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Doença de Krabbe: a importância do diagnóstico precoce para seu prognóstico

Resumos

Doença de Krabbe (leucodistrofia de células globoides) é uma leucodistrofia de herança autossômica recessiva causada pela deficiência da enzima galactocerebrosidase. A falta dessa enzima leva ao acúmulo de galactolipídeos que irão promover a morte dos oligodendrócitos e a desmielinização do sistema nervoso central e periférico. Possui duas formas clínicas: de início precoce e de aparecimento tardio. O presente artigo relata um caso da apresentação tardia da doença de Krabbe e discute a importância do diagnóstico precoce para o seu prognóstico.

Leucodistrofia de células globoides; Galactosilceramidase; Psicosina; Galactolipídeos; Diagnóstico precoce; Relatos de casos


Krabbe disease (globoid cell leukodystrophy) is an inherited recessive autosomal leukodystrophy caused by deficiency of the enzyme galactocerebrosidase. The lack of this enzyme leads to the build-up of galactolipids that will promote the death of oligodendrocytes and the demyelination of the central and peripheral nervous systems. There are two clinical forms: early onset and late onset. This article reports a case of late onset Krabbe disease and discusses the importance of early diagnosis for its prognosis.

Leukodystrophy, globoid cell; Galactosylceramidase; Psychosine; Galactolipids; Early diagnosis; Case reports


RELATO DE CASO

Doença de Krabbe: a importância do diagnóstico precoce para seu prognóstico

Tatiana Suemi Sano

Residente de Pediatra, Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente

RESUMO

Doença de Krabbe (leucodistrofia de células globoides) é uma leucodistrofia de herança autossômica recessiva causada pela deficiência da enzima galactocerebrosidase. A falta dessa enzima leva ao acúmulo de galactolipídeos que irão promover a morte dos oligodendrócitos e a desmielinização do sistema nervoso central e periférico. Possui duas formas clínicas: de início precoce e de aparecimento tardio. O presente artigo relata um caso da apresentação tardia da doença de Krabbe e discute a importância do diagnóstico precoce para o seu prognóstico.

Descritores: Leucodistrofia de células globoides; Galactosilceramidase; Psicosina; Galactolipídeos; Diagnóstico precoce; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

Doença de Krabbe (DK) é uma doença de depósito lisossomal, causada pela deficiência da enzima galactocerebrosidase (GALC). Foi inicialmente descrita em 1916, quando Krabbe relatou uma forma incomum de esclerose familiar difusa do cérebro(1). A GALC é responsável pela hidrólise dos galactolipídeos (componentes lipídicos da membrana de mielina). Os principais galactolipídeos são galactocerebrosideos e psicosina(2). Os galactocerebrosideos também são hidrolizados pela GM1-gangliosidase e não degradam a psicosina; por isso há um acúmulo maior desta. A psicosina é o principal responsável pela destruição dos oligodendrócitos e células de Schwan, que produzem mielina, resultando na desmielinização do sistema nervoso central e periférico; além disso, provoca a ativação dos astrócitos e a formação de células globoides multinucleadas (macrófagos com acúmulos de galactocerebrosideos), característicos da doença no anatomopatológico(3).

São definidas duas formas clínicas da DK: a infantil precoce e a de aparecimento tardio. A primeira é a mais comum (90% dos casos) e geralmente o início dos sintomas ocorre antes dos 6 meses de vida (71%); na tardia, 6% desenvolvem sintomas 13 a 24 meses, 3% entre 25 e 36 meses e 1% após 5 anos. Na forma infantil, os principais sintomas são choro excessivo, irritabilidade, rigidez, convulsões e dificuldade de firmar a cabeça. Na forma tardia são alteração na marcha, atraso motor, rigidez, perda da visão, disfagia e convulsões(4).

RELATO DE CASO

EBC, 4 anos, sexo feminino, procedente e natural de Itu (SP). Início dos sintomas em abril de 2010, com alteração da marcha, por fraqueza de membro inferior direito. Evoluiu em 3 meses com tetraparesia espástica, não conseguindo mais andar nem sentar sozinha. Apresentava também estrabismo divergente. Foi internada no Hospital Israelita Albert Einstein em 19 de agosto de 2010 para investigação diagnóstica. Após 1 semana da internação, apresentou disfagia progressiva e diminuição da acuidade visual. Ao exame, evidenciaram-se flexão e hipertonia espástica dos membros superiores e inferiores, com extensão dos pés, hiperreflexia simétrica generalizada com sinal de Babinski bilateral e estrabismo divergente. O quadro neurológico era compatível com DK e, para confirmar o diagnóstico, foram solicitados teste enzimático, eletroencefalograma (EEG) e ressonância nuclear magnética (RNM) de crânio. O EEG demonstrou atividade de base discretamente desorganizada, à custa do alentecimento difuso da atividade cerebral. A RNM apresentou extensa alteração do sinal da substância branca, de significado inespecífico e compatível com diagnóstico de leucodistrofias. A dosagem da atividade da GALC foi 6 nmoles/17h/mg proteína (valor normal: 15 a 53). Também foi realizada uma eletroneuromiografia que não apresentou alterações.

A partir da confirmação, a paciente foi encaminhada ao grupo de transplante de células hematopoéticas (TCH) da Equipe de Hematologia Pediátrica, recebendo transplante de doador aparentado. Evoluiu sem progressão da doença até o momento, com melhora importante da disfagia e da acuidade visual.

DISCUSSÃO

DK é rara, com incidência de 1/100.000 nascidos vivos(4). Apresenta herança autossômica recessiva, ocorrendo deficiência da GALC, devido à mutação do gene GALC localizado no cromossomo 14q31 – são conhecidas mais de 60 mutações nesse gene(5).

A maioria desenvolve sintomas nos primeiros meses de vida e a média do tempo entre início dos sintomas e diagnóstico é de 5,3 meses(4). O diagnóstico é feito por meio da dosagem da atividade da GALC nos leucócitos isolados ou na cultura de fibroblastos da pele. Valores da atividade da GALC menores que 15 nmol/17h/mg proteína fecham o diagnóstico(2).

Outras alterações encontradas são: proteinorraquia; eletroneuromiografia, com redução da velocidade de condução neural; EEG pode demonstrar achados inespecíficos, compatíveis com sofrimento cerebral difuso(6); na RNM, com a evolução da doença, a substância branca fica hipoatenuada e atrofiada, e há sinal hiperintenso em T2 no tálamo, corona radiata e corpo do núcleo caudado(7).

O prognóstico da doença é ruim. Os pacientes evoluem com deteriorização neurológica progressiva até coma e morte, em média, em 24,1 meses. Existem alguns fatores de pior prognóstico: início dos sintomas antes dos 6 meses de idade (p=0,0073) e presença de três sintomas: rigidez (RR=3,26; IC95%: 1,513-7,022), perda da visão (RR=2,701; IC95%: 1,123-6,498) e disfagia (RR=3,479, IC95%: 1,129-0,72). O nível da atividade enzimática e o tipo de mutação não têm relação com prognóstico(4).

Em meados de 1990, iniciaram-se os primeiros estudos de TCH para DK. Até então não havia tratamento para a doença. Nos pacientes com a forma tardia e os da forma infantil assintomáticos, o TCH mostrava melhora significativa da RNM dos níveis de GALC e nas funções neurológicas; entretanto, na forma infantil sintomática, não alterava o curso da doença(8,9). O estudo de Escolar et al.(8) comparou 11 recém-nascidos assintomáticos transplantados (RNT), 14 lactentes menores de 9 meses sintomáticos transplantados (LT) e 190 pacientes não tratados (NT). Todos transplantados tiveram a atividade GALC normalizadas. A sobrevivência após 3 anos do TCH dos RNT foi 100%, dos LT de 43% e nenhum dos NT sobreviveu. A sobrevivência dos RNT foi melhor que nos LT (p=0,01) e melhor em relação aos NT (p=0,001). Comparando-se os LT aos NT, não houve diferença estatística na sobrevivência (p=0,28). Em relação ao desenvolvimento neuromotor, 50% do RNT tiveram algum comprometimento na função motora grossa enquanto no LT todos apresentavam comprometimento grave. Sobre a função motora fina, 20% dos RNT apresentavam algum comprometimento, e dos LT todos tinham alteração. Em relação às funções cognitivas, todos RNT desenvolveram-se normalmente, e os LT e os NT apresentavam alterações tardiamente. No estudo de Krivit et al.(9), avaliaram-se 11 pacientes com a forma tardia e, após 10 anos do transplante, todos tiveram melhora das funções do sistema nervoso central e desenvolvimento cognitivo normal.

Desde 2006, no estado de Nova Iorque, é obrigatória a dosagem da GALC no teste do pezinho(10). Duffner et al. estão tentando elaborar um protocolo de seguimento para identificar quais pacientes com teste positivo teriam benefício de realizar um TCH precocemente, visto que este beneficiaria apenas os da forma infantil assintomática e os tardia(10). Entretanto, diversas são as dificuldades para a implantação desse screening como medida de saúde pública, visto que essa doença é rara. Outra dificuldade é prever qual fenótipo o paciente com teste positivo irá desenvolver, uma vez que nem o nível da atividade enzimática nem o tipo de mutação prediz qual será a forma clínica.

CONCLUSÃO

DK tem progressão rápida e letal. O rápido diagnóstico é fundamental para um bom prognóstico. O TCH é mais eficaz nas formas infantil assintomática e nas formas tardias, impedindo a progressão neurológica. Portanto, quanto mais rápido for o diagnóstico, teremos menos sequelas neurológicas.

AGRADECIMENTOS

Ao Dr. Eduardo Juan Troster, às residentes de Pediatria do Hospital Israelita Albert Einstein Natasha Penido e Juliana Miguita e Souza, e ao Dr. Carlos Augusto Cardim.

REFERÊNCIAS

  • 1. Hagberg B, Sourander P, Svennerholm L. Diagnosis of Krabbe's infantile leucodystrophy. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1963;26:195-8.
  • 2. Wenger DA, Rafi MA, Luzi P, Datto J, Constantino-Ceccarini E. Krabbe disease: genetic aspects and progress toward therapy. Mol Genet Metab. 2000;70(1):1-9.
  • 3. Giri S, Khan M, Rattan R, Singh I, Singh AK. Krabbe disease: psychosine-mediated activation of phospholipase A2 in oligodendrocyte cell death. J Lipid Res. 2006;47(7):1478-92.
  • 4. Duffner PK, Jalal K, Carter RL. The Hunter's Hope Krabbe family database. Pediatr Neurol. 2009;40(1):13-8.
  • 5. Sakai N. Pathogenesis of leukodystrophy for Krabbe disease: molecular mechanism and clinical treatment. Brain Dev. 2009; 31(7):485-7.
  • 6. Percy AK. Krabbe continuum or clinical conundrum. Neurology. 1997;49(5):1203-4.
  • 7. McGraw P, Liang L, Escolar M, Mukundan S, Kurtzberg J, Provenzale JM. Krabbe disease treated with hematopoietic stem cell transplantation: serial assessment of anisotropy measurements initial experience. Radiology. 2005;236(1):221-30.
  • 8. Escolar ML, Poe MD, Provenzale JM, Richards KC, Allison J, Wood S, et al. Transplantation of umbilical-Cord Blood in babies with Infantile Krabbe's Disease. N Engl J Med. 2005; 352(20):2069-81.
  • 9. Krivit W. Allogeneic stem cell transplantation for the treatment of lysosomal and peroxisomal metabolic diseases. Springer Semin Immunopathol. 2004; 26(1-2):119-32.
  • 10. Duffner PK, Caggana M, Orsini JJ, Wenger DA, Patterson MC, Crosley CJ, et al. Newborn screening for Krabbe disease: the New York State model. Pediatr Neurol. 2009;40(4):245-52.
  • Corresponding author:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      01 Fev 2012
    • Aceito
      23 Abr 2012
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