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Escola pública e discurso meritocrático: propostas da reforma do ensino médio e expectativas dos estudantes

Resumo

Este artigo propõe fazer uma discussão geral sobre a reforma do ensino médio, refletindo em que medida alguns conteúdos e algumas práticas propostas convergem para conceitos e discursos de base individualista e meritocrática, já presentes no ambiente da escola pública, mas reforçados por essas mudanças. A partir de um conjunto amplo de pesquisas realizadas entre 2019 e 2022, busca-se captar percepções meritocráticas para estudantes e egressos de escolas públicas cearenses. Os dados e a discussão sobre a reflexividade permitem verificar que há entre os jovens estudantes da escola média uma considerável expectativa por uma vida educacional e futura que proporcione estabilidade e condições sociais desejáveis. Essa expectativa, no entanto, caminha junto a uma massificada adesão ao discurso meritocrático e individualista em geral, com baixa reflexão sobre os condicionantes sociais. Os relatos e dados indicam que os agentes desse universo – professores e colegas – são atores significativos no processo de construção dessa visão. Contudo, faz-se necessário pensar sobre um possível descompasso entre expectativas dos jovens e realidade formativa proporcionada pelo novo ensino médio. Em um momento de expansão do ensino superior e da intensificação das dinâmicas econômicas baseadas no conhecimento, o papel da escola torna-se ainda mais central para garantir uma formação adequada, completa e que não produza ainda maiores distâncias educacionais entre diferentes grupos sociais, sobretudo no já grave contexto brasileiro de desigualdades sociais e educacionais.

Palavras-chave
Escola pública; Meritocracia; Reforma do ensino médio; Juventudes; Reflexividades

Abstract

This article discusses the reform proposals for secondary education, reflecting on the extent to which some of the proposed contents and practices converge with individualistic and meritocratic concepts and discourses already present in the public school environment, but now reinforced. Based on a broad set of surveys conducted between 2019 and 2022, it seeks to capture the meritocratic perceptions of public school students from Ceará. Reflexive data analysis allowed us to identify a considerable expectation among high school students for an educational and future life that provides stability and desirable social conditions. Such expectation, however, goes hand in hand with a mass adherence to meritocratic and individualistic discourse in general, with little reflection on social conditioning factors. The reports and data indicate that school agents—teachers and classmates—are significant players in the process of constructing this view. However, one must consider a possible mismatch between young people’s expectations and the educational reality provided by this new high school. At a time when higher education is expanding and knowledge-based economic dynamics are intensifying, schools play an increasingly key role in ensuring an adequate, complete education as to not produce even greater educational gaps between different social groups, especially in Brazil’s already serious context of social and educational inequalities.

Keywords
Public school; Meritocracy; High school reform; Youth; Reflexivities

Introdução

Desde meados da década de 1990 a educação básica no Brasil aproximou-se da universalização, principalmente no âmbito do ensino fundamental, alcançando um resultado por décadas perseguido por atores da sociedade brasileira. Novos desafios surgiram, sobretudo, em torno da qualidade e dos propósitos da educação. Para o ensino médio, apesar de inúmeros avanços, desafios como os relacionados à evasão e significação dessa etapa de ensino entre os jovens permanecem.

Como tentativa de resposta aos problemas do ensino médio, o governo à época propôs uma reforma, iniciada em 2016, que, além de feita de forma não democrática e efetivamente discutida, foi marcada por um conjunto de ideais que refletiam interesses carregados de valores como o da meritocracia, de perspectivas individualistas e propostas em torno de temáticas como o do empreendedorismo e protagonismo juvenil. Entre outros, esses valores nortearam a reforma, com impacto tanto sobre sua forma de concepção e modo de implementação, como sobre as dinâmicas escolares e percepção dos adolescentes e jovens, estudantes dessa etapa.

Neste artigo, propõe-se fazer uma discussão geral sobre a reforma do ensino médio, refletindo em que medida alguns conteúdos e práticas propostas convergem para conceitos e discursos de base individualista e meritocrático, já presentes no ambiente da escola pública, mas reforçados por essas mudanças. Ademais, ao considerar a escola como um ambiente de interação social, onde conteúdos e currículos formais e informais são constituídos pelos agentes, dentre esses, estudantes, percebe-se a importância que tem a produção de significados, expectativas, percepções e os processos de reflexividades que surgem entre esses jovens e adolescentes, tanto na interação com a escola como um microcosmo social, como na intersecção com a sociedade. Dessa forma, questiona-se o quão presentes estão a lógica individualista e o discurso meritocrático entre adolescentes e jovens no contexto do ensino médio. Além disso, busca-se perceber o significado da escola para esses discentes e sobre as expectativas de futuro geradas, na relação tanto com aquilo que é oportunizado pela escola quanto com suas percepções sobre o presente, futuro e possibilidades de trajetórias.

Considera-se que há um fluxo e conjunto relacional entre aquilo que os adolescentes e jovens projetam, suas crenças e expectativas, e o que a escola provoca e pode oferecer, sobretudo a partir do que é ofertado e manifestado no seu currículo. Essa compreensão provoca uma preocupação especial sobre os impactos que essa proposta do novo ensino médio pode gerar e sobre quais valores e conteúdos estão no universo dessas mudanças e os efeitos que podem produzir.

Desenho metodológico

Este artigo faz reflexões articuladas sobre a meritocracia na escola pública e expectativas entre jovens de idade escolar a partir de um conjunto amplo de pesquisas realizadas, com coletas de dados em seis diferentes momentos, no âmbito do Laboratório de Estudos em Política, Educação e Cidade da Universidade Federal do Ceará (LEPEC/UFC) entre 2019 e 2022.

Em linhas gerais, utilizamos aqui os dados obtidos por meio de (I) questionário com 118 estudantes do ensino médio matriculados em uma escola pública central de Fortaleza em 2019; (II) questionário com 57 de egressos dessa mesma escola, aprovados em exames de seleção e vestibulares, em 2021; (III) questionário com 489 estudantes do ensino médio em onze escolas de dez municípios cearenses (distribuídos pelas macrorregiões de planejamento do estado), em 2022; (IV) dois questionários aplicados com jovens em idade escolar (estudantes e egressos) participantes de um projeto de qualificação profissional oferecido pelo Governo do Estado do Ceará, o primeiro com 487 respondentes e o segundo 415, coletados com alguns meses de diferença, em 2020; (V) questionários realizados com as edições seguintes do mesmo projeto, sendo a edição 2 com 491 respondentes em 2021 e a edição 3 com 487 questionários em 2022; e (VI) dados de grupos focais realizados com esses jovens, totalizando 199 participantes distribuídos em 35 grupos transcorridos entre 2020 e 2022.

Cada uma dessas coletas atendeu a objetivos e especificações metodológicas diferentes, como o uso de formulários eletrônicos, apresentando abordagens quantitativas (os questionários) e outras qualitativas (grupos focais). No entanto, todas tiveram o direcionamento ou cocoordenação dos autores deste artigo, o que as colocam dentro de um fluxo de investigações que se desdobram ao longo do tempo com o mesmo público-alvo geral (jovens em idade escolar para o ensino médio ou seus imediatos egressos), tratando de temas correlatos, como percepções sobre a educação, sociabilidade, participação política, entre outros temas.

Os questionários aplicados nas escolas, entre 2019 e 2022, fizeram uso de formulários eletrônicos no Google Forms, analisados via Microsoft Excel e R; enquanto os questionários coletados com jovens participantes do projeto do governo, entre 2020 e 2022, foram coletados via formulário eletrônico no SurveyMonkey com análises no próprio software e no Stata. Foram priorizadas análises descritivas e cruzamentos simples com teste Qui-quadrado. Já os grupos focais foram realizados em modalidades distintas por causa da pandemia de covid-19, pois aqueles de 2020 tiveram que ser mediados via videoconferência nas plataformas Zoom e Google Meet; enquanto os de 2021 e 2022 se deram presencialmente. Em ambos os casos, as conversas foram transcritas pela equipe de pesquisadores 3 1 Todas as referências aos grupos focais são parte de uma pesquisa realizada por pesquisadores da Universidade de Fortaleza (Unifor) e Universidade Federal do Ceará (UFC) dentro do Programa Cientista Chefe da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico. ( Sales et al. , 2021 , , 2022 , 2023) . e analisados via software NVivo por meio da codificação de temas prioritários e sua organização em árvores de clusters e matrizes de codificação cruzada, gerando também nuvens de palavras por recorrência.

A partir disso, obteve-se uma massa de dados que comunica em grande medida sobre o modo como os jovens veem a escola e como associam a lógica da meritocracia às suas vidas e às ambições escolares e profissionais, intercruzadas pelo contexto recente de reformulação do ensino médio e suas implicações numa visão voltada à pretensa capacidade de escolha dos jovens sobre o que estudar e pela centralidade da formação técnico-profissional.

Vale destacar, ainda, a condição juvenil que envolve esses atores. Partimos de uma concepção ampla de juventude ( Pais, 2003PAIS, José Machado. Culturas juvenis. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2003. ) que considera não apenas a dimensão etária, mas os componentes diversos que constroem a noção do que é ser jovem, relacionados à maturação biológica do corpo, à cronologia pessoal autoconstruída pelos sujeitos e, principalmente, aos aspectos sociais e simbólicos em torno das representações sobre juventude, relacionadas a estilo de vida, estética e consumo de bens culturais ( Lima Filho, 2014LIMA FILHO, Irapuan Peixoto. Culturas juvenis e agrupamentos na escola: entre adesões e conflitos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, p. 103-118, 2014. ).

Essa visão coaduna com a perspectiva da construção de políticas públicas para a juventude no Brasil, especialmente na primeira década do novo século, que se esforçou para romper a imagem do jovem como “problema social” ou pautado exclusivamente como vivendo uma “situação de risco” para a compreensão dele como um “sujeito de direitos”, que “representa uma alteração de paradigma, em que o público-alvo passa de passivo a agente, corresponsável pela construção das políticas públicas” ( Castro, 2011, p. 283CASTRO, Elisa Guaraná de. O campo das políticas públicas de juventude e o campo político da juventude: contribuições para a reflexão. In: PAPA, Fernanda; FREITAS, Maria Virgínia de (org.). Juventude em pauta: políticas públicas no Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2011. p. 281-305. ). Sendo a educação, claro, uma das principais políticas públicas que envolvem a juventude, pressupõe o desafio das escolas reconhecerem seus estudantes como sujeitos de direitos, dotados de processos identitários e diversidades nem sempre tomados em conta em meio às práticas pedagógicas ( Dayrell; Carrano, 2014DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo. Juventude e ensino médio: quem é este aluno que chega à escola? In: DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo; MAIA, Carla Linhares (org.). Juventude e ensino médio: sujeitos e currículos em diálogo. Belo Horizonte: UFMG, 2014. p. 101-133. ).

Por fim, a análise dos dados é orientada pelas perspectivas das discussões sobre a reflexividade a partir da obra de autores como Beck (1997)BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott (org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 11-71. , Bourdieu (2002BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática: seguido de três estudos de etnologia cabila. Oieras: Celta, 2002. , 2007BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. , 2012)BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. e Giddens (1997GIDDENS, Anthony. Risco, confiança, reflexividade. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 219-254. , 2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. , 2013)GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013. .

A reforma do ensino médio: atores, discursos e conflitos

Efetivada pela Medida Provisória n. 746 de 22 de setembro de 2016 , a reforma do ensino médio provocou considerável mudança na base curricular do Ensino Médio, com efeitos práticos sobre seu propósito educacional e social. Essa medida foi editada 22 dias após o afastamento de Dilma Rousseff de seu cargo pelo Congresso Nacional, que culminou em seu impeachment. Ruptura que trouxe consequências não somente para a institucionalidade democrática, mas para uma série de políticas que vinham sendo construídas nos últimos anos. A reforma do ensino médio propunha alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (n. 9.394/1996) sem uma discussão social assentada e sem condições orçamentárias previstas para a efetivação das mudanças propostas.

A discussão sobre a necessidade de reformulação do ensino médio não era nova. Há anos, vinha se propondo mudanças, sobretudo por think tanks 4 2 Instituições que atuam em diversas áreas e que, dentre outras funções, produzem pesquisas, análises e recomendações para formuladores de políticas públicas. educacionais, como o grupo denominado Movimento Todos pela Educação, além de grandes conglomerados de educação privada. Desde a década de 1990, essas instituições vinham ganhando espaço nas discussões educacionais e nos debates empreendidos pelas comissões de educação país afora e nos meios de comunicação ( Motta; Frigotto, 2017MOTTA, Vânia; FRIGOTTO, Gaudêncio. Por que a urgência da reforma do ensino médio? Medida provisória nº 746/2016 (Lei nº 13.415/2017). Educação & Sociedade, Campinas, v. 38, n. 139, p. 355-372, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ES0101-73302017176606.
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). Como demonstra Peroni (2015)PERONI, Vera Maria Vidal. Relação público-privado no contexto de neoconservadorismo no Brasil. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, p. 1-17, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/gPNy6mbMhQVmfzrqX8tRz4N/. Acesso em: 16 out. 2023.
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, apesar de o estado brasileiro ser o principal responsável pelo acesso à escola, sendo públicas mais de 80% das instituições de educação básica, a formação, as rotinas, o conteúdo pedagógico e de gestão da escola são majoritariamente definidos por instituições privadas.

Esse processo é o que Rikowski (2017)RIKOWSKI, Glenn. Privatização em educação e formas de mercadoria. Retratos da Escola, Brasília, DF, v. 11, n. 21, p. 393-414, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.22420/rde.v11i21.810.
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denomina de privatização do público. No caso educacional, ele se dá pela tomada de controle sobre a educação por parte das empresas e não envolve necessariamente propriedade, mas uma disputa pelo conteúdo, em um projeto de restauração de classe. A ideia corrente defendida por esses grupos era de que a escola pública e, em especial, o ensino médio estava em crise, que os índices educacionais não se adequavam aos parâmetros estabelecidos pelo Banco Mundial e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). As críticas recaíam também sobre a qualidade e capacitação de docentes, os conteúdos ensinados, a quantidade de disciplinas, a desconexão com o mundo do trabalho e inadequação com as demandas do sistema produtivo.

A exposição de motivos que acompanhava a proposta da MP n. 746 tecia críticas ao currículo, considerado extenso, superficial e fragmentado, à falta de diálogo com a juventude, o setor produtivo e as demandas do século XXI, o número elevado de jovens fora da escola e o fraco rendimento apresentado pelas avaliações externas. A fim de sanar essas questões, propunha-se flexibilizar o ensino médio, por meio de um novo modelo de ensino que separava o currículo em dois momentos: um primeiro, destinado à formação básica comum (executada em um ano e meio); e um segundo momento, subdividido em itinerários formativos (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional), cabendo ao estudante fazer apenas um desses itinerários no período de um ano e meio restante.

Cumprindo o procedimento legal, foram apresentadas, no decorrer de uma semana, 568 emendas à Medida Provisória, sendo ao final, 148 acolhidas parcial ou totalmente pelo relator da matéria.

Nos dias que se seguiram à apresentação da MP, o debate em torno do ensino médio se intensificou. Partidários da reforma reforçavam a necessidade da mudança imediata e os contrários, propunham um amplo debate sobre o tema. Profissionais da educação, pesquisadores da temática, sindicatos de docentes e de alunos se opuseram veementemente à proposta, tanto pela forma arbitrária (por meio de uma MP), já que alteraria a mais importante lei da educação nacional e pelo pouco espaço dado ao debate, principalmente com os principais interessados. As críticas se dirigiam também em relação aos conteúdos, já que estabelecia hierarquia entre as disciplinas, fazendo que algumas delas fossem sumariamente excluídas do sistema de ensino, além de uma lógica retalhada de ensino, o que ensejaria uma ampliação das já tão conhecidas desigualdades sociais, posto que impediria que as novas gerações, principalmente as mais vulneráveis, tivessem oportunidades educacionais amplas ( Silva; Gonçalves, 2017SILVA, Ileizi Fiorelli; GONÇALVES, Danyelle Nilin. Desafios e possibilidades para o futuro da Sociologia na educação básica. In: SILVA, Ileizi Fiorelli; GONÇALVES, Danyelle Nilin (org.). A sociologia na educação básica. São Paulo: AnnaBlume: Sociedade Brasileira de Sociologia, 2017. p. 389-398. ).

Jovens influenciadores fizeram vídeos com um caráter informativo e opinativo, destinados aos estudantes, em que discorriam sobre os problemas atuais do ensino médio e as soluções trazidas pela reformulação, tratando de positivar inclusive os pontos que a princípio pareciam problemáticos, como o aumento da carga horária. Com exemplos de experiências exitosas testadas anteriormente, inclusive em outros países, os influenciadores mostravam as vantagens de estudar mais horas e de poder “escolher” as disciplinas a estudar, reforçando que o sistema existente se apresentava como defasado e pouco interessante para o estudante, sendo a nova proposta mais instigante para o aluno que escolheria o que estudar, de acordo com o que quer fazer no mercado de trabalho. Somente um desses vídeos teve, à época, mais de 1.600 milhão de visualizações e cada um deles gerava manifestações favoráveis e contrárias 5 3 O vídeo em questão é intitulado “Tudo que você precisa saber sobre o novo ensino médio!!”, do canal Você Sabia? no qual dois jovens, utilizando linguagem bem coloquial, explicam os pontos “positivos” da reforma. . Posteriormente, descobriu-se que esses vídeos eram publicidade, a fim de conquistar adesão à proposta. Utilizando algo ainda não muito explorado à época, o governo pagou canais do YouTube para apresentar as razões de reformar o ensino médio, assim como as possíveis “benesses” que a proposta traria.

Os meios de comunicação tradicionais também se posicionaram, quase sempre, em consonância com a proposta governamental. Matheus ( 2020, p. 89MATHEUS, Mario Luiz Bezerra Feitoza. O discurso jornalístico sobre a reforma do ensino médio: condições de produção, memória e efeito de evidência. 2020. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020. ), em sua dissertação, demonstra que ao conceber

[...] a educação como um processo individual, que busca preparar o sujeito para se adequar às oportunidades do mercado de trabalho e desenvolver as competências necessárias para atingir seus objetivos pessoais, o discurso jornalístico do Grupo Globo […] produz um efeito de evidência sobre a educação brasileira centrado na noção de formação especializada para sujeitos com diferentes perspectivas de vida, apagando a luta de classes e naturalizando as desigualdades geradas pelo capitalismo.

Os estudantes, principais alvos da proposta, ocuparam escolas em vários estados do país no que ficou conhecido como Primavera Secundarista. Inspirados em manifestações que vinham ocorrendo desde o ano anterior, em alguns estados da federação, em repúdio às medidas tomadas por alguns governadores, as ocupações das instituições de ensino foram articuladas por grêmios e movimentos estudantis e organizadas pelas redes sociais, num movimento simultâneo. Apesar de mais forte nos estados do Paraná e São Paulo, foi ganhando abrangência nacional (houve ocupações em 22 estados), passando a contar com o apoio de estudantes universitários que também ocuparam suas instituições em protesto à reforma do ensino médio e à PC que estabelecia um teto de gastos. As ocupações das escolas, consideradas praticamente inéditas no país, adiaram pela primeira vez a realização do exame nacional do ensino médio (ENEM), principal porta de acesso às universidades públicas.

Apesar das onze audiências públicas e da ampla manifestação de estudantes, professores e pesquisadores e dos impactos da ocupação estudantil, a MP foi aprovada em sua ampla maioria pelos congressistas: na Câmara Federal, em 7 de dezembro de 2016, obteve 263 votos favoráveis, 106 votos contrários e três abstenções; e no senado federal, em 8 de fevereiro de 2017, obteve 43 votos favoráveis e 13 contrários, seguindo para a sanção presidencial, convertendo-se na Lei n. 13.415, em 16 de fevereiro de 2017 ( BRASIL, 2016BRASIL. Câmara dos Deputados. MPV 746/2016. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei n. 9.394 ,de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei n. 11.494 de 20 de junho de 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2016. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2112490. Acesso em: 12 dez. 2022.
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; Rossi, 2017ROSSI, Marina. Reforma do Ensino Médio é aprovada no Senado: anunciada por Temer em setembro, Medida Provisória passou pela Câmara no final do ano. El País, 9 fev. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/14/politica/1481746019_681948.html#?prm=copy_link. Acesso em: 12 dez. 2022.
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).

Uma das críticas mais contundentes que sempre foi feita à reforma do ensino médio diz respeito ao seu caráter utilitarista, de formação para o mercado de trabalho ( Motta; Frigotto, 2017MOTTA, Vânia; FRIGOTTO, Gaudêncio. Por que a urgência da reforma do ensino médio? Medida provisória nº 746/2016 (Lei nº 13.415/2017). Educação & Sociedade, Campinas, v. 38, n. 139, p. 355-372, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ES0101-73302017176606.
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), fragmentário e individualista, que traz para o estudante a responsabilidade de escolher um itinerário de acordo com o “seu interesse”. Contraditoriamente, foi essa a principal propaganda vendida à época da discussão da MP: a ideia de que, finalmente, o estudante se livraria do “fardo” de estudar todas as disciplinas e seria “livre” para eleger o que realmente “importasse” para ele. Nesse bojo estariam de fora, sobretudo, as disciplinas que à princípio não teriam “utilidade” imediata, como as vinculadas às Ciências Humanas e às Artes.

O fato é que a reforma do ensino médio escancarou um discurso que mescla individualismo, utilitarismo, uma noção distorcida de liberdade e uma premissa de meritocracia que vinha ganhando adesão continuamente e repetidos anteriormente na escola por docentes e gestores, pela influência tanto de atores privados na definição de conteúdos e paradigmas quanto pela circulação pública das temáticas do empreendedorismo e protagonismo juvenil.

Sousa (2023)SOUSA, Ana Maria Gonçalves. Sucesso escolar e o ensino de Sociologia: discursos e práticas numa escola pública de ensino médio. São Paulo: Dialética, 2023. demonstra, a partir da observação do cotidiano escolar, em suas diferentes práticas e ritos, como o discurso sobre o sucesso escolar vai sendo construído, reforçando a lógica neoliberal que entende o resultado mais como fruto do esforço pessoal, de noções como disciplina, garra e foco do que propriamente por aspectos sociais que auxiliam ou dificultam o êxito.

Desde que o termo surgiu, cunhado por Michael Young em 1958, em The Rise of the Meritocracy , esse tema vem sendo discutido por especialistas, com especial relevo para as últimas décadas, quando o projeto neoliberal ganha força na construção de políticas públicas, notadamente contrárias às políticas redistributivas e de bem-estar social.

Segundo Barbosa (2006)BARBOSA, Livia. Igualdade e meritocracia. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. , não há consenso sobre a meritocracia: quando se trata em termos de representação, a meritocracia é um sistema sedutor que distingue sociedades baseadas em privilégios e heranças e as democracias atuais. Quando se trata, no entanto, de torná-la critério básico de organização social baseado no desempenho individual, ela deixa de ser consensual.

A meritocracia entendida como negação de privilégios é aceita por todos como uma ferramenta contra a desigualdade social, mas quando aplicada como afirmação do merecimento, justifica as desigualdades, fato que dificilmente é trazido “à consciência das pessoas e, menos ainda, explicitado e discutido”.

( Barbosa, 2006, p. 23BARBOSA, Livia. Igualdade e meritocracia. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. ).

Nos últimos anos vêm se tornando mais evidentes as críticas sobre as recorrentes desigualdades e dificuldades de mobilidade social. Os estudos dos economistas Papageorge e Thom (2018)PAPAGEORGE, Nicholas; THOM, Kevin. Genes, education, and labor market outcomes: evidence from the health and retirement study. National Bureau of Economic Research, Cambridge, 2018. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w25114. Acesso em: 28 jan. 2023.
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demonstraram que não há significativas diferenças genômicas entre crianças de baixa e alta renda, mas sim quando se trata de acesso à escolaridade e à prosperidade. O relatório The Global Social Mobility Report 2020 , do Fórum Econômico Mundial ( WEF, 2020WEF. World Economic Forum. The global social mobility report 2020: equality, opportunity and a new economic imperative. Geneva: WEF, 2020. Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/Global_Social_Mobility_Report.pdf. Acesso em: 16 out. 2023.
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), que analisa a situação de 82 países, confirma a dificuldade de mobilidade em grande parte dos casos analisados. O relatório conclui que os países não estão conseguindo oferecer aos cidadãos as oportunidades para prosperar, fazendo com que estas permaneçam atreladas ao seu status no nascimento. O impacto disso atinge não somente a vida dos indivíduos, mas o próprio crescimento econômico.

A dificuldade de mobilidade, o papel central dado à educação, os processos seletivos cada vez mais extenuantes e uma aceitação tácita das premissas meritocráticas estimularam grandes pensadores contemporâneos a se debruçar criticamente sobre a ideia de meritocracia, como nos casos de Daniel Markovits e Michael Sandel, professores de Yale e Harvard, respectivamente.

Markovits, em The Meritocracy Trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite , lançado nos Estados Unidos em 2019 e no Brasil, em 2021, defende o argumento central de que a meritocracia não somente é uma farsa, como é uma cilada (como o título do livro já diz), afetando todas as camadas sociais, incluindo as que a princípio se beneficiam dela. De acordo com o autor,

Sejam quais forem seus propósitos originais e seus antigos triunfos, a meritocracia atual concentra os privilégios e sustenta desigualdades tóxicas. E, na raiz de todos esses problemas, não está a falta de meritocracia, mas o excesso dela. O próprio mérito tornou-se um simulacro de virtude, um falso ídolo. E a meritocracia — antes benévola e justa — transformou-se naquilo que deveria combater: um mecanismo para a concentração e a transmissão dinástica da riqueza e dos privilégios de geração para geração. Uma ordem de castas que cria rancor e divisão. Na verdade, uma nova aristocracia.

( MARKOVITS, 2021, p. 15MARKOVITS, Daniel. A cilada da meritocracia: como um mito fundamental da sociedade alimenta a desigualdade, destrói a classe média e consome a elite. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021. ).

Sandel (2022)SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. analisa as implicações comunitárias e políticas dessa lógica, já que essa ideia repetida e internalizada durante gerações destrói o senso de comunidade e de respeito mútuo, inclusive porque diminui a capacidade de solidariedade com os menos afortunados, “perdedores” nesse esquema.

Vários autores que discutem a temática concordam que em médio prazo, as expectativas e promessas não cumpridas geram ressentimento nas camadas que não conseguem ascender (tanto as camadas baixas como as médias) e um profundo sentimento de angústia e dor para os jovens. Conforme Llosa (2019)LLOSA, José Antonio. Juventude sem futuro e sem passado: as falsas promessas da meritocracia. Adital, São Leopoldo, 14 jun. 2019. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/590038. Acesso em: 25 jan. 2023.
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, a juventude mais empregável se torna bem desesperançosa quando descobre que as promessas sobre seu futuro são coisas do passado.

Chama a atenção, portanto, que esse discurso meritocrático seja tão difundido, muitas vezes, sem nenhuma problematização no ambiente escolar e encontre eco nos alunos, de diferentes segmentos sociais.

Em vista do que foi discutido até aqui, procurou-se aprofundar a análise do discurso meritocrático nas escolas, tomando como indicador a comparação entre as respostas de duas coletas distintas: os questionários de 2019 e 2021 aplicados com estudantes (no primeiro) e egressos (no segundo) de uma escola pública da zona central de Fortaleza. Um conjunto de expressões típicas da lógica meritocrática foram colocadas para que os jovens se posicionassem a partir de uma escala Likert.

Tabela 1
- Nível de concordância com frases populares do discurso meritocrático

Os resultados apresentados na Tabela 1 indicam um alto nível de concordância com essas frases populares do discurso meritocrático, sendo consistente o nível de concordância entre os dois grupos pesquisados. Por mais que a mera concordância com essas frases não seja uma evidência completa do comprometimento ideológico meritocrático, são um indicativo da adesão à essa perspectiva, principalmente ao considerar que tais respondentes são estudantes de escolas públicas, matriculados ou egressos, onde coerentemente esse discurso teria menos capilaridade pelo fato de se tratar de um contexto social não-privilegiado.

A partir da amostra de 2019 6 4 Utilizada nos cruzamentos por ser a de maior tamanho. , cruzamos o nível de concordância com a frase que alcançou total concordância (em parte ou totalmente) e em ambas as amostras – “Vão dizer que é sorte, mas você sabe que é esforço.” – para assim verificar associação com as variáveis gênero, renda e religião.

Figura 1
- Gráfico mosaico do cruzamento entre nível de concordância com a frase e gênero

Nota: Frase: “Vão dizer que é sorte, mas você sabe que é esforço”. Valor-p (Qui-Quadrado): 0,03.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Por meio da Figura 1 nota-se que as mulheres apresentam um nível de concordância significativamente menor que o nível de concordância dos homens. A Figura 2 permite verificar que estudantes com mais renda apresentam um nível de concordância proporcionalmente maior com a frase que os estudantes de menor renda declarada.

Figura 2
- Gráfico mosaico do cruzamento entre nível de concordância com a frase e renda

Nota: Frase: “Vão dizer que é sorte, mas você sabe que é esforço”. Valor-p (Qui-quadrado): 0,05.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Por sua vez, por meio da Figura 3 é possível verificar que a religião também é uma variável que apresenta relação com o nível de concordância com essa frase, sendo os católicos os que apresentam proporcionalmente menos aderência. Essas associações, aqui graficamente representadas, apresentaram significância no Teste Qui-Quadrado realizado. Apesar dessas diferenças, é importante frisar que o nível de concordância é muito alto, e as diferenças produzidas por essas variáveis sociais são baixas no geral, indicando haver uma adesão majoritária, mesmo entre diferentes recortes sociais.

Figura 3
- Gráfico mosaico do cruzamento entre nível de concordância com a frase e religião

No questionário aplicado, em 2020, com 482 jovens da faixa etária de 15 a 19 anos, moradores das periferias de Fortaleza e participantes de um curso profissionalizante oferecido pelo Governo do Ceará, questionamos “se pudesse voltar no passado e dar um conselho a você mesmo, o que diria?”. As três respostas mais significativas foram: “estude mais” (25,8%), “acredite mais em você” (22,4%) e “não saia da escola” (20%) ( Sales et al. , 2021 SALES, Lilia Maia de Morais et al. Relatório da pesquisa Virando o Jogo. Fortaleza: UNIFOR: UFC: FUNCAP: Governo do Estado do Ceará, 2021. Relatório de pesquisa com recomendações e resultados da edição 1 de Fortaleza. ).

Durante os grupos focais realizados na sequência, os jovens puderam elaborar mais esse discurso, por meio de respostas do tipo: “[Eu diria:] ‘Estude mais, persista nos seus sonhos que um dia você vai conseguir tudo o que você quer’” (Jovem 1, sexo feminino, 19 anos, Fortaleza, outubro de 2020).

Em igual medida, falar sobre “fracasso” escolar também mobiliza a mesma estrutura discursiva, na qual a culpa é do próprio jovem: “Conseguia [aprender na escola], só que eu acho que faltou empenho meu. Eu acho que eu conseguia... só não queria, porque eu tinha preguiça. Eu ia para escola mesmo só para passar de ano” (Jovem 176, sexo masculino, 18 anos, Fortaleza, julho de 2022).

Como afirmam Bruni e Santori (2021)BRUNI, Luigino; SANTORI, Paolo. Meritocracia? Uma ilusão que justifica desigualdades. Adital, São Leopoldo, 6 maio 2021. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/608998-meritocracia-uma-ilusao-que-justifica-as-desigualdades. Acesso em: 29 jan. 2023.
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, a sociedade instituiu uma crença na meritocracia como um tipo de promessa que possibilita a qualquer um – desde que se esforce o suficiente – galgar seus sonhos, o topo; mas, na verdade, é uma complexa ideologia que legitima a desigualdade. Enquanto a ideia do sucesso ao alcance de qualquer um (ou em uma escala mais modesta, a fé de que o esforço de seu trabalho hoje renderá os frutos do reconhecimento amanhã) mobiliza os sujeitos em suas atividades cotidianas, ao mesmo tempo, promove pensamentos políticos contra políticas redistributivas e a favor da premiação do esforço individual.

A ideologia dos amigos de Jó volta com toda sua força: o desmerecedor é culpado. Ninguém nunca diz isso explicitamente, mas por trás de tantos discursos, hoje como ontem, existe a ideia de que a pobreza seja uma culpa. Afinal, o verdadeiro, grande problema da meritocracia é que justifica e legitima as desigualdades. Como se as desigualdades, que desde sempre existiram, e talvez sempre existirão, precisassem de advogados de defesa.

( BRUNI; SANTORI, 2021, p. 1BRUNI, Luigino; SANTORI, Paolo. Meritocracia? Uma ilusão que justifica desigualdades. Adital, São Leopoldo, 6 maio 2021. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/608998-meritocracia-uma-ilusao-que-justifica-as-desigualdades. Acesso em: 29 jan. 2023.
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).

A força dessas ideias coloca os jovens, inclusive, em uma lógica competitiva de sucesso e insucesso ao lado da naturalização do “perdedor” por seu fracasso pessoal e não por uma estrutura de desigualdades que os impede de almejar maiores ambições.

No caso brasileiro, um dos marcadores desse sucesso escolar é o ingresso no ensino superior, em especial, via ENEM. Obviamente, para os jovens de baixa renda das periferias das grandes cidades, ingressar no ensino superior está na dimensão do sonho, mas existe uma parcela desse grupo que ascende ao almejado nível e isso os coloca em uma situação diferenciada no sistema de ensino público e até em suas próprias famílias. Em uma realidade em que parte significativa dos genitores sequer finalizou a educação básica, o ingresso no ensino superior é uma conquista projetada, como a esperança de mobilidade social.

Eles [os pais] sempre me incentivaram, sempre me incentivaram. É uma coisa, assim, que a minha mãe, desde pequena, tentou passar pra gente. Era algo mesmo que ela não teve oportunidade e era o sonho dela, né? E meio que eu sou a primeira pessoa da família a entrar numa graduação e eu fico... não assumir o sonho, né? Mas é como se eu realizasse esse sonho dela, também.

(Jovem 34, sexo feminino, 18 anos, Fortaleza, novembro de 2020).

Os sonhos de ingresso no ensino superior – e a consequente melhor colocação no mercado de trabalho – são incorporados pelos jovens, bem como o senso de retornar às benesses aos pais que investiram e incentivaram todo o processo: “Eu quero fazer faculdade, arrumar um emprego, dar tudo de bom e melhor para os meus pais, né? Como eles sempre fizeram por mim e até hoje fazem” (Jovem 3, sexo feminino, 20 anos, Fortaleza, outubro de 2020).

Nos questionários aplicados com esses jovens do projeto social, em 2020, 51,4% deles sonhavam em ingressar em um curso superior, ainda que outros 26,3% desejassem apenas um curso técnico. Os que ansiavam por empreender somaram 6,1%. Esses dados mostravam que havia uma vinculação direta entre os sonhos e o mercado de trabalho.

A lógica meritocrática, no entanto, dominava o pensamento desses jovens. A cada etapa daquele projeto (a primeira em 2020, a segunda em 2021 e a terceira em 2022), perguntamos aos jovens “o que é importante para você realizar seus sonhos?”, e a resposta variava um pouco a cada vez, porém deixava clara a ideia de que o próprio esforço era o principal elemento para o sucesso em suas carreiras profissionais e estudantis, ao lado de uma primeira oportunidade, facilitações financeiras e auxílio familiar ( Tabela 2 ).

Tabela 2
- Percentual de Respostas para “O que é importante para você realizar seus sonhos?” (Múltipla escolha)

Esses jovens também são capazes de objetivar essas questões ao refletirem sobre suas vidas estudantis e profissionais.

Então, [onde trabalho] não é a carreira com a qual eu quero seguir, mas sim, é importante para mim e dinheiro não significa muita coisa, não, porque... do que adianta você ter dinheiro...? Tem tanta gente fazendo meme, ultimamente, com esse negócio: “ou ser feliz e pobre, ou ser triste e rico”? Né? E as pessoas estão tratando isso como se fosse uma brincadeira, mas na verdade, todo mundo escolhe... prefere ser rico ou ser feliz e pobre.

(Jovem 24, sexo feminino, sem idade, Fortaleza, outubro de 2020).

Nessa dinâmica de planejamento de futuro ou de ao menos pensar sobre ele, a escola ocupa um relevante papel. Pesquisas que aferem o índice de confiança social, como a realizada pelo Ibope Inteligência em (2019)IBOPE INTELIGÊNCIA. Índice de confiança social 2019. São Paulo: IBOPE, 2019. Disponível em: http://www.ibopeinteligencia.com/arquivos(final).pdf. Acesso em: 01. ago. 2019.
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, colocavam a escola pública na 5ª posição como instituição mais confiável. Essa percepção positiva também foi vista nos questionários analisados por nós. Na pesquisa com 489 jovens estudantes do ensino médio realizada em 2022, perguntamos a percepção da escola e 63,3% deles viam a instituição como uma “possibilidade de ter um futuro”, enquanto 29,6% a via como “um lugar para obter conhecimento”. Nas demais opções oferecidas, nenhum item acumulou mais de 4%.

No questionário com 487 jovens de 15 a 19 anos das periferias de Fortaleza aplicado em 2020, perguntávamos se os jovens gostavam das escolas em que estudaram (fossem estudantes ou egressos) e 66,8% responderam que “sim”, e ainda que (numa questão de múltipla escolha) 69,7% apontassem as amizades como aquilo de que mais gostavam nas escolas, 54% escolheram as aulas e 56% os professores. Dos alunos, 68% acreditavam que a escola ajudava a conseguir um emprego.

A avaliação positiva prosseguiu nos ciclos seguintes de aplicação daquela pesquisa. Nos grupos focais realizados entre 2020 e 2022, por exemplo, colhemos relatos como esse:

Eu sempre tive ótimos professores! Eu sempre estudei em escola pública e sempre tive ótimos professores, desde o fundamental até o ensino médio. Nunca tive problema com professor. Sempre eles me incentivam a crescer, sempre eles estavam ali, quando eu precisava, para ajudar em algo. Então, eu não tenho do que reclamar: era uma escola ótima, assim, para mim, e aprendi muito dentro dela.

(Jovem 159, sexo masculino, 19 anos, Fortaleza, julho de 2022).

Havia, no entanto, uma parcela de jovens que se queixava da falta de vínculo entre a escola e o mercado de trabalho ou sua incapacidade de encaminhar os estudantes para ocupações laborais corroborando o discurso da reforma do ensino médio.

Pessoalmente, eu acho que, apesar de eu gostar muito dos professores que eu tinha lá, eu acho que a maioria não incentivava os alunos, […] não me ajudou em nada, tipo assim, depois que eu terminei. E tem escola que incentiva. Não é que facilita, mas incentiva, tipo, ao primeiro emprego e essas coisas lá de facilitar […] pelo menos pra mim não facilitou em nada […]. Os professores eram ótimos, mas faltava muito isso neles.

(Jovem 153, sexo feminino, 20 anos, Fortaleza, julho de 2022, grifo nosso).

Ambição estudantil e performance escolar

Para analisar como os jovens lidam com o discurso meritocrático vale lançar um olhar sobre o modo como performam nas escolas. No ano de 2021, identificamos o sucesso expressivo de 135 aprovados no ENEM do ano anterior em uma escola pública de localização central na cidade de Fortaleza que já era monitorada em outras pesquisas. Assim, foi aplicado um questionário específico com os egressos do 3º ano que haviam sido aprovados em exames como o ENEM, o Sistema de Seleção Unificada (SISU) e vestibulares de universidades públicas e privadas, resultando em 57 respostas.

A quase totalidade dos respondentes (98,2%) havia tentado o ENEM, mas quantidades expressivas também se inscreveram em seleções da universidade estadual (68,4%) e de faculdades privadas (19,3%). A aprovação foi alta, com 58% aprovados na federal, 19,3% na estadual, entre outras instituições. Do total, 68,4% estavam cursando o ensino superior no momento da pesquisa, ainda que outros 22,8% tivessem desistido por motivos diversos (14% estavam dispostos a tentar o ENEM de novo no ano seguinte).

O interessante é perceber como performaram para atingir tais resultados. A grande maioria estudava em casa além das horas já gastas na escola; mas também um número expressivo assistiu aulas extras tanto na escola como por meio virtual externo (pelo YouTube, por exemplo) e treinaram a escrita da redação por conta própria; enquanto uma parcela menor, mas ainda importante, leu livros por conta própria, participou de grupos de estudos ou fez cursinhos preparatórios em paralelo. Ninguém marcou a opção “não fiz nada”.

A aprovação em exames de acesso ao ensino superior não é fruto do acaso, portanto, exigindo a “preparação” do estudante e uma série de ritos específicos de estudos sistematizados. Ainda assim, tal sistematização não precisava extrapolar demais o que é entendido como “rotina escolar”: quando questionados quantas horas por dia estudavam afora o tempo de escola, a maioria (57,9%) respondeu “menos de 4 horas”, ainda que 5,3% tenham afirmado gastar mais de 8 horas. Quanto aos dias da semana, 80,7% afirmaram estudar apenas nos dias letivos.

Poderíamos pensar que havia alguns fatores contribuintes para esse sucesso escolar e o questionário captou alguns deles. Pouco mais da metade (51,8%) tinha um ambiente próprio para estudar em casa e 61,4% apenas estudavam, sem precisar trabalhar.

É interessante notar, ainda, que apenas 35,1% estudaram o ensino fundamental inteiramente na rede pública. No Brasil, há um movimento das famílias de matricular os filhos em instituições privadas e fazer um esforço para pagá-las, indicativo de investimento familiar na melhor escolaridade dos filhos ( Nogueira, 2013NOGUEIRA, Maria Alice. No fio da navalha: a (nova) classe média brasileira e sua opção pela escola particular. In: ROMANELLI, Geraldo; NOGUEIRA, Maria Alice; ZAGO, Nadir. (org.). Família & escola: novas perspectivas de análise. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 109-130. ).

Essa amostra parecia vivenciar uma situação diferencial de “sucesso escolar”, pois o ingresso dos jovens no ensino superior não era inédito no seio de suas famílias: nada menos do que 80,7% deles tinham parentes próximos que cursaram o ensino superior, e desses 56,5% eram primos ou primas, 45,7% tios e tias, 39,1% irmãos ou irmãs e 17,4% a mãe, dentre outros.

Bourdieu (2012)BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. considera que a transmissão de um capital cultural especificamente voltado ao sucesso escolar é um investimento familiar, seja pela continuidade de uma dinastia, seja pelo esforço em proporcionar aos descendentes a aquisição de uma porção de capital cultural não-herdado, o que passa pela busca da matrícula em melhores escolas, em proporcionar um ambiente favorável aos estudos (um “cantinho” para estudar, não precisar trabalhar) e uma série de incentivos objetivos (financeiros) e subjetivos (estímulos, elogios), elementos que casam com o que os dados expostos trouxeram. Lahire (1997)LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997. , por sua vez, faz críticas à visão do autor e como sua teoria trata do problema da “transmissão” do capital cultural.

Ao investigar 26 casos por meio de entrevistas com familiares no contexto das periferias francesas (em particular com imigrantes), Lahire (1997)LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997. percebe os detalhes do modo como os filhos performam em sua escolaridade nos mais variados contextos familiares e deixa ligeiramente em segundo plano os aspectos estruturantes para dar ênfase aos modos como ocorrem, às pequenas estratégias adotadas, como pais estimulam as crianças a estudarem e até as empoderam no equilíbrio do cotidiano doméstico, quando pais não-alfabetizados (pelo menos em francês) colocam os filhos para ler contas, correspondências e bilhetes. Identifica que as famílias são agentes contraditórios nos quais um jovem estudante encontrará situações de sucesso ou fracasso escolar, estímulo ou desestímulo aos estudos entre seus pares congênitos e que essa contradição e a força de seus polos é parte do processo que resultará em seu próprio fracasso ou sucesso. Todavia, para o sucesso, o jovem deve ter algum representante familiar em quem “se apoiar” ou espelhar e esse processo irá auxiliá-lo em seu objetivo, diz o sociólogo francês, o que também encontra eco nos dados apresentados.

No entanto, as pesquisas sobre o tema não levam em consideração somente a ambiência familiar, mas outros fatores. Num estudo sobre as expectativas escolares dos jovens, Lorenz et al . (2020)LORENZ, Georg et al. Social influence or selection? Peer effects on the development of adolescents’ educational expectations in Germany. British Journal of Sociology of Education, Abingdon, v. 41, n. 5, p. 643-669, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.1080/01425692.2020.1763163.
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consideram as influências do contexto social, da socialização pelos pais e a influência dos colegas, inclusive, percebendo que o papel dos amigos tende a crescer à medida que passam à adolescência em detrimento da influência parental. Ao perceberem que os estudos apontam que as expectativas escolares dos amigos são similares entre si, os autores afirmam que, num estudo com estudantes secundaristas alemães, isso se dá por um processo de seleção de amizades ativado pelos próprios jovens. Ou seja, as expectativas educacionais de amigos são similares porque os estudantes selecionam os amigos a partir de pares de perfis similares de expectativas. Ainda que variáveis como renda, gênero e raça sejam contribuintes aos laços sociais construídos por esses jovens nas escolas e influenciem os aspectos de ambição estudantil, não são determinantes, prevalecendo as visões sobre os anseios educacionais para o estabelecimento das amizades ( Lorenz et al. , 2020 LORENZ, Georg et al. Social influence or selection? Peer effects on the development of adolescents’ educational expectations in Germany. British Journal of Sociology of Education, Abingdon, v. 41, n. 5, p. 643-669, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.1080/01425692.2020.1763163.
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).

Apesar de a pesquisa alemã ser sobre ambição educacional e não sobre sucesso escolar, é possível perceber como o fator sociabilidade é algo a ser considerado de modo mais atencioso no ambiente educacional, e estudos realizados no Brasil, como os de Alves et al . (2015)ALVES, Cássia Ferrazza et al. Relações com a escola e expectativas quanto ao futuro em jovens brasileiros. Nuances, Presidente Prudente, v. 26, n. 1, p. 50-65, 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v26i1.3818.
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, também corroboram a influência dos amigos no sucesso estudantil, associado a fatores como o grau de intensidade e qualidade dos vínculos institucionais do estudante. Ambientes segregados, conflitivos e degradados contribuem para as reprovações, bem como as relações sociais negativas (como violência, bullying, ausência de vínculos etc.).

A despeito desse panorama social vinculado à performance dos estudantes, a ideia de que o esforço próprio é o principal motor do sucesso escolar, e em alguma medida, da mobilidade social decorrente, ainda é muito forte entre os próprios jovens. De volta à pesquisa com os egressos do ensino médio aprovados no ensino superior, ao serem questionados a que atribuíam o sucesso alcançado, 84,2% afirmaram ter sido por seu esforço individual, ainda que, contraditoriamente, por ser uma questão de múltipla escolha, também creditaram à orientação dos professores (93%) e à ajuda da escola (80,7%), o que demonstra que ao menos compartilham a ideia de mérito próprio com a ajuda externa.

Entretanto, quando tensionados com as frases chavão sobre a performance individual e a meritocracia como um todo, já demonstradas anteriormente, os jovens terminam evidenciando que acreditam na lógica individualista de sucesso.

A dinâmica entre uma estrutura social que condiciona desigualdades e a performática individual que é capaz até de superá-la é um dos tópicos que ensejam a discussão sobre a reflexividade. O velho paradigma “sujeito versus estrutura” da Sociologia encontra uma problematização na literatura contemporânea que procura compreender como esses fluxos são possíveis.

Dessa forma, apesar dos processos de socialização primária (que incluem a família e a escola) imputarem aos sujeitos a incorporação das estruturas, nos diz Bourdieu ( Bourdieu, 2002BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática: seguido de três estudos de etnologia cabila. Oieras: Celta, 2002. , 2007)BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. , o sujeito irá atuar por meio da prática (o autor gosta da analogia do “jogo”: o indivíduo “joga o jogo”) na interseção entre habitus e campo no manejo dos capitais simbólicos, sendo capaz, sob as condições específicas de seu contexto, mobilizar a interface entre capitais herdados e adquiridos e disputar o prestígio e a legitimidade num dado campo.

Tal capacidade está relacionada à percepção do sujeito social como “agente”, alguém capaz de compreender o mundo social à sua volta – os campos nos quais está atuando – e por meio da informação, do conhecimento, dos capitais, conseguir performar em busca de “melhores resultados”, ou ao menos, em “saídas criativas”. Essa perspectiva se potencializa quando percebemos que em nenhum outro momento da história tivemos acesso a tanta informação e, com isso, navegamos em tantos campos distintos.

A isso se associa a percepção de modernidade reflexiva ( Beck, 1997BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott (org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 11-71. ) – ainda que Giddens (1997)GIDDENS, Anthony. Risco, confiança, reflexividade. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 219-254. prefira o termo “reflexividade institucional” –, um processo que localiza historicamente esse momento que confronta a possibilidade de a Sociologia explorar as dinâmicas que ocorrem entre o agente e a estrutura e, portanto, que indiquem os modos de interação (e as tensões) com as condicionalidades estruturantes. Em última instância, esse processo torna o embate entre o moderno e o tradicional algo muito mais complexo, pois ao mesmo tempo em que as dinâmicas de globalização possibilitam trocas intensas (do que poderíamos chamar de capitais culturais) entre culturas distintas (pensemos os jovens secundaristas brasileiros fissurados nos bens culturais coreanos, como K-pop e Doramas), também ocorrem movimentos organizados de reconhecimento, preservação e fortalecimento da tradição ( Beck, 1997BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott (org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 11-71. ; Giddens, 1997GIDDENS, Anthony. Risco, confiança, reflexividade. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 219-254. ). Ainda que Domingues (2002)DOMINGUES, José Maurício. Reflexividade, individualismo e modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 55-70, 2002. critique a forma vaga como o conceito de reflexividade é tratado na obra geral de Giddens Giddens (2013)GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013. , tal desenvolvimento teórico é útil para desenvolver a análise da agência , que permite ao sujeito, por vezes, “furar o bloqueio das estruturas”.

A rotinização das práticas, a assunção de valores morais e normas de comportamento associados a outros sujeitos que possibilitam a vivência dos processos de autoidentidade e estilos de vida, ainda que sempre desenvolvidos em associação a pares semelhantes, também confere ao sujeito a construção de um self muito particular ( Giddens, 2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. ), relacionado à concepção mais geral de individualismo, ou de processos de individualização, o que numa perspectiva mais ampla tensiona as tradicionais categorias coletivas da Sociologia (como classe ou família) e termina por jogar o sujeito (individualizado) num embate desigual contra a sociedade de risco global ( Beck, 1997BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott (org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 11-71. ).

Dessa forma, a adesão dos jovens estudantes do ensino médio aos discursos de meritocracia é duplamente tensionada pela reflexividade. Primeiramente, o processo de individualização mobiliza o discurso de que é o “esforço” de cada um que irá possibilitar a mobilidade social vinculada à ambição estudantil e ao sucesso no mercado educacional, ignorando, obviamente, o movimento contrário das estruturas de manutenção das desigualdades próprias do sistema escolar, como aquelas analisadas por Bourdieu (2012)BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. .

Em segundo lugar, os jovens estão inseridos numa sociedade de ampla difusão da informação ( Giddens, 1997GIDDENS, Anthony. Risco, confiança, reflexividade. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 219-254. , 2002)GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. que lhes possibilitam conhecer os sistemas em que atuam e, por isso, mais do que em outras épocas, detêm consciência de que é preciso “jogar o jogo”, como diria Bourdieu (2007)BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. . Essa condição singular confere maior grau de informação – conhecimento estratégico para atuar, ou seja, uma agência diferenciada – que possibilita aos estudantes mais mobilizados (mais capazes de adquirir capitais simbólicos não-herdados) realmente “irem mais longe” do que as condições estruturais inicialmente faziam supor ser possível.

Ensinados pelo “exemplo” e pelas mudanças objetivas causadas por atitudes sistemáticas – a rotinização de práticas, como diz Giddens (2002)GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. –, como o caso da escola em que uma série de ações voltadas ao treinamento dos estudantes para prestar os exames vestibulares (ENEM, incluso) resultaram efetivamente no crescimento de aprovados em anos consecutivos, os jovens terminam por reforçar a ideia de meritocracia e ignorar as estruturas de desigualdade, criando a situação da qual alerta Beck (1997)BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott (org.). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 11-71. como um dos riscos de reforçarem sua vulnerabilidade (desemprego, insucesso escolar, por exemplo) e, ao se individualizarem por meio do esforço, do mérito, abrirem mão da condição coletiva que lhes proporcionaria mais “segurança”, como um reforço às políticas públicas.

Considerações finais

O conjunto de dados analisado neste artigo permitiu verificar que há entre os jovens estudantes uma considerável expectativa por uma vida educacional e futura que proporcione estabilidade e condições sociais desejáveis. Por mais difusas que sejam, essas expectativas de futuro indicam a vontade que esses estudantes, majoritariamente de contextos populares, têm de melhorar suas condições sociais e de suas famílias. Essas expectativas, no entanto, caminham junto a uma massificada adesão ao discurso meritocrático e individualista em geral, com baixa reflexão sobre os condicionantes sociais. Apesar de mulheres e de outros grupos demonstrarem menor aderência, essa é uma clara tendência, indicando a necessidade por mais estudos sobre a difusão desses valores em contextos sociais populares, nas escolas públicas, inclusive em uma das regiões não-privilegiadas do país. Também, cabe uma análise sobre o modo que tais grupos agenciam ou não, reflexivamente, ante um contexto marcado por discursos socialmente restritivos, como o meritocrático.

Os relatos e dados indicam que os agentes do universo escolar – professores e colegas – são atores significativos no processo de construção dessa visão. Esse quadro de expectativas de futuro, por mais que moderadas, e a crença em seu papel, pode ser uma oportunidade para potencializar tais trajetórias estudantis, cabendo uma reflexão sobre o papel da instituição escolar, seu sentido para esses estudantes e a capacidade objetiva da escola em oferecer as condições de aprendizagem para o desenvolvimento pessoal e educacional. Cabe uma reflexão sobre como a escola reproduz ou não determinados valores ou constrói discursos que podem potencializar ou não essas trajetórias.

Ademais, é necessário pensar sobre um possível descompasso entre expectativas dos jovens e realidade formativa proporcionada pelo novo ensino médio. Em um momento de expansão do ensino superior e da intensificação das dinâmicas econômicas baseadas no conhecimento, o papel da escola torna-se ainda mais central para garantir uma formação adequada, completa e que não produza ainda maiores distâncias educacionais entre diferentes grupos sociais, sobretudo no já grave contexto brasileiro de desigualdades sociais e educacionais.

Há importante agenda de pesquisa sobre como esse novo cenário de valores sociais difundidos, as convergências provocadas pela reforma do ensino médio, o papel da escola de ensino médio na sociedade brasileira e a relação da escola com os jovens na construção de suas expectativas e trajetórias. Trata-se tanto de uma série de questionamentos em aberto, como uma oportunidade de reflexão sobre qual escola de ensino médio queremos como sociedade e qual é a função pública a ser desempenhada por essas instituições tão prementes e com tanta capilaridade social.

References

  • ALVES, Cássia Ferrazza et al. Relações com a escola e expectativas quanto ao futuro em jovens brasileiros. Nuances, Presidente Prudente, v. 26, n. 1, p. 50-65, 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v26i1.3818
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  • 1
    Todas as referências aos grupos focais são parte de uma pesquisa realizada por pesquisadores da Universidade de Fortaleza (Unifor) e Universidade Federal do Ceará (UFC) dentro do Programa Cientista Chefe da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico. ( Sales et al. , 2021 SALES, Lilia Maia de Morais et al. Relatório da pesquisa Virando o Jogo. Fortaleza: UNIFOR: UFC: FUNCAP: Governo do Estado do Ceará, 2021. Relatório de pesquisa com recomendações e resultados da edição 1 de Fortaleza. , , 2022SALES, Lilia Maia de Morais et al. Relatório da pesquisa Virando o Jogo. Fortaleza: UNIFOR: UFC: FUNCAP: Governo do Estado do Ceará, 2022. Relatório de pesquisa com recomendações e resultados da edição 2 de Fortaleza. , 2023)SALES, Lilia Maia de Morais et al. Relatório da pesquisa Virando o Jogo. Fortaleza: UNIFOR: UFC: FUNCAP: Governo do Estado do Ceará, 2023. Relatório de pesquisa com recomendações e resultados da edição 3 de Fortaleza. .
  • 2
    Instituições que atuam em diversas áreas e que, dentre outras funções, produzem pesquisas, análises e recomendações para formuladores de políticas públicas.
  • 3
    O vídeo em questão é intitulado “Tudo que você precisa saber sobre o novo ensino médio!!”, do canal Você Sabia? no qual dois jovens, utilizando linguagem bem coloquial, explicam os pontos “positivos” da reforma.
  • 4
    Utilizada nos cruzamentos por ser a de maior tamanho.

Editado por

Editor responsável:
Prof. Dr. Leandro R. Pinheiro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2023
  • Revisado
    15 Jun 2023
  • Aceito
    11 Jul 2023
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