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Estrangeirismos: guerras em torno da língua: o fardo furado do estrangeirismo

RESENHAS

Estrangeirismos - guerras em torno da língua: o fardo furado do estrangeirismo

Gilberto de Castro

Professor Doutor do Departamento de Teoria e Prática de Ensino, do setor de Educação, da Universidade Federal do Paraná. castrog@uol.com.br

FARACO, C. A . Estrangeirismos - guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001.

Num momento em que proliferam na mídia programas que prescrevem como devemos nos comportar quando usamos a nossa língua portuguesa, em que antigos professores de cursinho, movidos a muita simpatia e nenhuma ciência, ganham espaço na TV, antes normalmente só destinado aos artistas do momento, nada parece mais bem-vindo do que o livro Estrangeirismos - guerras em torno da língua, publicado pela Parábola, no final do ano passado. Isso porque, embora o objetivo principal do texto seja o debate sobre as verdades e mentiras em torno da questão dos estrangeirismos, as idéias que o livro apresenta vão bem além dos problemas da adesão ou aversão às palavras estrangeiras presentes na nossa e em outras línguas, fornecendo vasto material para uma boa reflexão sobre a geografia da língua real que usamos todo dia, na escola e no trabalho.

O livro, escrito por lingüistas de diferentes pontos do país, foi organizado pelo professor Carlos Alberto Faraco e reúne oito artigos que, segundo os editores, têm origem "num equívoco, o projeto de lei 1676/1999 - sobre 'a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa' - do deputado Aldo Rebelo" (EDITORES, 2001, p. 7), do PC do B. No firme objetivo de combater as idéias estapafúrdias defendidas pelo deputado Rebelo no seu projeto, os autores constróem, a partir das informações hoje já consagradas pelos estudos lingüísticos de origem não normativa, uma argumentação sólida e rica em exemplificação, que transforma os propósitos do autor do projeto num emaranhado bizarro de confusões, desencontros e ignorância sobre as questões de linguagem. Afinal, embora a lingüística ainda seja bastante ignorada pela mídia, como afirma o organizador do livro, "desde o fim do século XVIII, vem-se construindo um saber científico sobre as línguas humanas. Essa ciência - a lingüística - já está solidamente estabelecida nas universidades do mundo todo e vem acumulando um saldo apreciável de observações e análises que corroem até o cerne tanto a reverência quase religiosa às velhas gramáticas, quanto o discurso mítico do senso comum." (FARACO, 2001, p. 37-38)

E é a partir dos referenciais da Lingüística que os autores vão conceituar estrangeirismo como o "emprego, na língua de uma comunidade, de elementos oriundos de outras línguas. No caso brasileiro, posto simplesmente, seria o uso de palavras e expressões estrangeiras no português." (GARCEZ; ZILLES, 2001, p. 15). Em seguida, cada um a seu modo, desencadeiam um verdadeiro arsenal argumentativo a respeito dos mitos que cercam as discussões sobre o tema do estrangeirismo no Brasil e no mundo.

Eles argumentam, primeiramente, a favor da normalidade da presença de palavras estrangeiras em qualquer língua humana, mostrando que o uso dessas palavras aqui e ali em nada garante a sua permanência absoluta numa língua, pois "embora pareça fácil apontar, hoje, home banking e coffee break como exemplos claros de estrangeirismos, ninguém garante que daqui a alguns anos não estarão sumindo das bocas e mentes, como o match do futebol e o rouge da moça; assim como ninguém garante que não terão sido incorporados naturalmente à língua, como o garçom e o sutiã, o esporte e o clube." (GARCEZ; ZILLES, 2001, p. 18) E isso acontece justamente porque não há como negar que, primeiro, toda língua humana muda de forma inevitável e, segundo, que essa mudança não busca nenhum fim inexorável e bom, já que "a língua não é um organismo vivo: assim não podemos apreendê-la em termos evolucionistas, como algo que nasce, cresce, envelhece e morre" (BAGNO, 2001, p. 67). Ela "simplesmente muda...(...). Muda para atender às necessidades das mulheres e crianças que a falam." (EDITORES, 2001, p. 8)

Apesar da indignação com o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo, os autores não revelam surpresa diante da sua proposta, porque segundo apontam no livro, tanto o fascínio quanto o temor em relação à língua estrangeira sempre foram grandes ao longo da história. Sobre o fascínio, Bagno exemplifica, dizendo que "No século XIX (...), a aristocracia de todo o mundo só falava francês, ficando as línguas nacionais relegadas ao resto da população" (BAGNO, 2001, p. 58). A aversão à palavra estrangeira, por sua vez, sempre foi marcada pelo medo e pela ignorância. É flagrante a motivação elitista e preconceituosa dos cavaleiros do apocalipse lingüístico que se arvoraram a defender as suas línguas da capciosidade e corrupção estrangeira ao longo da história. Com a nossa língua não foi diferente, daí a pertinência da afirmação de que

A falta de informação científica é evidente em todas as afirmações do purismo lingüístico que, há vários séculos, vêm jurando de pé junto que a língua portuguesa está sendo assassinada, que dentro de poucos anos ela não vai existir mais, que os estrangeirismos vão destruir a estrutura do português, que o desprezo dos falantes pela sua própria língua vai condená-la ao desaparecimento etc., etc. (BAGNO, 2001, p. 60)

Esse temor infundado de que a língua portuguesa, por causa dos estrangeirismos, estaria sendo esfacelada nas suas raízes mais profundas, na sua estrutura e organização, também é fortemente combatido pelos autores porque "estando sólidos a gramática da língua (fonologia, morfologia e sintaxe) e seu fundo léxico comum, não há nenhuma razão para temer qualquer desvirtuamento do idioma em virtude de algumas centenas de empréstimos." (FIORIN, 2001, p. 116) Nesse sentido, tudo aquilo que vier de fora para ficar, dificilmente ficará imune ao processo de adaptação gerado pelas características próprias da nossa língua materna, como o que aconteceria, por exemplo, com a apropriação de alguns verbos do inglês: " Se adotarmos start, logo teremos estartar (e todas as suas flexões), pois nossa língua não tem sílabas iniciais como st-, que imediatamente se tornam est. Veja-se bem: não só acrescentamos uma vogal, mas ela será um 'e' (...). A forma nunca será startar, nem oastartar ou ustartar, nem estarter ou estartir, nem printer ou printir, nem atacher ou atachir etc., etc., etc." (POSSENTI, 2001, p. 171-172).

Uma outra argumentação interessante, que detona com as justificativas simplistas do deputado Rebelo, concentra-se na ingenuidade da sua proposta em considerar que apenas um punhado de palavras estrangeiras, na sua maioria especializadas e avulsas, que operam e aparecem em apenas alguns contextos e para grupos normalmente restritos, possa criar no povo brasileiro - essa sofrida abstração - empecilhos comunicativos ou danos profissionais. Conforme Schmitz,

Cabe lembrar que nos textos autênticos elaborados por especialistas em diferentes campos do conhecimento e publicados em revistas, os próprios empréstimos estrangeiros pelos diferentes autores aparecem "espalhados" no texto e nem sempre são as palavras de maior freqüência. Seria de grande utilidade, sem dúvida, identificar os estrangeirismos e sua freqüência nos textos técnicos nas áreas de economia, informática, administração, esportes e agricultura. (SCHMITZ, 2001, p. 99)

Mas acontece que nessas e em outras áreas especializadas das atividades sociais, não são só as palavras estrangeiras que não são compreendidas. Como insistem em nos vender a idéia de que somos todos irmãos por parte de língua - embora não por parte de pai! - acabamos por acreditar que falamos e compreendemos o português, como se essa nossa língua, para muitos de nossos menores e maiores abandonados, fosse algo fácil realmente, uniforme e altamente codificada. Seguindo essa idéia aparentemente inofensiva,

...o estrangeirismo ameaça a unidade nacional porque emperra a compreensão de quem não conhece a língua estrangeira. Isso seria equivalente a afirmar que um enunciado como "Eu baixei um programa novo de computador" seria plenamente compreensível por todos os brasileiros de qualquer rincão, independentemente do nível de instrução e das peculiaridades regionais da fala e escrita (justificativa dos projetos de lei antiestrangeirismos), porque não contém estrangeirismos, mas isso não se passaria com o enunciado "Eu fiz o

download

de um

software

novo", que seria incompreensível a qualquer brasileiro que não conhecesse inglês, em função dos estrangeirismos. (GARCEZ; ZILLES, 2001, p. 29-30)

Aqui, certamente serão muito bem vindas as perguntas: "Quantos alfabetizados brasileiros seriam capazes de ler e entender o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo ou qualquer outro projeto de lei que se redige no Congresso Nacional? Quantos seriam capazes de entender a maioria dos discursos que lá poderiam escutar?" (GUEDES, 2001, p. 127) Sobre a ilusão de que falamos todos uma língua única - bela e justa! - e que nossa compreensão é sempre mútua e construtiva, e que por isso devemos juntos protegê-la das invasões, paira, quase nada dissimulada, a idéia do controle mais tacanho. É por isso que Zilles vai afirmar que:

Soa excessivo, enfim, porque esse tipo de proposta combina mais com regimes de exceção, em que vigora o autoritarismo: basta lembrar o que ocorreu na ditadura Vargas, quando os (descendentes de) imigrantes foram proibidos de usar suas línguas de origem e, por conta disso, tiveram suas casas invadidas, seus livros queimados, suas escolas fechadas, seus professores proibidos de dar aulas em outras línguas que não o português, mesmo que fosse em casa, quando não eram levados à delegacia para cantar o hino nacional (...). Com certeza os autores desses projetos de lei não estavam pensando nisso quando fizeram suas propostas, mas é importante que saibam que elas legitimariam esse tipo de evento social abusivo, entre outros, é claro. (ZILLES, 2001, p. 146)

Todos os autores de Estrangeirismos... temem esse provável e autoritário controle que decorreria da implantação de um projeto como o do deputado Rebelo. Além dos tempos de Vargas, em muitos dos textos do livro, é possível também ver rememorado o drama doloroso do abafamento da língua geral. Falada pelos negros, índios, mestiços e brasileiros nativos - coincidentemente a maioria da população brasileira - ela padeceu sob a pena autoritária do Marquês de Pombal, quem impôs de vez a língua portuguesa, não por ser essa a mais bela e bem acabada, mas porque era a língua da minoria dominante e poderosa.

Por causa da história e da falta de cientificidade dos argumentos usados no projeto do deputado, os autores também se perguntam por que se incomodar tanto com a língua - que vai tão bem, obrigado! - como se ela fosse uma das grandes vilãs das nossas misérias. Eles questionam por que não nos preocupamos mais com leis que nos protejam da invasão cultural, essa sim responsável pelo contato com o elemento mediador das outras culturas que é a língua? Por que, ao invés de falar mal das línguas alheias - principalmente do inglês - não discutimos a nossa subserviência tecnológica e científica, entendendo melhor o nosso papel nos mistérios do contexto da globalização? Enfim, para os autores, a melhor forma de proteger a língua portuguesa seria investir na cultura brasileira, através de leis que protegessem a qualidade acadêmica e o salário dos professores, que modernizassem as escolas públicas, distribuíssem melhor a renda nacional e incentivassem o consumo da literatura em língua portuguesa com preços longe da hora da morte.

Um outro ponto polêmico do projeto do deputado Rebelo recai sobre seu argumento de que o cultivo da boa e bela língua portuguesa ficaria a cargo da Academia Brasileira de Letras. Bagno contra-ataca essa idéia boba, se perguntando

...por que cargas d' água a um grupo de 40 pessoas (...) caberia tomar decisões sobre os destinos da língua falada e escrita num país com 170 milhões de habitantes? (...) Não seria mais razoável consultar, por exemplo, os quase dois mil membros da Associação Brasileira de Lingüística, que reúne os cientistas, pesquisadores, professores e demais especialistas nas questões de língua, linguagem e ensino? (BAGNO, 2001, p. 52)

Embora os autores do livro não se surpreendam mais com a recorrência do tema do estrangeirismo, as idéias de Rebelo não deixam de espantá-los. E esse espanto está, principalmente, na dificuldade de entender como que um deputado de um partido como o PC do B, teoricamente alinhado aos ideais da justiça social e a favor do povo oprimido e sem voz, usa o argumento da defesa do povo para defender o pensamento monolítico das elites de sempre. Se os amigos do povo defendem projetos como esse, o que não defenderão os seus inimigos?

É claro que é difícil imaginar que lá no fundo o deputado teve alguma maldade pensada ao propor o projeto que hoje se encontra esfriando no Congresso Nacional. Pelos bons argumentos utilizados pelos lingüistas no livro, parece patente que o que moveu Rebelo foi uma certa ingenuidade aliada ao despreparo científico em relação ao objeto que pretendia legislar. Parece que ele não tinha idéia do fardo que a história teceu, encheu e ele pôs nas costas. Um fardo furado pelo desgaste do tempo e pelo conteúdo que carrega. Que fardo, Rebelo!

Texto recebido em 10 jan. 2002

Texto aprovado em 15 mar. 2002

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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