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A Medicina Baseada em Evidências na jurisprudência relativa ao direito à saúde

RESUMO

Objetivo

Analisar, a partir do exame de decisões proferidas por tribunais brasileiros, como a Medicina Baseada em Evidências foi aplicada e se conduziu a decisões bem fundamentadas, sob a perspectiva do melhor conhecimento científico.

Métodos

Analisaram-se decisões de Tribunais Federais selecionadas pela busca, sem limitação temporal, no sítio do Conselho da Justiça Federal, dedicado à pesquisa unificada de jurisprudência, contendo a expressão “Medicina Baseada em Evidências”. Quanto aos acórdãos da Corte Paulista, a busca foi feita em sua página na internet dedicada à pesquisa de jurisprudência, também por meio da expressão “Medicina Baseada em Evidências”, e sem limitação temporal. Efetuou-se, a seguir, uma análise qualitativa da discussão efetuada em cada processo, verificando se nela se apreciaram a situação do paciente/autor da ação, e a eficácia ou ineficácia de tratamentos ou medicamentos constantes em protocolos já existentes, antes de se deferir a medida buscada em juízo.

Resultados

Verificou-se que em menos de um terço das decisões examinadas houve uma discussão adequada da eficácia do procedimento buscado judicialmente, em comparação com os disponibilizados em protocolos clínicos pelo Sistema Único de Saúde e por planos privados de saúde, à luz da situação individual do autor da ação. A maioria das decisões envolvia planos de saúde (n=13, 68%).

Conclusão

O número de decisões em que se deu maior consideração à evidência científica e às peculiaridades dos pacientes foi preocupante. É necessário ampliar a discussão da Medicina Baseada em Evidências nos processos envolvendo a saúde pública.

Medicina Baseada em Evidências; Direito à Saúde; Saúde/legislação & jurisprudência

ABSTRACT

Objective

To analyze, from the examination of decisions issued by Brazilian courts, how Evidence-Based Medicine was applied and if it led to well-founded decisions, searching the best scientific knowledge.

Methods

The decisions made by the Federal Courts were searched, with no time limits, at the website of the Federal Court Council, using the expression “Evidence-Based Medicine”. With regard to decisions issued by the court of the State of São Paulo, the search was done at the webpage and applying the same terms and criterion as to time. Next, a qualitative analysis of the decisions was conducted for each action, to verify if the patient/plaintiff’s situation, as well as the efficacy or inefficacy of treatments or drugs addressed in existing protocols were considered before the court granted the provision claimed by the plaintiff.

Results

In less than one-third of the decisions there was an appropriate discussion about efficacy of the procedure sought in court, in comparison to other procedures available in clinical guidelines adopted by the Brazilian Unified Health System (Sistema Único de Saúde) or by private health insurance plans, considering the individual situation. The majority of the decisions involved private health insurance plans (n=13, 68%).

Conclusion

The number of decisions that did consider scientific evidence and the peculiarities of each patient was a concern. Further discussion on Evidence-Based Medicine in judgments involving public healthcare are required.

Evidence-Based Medicine; Right to Health; Health/legislation & jurisprudence

INTRODUÇÃO

Muito se discute sobre a judicialização do acesso a cuidados de saúde no Brasil. O elevado grau de interferência judicial na determinação do fornecimento de medicamentos e de outras prestações de saúde afeta os orçamentos públicos e a equidade no atendimento dos seus beneficiários.11. Victora CG, Barreto ML, do Carmo Leal M, Monteiro CA, Schmidt MI, Paim J, Bastos FI, Almeida C, Bahia L, Travassos C, Reichenheim M, Barros FC; Lancet Brazil Series Working Group. Health conditions and health-policy innovations in Brazil: the way forward. Lancet. 2011;377(9782):2042-53. Também no âmbito dos planos e seguros de saúde, a intervenção judicial tem sido crescentemente buscada por consumidores pretendendo efetivar seus direitos.22. Alves DC, Bahia L, Barroso AF. O papel da Justiça nos planos e seguros de saúde no Brasil. Cad Saúde Pública. 2009;25(2):279-90. Além da doutrina,33. Scaff FF, Nunes JA. Os Tribunais e o Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2011. o próprio Judiciário tem buscado encaminhar a discussão do problema, como, por exemplo, na audiência pública realizada entre abril e maio de 2009 pelo Supremo Tribunal Federal.44. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Audiência Pública [Internet]. Brasília (DF): STF; 2009 [citado 2015 Set 23]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma
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O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, editou a recomendação 31, de 30 de março de 2010,55. Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010. Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência a saúde [Internet]. Brasília (DF): CNJ; 2010 [citado 2015 Set 23]. Disponível em: http://www.cnj.jus. br/atos-normativos?documento=877
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exortando Tribunais Federais e Estaduais a celebrarem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas nas ações relativas à saúde. Também se pediu aos tribunais que orientassem os magistrados a evitar autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ou experimentais.

Houve, ainda, a instituição, pelo CNJ, do Fórum Nacional do Judiciário, para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde – Fórum da Saúde, por meio da sua resolução 107, de 6 de abril de 2010,66. Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação n. 107, de 06 de abril de 2010. Institui o Fórum do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde [internet]. Brasília (DF): CNJ; 2010 [citado 2015 Set 23]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n107-06-04-2010-presidncia.pdf
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cuja área de atuação passou a incluir posteriormente a saúde suplementar.

Verifica-se, assim, que o tema da judicialização da saúde recomenda a adoção de soluções guiadas pela melhor técnica, o que, infelizmente, nem sempre ocorre. Para orientar a decisão judicial sobre fornecimento de determinado tratamento buscado em juízo, a abordagem conhecida como Medicina Baseada em Evidências parece oferecer contribuições interessantes. Não por acaso, a busca do melhor conhecimento científico, na incorporação de novas tecnologias, foi acolhida pela legislação brasileira em decorrência da lei 12.401, de 28 de abril de 2011, que alterou a lei 8.080/1990, nela inserindo um Capítulo VIII no seu Título II. Conforme previsão do art. 19-Q da lei 8.080/1990, acrescentado pela lei 12.401/2011, na incorporação, na exclusão ou na alteração pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como na constituição ou na alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, devem ser consideradas as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo.

O art. 19-T da lei 8.080/1990, por sua vez, veda o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela ANVISA, bem como a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na mencionada agência.

Desse modo, observa-se que são buscados dois tipos de soluções em relação à judicialização: uma interna ao Poder Judiciário, por meio da audiência pública acima referida e da atuação do CNJ, que não vincula os juízes, mas que estabelece diretrizes as quais podem levar a decisões melhor fundamentadas; outra, por meio do próprio Executivo, pela lei 12.401/2011, ao prever critérios científicos para a incorporação de novas tecnologias, o que passa também a constituir matéria que o Judiciário, ao apreciar os pedidos das partes, terá que analisar.77. Wang DW. Courts as healthcare policy-makers: the problem, the responses to the problem and the problem in the responses. Direito GV. 2013;75:1-60.

Cumpre verificar como o Judiciário tem atuado no tocante à exigência de eficácia científica dos procedimentos e medicamentos. Ao determinar o fornecimento de um medicamento ou de um tratamento, ele tem considerado os protocolos clínicos existentes? Para afastar a aplicação dos protocolos, as decisões têm apreciado as peculiaridades dos pacientes e a ineficácia dos tratamentos disponibilizados pelo SUS ou por planos de saúde privados? As recomendações do CNJ têm sido seguidas?

OBJETIVO

Analisar, a partir do exame de decisões proferidas por tribunais brasileiros, como a Medicina Baseada em Evidências foi aplicada e se conduziu a decisões bem fundamentadas, sob a perspectiva do melhor conhecimento científico.

MÉTODOS

O presente estudo propõe-se a apresentar uma análise crítica de decisões de tribunais brasileiros, sendo três decisões proferidas por Tribunais Regionais Federais e 16 decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo relacionadas ao direito à saúde, levando em consideração a Medicina Baseada em Evidências.

A escolha das decisões dos Tribunais Federais decorreu de busca, sem limitação temporal, no sítio do Conselho da Justiça Federal, dedicado à pesquisa unificada de jurisprudência.88. Brasil. Conselho da Justiça Federal (CJF). Portal da Justiça Federal. Jurisprudência Unificada. [Internet]. Brasília (DF): CJF; 2015 [citado 2015 Abr 2]. Disponível em: http://www2.jf.jus.br/juris/unificada/
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Trata-se de sítio em que se tem acesso a mecanismo de busca de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, cortes de maior hierarquia no Brasil e responsáveis pela uniformização da interpretação da Constituição e das leis, respectivamente. Nesse sítio, também se podem pesquisar as decisões exaradas pelos cinco Tribunais Regionais Federais, que apreciam recursos de decisões em que a União e entes federais são interessados, pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência (TNU), pelas Turmas Regionais de Uniformização e pelas Turmas Recursais dos Estados da Federação, que também apreciam recursos de decisões proferidas em ações que seguem a lei dos Juizados Especiais Federais, de interesse da União e entes federais. A pesquisa pode ser feita utilizando-se termos específicos, separados ou em conjunto, pelo emprego de modais como “e”, “ou”, “adj” e outros. Procuraram-se decisões proferidas por referidos órgãos do Poder Judiciário que contivessem a expressão “Medicina Baseada em Evidências” (entre aspas). Assim, somente foram apontadas decisões em que a expressão completa foi mencionada. As ações judiciais envolvendo o direito à saúde podem envolver todos os entes da Federação (União, Estados, Municípios e Distrito Federal). Quando a União é parte, a competência para tais ações é da Justiça Federal. Trata-se de decisões envolvendo, então, o SUS. Foram encontrados apenas três acórdãos (decisões de órgãos colegiados de tribunais), dos Tribunais Regionais Federais da 2ª, 5ª e 4ª Regiões, com sede no Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE) e Porto Alegre (RS), respectivamente.

Quanto aos acórdãos da Corte Paulista, a busca foi feita na sua página na internet, na parte dedicada à pesquisa de jurisprudência,99. São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Consulta de Jurisprudência [Internet]. São Paulo (SP): TJE; 2015 [citado 2015 Set 23]. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do
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também por meio da expressão “Medicina Baseada em Evidências”, e sem limitação temporal. À semelhança do sítio do Conselho da Justiça Federal, a pesquisa pode ser feita por termos isolados ou mencionados em conjunto nas decisões. Também se pesquisou a expressão completa entre aspas, o que permitiu localizar as decisões em que ela foi mencionada. Como se trata de Tribunal de Justiça estadual, a União não é parte dessas ações, que são movidas contra entes privados (planos e seguros de saúde) e contra o Estado de São Paulo e/ou Municípios daquela unidade da Federação, dizendo respeito, no segundo caso, ao SUS.

A pesquisa foi feita no sítio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por este ser o mais populoso e com maior grau de cobertura dos planos e seguros privados de saúde, conforme dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar.1010. Brasil. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados sobre beneficiários [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): ANS; 2015 [citado 2015 Set 23]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/portal/site/dados_setor/dadossobrebeneficiarios.asp
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Foram identificadas 19 de decisões de tribunais brasileiros, sendo 3 decisões proferidas por Tribunais Regionais Federais e 16 decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relacionadas ao direito à saúde levando em consideração a Medicina Baseada em Evidências.

Após a identificação das decisões, foi feita uma análise qualitativa da discussão nela contida sobre a Medicina Baseada em Evidências. Em primeiro lugar, identificaram-se as decisões em que ela, apesar de referida, não foi discutida, nem contribuiu para a decisão. Em seguida, destacaram-se as decisões em que houve uma discussão da Medicina Baseada em Evidências, ainda que mínima. Por exemplo, a alegação de um plano de saúde de que o tratamento buscado é experimental, não havendo evidências de sua eficácia, tendo o julgador afastado tal argumento com a afirmação de que não houve prova de tal caráter experimental. Buscou-se verificar se foram apreciadas a situação do paciente/autor da ação, e a eficácia ou ineficácia de tratamentos ou medicamentos constantes em protocolos já existentes para deferir a medida buscada em juízo.

Não se ignora que é possível que existam outras decisões em que se tenha discutido a adequação científica de uma dada terapia, mas que, por não incorporarem a expressão completa “Medicina Baseada em Evidências”, não tenham sido localizadas. No entanto, preferiu-se restringir a pesquisa às decisões que contenham tal termo diante do fato de se adotar como hipótese a ser testada a de que a positivação pela lei 12.401/2011 de uma preocupação com as evidências científicas para a incorporação de novas tecnologias pelo SUS implica uma crescente referência à aludida abordagem teórica nas decisões.

Não é papel do Judiciário realizar uma análise aprofundada da Medicina Baseada em Evidências. Trata-se de matéria técnica, que exige manifestação de peritos e especialistas, o que é, inclusive, objeto de recomendação pelo CNJ. A aplicação mais ou menos adequada da Medicina Baseada em Evidências depende também da atuação dos advogados envolvidos e da sensibilização dos magistrados. Como não existiam elementos para aferir tais aspectos, privilegiou-se o exame dos argumentos utilizados na decisão, em especial se foram apreciadas situação do paciente e da eficácia dos procedimentos disponibilizados pelo SUS ou por planos de saúde.

RESULTADOS

Das 19 decisões que referiram a Medicina Baseada em Evidências localizadas na pesquisa, 6 (32%) foram proferidas em face do Poder Público, envolvendo, desse modo, o atendimento pelo SUS, e 13 (68%) foram proferidas face a planos de saúde − no caso a Associação Valeparaibana de Assistência Médica Policial (AVAMP) e diferentes cooperativas da UNIMED.

A maioria das decisões (11) foi proferida entre 2012 e 2013.1111. Brasil. Tribunal Regional Federal. Apelação Cível 201251070000670 (TRF da 2ª Região), Agravo de Instrumento 00037285320124050000 (TRF da 5ª Região), Embargos Infringentes 9088893-96.2009.8.26.0000/5000 (TJSP), Apelações Cíveis 0005391-75.2009.8.26.0274, 0006799-31.2010.8.26.0189, 0044728-23.2010.8.26.0602, 0011629-67.2010.8.26.0568, 0209730-96.2010.8.26.0100, 0006347-64.2007.8.26.0047, 0029775-63.2010.8.26.0114 e 0389526-42.2008. 8.26.0577 (TJSP). Uma foi proferida em 2009,1212. Brasil. Tribunal Regional Federal. Apelação Cível 200872000123954 (TRF da 4ª Região). duas datavam de 20101313. São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelações Cíveis 0378139-44.2010.8.26.0000 e 9096613-51.2008.8.26.0000 (TJSP). e as restantes, de 20081414. São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento 9057478-32.2008. 8.26.0000 e Apelação Cível 9224361-66.2008.8.26.0000 (TJSP). (duas), 20071515. São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível 0168984-06.2007.8.26.0000 (TJSP). e 20041616. São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravos de Instrumento 9032805-14.2004. 8.26.0000 e 9030820-10.2004.8.26.0000 (TJSP). (também duas). Verificou-se, assim, um incremento na frequência com que se identificou a apresentação de argumentos fundados na adequação científica de medicamentos e procedimentos buscados em juízo, notadamente após a audiência pública realizada pelo Superior Tribunal Federal, em 2009, e a edição da recomendação 31 pelo CNJ, em 2010.

A esmagadora maioria das decisões foi favorável aos autores: 18 delas. Apenas uma decisão foi desfavorável,1717. Brasil. Tribunal Regional Federal. Apelação Civel 201251070000670 (TRF da 2ª Região). na qual não se discutiu o direito à saúde, mas sim à previdência social (ação movida contra o Instituto Nacional do Seguro Social − INSS, visando à concessão de um benefício por incapacidade, o auxílio-doença).

Todas as demais concederam o que os autores pretendiam. Os tratamentos e procedimentos buscados foram variados, sendo digno de nota o número de decisões envolvendo o fornecimento de stents revestidos de medicamentos: quatro. O quadro 1 resume as decisões judiciais envolvendo a Medicina Baseada em Evidências entre 2004 e 2013.

Quadro 1
Decisões judiciais envolvendo a Medicina Baseada em Evidências entre 2004 e 2013

DISCUSSÃO

Uma discussão mínima da Medicina Baseada em Evidências, ou de seus pressupostos, ou seja, a adequação do medicamento ou procedimento, conforme as melhores evidências científicas, de acordo com o quadro do paciente, ocorreu em apenas dez decisões.1818. Brasil. Tribunal Regional Federal. Agravo de Instrumento 00037285320124050000 (TRF da 5ª Região), Agravos de Instrumento 9032805-14.2004.8.26.0000 e 9057478-32.2008.8.26.0000 (TJSP), Apelações Cíveis 0168984-06.2007. 8.26.0000, 0378139-44.2010.8.26.0000, 0006799-31.2010.8.26.0189, 0044728-23.2010. 8.26.0602, 0006347-64.2007.8.26.0047, 0029775-63.2010.8.26.0114 e 0389526-42.2008.8.26.0577 (TJSP). Nas demais, apesar de referida, por iniciativa de alguma das partes, a Medicina Baseada em Evidência não foi discutida, não tendo importância para o julgamento, e prevalecendo argumentos jurídicos ligados ao conteúdo do direito à saúde ou à abusividade de cláusulas contratuais com base no Código de Defesa do Consumidor, ou à não demonstração do caráter experimental do tratamento. Houve casos em que se referiu que deve ser o médico do paciente, e não o plano de saúde ou o Estado, quem deve decidir qual tratamento ou medicamento deve ser fornecido.1919. São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos Infringentes 9088893-96.2009. 8.26.0000/5000. Uma análise mais fundamentada da peculiaridade da situação do autor e/ou da imprestabilidade do tratamento disponibilizado pelo SUS ou pelo plano de saúde somente foi feita em seis casos.2020. Brasil. Tribunal Regional Federal. Agravo de Instrumento 00037285320124050000 (TRF da 5ª Região) e nas Apelações Cíveis 0378139-44.2010.8.26.0000, 0006799-31.2010.8.26.0189, 0044728-23.2010.8.26.0602, 0006347-64.2007. 8.26.0047 e 0389526-42.2008.8.26.0577 (TJSP). Consideram-se melhor fundamentadas essas decisões por terem apreciado as características individuais de cada paciente, pois nem sempre o tratamento mais eficaz para a maioria dos pacientes é adequado ao indivíduo em questão, tendo-se em vista a possibilidade de reações de hipersensibilidade, interações medicamentosas e possíveis contraindicações a determinados tratamentos. Nesse contexto, o papel do médico é fundamental para a correta prescrição terapêutica, corrigindo os riscos de eventual insuficiência da informação disponível e da aplicação generalizada dos resultados dos estudos clínicos.2121. Sniderman AD, Lachapelle KJ, Rachon NA, Furberg CD. The necessity for clinical reasoning in the era of evidence-based medicine. Mayo Clinic Proc. 2013;88(10):1108-14. O quadro 1 resume as decisões analisadas. Mostra-se preocupante que, nos quatro casos envolvendo o fornecimento destents revestidos de medicamentos, cinco vezes mais caros que os não revestidos, tenha se desconsiderado que vários estudos clínicos concluíram não haver diferenças significativas entre eles em termos dos eventos morte, trombose, infarto e necessidade de nova cirurgia. As duas decisões mais recentes envolvendo stents, destacadas no quadro 1, ao menos apresentaram como justificativas peculiaridades dos autores, como sua idade e doenças que os acometem.

CONCLUSÃO

Apesar de referida, a Medicina Baseada em Evidências não foi utilizada como fundamento da maioria das decisões, nem contribuiu para uma análise mais adequada da situação do paciente, prevalecendo argumentos jurídicos ligados à superioridade do direito à saúde, com fundamento no art. 196 da Constituição, e ao caráter abusivo e ilegal de restrições ao fornecimento de medicamentos e tratamentos, com base no Código de Defesa do Consumidor. O número de decisões em que se deu maior consideração à evidência científica e às peculiaridades dos pacientes é preocupante. Deve ser lembrado que sua desconsideração leva ao fornecimento de medicamentos e tratamentos desnecessários ou inadequados, ignorando alternativas disponibilizadas por planos e saúde e pelo Sistema Único de Saúde, onerando o sistema público de saúde e os planos. É necessário que o Conselho Nacional de Justiça avalie o atendimento à sua recomendação 31 que, mesmo sem ter caráter vinculante, estabelece premissas óbvias para evitar decisões que não tenham embasamento no melhor conhecimento científico disponível. É necessário ampliar a discussão da Medicina Baseada em Evidências nos processos envolvendo a saúde pública, pois ela representa uma ferramenta extremamente útil para auxílio em decisões judiciais. No entanto, sua inadequada e insuficiente aplicação, conforme constatado na pesquisa, aponta para a necessidade de capacitar os membros do Judiciário, do Ministério Público e da Advocacia, pública e privada, quanto à sua utilização, o que pode contribuir para decisões melhor fundamentadas e para uma maior qualidade do gasto delas decorrente.

REFERENCES

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    São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível 0168984-06.2007.8.26.0000 (TJSP).
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    São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravos de Instrumento 9032805-14.2004. 8.26.0000 e 9030820-10.2004.8.26.0000 (TJSP).
  • 17
    Brasil. Tribunal Regional Federal. Apelação Civel 201251070000670 (TRF da 2ª Região).
  • 18
    Brasil. Tribunal Regional Federal. Agravo de Instrumento 00037285320124050000 (TRF da 5ª Região), Agravos de Instrumento 9032805-14.2004.8.26.0000 e 9057478-32.2008.8.26.0000 (TJSP), Apelações Cíveis 0168984-06.2007. 8.26.0000, 0378139-44.2010.8.26.0000, 0006799-31.2010.8.26.0189, 0044728-23.2010. 8.26.0602, 0006347-64.2007.8.26.0047, 0029775-63.2010.8.26.0114 e 0389526-42.2008.8.26.0577 (TJSP).
  • 19
    São Paulo (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Embargos Infringentes 9088893-96.2009. 8.26.0000/5000.
  • 20
    Brasil. Tribunal Regional Federal. Agravo de Instrumento 00037285320124050000 (TRF da 5ª Região) e nas Apelações Cíveis 0378139-44.2010.8.26.0000, 0006799-31.2010.8.26.0189, 0044728-23.2010.8.26.0602, 0006347-64.2007. 8.26.0047 e 0389526-42.2008.8.26.0577 (TJSP).
  • 21
    Sniderman AD, Lachapelle KJ, Rachon NA, Furberg CD. The necessity for clinical reasoning in the era of evidence-based medicine. Mayo Clinic Proc. 2013;88(10):1108-14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2015
  • Aceito
    23 Set 2015
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