Acessibilidade / Reportar erro

Síndrome do desconforto respiratório agudo causada por Mycoplasma pneumoniae em uma criança: o papel da metilprednisolona e claritromicina

RESUMO

Mycoplasma pneumonia é reconhecido como um importante agente causador de pneumonia em crianças. Raramente pode evoluir para lesão pulmonar grave. O uso de corticoide nesses casos ainda é controverso. Descrevemos aqui o caso de uma menina com síndrome do desconforto respiratório agudo e derrame pleural bilateral secundário à pneumonia por Mycoplasma pneumoniae com boa recuperação após utilização de metilprednisolona e claritromicina.

Descritores:
Mycoplasma pneumoniae; Esteroides; Criança; Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo; Claritromicina; Relatos de casos

ABSTRACT

Mycoplasma pneumoniae is recognized as an important agent of pneumonia in pediatric population. In rare situations, severe pulmonary injury can develop. The use of corticoids in these cases remains controversial. A case of a girl with acute respiratory distress syndrome and bilateral pleural effusion secondary to pneumonia due to Mycoplasma pneumoniae is described, with good recovery after appropriate use of methylprednisolone and clarythromicyn.

Keywords:
Mycoplasma pneumoniae; Steroids; Child; Acute Respiratory Distress Syndrome; Clarythromicyn; Case reports

INTRODUÇÃO

Mycoplasma pneumoniae é um agente causal comum de pneumonia, e representa de 10 a 20% dos casos da enfermidade adquirida na comunidade. A infecção pulmonar é geralmente classificada como uma pneumonia atípica, pois a apresentação clínica lembra uma infecção viral sistêmica. A doença é altamente transmissível e a infecção ocorre o ano todo, com picos evidentes no outono e início do inverno(11. Waites KB. New concepts of Mycoplasma pneumoniae infections in children. Pediatr Pulmonol. 2003;36(4):267-78.).

Em crianças, o M. pneumoniae é um agente responsável por infecções respiratórias geralmente leves e autolimitadas nos tratos superior e inferior, que incluem casos de faringite, traqueobronquite, bronquiolite e pneumonia. Dentre essas infecções, 20% são assintomáticas e raramente levam ao óbito(11. Waites KB. New concepts of Mycoplasma pneumoniae infections in children. Pediatr Pulmonol. 2003;36(4):267-78.).

Uma lesão pulmonar grave por M. pneumoniae é extremamente rara e há poucos relatos na literatura de pacientes que desenvolveram derrame pleural ou síndrome do desconforto respiratório agudo/lesão pulmonar aguda (SDRA/LPA)(22. Radisic M, Torn A, Gutierrez P, Defranchi HA, Pardo P. Severe acute lung injury caused by Mycoplasma pneumoniae: potential role for steriod pulses in treatment. Clin Infect Dis. 2000;31(6):1507-11.55. Lee KL, Lee HS, Hong JH, Lee MH, Lee JS, Burgner D, et al. Role of prednisolone treatment in severe Mycoplasma pneumoniae pneumonia in children. Pediatric Pulmonol. 2006;41(3):263-8.).

Descreve-se o caso de uma criança com uma evolução atípica de pneumonia por M. pneumoniae, com ênfase nos aspectos terapêuticos da doença, como suporte com ventilação mecânica, antibióticos e uso de esteroides para SDRA, com destaque para as indicações específicas para M. pneumoniae. As diferenças básicas entre a SDRA clássica e a SDRA por M. pneumoniae são também abordadas.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 14 anos, foi transferida para o Centro de Terapia Intensiva Pediátrica (CTIP) com história de tosse há 7 dias. Teve febre e desconforto respiratório no dia anterior à admissão. Na história pregressa, dois episódios diagnosticados de pneumonia.

À internação, apresentava frequência respiratória de 50 respirações/minuto e frequência cardíaca de 140 batimentos/minutos, com temperatura de 37°C. Ausculta pulmonar com estertores crepitantes à direita. Os exames laboratoriais mostraram hemoglobina 11,5 g/ dL, leucócitos 12.500/µl, neutrófilos 55% e proteína Creativa 445 mg/dL. A radiografia de tórax apresentava infiltrados difusos bilaterais (Figura 1A). Iniciou com ceftriaxona e oxigenioterapia.

Figura 1
(A) Radiografia de tórax à internação mostra infiltrado bilateral. (B) A radiografia no dia 2 mostra piora no infiltrado bilateral e derrame pleural bilateral. (C) Tomografia computadorizada de tórax apresenta áreas de colapso e infiltrado pulmonar difuso.

Após 24 horas, seu quadro clínico e respiratório piorou. A radiografia e a tomografia computadorizada (TC) de tórax mostraram derrame pleural bilateral (maior à esquerda) e aumento bilateral do infiltrado (Figuras 1B e 1C). Foi intubada e iniciou com ventilação mecânica. Foi modificado o esquema de antibióticos para teicoplanina e imipenem. O tratamento do derrame pleural foi conservador.

Apesar da ventilação com maiores ajustes, a PaO2/ FiO2 era 65 mmHg. Depois de analisar conjuntamente a oxigenação (PaO2/FiO2 < 200 mmHg), radiografia de tórax (infiltrado bilateral), evolução aguda e sem evidência de hipertensão atrial esquerda, a equipe do CTIP fez diagnóstico de SDRA.

Em relação aos ajustes do ventilador, foi aplicada a estratégia de proteção do pulmão com uso de alto PEEP (pressão expiratória final positiva) e menor volume corrente (6 a 8 mL/kg). Apesar das manobras de recrutamento e PEEP até 20 cmH2O, a proporção PaO2/FiO2 permaneceu acima de 125 mmHg. Depois de aumentar os ajustes de PEEP, a paciente desenvolveu hipotensão (tratada com fluidos e dopamina até 10 mcg/kg/min).

Após 7 dias de antibioticoterapia, a paciente permaneceu febril, sem melhora na PaO2/FiO2. A hemocultura e a pesquisa para Pneumocystis carinii e tuberculose foram negativas. A sorologia para M. pneumoniae (aglutinina indireta de micropartículas) e o teste para aglutininas frias foram positivos. Iniciou com claritromicina.

Mesmo após receber o macrolídeo por 48 horas, não melhorou a condição de oxigenação.

Após 9 dias, corticoterapia foi iniciada por não melhorar a PaO2/FiO2. Depois do uso de metilprednisolona por 2 dias (4 mg/kg/dia), a PaO2/FiO2 aumentou acima de 200 mmHg (Figura 2).

Figura 2
Correlação entre PEEP (cm H2O) e PaO2/FiO2 (mm Hg). Linha vermelha: início de claritromicina. Linha laranja: início de corticosteroides.

O efeito anti-inflamatório dos esteroides permitiu reduzir a PEEP. No 14° dia, a paciente foi extubada e transferida para a unidade pediátrica. Interrompeu o uso de claritromicina após 14 dias e de metilprednisolona após 7 dias.

DISCUSSÃO

Pneumonia por M. pneumoniae é geralmente uma doença benigna e autolimitada, mas há relatos de casos graves e fatais. Nesses casos, a mortalidade é maior devido a menor resposta terapêutica(11. Waites KB. New concepts of Mycoplasma pneumoniae infections in children. Pediatr Pulmonol. 2003;36(4):267-78.).

O tratamento clássico para infecção pulmonar grave causada por M. pneumonia inclui o uso de um macrolídeo, ventilação mecânica e internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI)(55. Lee KL, Lee HS, Hong JH, Lee MH, Lee JS, Burgner D, et al. Role of prednisolone treatment in severe Mycoplasma pneumoniae pneumonia in children. Pediatric Pulmonol. 2006;41(3):263-8.).

A estratégia terapêutica nos ajustes do ventilador mecânico na SDRA por M. pneumoniae, como para qualquer outro agente, deve ter como objetivo maiores níveis de PEEPs e menores volumes corrente. A literatura é escassa em relação a crianças, e a aplicabilidade dessas estratégias deve ser considerada apenas nos casos selecionados.

Neste caso, mesmo com uso de maior PEEP (até 20 cmH2O), baixo volume corrente e manobras de recrutamento pulmonar, a criança não foi capaz de recuperar a PaO2/FiO2 normal após 1 semana utilizando essas estratégias (além de antibióticos de largo espectro).

Em relação ao uso de esteroides para SDRA, uma avaliação crítica de estudos da rede de SDRA e da literatura recente foi realizada por Meduri et al., que concluíram que o uso prolongado de corticoides (≥ 7 dias) melhora as variáveis de desfecho relacionadas ao pacientes, como melhora na troca gasosa, redução em marcadores de inflamação e menor duração da ventilação mecânica e permanência na UTI. Se iniciar com esteroides antes do 14° dia de SDRA, o paciente pode se beneficiar mais em termos de sobrevida(66. Meduri GU, Marik PE, Chousos G P, Pastores SM, Arlt W, Beishuizen A, et al. Steroid treatment in ARDS: a critical appraisal of the ARDS network trial and the recent literature. Intensive Care Med. 2008;34(1):61-9.).

Esse benefício potencial dos esteroides para SDRA parece ser mais importante em casos graves de pneumonia por M. pneumoniae. As evidências apontam uma forte consideração de uso de corticoide na SDRA/LPA por M. pneumoniae ou na pneumonia grave(22. Radisic M, Torn A, Gutierrez P, Defranchi HA, Pardo P. Severe acute lung injury caused by Mycoplasma pneumoniae: potential role for steriod pulses in treatment. Clin Infect Dis. 2000;31(6):1507-11.55. Lee KL, Lee HS, Hong JH, Lee MH, Lee JS, Burgner D, et al. Role of prednisolone treatment in severe Mycoplasma pneumoniae pneumonia in children. Pediatric Pulmonol. 2006;41(3):263-8.). Devido ao atraso para iniciar o tratamento com metilprednisolona, o presente caso é bem ilustrativo nesse aspecto, pois apresenta uma recuperação surpreendente após o uso de esteroide.

O benefício potencial dos esteroides nesses casos é consistente com a hipótese de que a imunidade mediada por células desempenha um papel importante na pneumonia por M. pneumoniae. Isso foi demonstrado pela presença de infiltrados periluminais mononucleares no tecido pulmonar(77. Cimolai N, Taylor G P, Mah D, Morrison BJ. Definition and application of a hispathological scoring scheme for an animal model of acute Mycoplasma pneumoniae pulmonary infection. Microbiol Immunol. 1992;36(5):465-78.). Há alguns estudos que mostram baixa incidência de pneumonia por M. pneumoniae em pacientes imunodeprimidos(88. Tarp B, Jensen JS, Ostergaard L, Anderson PL. Search for agents causing atypical pneumonia in HIV-positive patients by inhibitor-controlled PCR assay. Eur Respir J. 1999;13(1):175-9.).

Em pacientes imunocompetentes, os casos graves de pneumonia por M. pneumoniae podem ser explicados pelo fato de respostas imunocelulares mais fortes poderem induzir infiltrados pneumônicos mais severos, principalmente em pacientes com infecções comunitárias repetitivas(99. Cimolai N. Corticosteroids and complicated Mycoplasma pneumoniae infection. Pediatric Pulmonol. 2006;41(10):1008-9.). Diferente do padrão histológico da SDRA clássica, focada basicamente na migração de neutrófilos para dentro das vias aéreas, essa resposta na infecção por M. pneumoniae é considerada uma SDRA “linfoide,” pois quanto mais vigorosa for a resposta imune mediada por células e citocinas, mais grave será a lesão pulmonar(22. Radisic M, Torn A, Gutierrez P, Defranchi HA, Pardo P. Severe acute lung injury caused by Mycoplasma pneumoniae: potential role for steriod pulses in treatment. Clin Infect Dis. 2000;31(6):1507-11.).

Em resumo, os corticosteroides regulam negativamente a resposta celular e, portanto, devem ter um papel importante na pneumonia por M. pneumoniae grave. A questão a ser respondida é qual paciente deve receber esteroides e como identificá-lo.

Narita et al. relataram que maiores concentrações de interleucina 18 (IL-18) e interleucina 8 (IL-8) em amostras séricas ou de líquido pleural de pacientes em fase aguda da infecção por M. pneumoniae estavam muito associadas à gravidade da doença. Os autores recomendam que IL-8 e IL-18 sejam medidas (no soro ou fluido pleural) e podem ser preditivos de gravidade da doença na pneumonia por M. pneumoniae, além de ajudarem a decidir sobre o uso ou não corticosteroides(1010. Narita M, Tanaka H. Cytokines involved in the severe manifestations of pulmonary diseases caused by Mycoplasma pneumoniae. Pediatr Pulmonol. 2007;42(4):397.).

Em conclusão, embora ainda controverso para todos os casos de SDRA, há evidências na literatura de uso confiável de corticosteroides em casos extremamente graves de SDRA por M. pneumoniae. Outros pacientes com casos menos graves poderiam se beneficiar do uso de esteroide, mas a aplicação deve ser considerada como uma opção, com evidência fraca. Portanto, são necessários mais estudos para confirmar o benefício e abordar outras questões importantes, como quais pacientes são candidatos ao uso, a dose ideal e quando prescrever metilprednisolona.

REFERENCES

  • 1
    Waites KB. New concepts of Mycoplasma pneumoniae infections in children. Pediatr Pulmonol. 2003;36(4):267-78.
  • 2
    Radisic M, Torn A, Gutierrez P, Defranchi HA, Pardo P. Severe acute lung injury caused by Mycoplasma pneumoniae: potential role for steriod pulses in treatment. Clin Infect Dis. 2000;31(6):1507-11.
  • 3
    Takiguchi Y, Shikama N, Aotsuka N, Koseki H, Terano T, Hirai A. Fulminant Mycoplasma pneumoniae pneumonia. Intern Med. 2001;40(4):345-8.
  • 4
    Yoshinouchi T, Ohtsuki Y, Fujita J, Sugiura Y, Banno S, Sato S, et al. A study on intraaveolar exudates in acute Mycoplasma Pneumoniae infection. Acta Med Okayama. 2002;56(2):111-6.
  • 5
    Lee KL, Lee HS, Hong JH, Lee MH, Lee JS, Burgner D, et al. Role of prednisolone treatment in severe Mycoplasma pneumoniae pneumonia in children. Pediatric Pulmonol. 2006;41(3):263-8.
  • 6
    Meduri GU, Marik PE, Chousos G P, Pastores SM, Arlt W, Beishuizen A, et al. Steroid treatment in ARDS: a critical appraisal of the ARDS network trial and the recent literature. Intensive Care Med. 2008;34(1):61-9.
  • 7
    Cimolai N, Taylor G P, Mah D, Morrison BJ. Definition and application of a hispathological scoring scheme for an animal model of acute Mycoplasma pneumoniae pulmonary infection. Microbiol Immunol. 1992;36(5):465-78.
  • 8
    Tarp B, Jensen JS, Ostergaard L, Anderson PL. Search for agents causing atypical pneumonia in HIV-positive patients by inhibitor-controlled PCR assay. Eur Respir J. 1999;13(1):175-9.
  • 9
    Cimolai N. Corticosteroids and complicated Mycoplasma pneumoniae infection. Pediatric Pulmonol. 2006;41(10):1008-9.
  • 10
    Narita M, Tanaka H. Cytokines involved in the severe manifestations of pulmonary diseases caused by Mycoplasma pneumoniae. Pediatr Pulmonol. 2007;42(4):397.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2011

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2010
  • Aceito
    03 Mar 2011
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br