamos sempre “pelos assuntos que dominamos [ haja vista ser] difícil, em geral, [termos] interesse em uma atividade, a não ser que consigamos determinado nível de competência”. Nessa perspectiva, o sentido que atribuímos às atividades pelas quais demonstramos interesse passa também pelo modo como nos percebemos ao realizá-las, uma vez que “adquirir saber permite [ao indivíduo] assegurar-se [de] um certo domínio do mundo no qual [ele] vive, comunicar-se com outros seres e partilhar o mundo com eles, viver certas experiências e, assim, tornar-se maior, mais seguro de si, mais independente” (CHARLOT, 2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000., p. 60). Esse, portanto, é um aspecto relevante e que merece uma discussão bastante apurada, porque, seja em qual for o gênero de escrita acadêmica que esteja produzindo seus textos, “saber escrever para seus pares é o principal meio de [o pesquisador] obter reconhecimento em sua área” (MATTE; ARAÚJO, 2012MATTE, Ana Cristina Fricke; ARAÚJO, Adelma Lúcia de Oliveira Silva. A importância da escrita acadêmica na formação do jovem pesquisador. In. MOURA, Maria Aparecida. (Org.). Educação científica e cidadania: abordagens teóricas e metodológicas para a formação de pesquisadores juvenis. Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2012. p. 97-110., p. 107 - itálico no original).

Em outros termos, isso implica o fato de os estudantes necessitarem da apropriação de práticas efetivas de letramento acadêmico (LEA; STREET, 2006LEA, Mary; STREET, Brian. The “Academic Literacies” model: theory and applications. Theory into practice. v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40071622. Acesso em: 15 jul. 2022.
https://www.jstor.org/stable/40071622...
). Mesmo que a denominação letramento acadêmico seja perfeitamente plausível ao contexto da escola de educação básica, ressalto, neste trabalho, o uso das linguagens e dos gêneros de textos acadêmicos que são tipificados no contexto da universidade. Nessa direção, e com o intuito de melhor posicionar o entendimento acerca desse tipo de letramento, tomo como base a perspectiva de Lea e Street (2006LEA, Mary; STREET, Brian. The “Academic Literacies” model: theory and applications. Theory into practice. v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40071622. Acesso em: 15 jul. 2022.
https://www.jstor.org/stable/40071622...
) sobre as práticas letradas desenvolvidas no contexto da universidade, as quais, segundo esses autores, não traduzem apenas o conjunto das habilidades de leitura e de escrita com as quais os estudantes necessitam lidar, mas, principalmente, os sentidos, as identidades em construção e as relações de poder e autoridade que constituem essas práticas sociais de uso da linguagem. Logo, minha proposição de análise é a de que os estudantes desenvolvem uma satisfatória relação com as práticas de escrita acadêmica quando são capazes de se reconhecerem nelas, de se mobilizarem e atribuírem sentido às atividades nas quais a produção textual indica uma interação eficiente e eficaz com seus pares.

Metodologia da Pesquisa

Para apreender a relação dos estudantes do PET com o saber, e mais particularmente com a escrita, trabalhei com 26 sujeitos, sendo 12 do grupo de PET de Pedagogia e os outros 14 de vários cursos de uma universidade federal. Os outros cursos, além da Pedagogia, foram: Enfermagem (2), Farmácia (1), Química (2), Ciências Biológicas (4), Estatística (1), Engenharia Química (1), Engenharia Civil (1) e Engenharia Elétrica (2). Como se pode perceber, trata-se de um conjunto de sujeitos com formação bastante heterogênea, o que torna possível a manifestação de diferenças, aproximações e singularidades entre os estudantes desses cursos, tanto em relação ao trabalho de tutoria no PET como aos usos e à aprendizagem da escrita que são fomentados por esses programas. A intenção, portanto, era analisar os sentimentos desses estudantes em relação à experiência de bolsista do PET, as alterações e inquietações na sua relação com a escrita, em especial aquela concernente aos gêneros de textos acadêmicos e, ainda, as possíveis relações existentes entre as experiências com a escrita, as quais foram construídas no decorrer de suas histórias de vida escolar e na universidade.

Focado nessa ideia, decidi pela entrevista semiestruturada, também conhecida como entrevista semidiretiva ou semiaberta (TRIVIÑOS, 1987, p. 152). Após ter decidido o roteiro de perguntas para a entrevista, passei a construir com os sujeitos uma agenda para realizá-las. A agenda foi construída com dias e horários alternados, de acordo com a disponibilidade de tempo de cada um. Cada entrevista durou em média 50 minutos, sendo que algumas delas ultrapassaram esse tempo devido a perguntas ad hoc que foram acrescidas em função de pedido de esclarecimentos e/ou por causa de digressões que os próprios sujeitos fizeram em relação as suas atividades no programa. Logo nas duas primeiras entrevistas, tomei conhecimento, a partir da fala dos sujeitos, de um movimento mantido pelos estudantes do PET chamado InterPET.

Com a colaboração dos professores, esse movimento tinha o propósito de refletir e deliberar encaminhamentos e decisões sobre as ações coletivas dos Grupos de PETs, incluindo-se, além da universidade na qual a pesquisa foi realizada, outras instituições de ensino superior. Considerando que poderia deixar a pesquisa mais interessante e, quiçá, abrir eventuais oportunidades de comparação entre a relação com a escrita dos estudantes de vários cursos, interessei-me em participar também dos encontros do movimento InterPET. Levado pelos representantes do PET de Pedagogia no InterPET, passei a frequentar as reuniões desse movimento para, do mesmo modo, solicitar-lhes a autorização e poder ampliar o escopo da pesquisa.

A fim de agilizar o processo, surgiu a ideia de usar recursos de tecnologia digital, a qual foi sugerida, inclusive, pelo coordenador geral do InterPET, que me forneceu o endereço eletrônico de um grupo virtual criado por ele a partir dos e-mails de todos os participantes. Ao enviar uma mensagem para esse endereço, ela chegava à caixa de entrada de e-mail de todos os estudantes. Desse modo, apesar de ficar um pouco receoso acerca do volume de informações que poderia receber, decidi aceitar a sugestão e fazer uso de uma ferramenta digital bastante conhecida atualmente na realização de pesquisas: o Google Docs. Mediante essa possibilidade, e com o intuito de não criar nenhum inconveniente ao encontro dos estudantes, enviei o roteiro de perguntas já elaborado pelo aplicativo.

Ao todo, responderam 14 estudantes de vários cursos, os quais já foram citados anteriormente. Para o tratamento e análise dos dados, fiz, inicialmente, a transcrição das entrevistas gravadas, digitando-as em arquivos de Word, na sequência em que foram realizadas e codificando-as com o número dessa sequência e o nome do curso a que se referia. Antes da análise dos dados propriamente dita, essa transcrição foi lida, mais de uma vez, com o acompanhamento do áudio, a fim de que pudesse corrigir possíveis falhas de transcrição. Em seguida, juntamente aos registros de falas, fatos e/ou conversas informais, feitos durante as reuniões dos grupos e com as respostas que me foram enviadas pelo Google Docs, as quais já estavam escritas e codificadas da mesma maneira, deflagrei o processo de análise.

A análise dos dados foi dedicada à descrição de tendências dominantes da relação dos estudantes com a atividade de escrita, por meio das quais busquei ilustrar os sentidos inerentes a essa relação, especialmente no que concerne a sua aprendizagem e a sua utilização. Ao lado de dimensões particularizadas e fundamentais da relação dos estudantes com a escrita, impetradas na construção de três tipos ideais dessa relação (CHARLOT, 2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.), busquei demonstrar situações corriqueiras das suas performances como bolsistas do PET a partir dos relatos fornecidos nas entrevistas realizadas. Cada tendência dominante, representada por um dos tipos ideais, envolve particularmente o lugar que é atribuído aos saberes dos estudantes (seus modos de interpretar a escrita) e foi estabelecida para que seja compreendida a relação com o saber e com a escrita dos sujeitos de um modo geral e não de cada sujeito em particular. Por fim, os nomes reais dos sujeitos estudados foram omitidos na apresentação e na discussão dos dados, a seguir, como forma de proteger suas identidades.

Tendências dominantes na relação dos estudantes com o saber escrever

Passo a apresentar as três tendências dominantes que foram identificadas nos dados e com as quais é possível fazer a caracterização da relação com o saber escrever entre os estudantes investigados no âmbito do PET. Para isso, apresento tais tendências por meio do conceito de tipo ideal, o qual foi proposto por Max Weber e já foi amplamente utilizado nas pesquisas que tratam da relação com o saber, notadamente as que se afinam com a perspectiva dos estudos feitos por Charlot (2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.) e seus colaboradores na equipe ESCOL. De acordo com Charlot (2001, p. 24), “o tipo ideal não é uma categoria: ele é construído a partir de um conjunto de elementos postos em relação, enquanto a categoria é definida a partir de critérios de pertinência ou de não-pertinência a esta categoria”. Assim, cada tipo ideal corresponderá a uma atividade dos estudantes, em nosso caso, relacionada à prática da escrita, para a qual eles têm estabelecido um motivo, uma meta e uma finalidade que são bastante específicos e altamente singulares.

Todos os tipos ideais de relações com o saber escrever possuem uma coerência interna, ou seja, uma tendência dominante que os diferenciam entre si, não sendo possível descrever diretamente a realidade investigada, posto que se trata de construções abstratas feitas pelo pesquisador, que o permitem, de modo bastante produtivo, interpretar essa realidade (CARDOSO, 2009CARDOSO, Maria Inês Almeida. A relação com a escrita extraescolar e escolar: um estudo no ensino básico. Tese (Doutorado em Didática) - Universidade de Aveiro, Departamento de Didática e Tecnologia Educativa, Aveiro/Portugal, 2009.). Assim sendo, um dos procedimentos possíveis e recomendáveis é o de relacionar cada um dos sujeitos participantes da pesquisa a cada um dos três tipos ideais, conforme está demonstrado no quadro a seguir.

QUADRO 1
ASSOCIAÇÃO DOS SUJEITOS AOS TIPOS IDEAIS (OU TENDÊNCIAS DOMINANTES DA RELAÇÃO COM O SABER ESCREVER NO CONTEXTO DO PET)

Pelo quadro apresentado, é possível visualizar a identificação dos estudantes com os tipos ideais construídos. Cada estudante pode ser considerado como o representante mais próximo ou mais distante de um determinado tipo ideal sem, no entanto, deixar de partilhar mais de uma tendência dominante na relação com a escrita (BARRÉ-DE MINIAC, 2006). Isso ocorre porque, conforme discuti neste texto, o tipo ideal não é flagrável empiricamente na realidade, haja vista se tratar sempre de uma construção abstrata do pesquisador. Nesse sentido, ao expor os exemplos de tendências dominantes identificadas nas falas dos sujeitos, é possível constatarmos a repetição de estudantes nos demais tipos ideais.

Com base em uma visualização rápida, o que chama a atenção de imediato é que os estudantes do curso de Pedagogia se distribuem de modo mais equânime entre as três tendências dominantes da relação com a escrita, que foram identificadas nos dados. Enquanto isso, os estudantes das outras áreas, predominantemente das ciências conhecidas como naturais e exatas, identificam-se quase que exclusivamente com apenas dois desses tipos ideais. Isso pode significar, por parte dos estudantes de Pedagogia, uma relação com a escrita marcada pela multiplicidade de sentidos e a alteração de objetivos, opostamente aos demais estudantes, cuja relação com a escrita tende a ser mais homogênea, talvez em função de sua formação mais técnica do que pedagógica. Não obstante essa interpretação, devo assegurar que a análise não se esgota apenas nos processos que passarei a apresentar, mas pode se iniciar com eles e engendrar outras interpretações, independentemente, do referencial de cada analista.

Vale salientar que, embora todos os estudantes tenham falas interessantes sobre os aspectos analisados nos três tipos ideais, as falas exibidas a seguir são representativas em relação aos demais estudantes. A não apresentação de todas as falas não ocasiona prejuízos para este texto, uma vez que muitas delas serviriam apenas de reforço na demonstração das tendências dominantes analisadas. Por fim, os limites de espaço neste texto também foram decisivos para a seleção das falas que aqui se encontram analisadas, sem prejuízos aos seus propósitos, como já dito.

Base para o Futuro

Neste primeiro tipo ideal, os estudantes que com ele foram identificados são aqueles que entraram no PET com a expectativa de estar entrando em um caminho “sem volta” para o futuro, tendo como guia, nesse caminho, a aprendizagem da escrita acadêmica. O futuro, nesse caso, é um elemento simbólico utilizado para designar situações desejadas, bastante diferentes e que vão desde o atendimento, a curto prazo, das demandas do PET e das várias disciplinas do curso de graduação, incluindo o trabalho de conclusão de curso (TCC), até aquelas de médio e longo prazos, como o ingresso na pós-graduação, dando prosseguimento aos seus estudos, e as oportunidades de emprego deles decorrentes. Por isso, nesse contexto, aprender a escrever significa preparar-se, munir-se de condições que lhes permitam futuramente ser e estar no mundo acadêmico, usufruindo das mesmas benesses desfrutadas por aqueles que lhes antecederam acadêmica e profissionalmente.

O PET exige que eu escreva a escrita acadêmica, né?. Ele me cobra muito a escrita acadêmica, essa questão de pesquisa, porque, antes de eu entrar aqui, eu não publicava, … eram só os trabalhos mesmo da disciplina e pronto! Mas, o PET, ele exige que você monte os projetos de extensão, que você escreva artigos para publicações em eventos, pois é necessário e é cobrado também. Aqui, a gente já teve a possibilidade, né?, eu não estava ainda, mas, os meninos já escreveram um livro com o tutor. Então, … eu já trabalho essa questão do Português, da escrita, né?, da coesão … Essas coisas assim, eu já fico com mais cuidado por ser uma obrigação da bolsa. (Regina - Pedagogia).

Aprendo a escrever para atender as exigências do curso e do PET e porque aprender a escrita acadêmica é algo importante para alguém que deseja adentrar o mercado de trabalho. (Iris - Engenharia Elétrica).

Dessas falas é possível inferir que a escrita, enquanto um objeto de saber em si, não está, no tipo ideal em análise, só no foco do desejo dos sujeitos, pois é vista como um instrumento de ascensão social, tanto no espaço acadêmico como nas situações futuras de trabalho profissional. A tendência dominante é que essa relação com a escrita seja mais marcada por aspectos utilitaristas do que pelo desejo de proficiência nessa atividade, embora o desejo também esteja presente em alguma medida.

A escrita acadêmica tem importância tanto na graduação, para produção de trabalhos acadêmicos, como na vida diária e, futuramente, profissional. (Lua - Enfermagem).

O motivo de querer aprender a escrita acadêmica é porque eu realmente gosto de leitura e escrita, então, não é uma coisa que eu faço forçado. Eu sempre gostei realmente de escrever. Mas, o PET me motiva mais por eu querer produzir sempre trabalhos novos e querer estar no nível de outros estudantes aqui do próprio PET, que estão em níveis mais avançados do que eu, principalmente devido ao tempo de produção textual deles. Então, eu sempre tento estar acompanhando … esse é um motivo a mais: competição mesmo. (Claudia - Pedagogia).

Logo, a importância mais acentuada de aprender a escrever está em alcançar determinados objetivos pessoais e em cumprir dedicadamente as tarefas da bolsa, ajustando-se às obrigações e aos compromissos sinalizados futuramente pelo programa, em função da prestação de contas que é devida às suas instâncias mantenedoras.

Um aspecto relevante de ser salientado encontra-se presente tanto na fala de Regina como na de Claudia: a exigência e a possibilidade de publicação. Segundo essas estudantes, o PET exige que elas produzam trabalhos a serem apresentados e publicados em eventos científicos como sendo parte de suas atribuições enquanto bolsista. Nesse sentido, aqueles que ainda não passaram por essa experiência veem-se um pouco distantes dos colegas que estão, cronologicamente, a sua frente. Impulsionadas, pois, pelo desejo de pertencimento ao grupo, elas se veem impelidas a aprender a escrever, seguindo os moldes da escrita formal em língua portuguesa, o que, segundo afirmam, demanda todo o cuidado e a atenção de quem, mesmo já tendo sido selecionado, ainda está “competindo” para garantir sua vaga naquele espaço de relações.

Além disso, falando mais especificamente do PET de Pedagogia, o fato de os estudantes já terem publicado um livro, sob o incentivo e a abertura dados pelo tutor, faz com que Regina e Claudia desejem, em um curto espaço de tempo, participar dessa mesma experiência. Afinal, suas falas permitem inferir que aprender e praticar a escrita acadêmica apenas para atender aos trabalhos das disciplinas do curso não legitima sua identidade de bolsista do PET. É preciso mais do que isso, haja vista o fato de que estar em um programa como esse, no qual a aprendizagem da escrita se faz meio para o progresso acadêmico e profissional, representa uma porta aberta para o futuro. Assim, o programa, o tutor, os colegas e os demais professores do curso denotam, para essas estudantes, fontes de mobilização para o aprendizado da escrita que as conduzirá pelo caminho do futuro desejado.

Esse futuro desejado apresenta-se de modo bastante explícito e particularizado na fala de Iris, assim como ampliado e dinâmico em possibilidades na fala de Lua. Adentrar preparada no mercado de trabalho parece ser o que deseja a estudante de Engenharia Elétrica, cuja base dessa preparação se encontra na apropriação da escrita acadêmica. Na mesma direção, porém com um posicionamento mais amplo, a estudante de Enfermagem fala da importância da escrita não apenas para o âmbito profissional, mas também para a própria vida cotidiana. Esses modos de compreensão da escrita se coadunam, outrossim, com as experiências dos estudantes que são anteriores à entrada no PET, visto que a relação com a escrita, assim como a relação com o saber, está inserida na própria história de vida desses sujeitos.

O objetivo a ser alcançado é criar uma base de conhecimentos variados sobre a escrita, os quais podem ser considerados como os meios utilizados para a concretização de práticas sociais futuras e que, supostamente, só poderão ser desempenhadas por quem tiver o domínio desses conhecimentos. Desse modo, o atendimento às próximas tarefas do programa e exigências do curso, bem como o ingresso na pós-graduação e no mercado de trabalho, são vistos como várias faces de um projeto de futuro que lhes aguarda e para o qual eles precisam estar bem-preparados. Portanto, o papel dos professores é o de serem auxiliares no atendimento a tais expectativas, independentemente da escrita como elemento de aprendizagem.

Suprimento de necessidades

Neste segundo tipo ideal, participa boa parte dos estudantes que também foram associados ao tipo anterior. A diferença básica entre um e outro é a de que, enquanto no primeiro os estudantes esperam aprender muito no próprio contexto do programa, neste segundo tipo ideal, a tendência dominante é a de transferência de saberes já apropriados anteriormente sobre a escrita para o atendimento às obrigações dos estudantes enquanto bolsistas do PET. Essas obrigações acabam gerando outras necessidades em relação aos usos da escrita, as quais não são supridas nos cursos de graduação e continuam sem ser supridas pelas ações planejadas no programa.

Isso se deve, em grande medida, aos aspectos “ocultos” em torno do letramento, os quais, segundo Brian Street (1984STREET, Brian. Literacy in theory and practice. Cambridge: CUP, 1984.), têm a ver com o ensino, pois, assim como ocorre na escola de educação básica, a universidade também exige algumas tarefas dos estudantes para as quais fornece pouca orientação e/ou acompanhamento, mesmo quando se trata de estudantes bolsistas, como é o caso do PET. O resultado disso é que os sujeitos veem sua atuação no programa reduzida apenas ao cumprimento de tarefas burocráticas. Assim sendo, eles não se sentem aprendendo muito sobre os usos da escrita na condição de bolsistas propriamente dita, isto é, por meio das orientações que lhes são necessárias como integrante de um programa de educação tutorial.

Como consequência, e como forma de “sobrevivência” no programa, eles acabam se utilizando de saberes que foram construídos em outras situações, seja por eles mesmos ou pelos colegas que lhes antecederam.

Eu fui alfabetizada fora da escola. Quando eu cheguei na escola, eu já́ sabia ler e escrever. Tanto é que eu nem fiz, na época, ... eu pulei a alfabetização. Do mesmo modo, o PET, ele tem uma peculiaridade, pelo menos pra mim! Nesse quesito, eu posso dizer que o PET não acrescentou nada no meu sentido de escrita, apenas na demanda de eu escrever mais, mas, de formação, de eu aprender no PET ... eu não tive! Como eu disse, eu já vim com a bagagem dessa escrita de relatórios técnicos de outro lugar e aí eu apliquei aqui. Essa, de relatórios acadêmicos de outro lugar, eu apliquei aqui. Então, assim, dentro do PET, eu não sinto que tem nenhuma formação de escrita, nenhum eixo dessas coisas assim. (Tereza - Pedagogia).

Como podemos perceber na fala de Tereza, sua relação com a escrita, em especial com a produção de textos nos gêneros demandados pelo programa, parece não sofrer nenhuma modificação pelo fato de ela ser bolsista. Assim como os demais estudantes que se associam a esse tipo ideal, Tereza afirma categoricamente que uma possível colaboração do PET em sua formação como autora de textos técnicos e/ou acadêmicos pode estar no fato de demandar que eles escrevam mais, não estando o referido programa oportunizando, porém, uma escrita melhor e mais significativa, segundo seus próprios padrões de exigência. Logo, para o atendimento a essa demanda, parece não haver uma ação formadora correspondente que tenha acrescentado saberes sobre os usos da escrita para além daqueles que ela já se apropriou.

Esse sentimento de poucos acréscimos aos saberes sobre a escrita no PET parece fazer uma ponte, de certo modo, com experiências letradas precoces construídas pelos sujeitos associados a esse tipo ideal, principalmente em comparação a seus pares escolares na infância.

Eu comecei a namorar muito cedo e a minha mãe ela era muito carrasca, né? […] Aí, ela dizia assim: “- Você só vai descer pra namorar de noite se você deixar uma redação feita!”. Aí, tipo assim, isso me condicionou. Então, pra eu namorar, eu tinha que deixar um texto, redação, cópia, qualquer coisa... Eu acho que, de certa forma, isso influenciou, e como eu tinha diário, aí, eu fazia história dos meus namorados, eu tenho isso guardado até hoje. Eu acho que isso foi coisa de adolescência, e tudo, mas, isso me ajudou bastante a desenvolver introdução, conclusão, desenvolvimento e tal. Então, eu comecei a escrever muito cedo, tipo doze anos eu já escrevia, mas, se desenvolveu bem mais na escola, né? Então, eu não tinha muita dificuldade de escrever na escola. (Érika - Pedagogia).

Não lembro muito bem, mas sei que aprendi foi cedo, pois minha mãe, por ser professora, sempre me ensinou em casa, o que contribuiu para que eu fosse adiantada em relação aos meus colegas de sala. (Iris - Engenharia Elétrica).

Nessas falas, as estudantes contam sobre o modo como aprenderam a escrever. Fazem menção ao fato de que aprenderam sobre a escrita sem que essa aprendizagem estivesse necessariamente vinculada ao exercício tradicional das tarefas de estudante. Portanto, não se constituíram utentes da escrita seguindo as etapas costumeiras que a escola lhes tinha para oferecer e/ou proporcionar, ocorrendo, inclusive, como no caso de Tereza, a “dispensa” de uma etapa bastante habitual da vida escolar que é a série ou ano da alfabetização.

Ao considerar, com Charlot (2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.), que aprender envolve um processo simultâneo de hominização, de socialização e de singularização do sujeito, posso inferir que a precocidade das aprendizagens relatadas acima trouxe para esses estudantes, em sua infância, muitos conflitos na ambiência escolar. Digo isso porque a experiência tradicional, na grande maioria das escolas, é aquela que resulta da tentativa de homogeneização do saber, mesmo com todos os avanços que já atingimos no campo educacional. As representações sobre o que é ensinar e aprender na escola ainda nos colocam frente a muitas discussões que podem ser produzidas a partir da denominação de programas como o PAIC (Programa de Alfabetização na Idade Certa), inicialmente elaborado no estado do Ceará e, atualmente, ampliado para todo o território nacional como PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa). Assim sendo, se aprender é um processo que nos socializa, mas que também nos singulariza, a questão a ser discutida, e que não me cabe apropriadamente desenvolver aqui, seria: qual é mesmo a idade certa para se alfabetizar uma criança?

À época da escola, os conhecimentos de leitura e de escrita que “sobravam” a esses estudantes, comparativamente aos companheiros de turma, podem ter tornado esse ambiente um lugar sem sentido e pouco atrativo para eles, visto que muito do que havia para ser ensinado já tinha sido aprendido, pelo menos no que diz respeito à codificação e decodificação dos símbolos da escrita alfabética. Tudo o que eles talvez menos quisessem seria desempenhar o papel do estudante profissional, no qual ouvir atentamente o professor e executar corretamente as tarefas escolares seria o termômetro para “um sucesso” do qual eles já estavam familiarizados. Dessa maneira, concluo que, ao chegarem à escola com um razoável domínio de leitura e de escrita, os estudantes acima, ainda que por razões diferentes, devem ter se sentido tão deslocados naquele espaço quanto poderiam estar se sentindo em relação ao contexto do PET.

Marca de participação

Os estudantes associados a esse terceiro tipo ideal se posicionam frente à escrita como um conteúdo intelectual, cuja apropriação lhes dá imenso prazer e satisfação pelos feitos que, com ela, são possíveis de serem realizáveis. Um desses feitos é o de eternizar sua passagem pelo mundo e marcar sua participação na história que estão construindo nesse mundo, satisfazendo a eterna necessidade dos seres humanos de se comunicarem uns com os outros e de deixarem registrada a sua existência. Como sabemos, o homem, desde a Pré-História, buscou fazer isso de várias maneiras, desde a emissão de sons, passando pelo envio de sinais de fumaça até chegar a marcas duráveis nas paredes das cavernas. Nesse sentido, saber escrever, para esses sujeitos, implica uma atividade direcionada pelo desejo de explorar suas possibilidades pessoais, buscando compreender melhor o espaço a partir do qual e para o qual eles estão comunicando, ocupando uma posição subjetiva dentro deles (CHARLOT, 2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.).

O que os estudantes falam sobre a escrita, ou seja, suas opiniões e atitudes acerca dessa atividade (BARRÉ-DE MINIAC, 2006), não tem a ver diretamente com os procedimentos e as ações realizados no processo de apropriação do saber escrever, mas traduz, sobretudo, o que é importante para eles no que diz respeito ao “aprender a escrever”. Assim sendo, o sentido da aprendizagem está no uso da escrita como “objeto saber”, sendo o estudante um sujeito consciente de suas conquistas e avanços no interior desse processo.

Eu tenho pesquisado a questão das religiões de matriz africana. Então, assim, ... um dos motivos que me levaram a pesquisar isso é pelo fato de essas religiões serem de tradição oral e pouco se tem de registro, né?. Então, busco aprender a escrever … pelo meu futuro acadêmico e também nesse viés do que eu tenho produzido hoje, no sentido da minha fé. Pela necessidade de ter esse registro acadêmico dessa tradição, que é oral e que é fundante do país. Além disso, tenho uma filha que tem em casa uma mãe que estuda, ela tem em casa uma mãe que escreve. Então, aprendo para que os meus escritos possam servir de referência pra ela um dia. … Para onde eu quero ir, preciso escrever, não posso escrever de qualquer forma, eu tenho que escrever da melhor forma que eu puder. Então, escrever pra mim sempre vai ser um desafio. Eu não vou dizer que eu já sei escrever, mas eu estou em aprendizagem, né?. Eu percebo também que, a cada dia que passa, os meus textos ficam melhores, não falo de tamanho, eu falo de conteúdo, falo de apropriação do que eu venho escrevendo. E é isso! (Lívia - Pedagogia).

O que a gente escreve é pra sempre! É … como é que é? Plante uma árvore, escreva um livro e faça um filho, né? Eu já fiz os três, diz aí! Pôh ... tendo que fazer outro filho, plantar outra árvore e escrever outro livro. (Risos). Mas, essa história de escrever e de escrever um livro foi muito bacana! É tão impactante, porque, assim, eu tô em “estado de graça” com essa questão do livro que o PET publicou com nossos trabalhos, porque ... a publicação, ela rendeu uma série de outros convites pra mim. Querendo ou não, pôh, eu vou pra Bahia e vou levar uns dez livros desses pra vender lá. E dizer: - “Oh, o artigo ta aqui, galera”! Existe um poder simbólico nisso‼ (Marcos - Pedagogia).

A partir dessas falas, é possível fortalecer a ideia de que a entrada no PET significou um “divisor de águas” nos letramentos acadêmicos desses bolsistas, pois, talvez, antes de participar do programa, eles jamais imaginassem que um dia fossem se afirmar como produtores de textos acadêmicos, isto é, como sujeitos que sabem escrever para essa esfera humana de comunicação e que são reconhecidos publicamente por isso. Essa observação se justifica porque é inconteste o fato de que há muitos estudantes que passam sua graduação inteira sem vivenciar outras experiências acadêmicas para além de simplesmente assistir às aulas, fazer provas e/ou apresentar seminários. Nessa perspectiva, não é de se estranhar que, ao serem inseridos em oportunidades como as que oferecem o PET, eles percebam avanços qualitativos em seus letramentos, como aqueles aos quais Lívia e Marcos fazem uma clara menção.

Ainda sobre esse mesmo ponto de discussão, e tomando ainda as falas de Lívia e Marcos como referência, outro aspecto relevante a ser destacado nos relatos acima tem a ver com a experiência concreta de esses bolsistas poderem vivenciar a pesquisa acadêmica, para a qual o domínio da escrita é imprescindível (MATTE; ARAÚJO, 2012MATTE, Ana Cristina Fricke; ARAÚJO, Adelma Lúcia de Oliveira Silva. A importância da escrita acadêmica na formação do jovem pesquisador. In. MOURA, Maria Aparecida. (Org.). Educação científica e cidadania: abordagens teóricas e metodológicas para a formação de pesquisadores juvenis. Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2012. p. 97-110.). No processo de construção do conhecimento científico, materializado pela pesquisa, há muitos letramentos inerentes a essa atividade e que se configuram como saberes que Lívia e Marcos certamente tiveram de aprender, como, por exemplo, estudar para se apropriar dos conceitos teóricos relativos a seus temas de estudo; estabelecer questões e objetivos para as suas pesquisas; aprender a coletar e a analisar os dados; e, por fim, escrever e apresentar artigos como uma expressão acadêmica da sistematização de suas descobertas. Geralmente, a maioria desses aspectos ajuda a compor uma significativa parte do perfil ou da identidade daqueles que se encontram no universo acadêmico. Assim sendo, os estudantes associados ao tipo ideal em análise, unanimemente do curso de Pedagogia, revelam uma representação sobre a escrita como uma marca singularizada de sua passagem pelo PET e, consequentemente, pela universidade, pautados notoriamente pelo desejo de participação nessa construção identitária como pesquisador e escritor acadêmico.

Considerações finais

Os tipos ideais de relação com o saber e com a escrita, formulados a partir dos posicionamentos dos estudantes sobre o aprender a escrever, permitiram-me identificar e analisar as tendências dominantes e, por conseguinte, os móbeis e sentidos que perpassam a referida relação. Assim, no primeiro desses tipos ideais (base para o futuro), o objetivo a ser alcançado pelos estudantes com a aprendizagem da escrita é a criação de uma gama de conhecimentos variados sobre o ato de escrever na universidade, os quais podem ser considerados como os meios utilizados para a concretização de práticas sociais futuras, as quais supostamente só poderão ser desempenhadas por quem tiver o domínio desses saberes. No segundo tipo ideal (suprimento de necessidades), os estudantes a ele associados objetivam desempenhar com sucesso as tarefas do PET sob sua responsabilidade, valendo-se, para isso, da transferência de saberes já apropriados sobre a escrita para o atendimento as suas obrigações e necessidades enquanto bolsistas do programa. Por fim, no último dos tipos ideais construídos (marca de participação), o objetivo que orienta a aprendizagem sobre os usos da escrita simboliza o modo como os estudantes decidem escrever, sobre o que querem escrever e a maneira pela qual se disponibilizam para escrever, uma vez que essa aprendizagem se apoia sobre experiências profundamente pessoais dos sujeitos e, por isso, o produto que dela resulta leva sempre a marca dos desejos que a impulsionaram.

Se o letramento, como afirma Bazerman (2007BAZERMAN, Charles. Escrita, gênero e interação social. São Paulo: Cortez, 2007., p. 21), compõe “uma matriz de formações culturais e sociais complexas da sociedade moderna com a qual respondemos a instituições, crenças, grupos de pessoas localizados longe de nossa vida diária e que englobam muito mais pessoas do que se pode imaginar”, então é nosso papel, seja na condição de tutor de programas como o PET ou, como é o meu caso, na condição de professor de disciplinas que trabalham diretamente com o ensino da escrita, ajudar os estudantes a se prepararem para dar essa resposta. No entanto, tornar-se-á quase impossível fornecer essa ajuda sem conhecer a relação com o saber e com a escrita dos discentes, pois por meio dela é que poderemos buscar o fortalecimento do que mobiliza e dá sentido ao engajamento desses sujeitos no processo de apropriação da escrita e dos letramentos demandados por esse processo. Afinal, ao receberem de nós tarefas importantes, especialmente envolvendo a escrita, os estudantes precisam receber, junto com essa tarefa, as orientações de que necessitam para que tenham sucesso nos investimentos feitos durante sua realização.

REFERÊNCIAS

  • BARRÉ-DE MINIAC, Christine. Du rapport à l’écriture à l’apprentissage des formes discursives. Revista Filologia e Linguística Portuguesa, n. 8, p. 203-219, 2006. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/273860682_Du_rapport_a_lecriture_a_lapprentissage_des_formes_discursives Acesso em: 15 jul. 2022.
    » https://www.researchgate.net/publication/273860682_Du_rapport_a_lecriture_a_lapprentissage_des_formes_discursives
  • BAUTIER, Élisabeth. Pratiques langagières, pratiques sociales. Paris: L’Harmattan, 1995.
  • BAZERMAN, Charles. Escrita, gênero e interação social. São Paulo: Cortez, 2007.
  • BRUNER, Jerome. Uma nova teoria de aprendizagem. Rio de Janeiro: Bloch, 1966.
  • CARDOSO, Maria Inês Almeida. A relação com a escrita extraescolar e escolar: um estudo no ensino básico. Tese (Doutorado em Didática) - Universidade de Aveiro, Departamento de Didática e Tecnologia Educativa, Aveiro/Portugal, 2009.
  • CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
  • CHARLOT, Bernard. A noção de relação com o saber: bases de apoio teórico e fundamentos antropológicos. In. CHARLOT, Bernard. (Org.) Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 15-31.
  • CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.
  • LAHIRE, Bernard. Culture écrite et inégalités scolaires. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1993.
  • LEA, Mary; STREET, Brian. The “Academic Literacies” model: theory and applications. Theory into practice. v. 45, n. 4, p. 368-377, 2006. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40071622 Acesso em: 15 jul. 2022.
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  • MATTE, Ana Cristina Fricke; ARAÚJO, Adelma Lúcia de Oliveira Silva. A importância da escrita acadêmica na formação do jovem pesquisador. In. MOURA, Maria Aparecida. (Org.). Educação científica e cidadania: abordagens teóricas e metodológicas para a formação de pesquisadores juvenis. Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2012. p. 97-110.
  • STREET, Brian. Literacy in theory and practice. Cambridge: CUP, 1984.
  • TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
  • 1
    Este trabalho é resultado de estágio de pós-doutorado em Educação realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Este estágio e a pesquisa realizada sob a orientação do Prof. Bernard Charlot (Paris 8/UFS), estiveram vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Contemporaneidade (EDUCON) da mesma universidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    11 Jul 2023
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