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Denise Schittine - Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira

Schittine, Denise. -Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016

Muitas pesquisas acadêmicas se misturam com a vida pessoal dos pesquisadores. Não se trata apenas do momento em que, ao escrever uma tese ou dissertação, a cabeça passa a estar tão focada que tudo se transforma em uma referência. São históricos familiares e experiências pessoais que influenciam na escolha dos temas estudados. Trajetórias de pesquisa que transparecem nas entrelinhas do texto final. Esse é caso de Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira (2016), tese de doutorado que a pesquisadora Denise Schittine transformou em livro e publicou pela editora Paz & Terra.

Foi a ansiedade diante de um histórico de doença ocular na família que a fez escolher o tema. Os livros, seus companheiros fiéis, presentes mesmo nos momentos de maior solidão, podem faltar na idade avançada, se a autora também tiver a mesma sorte dos parentes. O temor fez Schittine explorar a relação entre escrita e cegueira nos mais diferentes aspectos, dos detalhes históricos, aos elementos sensoriais. Para a autora, “a leitura, principalmente do texto literário, não é apenas decodificação de informação, mas um ato responsável por gerar prazer: cada uma das palavras lidas reflete no corpo do leitor, em seus ritmos sanguíneos, seus batimentos cardíacos, sua história pessoal” (Schittine, 2016SCHITTINE, Denise (2016). Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira. Rio de Janeiro: Paz&Terra., p. 27).

Do momento da recepção aos hábitos de leitura - “Fazer um chá, limpar os óculos, regular a luz do abajur e afundar-se confortavelmente numa poltrona com as pernas estendidas, esperando que o silêncio venha e, só então, abrir o livro (Schittine, 2016SCHITTINE, Denise (2016). Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira. Rio de Janeiro: Paz&Terra., p. 65) -, todo o processo é investigado, com o intuito de refletir sobre o quanto cada etapa é imprescindível. Como substituí-las no momento em que a visão falta? Como trocar a voz interna de cada leitor pela de um ledor, alguém que empresta sua entonação e ritmo para o outro?

Nem sempre questões como essas foram vistas como um problema. Ler não foi, ao longo da história, necessariamente, um ato íntimo e solitário. No passado eram comuns as leituras estarem associadas a encontros, onde um leitor em voz alta contava histórias. “As leituras públicas e informais eram constantes no século XVII. Faziam parte das reuniões entre amigos ou famílias que, portanto, eram mais descontraídas e permitiam uma maior liberdade ao ledor” (Schittine, 2016SCHITTINE, Denise (2016). Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira. Rio de Janeiro: Paz&Terra., p. 129). Vários escritores também costumavam realizar leituras, testando a reação do receptor, antes que suas obras ganhassem o público, caso, por exemplo, de Charles Dickens.

As tecnologias que foram surgindo ao longo do tempo também interferiram no processo de escrita e leitura. Antes que a invenção de Gutenberg fizesse com que os textos se disseminassem e ganhassem divulgação em grande escala, antes que os livros se transformassem em exemplares compactos e fáceis de deslocar, a solução era escutar àquele que tinha acesso a enormes aparatos difíceis de manusear, como os códices, o precursor do livro moderno.

Nesse tema, é possível também associar o estudo de Schittine com seu livro anterior: Blog: comunicação e escrita íntima na internet (2004). A possibilidade de postar na rede os escritos antes que eles sejam publicados por qualquer editora torna novamente esse um processo público. Por conta da tecnologia, o leitor passa a ter acesso ao processo de escrita, às etapas do texto antes que ele fique pronto por completo. Em entrevista para a revista eletrônica Caju, no início de 2017, a autora confirma:

A escrita da internet colocou o autor em novas lentes. Ele escreve agora, mas com a opinião do leitor por perto, os comentários, as observações. Ele escreve um hipertexto, o que faz com que algumas coisas se percam na memória do computador e o que faz com que, de uma forma meio sarcástica, voltemos a ler como os antigos liam os rolos, antes de códex. As posturas de escrita e leitura mudam completamente: o texto começa a passar por várias mãos, mesmo quando sai do autor indo direto para a editora e é cortado, preparado, reduzido, aumentado, repensado por uma, duas ou mais cabeças (Schittine, 2017SCHITTINE, Denise (2017). Ensaio sobre a cegueira. Entrevista a Renata Magdaleno. Caju: Arte, Cultura, Criatividade, Rio de Janeiro, 10 jan. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://revistacaju.com.br/2017/01/10/ensaio-sobre-a-cegueira/ >. Acesso em: 10 mar. 2017.
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, s.p.).

Mas, apesar das possibilidades tecnológicas, a leitura e a escrita ainda são vistas, na atualidade, como processos íntimos, solitários. É como se a publicação das etapas de escrita, dos rascunhos do livro em processo em blogs se associasse mais a um espetáculo, uma performance literária, capaz de divulgar a obra e seu autor. Cada leitor tem uma voz interior, que o acompanha ao longo das linhas. Uma voz que precisa ser substituída pela do ledor, a pessoa escolhida para perpetuar a relação entre o leitor sem visão e os livros, quando quem não enxerga não possui intimidade com o alfabeto em braile. No estudo de Schittine essa relação entre leitor e ledor é privilegiada, porque a autora detectou que quando a falta de visão atingia a pessoa com idade mais avançada o aprendizado em braile era muito penoso e um parente íntimo costuma ser a escolha mais comum para perpetuar essa relação com o mundo dos livros. Foi o caso de dois escritores-cegos consagrados: o argentino Jorge Luis Borges e o brasileiro João Cabral de Melo Neto.

Como Borges e João Cabral lidaram com a perda da visão, como conseguiram (ou não) aliar escrita e leitura com a escuridão sem fim? A parte mais saborosa do estudo está na pesquisa minuciosa da trajetória desses grandes autores. Duas trajetórias semelhantes e dois desfechos tão distintos. Enquanto Borges consegue criar artifícios para continuar acessando a escrita e a literatura, João Cabral afunda em uma escura depressão de onde não encontra esperança ou saída.

Parte da pesquisa para o livro foi realizada na Argentina, seguindo os passos de Borges, entrevistando pesquisadores; tentando acessar María Kodama, a viúva do escritor, ou encontrar a biblioteca do autor, mencionada diversas vezes em seus escritos. Na já mencionada entrevista, publicada logo após o lançamento do livro, Schittine conta que tentou diversas vezes marcar uma entrevista com a viúva de Borges, através da Fundación Borges, sempre recebendo um não como resposta. Um dia, enquanto estava em Buenos Aires pesquisando, resolveu aparecer de surpresa e perguntar por Kodama. Uma secretária solícita a levou diretamente para o escritório da esposa do escritor.

Não fui embora sem antes descobrir porque eu tinha conseguido que a secretária me abrisse as portas: a sobrinha de Kodama iria visitar a tia naquele dia. E, em sua defesa, a assistente dizia que eu era “igual” a ela. Isso me valeu o apelido de “sobriña Kodama”, festejado por todos os amigos argentinos (Schittine, 2017SCHITTINE, Denise (2017). Ensaio sobre a cegueira. Entrevista a Renata Magdaleno. Caju: Arte, Cultura, Criatividade, Rio de Janeiro, 10 jan. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://revistacaju.com.br/2017/01/10/ensaio-sobre-a-cegueira/ >. Acesso em: 10 mar. 2017.
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, s.p.).

Borges perdeu a visão quando já era um escritor e leitor maduro e, como Homero, detentor de uma memória invejável, recheada de mitos, lendas, versos e histórias. Toda sua trajetória foi rodeada pelos livros, desde a infância em Buenos Aires - marcada pela biblioteca do pai, com títulos ingleses, que, para o menino, pareciam intermináveis - até o período em que a família viveu na Europa, em busca de cura para a cegueira do pai (na família de Borges a doença ocular também era uma maldição temida pelos descendentes). Todo um mundo a ser explorado.

Havia toda uma linhagem de escritores na família de Borges que marcou também sua escolha pelos livros. O pai tinha a esperança de que o filho alcançasse a fama nas letras que ele e o avô não tinham conseguido. E o autor começou copiando o estilo dos escritores que admirava até se tornar uma das maiores influências literárias da região.

Quando a cegueira o alcançou (e para ele a falta de visão tinha um aspecto peculiar, como uma espécie de branco infinito), tinha assumido o cargo de diretor da Biblioteca Nacional e estava como sempre gostou, rodeado de livros. Para continuar suas leituras, recorreu primeiramente à mãe como ledora, numa espécie de volta à infância. A mesma voz que embalava as histórias para um menino ainda não alfabetizado volta na idade avançada, para manter a conexão do escritor com a biblioteca que o acompanhou ao longo da vida.

Na escrita também voltou ao gênero do início da carreira, a poesia. Criava e pedia para que escrevessem cada uma das palavras que guardara na memória, frisando a pontuação, e que lessem inúmeras vezes para que ele testasse se estavam de acordo. “Ele refazia o caminho que havia iniciado no princípio de sua vida, começara fazendo poesia e assim terminara, como num ciclo” (Schittine, 2016SCHITTINE, Denise (2016). Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira. Rio de Janeiro: Paz&Terra., p. 309).

João Cabral de Melo Neto não conseguiu se adaptar como Borges. O autor sofreu de “degenerescência macula” e, a partir de 1986, quando tinha 66 anos, teve uma perda gradativa de visão. Ele não chegou a sofrer a cegueira total, mas a doença, que deforma as linhas e impossibilita a leitura, o afastou do mundo dos livros. Seu processo de escrita era demasiadamente visual. Em várias entrevistas e poemas Cabral afirmou que não tinha uma relação sonora com os textos que produzia, muito pelo contrário, seu trabalho era de artesão, e as artes visuais eram referências constantes em seus escritos.

Ezra Pound diz que há três tipos de poesia: a fanopeia, que apresenta uma realidade visual ou visualizável - como exemplos: Cesário Verde, Lorca e até Dante -; a melopeia, de sugestão auditiva, como a música, e de que poderemos ter exemplos em Verlaine e Eugênio de Castro; e a logopeia, poesia que transmite uma ideia de que achamos um modelo nos sonetos de Camões. [...] Ora, a poesia portuguesa e a brasileira são preponderantemente melopeia e logopeia. [...] Eu sou preponderantemente de uma poesia fanopeia (Cabral apud Schittine, 2016SCHITTINE, Denise (2016). Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira. Rio de Janeiro: Paz&Terra., p. 385).

Como leitor-ouvinte, era impaciente e irritadiço. Como escritor, a construção artesanal de seus textos pedia a ajuda dos olhos, para que fossem vistos estampados na página. A perda da visão acabou com sua carreira de escritor, acabou com o prazer da leitura. Restou amargura e depressão.

O livro de Schittine traz ao leitor que nunca teve acesso a esse campo de estudo conclusões inesperadas. Revela como os processos de escrita e leitura foram culturalmente construídos ao longo do tempo, afetados também por transformações tecnológicas que provocaram, ao longo do tempo, mudanças em toda a sociedade. Revela, ainda, que a relação que construímos com os livros, além de sofrerem influências culturais, também são pessoais. Cada leitor cria seus próprios rituais. Cada escritor idem. E a sobrevivência de tais práticas diante da cegueira está diretamente ligada a essa relação.

Referências

  • SCHITTINE, Denise (2004). Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Record.
  • SCHITTINE, Denise (2016). Ler e escrever no escuro: a literatura através da cegueira. Rio de Janeiro: Paz&Terra.
  • SCHITTINE, Denise (2017). Ensaio sobre a cegueira. Entrevista a Renata Magdaleno. Caju: Arte, Cultura, Criatividade, Rio de Janeiro, 10 jan. On-line. Disponível em: <Disponível em: http://revistacaju.com.br/2017/01/10/ensaio-sobre-a-cegueira/ >. Acesso em: 10 mar. 2017.
    » http://revistacaju.com.br/2017/01/10/ensaio-sobre-a-cegueira/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2017
  • Aceito
    20 Jun 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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