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Desafios, permanências e transformações na gestão de um sítio urbano patrimonializado: Ouro Preto, 1938-1975

Challenges, persistence and changes in the management of an urban site listed by IPHAN: Ouro Preto, 1938-1975

Resumo

Neste artigo analisamos a atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na cidade de Ouro Preto desde o seu tombamento em 1938 até meados 1975. Visto como excepcional e autêntico pelos técnicos do IPHAN, o conjunto urbano da cidade foi tratado como uma obra de arte que poderia ser mantida em sua integralidade. No entanto, o crescimento populacional levou a grandes modificações espaciais e sociais tanto no centro histórico como em sua periferia. Discutimos a adoção de critérios e de formas de gestão do patrimônio na cidade, fornecendo elementos para a compreensão de alguns dos principais desafios e transformações nas políticas de preservação cultural no Brasil no período.

Palavras-chave:
patrimônio cultural; IPHAN; Ouro Preto; sítio urbano; preservação; cidade histórica

Abstract

In this article we analyze the performance of the National Historical and Artistic Heritage Institute (IPHAN) in Ouro Preto since the city was listed as a cultural heritage in 1938 until 1975. Seen as exceptional and authentic by IPHAN experts, the urban area was treated as a work of art that could be maintained in its entirety. However, the population growth has led to large spatial and social changes both in the historic city and in its suburbs. The article discusses the adoption of criteria and management forms in the city, providing clues for understanding some of the main challenges and changes in cultural preservation policies in Brazil in the period.

Keywords:
cultural heritage; IPHAN; Ouro Preto; urban site; preservation; historic city

Résumé

Dans cet article nous analysons la performance de l'Institut du Patrimoine Historique et Artistique National (IPHAN) dans la ville d'Ouro Preto depuis son classement en 1938 jusqu'à 1975. Considérée exceptionnelle et authentique par les experts de l'IPHAN, la zone urbaine a été traitée comme une œuvre d'art qui pourrait être conservée dans son intégralité. Toutefois, la croissance de la population a conduit à d'importants changements spatiaux et sociaux aussi bien dans le centre que dans la périphérie. L'article discute l'adoption de critères et de formes de gestion du patrimoine de la ville et fournit des éléments pour comprendre les principaux défis et changements des politiques de préservation culturelle au Brésil dans la période .

Mots-clés:
patrimoine culturel; IPHAN; Ouro Preto; site urbain; conservation; ville historique

Os primórdios da preservação em Ouro Preto

As práticas de seleção e preservação do patrimônio cultural em Ouro Preto iniciaram-se no ano de 1926, quando o governo do estado de Minas Gerais designou verbas para a conservação de monumentos históricos e artísticos em algumas cidades mineiras. Em julho de 1928, Gustavo Barroso, diretor do Museu Histórico Nacional, visitou a cidade e constatou o alarmante estado em que se encontravam algumas das suas principais construções. "Caíra o telhado da Igreja do Rosário, que as chuvas arruinavam dia a dia. Viera abaixo o mirante e metade da cobertura da famosa Casa dos Contos. Terminava a administração municipal a criminosa demolição da Casa de Marília de Dirceu" (Anais, 1944ANAIS do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, v. 5, 1944.: 6). A partir da exposição desse quadro por parte do diretor do MHN ao governo de Minas Gerais, foram liberadas verbas com as quais seriam restaurados alguns desses monumentos, ficando sob sua responsabilidade a supervisão das reformas que seriam executadas. Algumas poucas obras de restauração já haviam sido realizadas anteriormente na cidade, conforme nos informa Gustavo Barroso:

O Sr. Antônio Carlos (governador de Minas Gerais) pretende realizar na sua terra uma obra inteligente e digna de todos os louvores: a defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Tradicional de Minas, que é um dos mais ricos do Brasil. Já o Sr. Melo Viana dera alguns passos, os primeiros, nesse sentido, procurando impedir a saída de antiguidades do Estado e auxiliando a conservação e restauração de monumentos como a igreja de S. Francisco de Assis em Ouro Preto.As obras executadas nesse maravilhoso templo alevantado pelo Aleijadinho, infelizmente, não foram confiadas a um conhecedor do assunto ou a um homem de gosto a saber. Assim, meteram no corpo da igreja um rodapé de ladrilhos brancos modernos. É sabido que as igrejas de Minas, com exceção do Carmo, de Ouro Preto, não têm azulejos (Anais, 1944ANAIS do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, v. 5, 1944.:6).

A desqualificação dos trabalhos de restauração anteriores iniciou-se após as primeiras obras de restauro e permaneceu frequente ao longo da trajetória das políticas preservacionistas na cidade. Desde os primórdios dessas ações, encontramos críticas sobre as ainda incipientes obras realizadas de conservação, via de regra seguidas por exposições sobre o quadro de abandono e destruição dos bens imóveis da cidade. Gustavo Barroso, o primeiro crítico a se pronunciar publicamente sobre esse assunto, inaugurou uma prática seguida por agentes sociais e grupos envolvidos com a preservação.

Em uma tentativa de atender às demandas oriundas dos diferentes grupos que construíram uma nova imagem para Ouro Preto como cidade-monumento (Aguiar, 2013AGUIAR, Leila Bianchi. Cidade morta, cidade documento, cidade turística: a construção de memórias sobre Ouro Preto. In: História do turismo no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 180-193.), verificamos em princípios dos anos 30 algumas iniciativas por parte do poder executivo municipal e federal em prol da preservação de seu conjunto urbano. Dessa forma, através do Decreto nº 13 de 19 de setembro de 1931 e do Decreto nº 25 de 3 de setembro de 1932, o então prefeito João Batista Veloso instituiu a preservação das antigas construções de tipo colonial, justificando as novas medidas em função do grande interesse por elas despertado nos turistas que visitavam a cidade.

No ano seguinte, o governo federal, através do Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933, transformou Ouro Preto na primeira cidade brasileira declarada Monumento Nacional. As justificativas apresentadas na ocasião exaltavam a "defesa de um patrimônio artístico da nação" e o fato de a cidade "ter sido teatro de acontecimentos de alto relevo histórico na formação de nossa nacionalidade", possuindo ainda "velhos monumentos, edifícios e templos da arquitetura colonial, verdadeiras obras de arte que merecem defesa e conservação" (Brasil, 1933).

Anos mais tarde, Augusto de Lima Júnior, jornalista e advogado mineiro e um dos principais personagens responsáveis pela assinatura do decreto por Getúlio Vargas, afirmava:

Foi por intermédio do meu saudoso e querido amigo, Protogenes Guimarães, que consegui, do dr. Getúlio Vargas, a proclamação da cidade de Ouro Preto como MONUMENTO NACIONAL, título que foi entregue à sua administração, por uma brilhante embaixada da Marinha de Guerra que, tendo à frente seu ministro, se compunha de quatorze almirantes, oitenta oficiais da Armada e Banda de Música do Corpo de Fuzileiros Navais, tendo sido a primeira vez que a terra de Minas foi sobrevoada por aviões militares, comandados por Djalma Petit. Isso fora, apenas, o começo de um programa de esforços pela recuperação do nome de Minas no conceito nacional (Lima Júnior, 1957LIMA JÚNIOR, Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto: síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1957.).

Na ocasião da assinatura do decreto, havia a possibilidade de que Ouro Preto fosse administrada por uma "prefeitura técnica capaz de salvaguardar o valioso patrimônio da antiga Vila Rica" (Correio, 1936) e de entregar seus monumentos e obras de arte à vigilância do governo do estado de Minas Gerais e à municipalidade dentro da órbita governamental de cada um. No entanto, essa não foi a opção adotada, não tendo havido ainda qualquer interferência do poder central em relação à administração da cidade e de seu patrimônio nesse momento. O decreto assumiu um caráter simbólico, sem efeitos legais punitivos para as possíveis descaracterizações da paisagem urbana. No entanto, sem precedentes na legislação brasileira, pode ser visto como resultado de algumas pressões exercidas por grupos profissionais e mineiros ilustres que desejavam salvar antigos imóveis da destruição.

Em 16 de julho de 1934, foi criada a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, no interior do Museu Histórico Nacional. A partir dessa criação, multiplicam-se as disputas sobre quais agentes sociais teriam sido os pioneiros em relação aos assuntos de preservação. José Mariano Filho afirmava que desde 1919 já defendia a criação de um órgão de defesa do patrimônio, ao mesmo tempo em que Gustavo Barroso reivindicava para si tal mérito, conforme afirmaria mais tarde no 5º volume dos Anais do Museu Histórico Nacional (1944)ANAIS do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, v. 5, 1944..

A partir da regulamentação dessa nova instituição, iniciaram-se as obras de restauração e conservação de monumentos na cidade. A recuperação de bens imóveis em Ouro Preto deveria ser o ponto de partida para a atuação desse órgão em outras cidades brasileiras. No entanto, não foi o que aconteceu. A inspetoria funcionou apenas quatro anos e sua atuação restringiu-se a alguns monumentos da cidade, mais especificamente pontes, chafarizes, capelas e igrejas (Magalhães, 2001MAGALHÃES, Aline Montenegro. Ouro Preto entre antigos e modernos: a disputa em torno do patrimônio histórico e artístico nacional durante as décadas de 1930 e 1940. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, vol. 33, 2001.).

Em substituição à Inspetoria dos Monumentos, como parte de um conjunto de disputas que ocorriam no interior do Ministério da Educação, o governo brasileiro criou, em 13 de janeiro de 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN,1 1 Optamos por chamar de IPHAN a agência federal de preservação criada como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937. Em 2 de janeiro de 1946, o Decreto-Lei 8.534 transformou o Serviço em Diretoria (DPHAN). Em 27 de julho de 1970, o Decreto nº 66.967 transformou a DPHAN em Instituto (IPHAN). Em 26 de novembro de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 6.757, criando a Fundação Nacional Pró-Memória, órgão operacional do IPHAN. Um resumo cronológico com as principais transformações sofridas pela agência pode ser encontrado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 22, 1987, p. 343. órgão que a partir de então buscou preservar a arquitetura autenticamente nacional, resgatando monumentos ou "lugares de memória" (Nora, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares, Projeto História: Revista do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da PUC-SP, 1993, n. 10.) dos grandes momentos da História do Brasil, e que se tornou o porta-voz legítimo do Estado no tocante aos temas ligados à preservação.

Em meados de 1936, quando esse serviço ainda funcionava em caráter experimental no Ministério da Educação, ocupado por Gustavo Capanema, verificamos nos discursos de seu diretor, Rodrigo Melo Franco de Andrade, a intenção de reforçar a imagem anteriormente construída sobre a importância da preservação dos monumentos históricos de Ouro Preto. Ao tratar da incumbência do novo serviço recém-criado, Rodrigo afirmava que:

De acordo com o projeto do sr. Mário de Andrade, haverá uma comissão incumbida de fazer o tombamento no Distrito Federal e uma para cada estado. Claro que esse serviço não poderá ser feito de uma vez, mas parcialmente, sendo pensamento do ministro Capanema atacá-lo de início no Distrito Federal e em Minas Gerais, particularmente em Ouro Preto (Andrade, 1936_____. Rodrigo e seus tempos. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Fundação Nacional Pró-Memória, 1986.).

A opção por iniciar os trabalhos pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais, com destaque especial para Ouro Preto, indicava a continuidade das práticas do novo Serviço em relação às ações anteriores que consagraram a cidade de Ouro Preto como monumento nacional, o que é facilmente compreensível, uma vez que participaram dessa nova instituição muitos dos intelectuais que, nas décadas anteriores, adjetivaram dessa forma a localidade quando lá estiveram em suas viagens de "descoberta do Brasil". Podemos citar como exemplo duas figuras centrais na criação desse Serviço no momento de que estamos tratando: Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Mário de Andrade havia realizado tal viagem acompanhado de Blaise Cendrars e outros intelectuais brasileiros no ano de 1924, enquanto Rodrigo, que se tornaria diretor do IPHAN ao longo das três primeiras décadas, estivera em Ouro Preto com seu tio e outros políticos mineiros em 1919, somando-se ainda o fato de que era bisneto de Rodrigo José Bretas, o primeiro biógrafo de Aleijadinho que tantas obras executou em Vila Rica (Andrade, 1986_____. Rodrigo e seus tempos. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Fundação Nacional Pró-Memória, 1986.).

O tombamento de Ouro Preto em 1938: a cidade-modelo do IPHAN

Em 1938, o conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade de Ouro Preto foi tombado e inscrito no Livro do Tombo das Belas Artes.2 2 Além de Ouro Preto, foram tombados em 1938 os conjuntos urbanos das cidades mineiras de Diamantina, Tiradentes, Serro e São João del Rey. Cf. http://portal.IPHAN.gov.br/pagina/detalhes/101. Acesso em 23 de março de 2016. É interessante lembrar que um bem ou conjunto urbanístico poderia ser inscrito pelo IPHAN em um ou mais livros de tombo: Livro do Tombo das Belas Artes, Livro do Tombo Histórico, Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, e Livro das Artes Aplicadas. De acordo com a visão dominante no serviço naquele momento, Ouro Preto possuía acima de tudo valor artístico expresso em suas construções barrocas e coloniais, daí sua inscrição no Livro do Tombo das Belas Artes.

Em um processo de hierarquização posto em prática no decorrer da atuação do IPHAN, o Livro das Belas Artes ganhou destaque especial e passou a conter os bens tombados considerados "excepcionais" ou "autênticos", o que se explica em parte pelo peso que os profissionais de arquitetura adquiriram no interior dessa instituição desde sua criação (Chuva, 2009CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.). O conjunto urbano de Ouro Preto foi considerado "excepcional" e "autêntico" pelos intelectuais do IPHAN, e a principal justificativa foi sempre a do valor artístico dos bens imóveis. Como consequência direta dessa inscrição e das concepções sobre a preservação do patrimônio cultural brasileiro dominantes no período, a cidade passou a ser vista como uma obra de arte que deveria ser conservada como tal. Somente em 15 de setembro de 1986 ela entraria para o Livro do Tombo Histórico e para o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

A arquitetura colonial e as igrejas barrocas, imagens escolhidas da cidade, tornaram-se símbolos do próprio IPHAN, passando a ser reproduzidas em publicações, cartazes e demais materiais de divulgação da instituição. Segundo Rodrigo Melo Franco de Andrade, o tombamento da cidade não foi um ato isolado.

Sem dúvida, o amor e o apego dos ouro-pretanos às tradições emocionantes de sua terra só poderiam incliná-los, espontaneamente, a velar pela conservação do aspecto tradicional de Ouro Preto. A inteligência, a cultura e a sensibilidade de seus habitantes, levam-nos naturalmente a defendê-la com energia apaixonada contra qualquer iniciativa tendente a desfigurá-la (Andrade, 1987_____. Diário da noite, RJ, em 19.5.1936. In _____. Rodrigo e o IPHAN. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Nacional Pró-Memória, 1987, p. 25.: 55).

Ao relatar o interesse da população local, o Dr. Rodrigo, como ficou conhecido durante suas três décadas na presidência do IPHAN, legitimava também as ações do recém-criado órgão federal ainda em processo de afirmação. Segundo ele, o governo federal também teria demonstrado seu interesse na preservação da cidade através da escolha da permanência da Escola de Minas, que ocupou o antigo Palácio dos Governadores, da instalação do Museu da Inconfidência na antiga Casa de Câmara e Cadeia e da manutenção de uma unidade permanente do Exército Nacional. Tais instituições gerariam recursos para o município e, se instaladas em prédios tombados, auxiliariam em sua conservação. Outra grande demonstração da crescente importância atribuída à cidade pelo poder federal foi dada durante a repatriação dos restos mortais dos inconfidentes em 1942, recolhidos no Museu da Inconfidência, sede de comemorações presididas por Getulio Vargas, Gustavo Capanema e Rodrigo Melo Franco de Andrade.

O projeto preservacionista em uma "cidade pronta"

As poucas alterações sofridas pela cidade de Ouro Preto em sua estrutura urbana ao longo das três primeiras décadas do século XX reforçavam a crença de que a cidade não iria sofrer grandes modificações após seu tombamento (Motta, 1987MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, n. 22.). Por isso mesmo desconsiderava-se a necessidade de delimitação de seu perímetro de tombamento, uma vez que os profissionais que atuavam no interior da agência preservacionista acreditavam na permanência de suas principais características. A forte presença de intelectuais modernistas e sua exaltação ao estilo colonial direcionaram os rumos da política preservacionista brasileira. Muitas das disputas de poder entre esses intelectuais e outros grupos, como os neocoloniais, apresentavam-se sob a forma de discussões estéticas e técnicas sobre quais estilos seriam "genuinamente brasileiros". A tentativa de consagrar e definir determinados estilos como nacionais encobria disputas no campo arquitetônico sobre quais seriam os profissionais mais aptos a definir e preservar o patrimônio cultural brasileiro e ainda realizar novos e grandiosos projetos (Chuva, 2009CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.).

Em Ouro Preto essas disputas tornaram-se evidentes. Acompanhamos críticas frequentes feitas pelos técnicos do IPHAN às obras realizadas anteriormente pela Inspetoria dos Monumentos Históricos, e um grande esforço no sentido de "apagar as marcas" deixadas por sua atuação na cidade, principalmente nos chafarizes (Magalhães, 2004MAGALHÃES, Aline Montenegro. Ouro Preto entre antigos e modernos: a disputa em torno do patrimônio histórico e artístico nacional durante as décadas de 1930 e 1940. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, vol. 33, 2001.). Buscava-se, assim, suprimir a memória de que outros agentes haviam estado ligados à preservação no Brasil. A supressão de tais registros contribuía para a construção do monopólio do IPHAN em relação aos assuntos ligados à seleção e conservação do patrimônio cultural brasileiro e para que o órgão alcançasse um lugar de grande destaque no "campo do patrimônio" ainda em formação.3 3 Estamos aqui considerando a formação de um campo de preservação cultural a partir da institucionalização das atividades de salvaguarda com a criação do IPHAN em 1937, baseando-nos em algumas das definições de Pierre Bourdieu, que destaca a existência de regras de funcionamento próprias e uma certa autonomia em relação a outros campos existentes na sociedade. Tal campo pode ser igualmente definido como o espaço onde ocorre o embate entre diversos atores em torno de interesses específicos. Cf. Bourdieu, 1996.

Tal monopólio, no entanto não seria atingido sem a presença de discursos contrários ou contra-hegemônicos. Dessa forma, durante os anos de 1947 e 1948, Gustavo Barroso publicou nos Anais do Museu Histórico Nacional sua versão para a atuação da Inspetoria dos Monumentos Históricos em Ouro Preto, exaltando a qualidade técnica de suas restaurações e sua atuação na cidade mesmo com as escassas verbas federais destinadas a esse fim, e externou periodicamente uma série de críticas à atuação do IPHAN, baseando-se sobretudo em sua atuação em Ouro Preto (Magalhães, 2004MAGALHÃES, Aline Montenegro. Ouro Preto entre antigos e modernos: a disputa em torno do patrimônio histórico e artístico nacional durante as décadas de 1930 e 1940. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, vol. 33, 2001.).

Tais críticas, no entanto, não surtiram o efeito desejado. O forte prestígio que os intelectuais modernistas conquistaram no interior do IPHAN e no próprio Ministério de Gustavo Capanema, assim como a institucionalização das ações do patrimônio como parte do projeto nacionalista de criação de outros órgãos semelhantes no interior do Estado Novo varguista, os alçaram à posição de detentores da fala legítima e autorizada sobre o assunto. Procuraram assim acelerar os trabalhos do IPHAN em Ouro Preto.

A consagração do estilo colonial mineiro e a construção de uma nova representação para Ouro Preto como cidade-monumento, em princípios do século XX, são fatores fundamentais para a compreensão das intervenções orientadas pelo IPHAN em suas primeiras décadas de atuação na cidade. As obras realizadas buscavam incessantemente a manutenção de uma unidade estilística e, para que esta fosse possível, tornaram-se comuns as reformas que buscaram suprimir os acréscimos realizados ao longo do século XIX. Nas palavras de Lia Motta, "a obsessão em congelar a arquitetura de Ouro Preto acabou por promover uma descaracterização e falsificação da paisagem urbana" (Motta, 1987MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, n. 22.: 122). Essa atuação contribuiu para a construção de uma imagem para a cidade, apoiada em determinadas características do século XVIII colonial, presentes em parte de seus imóveis e multiplicadas para todo o conjunto urbano. Por outro lado, buscava-se apagar qualquer marca que pudesse remeter a períodos posteriores.

Além da incessante busca pela coesão estilística, a atuação do IPHAN na cidade foi marcada pela recuperação de imóveis e construções religiosas que estavam em péssimo estado de conservação, o que se mostrou um longo e dispendioso trabalho, exigindo a constante presença na cidade de funcionários do serviço. Para implementar as reformas, tornou-se necessária a contratação de mão de obra local e assumiu especial destaque a experiência de antigos pedreiros e mestres de obra que havia anos atuavam com o tipo de material presente nos antigos imóveis na cidade. A implementação do projeto preservacionista começava a transformar decisivamente a rotina da pequena cidade, que passou a contar com a presença permanente de funcionários federais e de alguns poucos visitantes atraídos pela divulgação do local, praticamente indissociável, naquele momento, da divulgação das atividades do IPHAN.

A partir dos tombamentos iniciou-se a realização de estudos que pudessem orientar restaurações e, apesar das dificuldades em função do número muito reduzido de funcionários, consolidaram-se pesquisas no interior do próprio IPHAN sobre a autoria dos principais bens móveis e imóveis de Ouro Preto. Tal tarefa, segundo Rodrigo M. F. de Andrade, se fazia necessária principalmente nas cidades mineiras, onde "os monumentos e esculturas valiosas vêm sendo atribuídos ao Aleijadinho" (Andrade, 1938ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, IPHAN, n. 2, p. 255-297, 1938.: 255). Foram então realizadas pesquisas a fim de esclarecer a autoria de algumas obras religiosas atribuídas a Antônio Francisco Lisboa, buscando-se principalmente recibos e termos de aceitação de trabalhos realizados por ele, como os que foram encontrados nas Igrejas de São Francisco de Assis e na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, e por seu pai, Manoel Francisco Lisboa (Andrade, 1938ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, IPHAN, n. 2, p. 255-297, 1938.; Martins, 1940MARTINS, Judith. Novos subsídios acerca de Manoel Francisco Lisboa, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 4, 1940, p.121-153.). Com as assinaturas reconhecidas, os bens tombados valorizavam-se ainda mais e reforçava-se a ideia de uma cidade-monumento, na qual figuravam obras de arte realizadas por mestres consagrados.

Em meio às obras de restauração e pesquisas na cidade, observamos na gestão desse sítio urbano outras ações capazes de exemplificar concepções e práticas do IPHAN. Esse foi o caso da discussão sobre a construção de um hotel em Ouro Preto dois anos depois da criação do órgão. Após um grande debate interno sobre a forma que a nova construção deveria assumir - colonial como as construções da cidade ou em estilo moderno, com o objetivo de evidenciar o contraste entre os diferentes períodos -, foi aprovado, sob muitos protestos, o projeto de construção de um hotel moderno de autoria de Oscar Niemeyer. Na correspondência trocada entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa, este último defendia a construção de um hotel "de boa arquitetura" que em nada prejudicaria Ouro Preto. Ainda segundo o arquiteto, a nova construção em um novo estilo se ajustaria perfeitamente ao quadro da cidade, sem buscar repetir as velhas construções nem se confundir com elas conforme os "fingimentos coloniais". Também servia como justificativa o argumento de que Ouro Preto era uma cidade pronta, uma vez que não havia sofrido grandes modificações desde seu tombamento e que, a partir desse momento, seu crescimento seria sempre controlado pelo IPHAN.

E não constituirá um precedente perigoso - passível de ser imitado depois com má arquitetura - porquanto Ouro Preto é uma cidade já pronta e as construções novas que, uma ou outra vez, lá se fizerem, serão obrigatoriamente controladas pelo IPHAN que terá mesmo, de qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, de proibir em Ouro Preto os fingimentos 'coloniais'(Carta, 1939CARTA de Lúcio Costa a Rodrigo Melo Franco de Andrade, 1939, apud MOTTA, Lia. A Sphan em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n. 22, 1987.).

O projeto com traços neocoloniais de autoria do arquiteto Carlos Leão, assessor técnico do IPHAN e integrante da equipe de arquitetos do Ministério da Educação e Saúde, foi rejeitado, assim como esse estilo arquitetônico, conforme demonstra a ausência de tombamentos de imóveis com essas características durante as primeiras décadas do funcionamento da agência federal de patrimônio. Dessa forma, além de definir que bens imóveis seriam salvos da destruição e como se daria a atividade preservacionista, o IPHAN definia ainda que tipo de arquitetura poderia se integrar à consagrada arquitetura colonial de Ouro Preto.4 4 Discussões sobre os estilos das novas construções de Ouro Preto podem ser encontradas nas pastas da Série Inventário no Arquivo Geral do IPHAN relativas a essa cidade, organizadas por monumentos ou ruas. Cf., por exemplo, Caixa 226. Pasta 980 A - 1948 a 1962 e Pasta 980 A2. Série Inventário. Arquivo Geral do IPHAN. Ao controlar e definir critérios para as antigas e novas construções, a agência construía uma memória sobre o passado e definia os rumos do futuro da cidade, que, a partir de sua consagração como símbolo pátrio, se transformou em uma importante referência ao passado nacional.

A história nacional materializava-se em sua "unidade colonial", suas igrejas barrocas, e através da edificação de monumentos também orientada pelo IPHAN. Nesse aspecto, os mitos privilegiados são Tiradentes e os demais inconfidentes e Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. No ano de 1942 - como parte de um dos processos de construção pelo Estado Novo de uma memória nacional sobre a Inconfidência Mineira e seus heróis - foi inaugurado o Museu da Inconfidência, sendo ali construído um mausoléu para abrigar as cinzas dos inconfidentes transportadas da África para o Brasil no ano de 1937. Para compor o acervo do Museu, foram expostas obras sacras provenientes da região, brasões do Império Brasileiro e ainda móveis e utensílios domésticos de antigas fazendas de distritos e cidades vizinhas. Não só a história nacional materializava-se com a preservação do casario colonial e com a criação dessa instituição de memória, como havia a exaltação de uma suposta "mineiridade". Em livro publicado em 1957, Augusto de Lima Júnior destacava o papel desempenhado por personagens influentes na política nacional na perpetuação de símbolos "do apreço às virtudes cívicas, morais e intelectuais dos homens que a servem (Minas) e que servem ao Brasil". O autor julgava ter sido bem-sucedida a tarefa de exaltação do nome de Minas Gerais:

Posso agora descansar e assistir, de longe, ao trabalho dos que devem suceder-me nessas tarefas e que, por certo, não necessitam mais da minha colaboração. A INCONFIDÊNCIA DE MINAS GERAIS está restaurada ao culto nacional e Minas tem seus títulos devidamente registrados (Lima Júnior, 1957LIMA JÚNIOR, Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto: síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1957.: 15).

Para manter tais tradições era necessária a preservação do patrimônio arquitetônico da cidade, e o principal desafio encontrado pelo IPHAN estava na falta de verbas para o grande número de obras de caráter urgente em residências que ameaçavam desabar. Acompanhamos essa questão principalmente no ano de 1949, quando, em uma tentativa de conseguir verbas para a restauração de bens imóveis na cidade, foi realizado um leilão, com grande repercussão nacional, a partir da doação de objetos como joias e obras de arte de importantes membros da "alta sociedade" brasileira, contando com a adesão de Manuel Bandeira e Cecília Meireles entre outros importantes intelectuais da época (Caixa 683; Sorgine, 2008SORGINE, Juliana. Salvemos Ouro Preto: a campanha em benefício de Ouro Preto, 1949-1950. Rio de Janeiro: IPHAN, COPEDOC, 2008.).

Na década de 1950, ampliaram-se preocupações com a ambientação local e o "cenário tradicional de Ouro Preto" na região mais antiga da cidade (Parecer, 1955aPARECER de Rodrigo Melo Franco de Andrade em 04/11/1955a. Caixa 226. pasta 980 A2. Série Inventário. Arquivo Geral do IPHAN.). Atualizava-se a antiga discussão, evidenciada durante a construção do Grande Hotel, sobre a necessidade de se manter o estilo colonial nas novas construções ou permitir que fossem erguidos novos imóveis em outros estilos arquitetônicos, bastando apenas "o policiamento das construções a serem feitas, para lhes ser conferido alto nível arquitetônico"(Parecer, 1955b). No caso específico que analisamos, relativo à rua das Flores, onde havia sido construído o moderno hotel de autoria de Oscar Niemeyer, novas construções foram autorizadas a partir de determinados padrões definidos pela Diretoria, optando-se pela manutenção da unidade estilística colonial. O argumento central que permitiu a construção do Grande Hotel, de que seria preferível ter novas construções em estilos distintos do colonial para marcar outras temporalidades, não prevaleceu ao longo do tempo (Motta, 1987MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, n. 22.). Por outro lado, não havia uma preocupação em relação às construções nas áreas mais afastadas, ou mesmo "nas extremidades da cidade", conforme verificamos em pareceres de Alcides Áquila da Rocha Miranda, que em 1956 realizou um estudo sobre as novas construções (Parecer, 1956PARECER de Alcides Áquila da Rocha Miranda em 09/03/1956. Caixa 226. pasta 980 A3. Inventário Rua das Flores. Arquivo Geral do IPHAN.).

As falhas no processo de preservação de Ouro Preto eram atribuídas à insensibilidade dos inimigos da preservação e às autoridades, principalmente, municipais. Já para os que não faziam parte da instituição, ela própria seria a culpada pelas lacunas na proteção do patrimônio. Esses problemas tomariam uma nova dimensão a partir de meados do século XX, quando ficou clara a impossibilidade de frear o crescimento da cidade e as incessantes pressões em direção à sua expansão não puderam ser contidas pela política preservacionista.

O crescimento da "cidade-monumento"

Os agentes sociais diretamente ligados à preservação do patrimônio previam o controle do IPHAN sobre o crescimento e ordenamento urbano de Ouro Preto após o tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade. A manutenção da população urbana entre 10.000 e 15.000 habitantes ao longo de 140 anos (entre 1810 e 1950) contribuía decisivamente para essa expectativa (Nascimento, 1995NASCIMENTO, Janice Maria, MACHADO, Jurema de Sousa, SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Ouro Preto hoje - a opção pelo patrimônio cultural. In: ZANCHETI, Sílvio Mendes; MILET, Vera; MARINHO, Geraldo (orgs.). Estratégias de intervenção em áreas históricas: revalorização de áreas urbanas centrais. Recife: Mestrado em Desenvolvimento Urbano, UFPE, 1995, p. 157-167.). No entanto, a partir da década de 1950 acelerou-se a industrialização da região, o que modificou sua estrutura urbana com o aumento da população residente nas cidades de Ouro Preto e Mariana.

Esse crescimento pode ser explicado principalmente pela presença de novas indústrias, como o complexo industrial de alumínio Alcan, que em 1950 assumiu as instalações da Eletro-Química brasileira, localizada ao sul do núcleo original da cidade, tornando-se um polo de atração para trabalhadores procedentes de outros municípios. As grandes jazidas de minério da região, que faz parte do chamado quadrilátero ferrífero, e o fornecimento de mão de obra especializada pela Escola de Minas vinham ao encontro do modelo de industrialização brasileiro em permanente expansão, dependente do aumento da produção das indústrias de base, em especial da indústria metalúrgica. Ouro Preto e Mariana mantiveram sua base econômica apoiada na extração mineral e no desenvolvimento do parque industrial, do qual também viriam a fazer parte, além da Alcan, a Companhia Vale do Rio Doce e a Samarco, que se instalaram na região na década de 1970.

O grande número de instituições educacionais também foi responsável pelo adensamento populacional. Nesse ponto, merecem especial destaque a Escola de Minas e a Escola de Farmácia. Tais instituições continuaram a atrair estudantes ao longo do século XX, oriundos de diversas cidades de Minas Gerais e de outros estados brasileiros, que passaram a viver nas repúblicas estudantis de Ouro Preto, e serviram ainda de embrião para a criação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), responsável por uma grande migração para a cidade e pelo incremento de atividades econômicas em seu centro urbano.

Buscando evitar descaracterizações na antiga paisagem, a expansão urbana foi direcionada para áreas periféricas da cidade. Os novos moradores ocuparam principalmente as regiões do Morro da Queimada, Padre Faria, Santa Efigênia, Morro do Cruzeiro, São José, Cabeças, em geral áreas de encostas de morros.

Como resultado desse modelo, ocorreu a ocupação desordenada de regiões que circundavam o núcleo tombado, como foi o caso da Serra do Ouro Preto, onde se localizava o antigo arraial denominado Ouro Podre. O fato de não pertencerem ao conjunto urbano que foi alvo das principais políticas preservacionistas do IPHAN não significava que tais áreas periféricas contassem apenas com ocupação recente. Ouro Podre, por exemplo, se formara a partir da ocupação de fins do século XVII, tornando-se um dos primeiros arraiais mineradores na região. Sua origem pode inclusive ser comprovada atualmente através de um expressivo depósito arqueológico com minas desativadas, vestígios de antigos serviços de mineração, caias para transporte de água e vestígios de ruínas arquitetônicas e antigas capelas do século XVIII, ameaçados pelas novas construções que se multiplicaram na Serra do Ouro Preto.5 5 O foco das ações preservacionistas na cidade nunca esteve voltado para essa área, ocupada pela população mais pobre desde os primórdios da extração aurífera. Apesar de o Ouro Podre, na Serra do Ouro Preto, ter sido palco de um dos mais importantes episódio do Brasil Colonial - a Sedição ou Revolta de Vila Rica, também conhecida como Revolta de Felipe dos Santos, quando os mineradores se revoltaram contra a fundição do ouro em 1720, e tiveram suas residências arrasadas -, esse morro e as ruínas ali existentes não foram objeto de preservação. A memória dessa revolta perderia sua importância para outros episódios que ocorreram em Vila Rica, com especial destaque para a Inconfidência Mineira.

Em parecer que negava a construção de um clube na cidade no ano de 1960, Rodrigo Melo Franco de Andrade demonstrava grande preocupação com essa expansão recente:

Hoje em dia, qualquer construção nova nas áreas de Ouro Preto que servem de moldura ao con-junto arquitetônico setecentista, especialmente nas encostas e no topo dos morros, precisa ser evitada. Qualquer transigência por parte dessa repartição, mesmo no sentido de permitir somente obra de arquitetura de qualidade superior, constituiria precedente de consequências catastróficas, pois nos tiraria autoridade para obstar as iniciativas desfiguradoras da cidade (Parecer, 1960PARECER de Rodrigo Melo de Andrade emitido em 19/12/1960. Caixa 226. pasta 980 A - 1948 a 1962. Série Inventário. Arquivo Geral do IPHAN.).

Se, apenas quatro anos antes, em estudo sobre as novas construções, Alcides Miranda afirmava não se opor à construção nas extremidades da cidade, em 1960 Rodrigo M. F. de Andrade percebia os efeitos da ocupação recente das regiões próximas ao antigo núcleo urbano e recomendava a supressão de novas construções nessas áreas, até mesmo das "obras de arquitetura superior", expressão recorrente nos pareceres que permitiram a ereção de novos imóveis no conjunto preservado. Justificava essa transformação afirmando que, "quando o senhor Alcides Rocha Miranda fez seu estudo para edificações novas, as condições de Ouro Preto eram diferentes" (Parecer, 1960PARECER de Rodrigo Melo de Andrade emitido em 19/12/1960. Caixa 226. pasta 980 A - 1948 a 1962. Série Inventário. Arquivo Geral do IPHAN.).

A percepção do então diretor do IPHAN pôde ser confirmada com a pesquisa realizada pela arquiteta Lia Motta (1987)MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, n. 22. que indicou um crescimento, entre os anos de 1950 e 1960, de 49,8% no número de imóveis nas áreas de ocupação mais recente de Ouro Preto

A preservação da cidade não foi objeto de planejamentos por parte dos poderes públicos envolvidos com a salvaguarda do patrimônio arquitetônico. As terras periféricas seriam ocupadas, uma vez que o crescimento deveria ocorrer fora do centro comercial-administrativo e do "rico acervo monumental". Além de causar sérios riscos aos novos moradores que ocuparam as encostas, as novas edificações nessas áreas impactaram a paisagem da região preservada. Outro grande eixo de expansão da cidade formou-se em direção à cidade de Mariana ao longo da BR 356 e em direção ao distrito de Saramenha, em um processo contínuo que vem aproximando a área urbana dessas antigas cidades. Embora não tenha alterado à primeira vista a paisagem do sítio urbano, como as ocupações anteriores, o crescimento de novas áreas próximas à cidade contribuiu para modificar as antigas funções do centro histórico, com a intensificação de atividades de comércio e prestação de serviços em geral.

Além disso, a expansão não se restringiu às novas áreas de ocupação recente, mas também pôde ser verificada nas áreas mais tradicionais de Ouro Preto. O crescimento sobre o antigo acervo se explica, principalmente, pelo fato de que grande parte da região mais antiga da cidade continuou sendo seu centro dinâmico, com grande concentração das atividades comerciais e, posteriormente, das atividades turísticas, com especial destaque para a região da antiga rua Direita, da rua São José e da Praça Tiradentes. Formava-se então profunda diferença social entre a área mais antiga e preservada, mais próspera econômica e culturalmente, e a periferia afastada do centro histórico que ocupou alguns dos morros da cidade.

Apesar de direcionado para a ocupação de áreas periféricas, o grande crescimento da cidade a partir da década de 1960 não poupou nem mesmo o núcleo urbano, preservado a partir do tombamento de 1938, tendo como reflexos diretos o adensamento das áreas mais antigas através da ocupação dos interstícios e do aumento da área construída das edificações existentes, com o parcelamento dos lotes (Motta, 1987MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, n. 22.).

O trânsito em suas estreitas ruas, a ocupação das encostas e a poluição atmosférica causada pelas grandes indústrias próximas foram apenas algumas das consequências diretas do crescimento desordenado do município. Além disso, antigos moradores do centro histórico deixaram suas antigas residências em função do aumento do custo dos aluguéis, da alimentação e de outras necessidades básicas. Tais fenômenos afetavam as políticas preservacionistas, que tiveram que se adequar a uma nova realidade. A grande ameaça à salvaguarda do antigo conjunto urbano não era mais seu abandono, mas sim seu crescimento.

Se, por um lado, o crescimento da cidade originava problemas de infraestrutura a serem permanentemente enfrentados, havia ainda outros importantes conflitos travados com o poder municipal - "com os prefeitinhos de bigodinhos enfadonhos que a tudo queriam demolir", como definia Carlos Drummond em sua crônica "Rendição de guarda" (Andrade, 1987ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, IPHAN, n. 2, p. 255-297, 1938.). A autonomia municipal e o poder que a agência federal exercia sobre os conjuntos urbanos após seus tombamentos se sobrepunham nas cidades que haviam sido objeto de preservação, originando permanentes embates. Em Ouro Preto, a ação de muitos dos governos municipais foi muitas vezes considerada criminosa em relação ao patrimônio cultural da cidade. Por outro lado, as autoridades municipais consideravam as políticas preservacionistas do IPHAN como interferências diretas em sua autonomia administrativa. O discurso de Rodrigo M. F. de Andrade, pronunciado no Conselho Federal de Cultura, é exemplar nesse sentido:

Ainda anteontem, de uma das pessoas residentes em Ouro Preto, mais conscientes do valor excepcional das peculiaridades da disposição histórica da cidade-monumento, assim como sensível aos trabalhos diferenciadores de suas velhas construções, de suas vívidas calçadas de lajes e do pitoresco dos aclives e declives dos logradouros que foram os trilhos e caminhos dos arraiais primitivos da mineração, recebi a informação de que a Prefeitura local principiou a tomar iniciativas alarmantes com o objetivo de retificação e alargamento das ruas. Visando a este propósito, inadmissível em relação ao traçado histórico da cidade, demoliu na área do Alto da Cruz, no sítio celebrizado com a denominação de Vira-Saia, uma edificação singularizada pelo teto decorado com uma bela pintura antiga em sala do segundo pavimento, edificação essa que havia sido reparada em parte pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em seguida abateu árvores de porte dos terrenos da Igreja do Carmo, em outro sítio da cidade, para o alargamento projetado (Andrade, 1987ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, IPHAN, n. 2, p. 255-297, 1938.: 81).

Analisando a trajetória da preservação do patrimônio em Ouro Preto, é possível observar uma maior participação dos estados e municípios brasileiros nos assuntos ligados ao patrimônio cultural, conforme indicava o Encontro de Governadores realizado em Brasília, em 1970, e em Salvador, em 1971. Desde então, ocorreu um significativo aumento no envolvimento do poder público municipal em relação às práticas preservacionistas. No caso de Ouro Preto, houve o investimento na restauração de alguns imóveis; a aprovação de um plano diretor para a cidade, conforme a indicação do projeto da Unesco de 1968, e o pedido de que o IPHAN disponibilizasse um arquiteto para trabalhar permanentemente junto à prefeitura da cidade, analisando pedidos de obras e de novas construções. Para conseguir as verbas necessárias à viabilização de tais projetos, o então prefeito de Ouro Preto, Benedito Xavier, apontou para uma transformação em relação às tradicionais formas de financiamento das obras de salvaguarda do patrimônio, criando uma assessoria para atuar nesse processo (Anais, 73ANAIS do II Encontro de Governadores para preservação do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural do Brasil, realizado em Salvador, 1971. Rio de Janeiro: IPHAN, 1973.: 83). A maior adesão das prefeituras aos projetos de preservação do patrimônio não seria um processo linear, variando em função das posições políticas dos prefeitos eleitos. O surgimento de novos órgãos de preservação nas esferas municipais e estaduais desde o primeiro Encontro de Governadores não garantiu o apoio do poder público municipal às medidas de salvaguarda, conforme verificamos em um manifesto assinado em 1975 por intelectuais moradores ou frequentadores de Ouro Preto.

Todos nós sentimos que, de uns tempos para cá, Ouro Preto tem sofrido mudanças fundamentais. Basta olharmos os morros que nos circundam e constataremos que eles não são mais os mesmos. A cada dia se constrói mais, a cada dia a paisagem se modifica. Agora é a vez do núcleo urbano e do museu vivo. Ruas e ladeiras tiveram seu calçamento original substituído. Muros de pedras onde há centenas de anos uma vegetação exuberante e peculiar vive e enfeita foram destruídos ou rebocados. Fontes de água que inspiravam artistas e poetas que por aqui passaram em todas as épocas foram modificadas ou canalizadas. Pequenos largos, lazer do povo e das crianças, ostentam hoje duas praças convencionais, cujo desenho não condiz como estilo da cidade.6 6 Manifesto dos intelectuais mineiros assinado entre outros por José Alberto Nemer - doutor pela UFMG, Álvaro Apocalipse - artista plástico, Moacir Laterza - professor de Estética, e Márcio Sampaio - crítico de Artes Plásticas, apud Discurso proferido por Hélio de Almeida, deputado federal (MDB) entre 1975 e 1979, Brasília, 1975, mimeo.

O manifesto tratava do crescimento desordenado da cidade e, ao mesmo tempo, referia-se a recentes medidas modernizadoras por parte da municipalidade. Apesar de asseguradas legalmente, na prática, tais medidas permaneciam submetidas aos variados modelos de administração municipal, sendo modificadas em função das relações que os dirigentes municipais mantinham com o IPHAN. Genival Alves Ramalho, prefeito de Ouro Preto na época, justificou as obras afirmando que "alargar uma rua não chega a ser uma obra, por isso tomei a iniciativa. E, além do mais, é tanta burocracia que acontece que, se cada vez que eu fosse fazer alguma coisa tivesse que consultar o IPHAN, não teria condições de fazer nada".

As punições impostas aos proprietários de imóveis tombados muitas vezes geraram indignação e protesto, principalmente entre os empresários que buscavam realizar novas obras em seus comércios, muitas delas não aprovadas pelo IPHAN.7 7 Tais embates ficam evidentes nas pastas de documentação da Série Obras, presentes no Arquivo Geral do IPHAN e no Arquivo do Escritório Técnico de Ouro Preto. Por outro lado, era difícil contar com auxílios financeiros do poder público para conservar suas propriedades de acordo com os critérios estabelecidos, ao mesmo tempo que recebiam poucos esclarecimentos sobre a importância dessas ações. A falta de verbas e de funcionários para trabalhar em atividades de conservação e restauro, treinamento de pessoal e inventários de documentação, e ainda o volume de imóveis em processo permanente de deterioração no sítio urbano explicam parcialmente o incipiente desenvolvimento das atividades de educação e divulgação nesses espaços. A explicação para esse fenômeno torna-se ainda mais completa quando refletimos sobre a concepção de preservação dominante ao longo das quatro primeiras décadas de atuação do IPHAN, que priorizava a chamada preservação dos bens "de pedra e cal", expressa ainda no grande número de arquitetos em postos-chaves da instituição e no papel secundário assumido por outras atividades como inventários de pesquisa, levantamentos de documentação e ações de conscientização da população local, vistas apenas como acessórias em relação aos procedimentos de conservação e restauro.

A relação dos proprietários e comerciantes da cidade com as normas preservacionistas foi se tornando ambivalente a partir do desenvolvimento de novas atividades na cidade, com especial destaque para as turísticas, a partir de meados do século XX. Possuir residência ou comércio em uma construção originária do século XVIII, ou mesmo que "apresentasse um aspecto colonial", transformou-se em um "capital simbólico" (Bourdieu, 1996_____. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papiros, 1996.: 107) extremamente valorizado. No caso específico da atividade turística, tais bens imóveis revelaram-se verdadeiras atrações para os novos visitantes pela possibilidade de uma "imersão no passado", critério valorizado pela propaganda turística, capaz de influenciar a escolha de locais de hospedagem, refeições e outras opções de lazer na cidade. Por outro lado, o desenvolvimento dessa atividade ampliou também a necessidade de realização de reformas nos imóveis, aumentando, em alguns casos, o descontentamento dos proprietários em relação à agência federal preservacionista, personificada através de seus funcionários que trabalhavam na cidade.

Também acompanhamos pioneiramente nesse sítio urbano os primórdios das ações de agências internacionais no campo da salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro. Desde a década de 1960, a cidade que se tornou o paradigma da preservação no Brasil passou a sofrer influências de órgãos preservacionistas internacionais, e mais especificamente da Unesco, organismo criado no interior da Organização das Nações Unidas (ONU) que passou a atuar intensamente na área de preservação cultural, oferecendo principalmente treinamentos e formação de pessoal para atuação nesse campo. Por solicitação do IPHAN, desde o ano de 1968 a Unesco enviou missões técnicas destinadas a avaliar a situação do sítio urbano de Ouro Preto e propor critérios para sua manutenção, sob a orientação do arquiteto português Alfredo Viana de Lima, que permaneceu na cidade entre outubro e dezembro daquele ano e retornou no mesmo período no ano de 1970 (Unesco, 1970UNESCO. Renovation et mise em valeur d'Ouro Preto par A. Viana de Lima. Paris, 1970. Mimeo.). Entre as principais sugestões então feitas - que foram parcialmente postas em práticas na década seguinte - estavam a implementação de um plano diretor para fortalecer a atuação do IPHAN, a elaboração de um plano de expansão em direção a Saramenha, a interdição do trânsito de veículos pesados nas ruas do conjunto histórico, a criação de novos hotéis para estimular o desenvolvimento turístico e a criação de uma cidade universitária no morro do Cruzeiro. Desde então, a Unesco estaria presente na formulação e no financiamento das mais importantes ações de preservação do conjunto urbano de Ouro Preto.

Considerações finais: a cidade e o patrimônio

Imagem consagrada de patrimônio cultural brasileiro, a cidade de Ouro Preto nos oferece um rico panorama de análise das práticas preservacionistas no Brasil. As primeiras ações de salvaguarda, ainda nos anos 30, enfrentaram desafios que se mostraram bem maiores que os previstos. Era necessário conseguir verbas para as despesas com as ações de restauro, preparar mão de obra e legitimar a atuação da instituição federal recém-criada para esse fim. Visto como excepcional e autêntico pelos técnicos do IPHAN, o conjunto urbano da cidade foi tratado como uma obra de arte que poderia ser mantida em sua integralidade. No entanto, o crescimento populacional levou a grandes modificações espaciais e sociais tanto na cidade histórica como em sua periferia, levando à adoção de critérios e de formas de gestão que também seriam adotados em outras cidades históricas. A instalação de indústrias, mineradoras, a expansão das atividades educacionais e do turismo criaram diferenciações entre a área central e a periferia e levaram a um processo de gentrificação do centro histórico, vivenciado por muitos dos centros patrimonializados.

A partir de mudanças nas concepções de patrimônio nos fins da década de 1970, novas práticas na preservação do conjunto histórico foram adotadas, em um esforço para criar novos canais de comunicação com a população e desenvolver atividades de educação. No entanto, mantiveram-se muitas das práticas de preservação a partir de critérios puramente estéticos e arquitetônicos. A esperança de que os recursos provenientes das atividades turísticas pudessem financiar as atividades de preservação, que ganhou corpo no final da década de 1960 com documentos como as Normas de Quito da OEA, de 1967, ou com as missões da Unesco que trouxeram consultores para cidades preservadas, não se concretizou (Aguiar, 2006_____. Turismo e preservação nos sítios urbanos brasileiros: o caso de Ouro Preto. Tese (doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2006.). Apesar do expressivo crescimento do turismo, em cidades históricas como Ouro Preto, as ações de salvaguarda continuaram em grande parte dependentes de financiamentos governamentais, seja pela injeção direta de recursos, seja por incentivos fiscais concedidos a empresas que aplicaram recursos em obras de conservação na cidade.

Apesar do discurso que associava "preservação cultural" a "interesse coletivo" e "comunidade", grande parte dos moradores de Ouro Preto continuou sem participar das principais decisões que envolviam a salvaguarda do núcleo urbano. Tal fenômeno confirma a necessidade de fomentar cada vez mais investigações capazes de analisar as trajetórias das políticas de preservação, as quais só podem ser compreendidas quando relacionadas a processos de ampliação da cidadania, da gestão e da democratização do espaço urbano.

  • 1
    Optamos por chamar de IPHAN a agência federal de preservação criada como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937. Em 2 de janeiro de 1946, o Decreto-Lei 8.534 transformou o Serviço em Diretoria (DPHAN). Em 27 de julho de 1970, o Decreto nº 66.967 transformou a DPHAN em Instituto (IPHAN). Em 26 de novembro de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 6.757, criando a Fundação Nacional Pró-Memória, órgão operacional do IPHAN. Um resumo cronológico com as principais transformações sofridas pela agência pode ser encontrado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 22, 1987, p. 343.
  • 2
    Além de Ouro Preto, foram tombados em 1938 os conjuntos urbanos das cidades mineiras de Diamantina, Tiradentes, Serro e São João del Rey. Cf. http://portal.IPHAN.gov.br/pagina/detalhes/101. Acesso em 23 de março de 2016.
  • 3
    Estamos aqui considerando a formação de um campo de preservação cultural a partir da institucionalização das atividades de salvaguarda com a criação do IPHAN em 1937, baseando-nos em algumas das definições de Pierre Bourdieu, que destaca a existência de regras de funcionamento próprias e uma certa autonomia em relação a outros campos existentes na sociedade. Tal campo pode ser igualmente definido como o espaço onde ocorre o embate entre diversos atores em torno de interesses específicos. Cf. Bourdieu, 1996_____. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papiros, 1996..
  • 4
    Discussões sobre os estilos das novas construções de Ouro Preto podem ser encontradas nas pastas da Série Inventário no Arquivo Geral do IPHAN relativas a essa cidade, organizadas por monumentos ou ruas. Cf., por exemplo, Caixa 226. Pasta 980 A - 1948 a 1962 e Pasta 980 A2. Série Inventário. Arquivo Geral do IPHAN.
  • 5
    O foco das ações preservacionistas na cidade nunca esteve voltado para essa área, ocupada pela população mais pobre desde os primórdios da extração aurífera. Apesar de o Ouro Podre, na Serra do Ouro Preto, ter sido palco de um dos mais importantes episódio do Brasil Colonial - a Sedição ou Revolta de Vila Rica, também conhecida como Revolta de Felipe dos Santos, quando os mineradores se revoltaram contra a fundição do ouro em 1720, e tiveram suas residências arrasadas -, esse morro e as ruínas ali existentes não foram objeto de preservação. A memória dessa revolta perderia sua importância para outros episódios que ocorreram em Vila Rica, com especial destaque para a Inconfidência Mineira.
  • 6
    Manifesto dos intelectuais mineiros assinado entre outros por José Alberto Nemer - doutor pela UFMG, Álvaro Apocalipse - artista plástico, Moacir Laterza - professor de Estética, e Márcio Sampaio - crítico de Artes Plásticas, apud Discurso proferido por Hélio de Almeida, deputado federal (MDB) entre 1975 e 1979, Brasília, 1975, mimeo.
  • 7
    Tais embates ficam evidentes nas pastas de documentação da Série Obras, presentes no Arquivo Geral do IPHAN e no Arquivo do Escritório Técnico de Ouro Preto.

Referências bibliográficas

Referências bibliográficas
  • AGUIAR, Leila Bianchi. Cidade morta, cidade documento, cidade turística: a construção de memórias sobre Ouro Preto. In: História do turismo no Brasil Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 180-193.
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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      Jan-Apr 2016

    Histórico

    • Recebido
      31 Jan 2016
    • Aceito
      01 Abr 2016
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