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UM TOLSTOI AFRICANO: ANDRÉ REBOUÇAS E UM OUTRO OCIDENTE (1889–1898)

An African Tolstoy: André Rebouças and another West (1889–1898)

Un Tolstoi africano: André Rebouças y un otro Occidente (1889–1898)

RESUMO

Este artigo tem como objetivo problematizar a escrita de si de André Rebouças durante seu período de exílio na Europa e na África, entre 1889 e 1898. Por meio da análise de sua correspondência ativa no período, pretende-se interpretar sua autocompreensão como um “Tolstoi Africano”, vista como expressão de uma dupla consciência enquanto intelectual ocidental e negro no final do século XIX, como proposto por Paul Gilroy (2001: 33-39) no primeiro ensaio do livro The Black Atlantic (1993). O artigo propõe-se a compreender em que aspectos a mobilização do pensamento de Tolstoi a partir do final dos anos 1880 se relaciona com a redefinição de seu pensamento racial e lhe permite transitar, em base universalista e cristã, para um pensamento crítico da modernidade liberal.

Palavras-chave:
André Rebouças; Liév Tolstói; África; Escrita de si; Exílio; Identidade racial

ABSTRACT

This article discusses André Rebouças’ self-writing during the period of his exile in Europe and Africa, between 1889 and 1898. Through his active correspondence during this period, we intend to interpret his self-understanding as an “African Tolstoy”, read as an expression of a double consciousness as a Western and b lack intellectual at the end of the 19th century, as proposed by Paul Gilroy (2001: 33-39) in the book The Black Atlantic (1993). The article aims to highlight the way his mobilization of Tolstoy’s thought since the end of the 1880s is related with the redefinition of his racial thought in this period. It aims also to understand how this mobilization allows him to move, on a universalist and Christian basis, to a critical thinking of liberal modernity.

Keywords:
André Rebouças; Leo Tolstoy; Africa; Self-writing; Exile; Racial identity

RESUMEN

Este artículo analiza la autoescritura de André Rebouças durante el período de su exilio en Europa y África, entre 1889 y 1898. A través de su activa correspondencia durante este periodo, pretendemos interpretar su autocomprensión como un “Tolstoi africano”, leído como expresión de una doble conciencia como intelectual occidental y negro a finales del siglo XIX, tal y como propone Paul Gilroy (2001: 33-39) en el libro The Black Atlantic (1993). El artículo pretende destacar el modo en que su movilización del pensamiento de Tolstoi desde finales de la década de 1880 se relaciona con la redefinición de su pensamiento racial en este periodo. Pretende también comprender cómo esta movilización le permite pasar, sobre una base universalista y cristiana, a un pensamiento crítico de la modernidad liberal.

Palabras clave:
André Rebouças; Liév Tolstoi; África; Autoescritura; Exilio; Identidad racial

INTRODUÇÃO

Este artigo nasce do encontro de dois pesquisadores da vida de André Rebouças (1838–1898), interessados em refletir sobre o papel do racismo para a experiência de vida e o pensamento social do personagem. Com trajetórias paralelas até 2018, os autores encontraram-se na Universidade Federal de Juiz de Fora e trabalham juntos em um texto biográfico sobre Rebouças no momento da redação deste artigo. Neste processo, a discussão de ambos em torno das publicações de Hebe Mattos sobre as cartas de André Rebouças na África (Mattos, 2013MATTOS, H. André Rebouças e o pós-abolição: entre a África e o Brasil (1888-1898). In: MATTOS, H.; ABREU, M.; DANTAS, C. V. Histórias do pós-abolição no mundo atlântico: identidades e projetos políticos. Niterói: Editora da UFF, 2013. v. 1. p. 13-31., 2016MATTOS, H. De pai para filho: África, identidade racial e subjetividade nos arquivos privados da família Rebouças (1838-1898). In: MATTOS, H.; COTTIAS, M. (org.). Escravidão e subjetividades. Marseille: Open Edition Press, 2016. v. 1. p. 203-225., 2018MATTOS, H. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: a África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, I. S.; GRINBERG, K.; REIS, D. A. (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-93., 2022MATTOS, H. “The East River Reminds Me of the Paraná”. Racism, subjectivity, and transnational political action in the life of André Rebouças. In: FISHER, B.; GRINBERG, K. (org.). The boundaries of freedom: slavery, abolition, and the making of modern Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. p. 315-338.), entendidas como escrita de si e expressão de uma dupla consciência, como intelectual ocidental e negro, resultaram em um interesse crescente de Robert Daibert Jr. por aprofundar as referências intelectuais de Rebouças no exílio, sobretudo sua mobilização da fase religiosa do escritor russo Liev Tolstoi. Pensar a face tolstoica de André Rebouças é um dos objetivos da pesquisa em andamento intitulada Escrita de si, leituras do outro: faces de André Rebouças no exílio (1889–1898), desenvolvida por Robert Daibert Jr. em projeto de pós-doutorado, sob supervisão de Hebe Mattos. Este artigo apresenta seus primeiros resultados, em diálogo com as reflexões de Hebe Mattos sobre o tolstoísmo de Rebouças no contexto da viagem africana.

Segundo Ângela de Castro Gomes (2004CASTRO GOMES, Â. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004.: 10), a

escrita autorreferencial ou escrita de si integra um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno ocidental. Essa denominação pode ser mais bem entendida a partir da ideia de uma relação que se estabeleceu entre o indivíduo moderno e seus documentos.

Segundo Foucault (1992FOUCAULT, M. A escrita de si. In: FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. p. 129-160.), que primeiro utiliza a expressão, as mais antigas formas de escrita de si no Ocidente remontam a tradições filosóficas dos séculos I e II, mas não configurariam ainda uma narrativa de si mesmo, ainda que configurassem formas de constituição de si baseadas na palavra. A narrativa de si só se generalizaria como prática a partir do século XVIII e assumiria seu auge no século XIX, transformando a escrita íntima e epistolar em formas privilegiadas de subjetivização.

André Rebouças é uma figura paradigmática desse fenômeno. Ele manteve por quase toda a vida adulta um diário pessoal e organizou, em seus anos finais em Funchal, na Ilha da Madeira, anotações pessoais, rascunhos da correspondência ativa e muitos outros papéis. Parte deles tornou-se acessível aos pesquisadores, depositada em instituições públicas de pesquisa como a Fundação Joaquim Nabuco, a Biblioteca Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A leitura desse conjunto é fascinante e revela uma trajetória multifacetada, com grandes reviravoltas e transformações.

Uma versão completa das cartas da África encontra-se no prelo pela editora Chão, editada por Hebe Mattos. Sob a coordenação da historiadora, o livro será o primeiro de uma coleção que incluirá as cartas do exílio e a publicação do diário sobre os anos referentes à campanha abolicionista. A ideia é abrir a um conjunto mais amplo de leitores a escrita de si de André Rebouças, alvo de controvérsia entre os especialistas.

André Rebouças (1838–1898) é um dos intelectuais negros mais conhecidos do cenário brasileiro oitocentista. Estudou engenharia e foi figura pioneira e central do movimento abolicionista, atuando em todas as suas frentes (Alonso, 2016ALONSO, A. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.). Ao longo do século XIX, lutou na Guerra do Paraguai, trabalhou como professor da Escola Politécnica, foi empresário, inventor, jornalista, publicista e engenheiro responsável pela elaboração de inúmeros projetos de infraestrutura no país (Trindade, 2011TRINDADE, A. D. André Rebouças: um engenheiro do Império. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2011.). Seu nome está inscrito na memória pública por meio de homenagens expressas em toponímias como o túnel Rebouças no Rio de Janeiro ou a Avenida Rebouças em São Paulo, entre tantos outros. Notabilizou-se na defesa de projetos para a modernização do então Império do Brasil, entre os quais se destacam — além da abolição da escravidão sem indenização aos “proprietários” dos escravizados — o estímulo à imigração, o acesso à terra aos recém-libertos e a democratização da propriedade fundiária. Formava a segunda geração de uma família “de cor”, nos termos da época, que se destacara pela participação nas lutas de independência da Bahia e pelo acesso à educação. Seu pai, jurista autodidata, foi deputado geral, recebeu o título de Conselheiro do Imperador e foi reconhecido como um dos maiores especialistas em direito civil do Império. Como o pai, André era liberal monarquista. Considerava-se também um democrata, que apoiava e propunha reformas à monarquia constitucional, da qual era fervoroso defensor, a ponto de deixar o Brasil com a família imperial após a derrubada de Pedro II pelo golpe militar que instaurou a república no Brasil. Iniciou então um autoexílio que se prolongaria até sua morte, em 1898.

Seja por sua relevância política como intelectual e reformador social no contexto abolicionista, seja por seu pioneirismo para a engenharia no País, André Rebouças teve não poucos biógrafos e pesquisadores interessados em suas ideias e trajetória. Essas pesquisas têm se concentrado, sobretudo, em suas experiências profissionais e na atuação intelectual como reformista social e ativista político no Brasil entre os anos 1860 e 1880. Até recentemente, poucos autores tinham avançado em estudos a respeito de André Rebouças em seu período do exílio.

Dos autores acadêmicos, Leo Spitzer (2001SPITZER, L. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.: 171) foi o primeiro a ler a correspondência de André Rebouças no exílio e a enfatizar que sua percepção de futuro da realidade multirracial brasileira e de seu próprio lugar dentro dela tinha sido alterada. A crise nacional no Brasil pós-1889 traduz-se, segundo esse autor, como uma crise pessoal para Rebouças. O golpe militar que derrubou a monarquia, seguido da imposição de uma nova ordem republicana, que André considerava militarista, escravocrata, latifundiária e ditatorial, teria sido, segundo Spitzer (2001SPITZER, L. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.), responsável por essa mudança, alterando sua visão de mundo. O autor deduz do silêncio de Rebouças sobre a questão racial quando no Brasil, uma antiga fé em um projeto multirracial e assimilacionista pautado em uma identidade universal. O livro Lives in Between, de 1989, só foi publicado no Brasil em 2001, mas foi precedido de um artigo do autor publicado em português — “Assimilação, marginalidade e identidade: os dois mundos de André Rebouças, Cornelius May e Stephan Zweig” — em 1980, na revista Estudos Afro-Asiáticos, do Rio de Janeiro, de grande repercussão (Spitzer, 1980SPITZER, L. Assimilação, marginalidade e identidade: os dois mundos de André Rebouças, Cornelius May e Stephan Zweig. Estudos Afro-Asiáticos, v. 3, p. 35-62, 1980.).

De fato, com exceção de Spitzer, a condição racial e a experiência do racismo não se colocaram como problema de pesquisa para a maioria dos historiadores que se dedicaram aos escritos de Rebouças, baseados quase todos no pressuposto de que o próprio André foi um liberal universalista que se recusava a se pensar racialmente. Pesquisadores com contribuições importantíssimas sobre o personagem confluíram em afirmar que Rebouças só iria sentir o racismo na viagem aos Estados Unidos, em 1873 (Carvalho, 1998CARVALHO, M. A. R. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1998.: 181; Alonso, 2016ALONSO, A. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.: 90), e depois na experiência do exílio, em geral interpretada como uma quebra, um período marcado pela desilusão com os ideais anteriores, conforme proposto pela interpretação de Leo Spitzer.

Spitzer (2001SPITZER, L. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.: 172) foi o primeiro autor a apontar como, no exílio, André Rebouças passou a identificar-se de modo crescente como porta-voz da raça africana, tendo até mesmo se mudado para a África após a morte de D. Pedro II, em busca de refúgio emocional, para acalmar os nervos e aliviar sua angústia pessoal, ao lado de seus irmãos africanos. Spitzer (2001SPITZER, L. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.: 172) faz um breve resumo da viagem de 15 meses de André Rebouças pela África, enfatizando a angústia do personagem, sua indignação crescente com o racismo, bem como suas limitações e preconceitos em relação aos povos africanos.

Pouco avançaria sobre os últimos anos em Funchal. Psicólogo social de matriz funcionalista, o autor encerra suas reflexões sobre André Rebouças em um capítulo intitulado “Não pertenço a lugar algum e por toda parte sou um estranho”. Na perspectiva do autor, André Rebouças falhara tanto em suas tentativas de assimilação ao mundo europeu que o Império do Brasil mimetizava quanto em seus esforços de identificação com o mundo africano. Desde que deixou a Europa, não teria conseguido formular uma contribuição intelectual socialmente relevante para o Brasil ou a África, vivendo os últimos cinco anos no exílio sem qualquer utopia, sob o signo da marginalidade e da depressão.

Spitzer permaneceu por mais de 20 anos como o único autor a abordar com alguma profundidade a condição racial de André, sua experiência de exílio e as cartas que deixou de sua viagem africana. Nessa questão, a maioria dos biógrafos posteriores o seguiu, caracterizando aquele período como marcado pela desilusão intelectual e, psicologicamente, por um processo de depressão diretamente relacionadas ao avanço do racismo científico no mundo ocidental. Poucos valorizaram sua produção intelectual no período, mesmo a da fase europeia, com dezenas de artigos em Portugal e Londres e na Revista de Engenharia no Brasil.

Joselice Jucá (2001JUCÁ, J. André Rebouças: reformas & utopia no contexto do Segundo Império. Rio de Janeiro: Odebrecht, 2001.) é uma das exceções. Aborda, ainda que brevemente, o pensamento do autor no período, afirmando que André assumiu, em seus escritos dos anos 1890, uma linguagem mais agressiva e virulenta que, aparentemente, exibia um tom quase subversivo e revolucionário. A autora, no entanto, entende que essa seria apenas uma performance radical, que o essencial de seu pensamento se manteria, defendendo as utopias em que sempre acreditara e as reformas que sempre propusera — a saber, um liberalismo econômico não monopolista baseado na democratização da propriedade fundiária a ser conquistado por meio da persuasão e da palavra por meio de iniciativas governamentais, conforme já havia apresentado nos anos 1880 (Jucá, 2001JUCÁ, J. André Rebouças: reformas & utopia no contexto do Segundo Império. Rio de Janeiro: Odebrecht, 2001.: 163-177).

No século XXI, a experiência do racismo na construção do pensamento social de Rebouças adquire cada vez mais relevância como questão de pesquisa (Mattos, 2005MATTOS, H. Prefácio. In: COOPER, F.; HOLT, T.; SCOTT, R. (org.). Além da escravidão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 13-38., 2013MATTOS, H. André Rebouças e o pós-abolição: entre a África e o Brasil (1888-1898). In: MATTOS, H.; ABREU, M.; DANTAS, C. V. Histórias do pós-abolição no mundo atlântico: identidades e projetos políticos. Niterói: Editora da UFF, 2013. v. 1. p. 13-31., 2016MATTOS, H. De pai para filho: África, identidade racial e subjetividade nos arquivos privados da família Rebouças (1838-1898). In: MATTOS, H.; COTTIAS, M. (org.). Escravidão e subjetividades. Marseille: Open Edition Press, 2016. v. 1. p. 203-225., 2018MATTOS, H. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: a África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, I. S.; GRINBERG, K.; REIS, D. A. (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-93., 2022MATTOS, H. “The East River Reminds Me of the Paraná”. Racism, subjectivity, and transnational political action in the life of André Rebouças. In: FISHER, B.; GRINBERG, K. (org.). The boundaries of freedom: slavery, abolition, and the making of modern Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. p. 315-338.; Pessanha, 2005PESSANHA, A. S. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as ideias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.; Soares, 2017SOARES, A. P. “O Negro André”: a questão racial na vida e no pensamento do abolicionista André Rebouças. Plural, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 242-269, 2017. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2017.114973
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
; Brito, 2019BRITO, L. Cr. “Mr. Perpetual Motion” enfrenta o Jim Crow: André Rebouças e sua passagem pelos Estados Unidos no pós-abolição. Estudos Históricos, v. 32, n. 66, p. 241-266, 2019. https://doi.org/10.1590/S2178-14942019000100012
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; Silva, 2019SILVA, A. C. H. Portos de Commercio: tecnologia, associacionismo e redes de sociabilidade: os desafios e as propostas modernizadoras de André Pinto Rebouças para o Brasil do Segundo Reinado (1850-1890). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.). Este artigo insere-se nessa tendência, abordando o racismo como questão constitutiva do pensamento e da escrita de si de André Rebouças desde o Brasil. Nele, pretendemos iniciar uma reflexão sobre as balizas teóricas de sua produção intelectual no exílio a partir deste ponto de vista, refletindo sobre o lugar do tolstoísmo em sua escrita de si na Europa e na África, entre 1889 e 1898.

Por meio da análise da correspondência ativa de Rebouças no período, propomos interpretar sua autocompreensão como um Tolstoi africano, entendida como expressão atualizada de uma dupla consciência enquanto intelectual negro e ocidental, no final do século XIX. Sem desconsiderar o pioneirismo e a imensa contribuição de autores como Leo Spitzer e Joselice Jucá, nossa proposta é entender a escrita de si e a reflexão intelectual de Rebouças no exílio não como uma falta ou exageração em relação ao que pensara antes, mas como atualização da reflexão do autor sobre o racismo que lhe definira, desde o nascimento, como ser no mundo.

SUBSÍDIOS PARA A COMPREENSÃO DO ANDRÉ REBOUÇAS TOLSTOICO

Quem foi Liév Tolstoi (1828–1910) e o que significava ser tolstoico naquele momento? Esse escritor russo foi um autor de reputação internacional que — após uma juventude de intensas aventuras em bordéis, bebidas e jogos — passou na maturidade a pregar um ativismo social apoiado em uma leitura do cristianismo considerada bastante radical. Já consagrado como grande escritor, Tolstoi abdicou de suas atividades de romancista e mesmo dos direitos autorais de suas obras, militando em favor da distribuição de riquezas, de reformas no acesso à terra e da defesa incondicional dos pobres. Como membro da alta aristocracia russa, herdeiro de uma família nobre de senhores de terra, passou a sentir vergonha de seu título de conde, do luxo de que desfrutava e que compartilhava com poucos, enquanto milhões de pessoas se degradavam na pobreza (Parini, 2011PARINI, J. Introdução. In: TOLSTOY, L. Os últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 7-17.: 7-9).

No fim dos anos 1870, depois de alcançar grande fama pela publicação de romances, Tolstoi arrependeu-se de sua cumplicidade com a instituição da servidão na Rússia, no tempo em que vivia como um latifundiário depravado, com inúmeros servos a sua disposição. Após a abolição da servidão, desenvolveu um sistema de alfabetização voltado para as crianças russas de todas as classes sociais e usou seu grande prestígio de escritor em diversas campanhas e ações humanitárias de combate à fome e à miséria do povo russo (Bartlett, 2013BARTLETT, R. Tolstói: a biografia. São Paulo: Globo, 2013.: 19-27). Rubens Figueiredo (2018FIGUEIREDO, R. Apresentação. In: TOLSTÓI, L. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. v. 1. p. 14-17.: 679), atualmente um dos principais tradutores de Tolstoi no Brasil, afirma que, antes mesmo da abolição da servidão em seu país, o escritor libertou seus servos e doou-lhes terras.

Na segunda metade do século XIX, a Rússia passava por profundas transformações associadas à abolição da servidão e à introdução de relações capitalistas, tentando seguir os rumos do expansionismo europeu. A industrialização e a urbanização promovidas pelo regime tzarista marcavam negativamente a sociedade e a cultura, afetando sobretudo os mais pobres em suas condições materiais e também em seus valores e costumes. Nesse contexto, Tolstoi passou a dedicar-se a essa população marginalizada pela ordem dominante, questionando as pretensões de superioridade da cultura europeia em relação às culturas tradicionais agrárias de seu país, classificadas como atrasadas ou arcaicas (Figueiredo, 2018FIGUEIREDO, R. Apresentação. In: TOLSTÓI, L. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. v. 1. p. 14-17.: 14-15).

Segundo Vladimir Nabokov (2021NABOKOV, V. Lições de literatura russa. São Paulo: Fósforo, 2021.: 187), escritor e professor de literatura russa, Tolstoi propunha um cristianismo sem dogmas, sem rituais, sem promessas de vida eterna, uma espécie de nova religião, um Jesus sem Igreja. Deixando de lado os textos literários, Tolstoi passou a publicar livros que relacionavam temas religiosos cristãos ao ativismo social. Segundo o próprio escritor, esses seus textos de cunho doutrinal eram superiores porque traziam reais contribuições à humanidade. O grande foco do cristianismo tolstoico era a ideia de uma resistência não violenta ao mal, representado muitas vezes pelos governos, pelos poderosos, ricos ou mesmo pela Igreja Ortodoxa, instituição que era parte integrante do Estado e do regime autocrático e, como tal, a seu ver, colaborava na opressão das pessoas (Parini, 2011PARINI, J. Introdução. In: TOLSTOY, L. Os últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 7-17.: 8-9; Figueiredo, 2017FIGUEIREDO, R. Apresentação. In: TOLSTÓI, L. Uma confissão. São Paulo: Mundo Cristão, 2017. p. 5-11.: 6).

De acordo com o escritor e crítico literário Jay Parini (2011PARINI, J. Introdução. In: TOLSTOY, L. Os últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 7-17.), a crença pacifista em mudanças não violentas tinha como base o Sermão da Montanha, contado no Evangelho e amplamente valorizado por Tolstoi em seus escritos. A ideia central seria dar a outra face ao inimigo opressor, entendendo a resistência pacífica como o melhor caminho para se alcançar a transformação do mundo e a superação das injustiças. Assim, o tolstoísmo era fundado na concepção cristã de amar ao próximo como a si mesmo, tentando transpor essa máxima para um ativismo social que valorizava os marginalizados. Nesse sentido, para Tolstoi, a elevação moral e espiritual poderia ser atingida por meio da simplicidade e do contato com os camponeses. Por outro lado, ele também defendia o vegetarianismo, o desapego aos bens materiais, a abstinência sexual, além de condenar o uso de bebidas alcóolicas e de tabaco (Parini, 2011PARINI, J. Introdução. In: TOLSTOY, L. Os últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 7-17.: 7).

A pregação de Tolstoi envolvia assim uma crítica feroz ao Estado, ao clero e ao militarismo, em defesa da distribuição de terras aos camponeses e da abolição dos privilégios (Bernardini, 2018BERNARDINI, A. Aulas de literatura russa. São Paulo: Kalinka Hedra, 2018.: 139). Sua crítica recaía também sobre a pobreza, os males do dinheiro e da propriedade privada, a justiça, estendendo-se até a Cultura Ocidental (Bartlett, 2013BARTLETT, R. Tolstói: a biografia. São Paulo: Globo, 2013.: 395; Figueiredo, 2018FIGUEIREDO, R. Apresentação. In: TOLSTÓI, L. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. v. 1. p. 14-17.: 679). De acordo com a escritora russa Rosamund Bartlett, biógrafa de Tolstoi, rapidamente as ideias do autor alcançaram um número enorme de seguidores, graças à rápida tradução de seus textos para o inglês e o francês. Muitos leitores passaram a renunciar ao dinheiro e à propriedade e a competir por uma vida considerada moralmente mais pura em termos de comportamento. O tolstoísmo atraía tanto o campesinato quanto a elite culta e foi considerado uma seita perigosa para o Estado russo e para a Igreja Ortodoxa, de onde Tolstoi foi posteriormente excomungado. Seus adeptos chegaram a fundar colônias tolstoicas em várias partes do mundo, onde suas ideias fizeram grande sucesso entre as últimas décadas do século XIX e início do XX (Bartlett, 2013BARTLETT, R. Tolstói: a biografia. São Paulo: Globo, 2013.: 22, 475-476, 485, 498).

Para muitos estudiosos, o tolstoísmo tornou-se no final do século XIX uma forma de ler criticamente o mundo ocidental, marcado pelo avanço do capitalismo que trazia o aprofundamento da exploração e da miséria. O cenário ainda predominantemente agrário e periférico da Rússia nesse período, em contraste com o desenvolvimento industrial das grandes potências europeias, era uma espécie de terreno fértil para intelectuais desencantados com a modernidade e com as consequências desagregadoras da expansão industrial. Por não ter ainda atingido essa etapa de desenvolvimento, a Rússia aparecia como uma espécie de laboratório, de onde ainda poderiam surgir caminhos alternativos àqueles já trilhados por outros países mais desenvolvidos. Segundo Clara Ornellas (2010ORNELLAS, C. Á. Aspectos do tolstoísmo na literatura brasileira: Lima Barreto e João Antônio. Fragmentos, Florianópolis, n. 38, p. 107-120, jan.-jun. 2010. https://doi.org/10.5007/30462
https://doi.org/10.5007/30462...
: 108-109), o tolstoísmo teve enorme repercussão internacional, sobretudo na Índia, na França e em Portugal e na Espanha, entre intelectuais e escritores do final do século XIX e início do XX, tendo sido até mesmo apropriado por setores do movimento socialista e comunista. Isso ocorreu principalmente em função de suas críticas ao capitalismo que, ao aprofundar a exploração do ser humano já vivenciada antes no regime da servidão, naturalizava a miséria e valorizava o dinheiro, o lucro e o consumo. As ideias de Tolstoi circulam assim como potentes expressões da valorização dos homens marginalizados, do questionamento das organizações sociais e de uma condenação total da civilização moderna (Ornellas, 2010ORNELLAS, C. Á. Aspectos do tolstoísmo na literatura brasileira: Lima Barreto e João Antônio. Fragmentos, Florianópolis, n. 38, p. 107-120, jan.-jun. 2010. https://doi.org/10.5007/30462
https://doi.org/10.5007/30462...
: 108-109).

Sem dúvida, tal amplitude de circulação do tolstoísmo é reflexo de seu potencial como instrumento de crítica não apenas às hierarquias dos antigos regimes da Europa, mas também à modernidade capitalista do final do século XIX.

Nesse sentido, muitos intelectuais ocidentais, nesse período, apostaram no tolstoísmo como um grande movimento humanitário difuso, de base cristã, que expressava compaixão pelo sofrimento e pela miséria humana. Como combate ao avanço do egoísmo e do individualismo impostos pelo capitalismo no Ocidente industrializado, defendia-se uma resistência pacifista, baseada na crença de valores comunitários e no exercício da solidariedade.

André Rebouças esteve entre seus primeiros seguidores no Brasil, em um primeiro momento pela chave da crítica aos legados da ordem tradicional, como a escravidão e a união da Igreja com o Estado. De acordo com Bruno Gomide (2004GOMIDE, B. B. Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936). Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.: 77-78), que pesquisou a circulação dos romances russos entre intelectuais no país, houve um boom editorial dos romances russos a partir de meados dos 1880, tendo a crítica francesa como epicentro de divulgação e popularização dessa literatura em outros países. Essa espécie de febre editorial explica por exemplo o fato de que, segundo o autor, Rebouças tenha lido o livro Que faire? (Tolstoi, 1887TOLSTOI, L. Que faire? Paris: A. Savine, 1887.) poucos meses após sua publicação na França, procurando, no contexto da campanha pela abolição do cativeiro no Brasil, encontrar na “doutrina de Tolstói respostas para a questão da miséria e para os problemas de organização do trabalho que adviriam após o fim oficial do regime escravista” (Gomide, 2004GOMIDE, B. B. Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936). Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.: 75-76). Podemos acrescentar às considerações de Gomide (2004GOMIDE, B. B. Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936). Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.) o cosmopolitismo de Rebouças, que já então fizera três longas viagens à Europa, tendo morado em Paris e Londres, com muitos amigos e correspondentes na França, Inglaterra e Portugal (Mattos, 2018MATTOS, H. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: a África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, I. S.; GRINBERG, K.; REIS, D. A. (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-93., 2022MATTOS, H. “The East River Reminds Me of the Paraná”. Racism, subjectivity, and transnational political action in the life of André Rebouças. In: FISHER, B.; GRINBERG, K. (org.). The boundaries of freedom: slavery, abolition, and the making of modern Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. p. 315-338.).

O tolstoísmo era uma espécie de matriz que fornecia elementos para alimentar diferentes tipos de resistência e críticas ao status quo. Alguns tentaram conciliar o tolstoísmo com o pensamento anarquista, outros com o comunismo e outros ainda com o liberalismo, como resposta à persistência das estruturas do Antigo Regime. Rebouças, ao longo de seus nove anos de exílio, manteve, sobretudo com base na apropriação das ideias de Tolstoi, uma constante crítica aos males impostos pelo militarismo, pela teocracia. Para ele, assim como para Tolstoi, o clero e as forças armadas representavam instituições parasitárias e arcaicas que impediam o necessário combate à miséria imposta pelo monopólio da terra e pelo domínio aristocrático. O tolstoísmo acreditava utopicamente numa sociedade menos desigual, em que a solidariedade impediria a existência da miséria, o pacifismo colocaria fim às guerras e o comportamento moral acabaria com os vícios. Como procuraremos demonstrar, com os subsídios fornecidos por Tolstoi, Rebouças podia olhar para o Ocidente da janela das sociedades periféricas e sonhar com um outro mundo possível, sem contudo abandonar as promessas universais de liberdade e felicidade.

O PROTO-PAN-AFRICANISMO DE ANDRÉ REBOUÇAS NO EXÍLIO E AS CITAÇÕES A TOLSTOI

Porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre?!

Porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre?! …

Trajado de luto perpetuo e eterno: coberto de preto incrustado na própria pele!! …

Porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre?!

Carregando pedra áspera […] dura, […] ferro pesado e frio, ou carvão de pedra sujo e sufocante!!! …

Porque o negro Africano ri, canta e dança sempre?!!…1 1 Idílio Africano VI — Ideado em Krokodil Poorta, 23 de maio de 1892; e scrito em Barberton a 30 de maio de 1892. Publicado no ano seguinte em: Rebouças (1893).

Os trechos acima são do início de um poema escrito por André Rebouças na África do Sul e publicado no Jornal A Cidade do Rio, de José do Patrocínio, em 4 de fevereiro de 1893. Leo Spitzer (2001SPITZER, L. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.: 174) destaca sua última frase, “bem aventurados os que não tem Pátria: os que são estrangeiros no seu próprio Continente Africano…” para reforçar sua tese da experiência de total anomia de Rebouças em sua busca das raízes africanas. Na leitura de Spitzer, nem e uropeu, nem africano, Rebouças morreria sem utopias em Funchal.

Martha Abreu leu o “Idílio Africano VI” em 2012, na época que Hebe Mattos escrevia seu primeiro artigo sobre a viagem africana de Rebouças (Mattos, 2013MATTOS, H. André Rebouças e o pós-abolição: entre a África e o Brasil (1888-1898). In: MATTOS, H.; ABREU, M.; DANTAS, C. V. Histórias do pós-abolição no mundo atlântico: identidades e projetos políticos. Niterói: Editora da UFF, 2013. v. 1. p. 13-31.) e Martha estudava a circulação de referências musicais negras entre Brasil e Estados Unidos no final do século XIX (Abreu, 2017ABREU, M. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas, 1870-1930. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.). A pergunta central, “porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre? [sic]” evocou para Martha Abreu o ensaio final de Du Bois (2021DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021.) sobre as canções de lamento negro nos Estados Unidos no clássico The Souls of Black Folk (A Alma do Povo Negro), de 1903, um dos fundadores do pan-africanismo nos Estados Unidos. Além da reflexão sobre a música e o canto para entender a alma negro-africana, o livro de Du Bois traz também uma bela homenagem a Alexandre Crummel, ministro anglicano que atuou na Libéria, precursor da ideia panafricana. Desde então, esse paralelismo tornou-se uma das chaves para a leitura de Mattos das cartas africanas de Rebouças.

A noção veiculada nas cartas, de que os negros das Américas tinham uma alma comum com seus irmãos do Continente Mártir e deviam contribuir para a missão de cristianizar e civilizar a África, aproximava-se das proposições proto-pan-africanistas de Alexandre Crummel e de outros autores negros de língua inglesa que estiveram no continente e sobre ele escreveram pouco antes ou na mesma época que André Rebouças. Mattos (2018MATTOS, H. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: a África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, I. S.; GRINBERG, K.; REIS, D. A. (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-93.) atribuiu possivelmente a essa influência o evidente apelo cristão das cartas e da poesia analisada.

Com certeza Rebouças tinha notícia da ação e do pensamento desses intelectuais, sobretudo os que atuavam na Libéria e em Serra Leoa, cuja evolução acompanhava com interesse. Sua decisão de viajar à África espelha a deles e busca contribuir para um projeto de civilização do continente, em moldes cristãos e ocidentais, que levasse em conta essa alma africana.

Porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre?!

Carregando pedra áspera […] dura, […] ferro pesado e frio, ou carvão de pedra sujo e sufocante!!! …

Porque o negro Africano ri, canta e dança sempre?!!…

Quando a atroz Retaguarda do feroz Stanley comprou uma negrinha para ver comê-la viva pelos canibais, tomaram os Sketch-books e prepararam os ouvidos para gritos dilacerantes e os binóculos para cenas emocionais… A mísera ergueu os olhos para o Céu, e deixou sorrindo dilacerarem-lhe o ventre…

- Porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre?!

Quando em Campinas um fazendeiro de São Paulo substituiu, na forca, por mísero preto velho inocente, seu capanga, moço assassino, esse desgraçado percorreu inconscientemente a via satânica dos Auás e dos Caifás: dos juízes e dos jurados corruptos e êinicos: iníquos e vendidos aos escravizadores de homens, usurpadores e monopolizadores do território nacional… Foi só quando o carrasco se aproximou de corda em punho, que o velho negro Africano compreendeu onde ia terminar a infernal comedia… Então, sentou-se sobre os degraus da forca e cantou a canção que lhe ensinara sua mãe, aqui n’África, no continente – Mártir… (Rebouças, 1893REBOUÇAS, A. Por que o negro africano canta, ri e dança? Cidade do Rio, 4 fev. 1893.).

No artigo “Em Torno D’Africa [sic]”, que precede a viagem de Rebouças ao continente, escrito no exílio e publicado na Revista de Engenharia em 1891, Rebouças abordou pela primeira vez o racismo e a escravidão como produtos da lógica estamental de sociedades pré-modernas, como uma forma de castismo (Rebouças, 1891REBOUÇAS, A. O problema da África. Revista de Engenharia, n. 249-251, 1891.). Nas cartas africanas, usa inúmeras vezes a palavra raça como sinônimo de povo ou cultura. Tece inúmeros comentários sobre características da raça anglo-saxã, yankee, luso-brasileira, latina ou africana.

Para Mattos, em ensaio ainda inédito para o livro em que edita as cartas da África em versão integral, o proto-pan-africanismo de Rebouças, como o de alguns dos contemporâneos de língua inglesa com presença no continente no mesmo período, como Edward Blyden, tinha tal fundo conceitual e exprime profundo antirracismo de feição liberal e antiacastista.

Romper com os sistemas de castas, no mundo islâmico, no Oriente, ou no segregacionismo racial dos Estados Unidos, afirmando a igualdade radical da Raça Humana, era sua mais profunda convicção reformista, o que não o impedia de pensar as várias almas nacionais, entre elas a ‘africana’, à moda oitocentista (Mattos, no prelo, grifos do original).

Nesse contexto, seu universalismo era ocidental e cristão, mas não era definitivamente o mesmo dos precursores protestantes do pan-africanismo.

A alma africana que Rebouças buscava está claramente expressa no Idílio, analisado com base em um sentido tolstoico-cristão. A referência ao Sermão da Montanha é direta.

Dize Jesus, Mártir dos Mártires: dize, Tu para quem não há segredos nem martírios no sacrifício e na Humildade; na dedicação, no Devotamento e na Abnegação… Dize:

- Porque o Negro Africano ri, canta e dança sempre?!

Bem aventurados os escravizados, os chicoteados, os insultados, os caluniados, os cuspidos e os esbofeteados.

Bem aventurados os que sofrem injustiças e iniquidades: sequestros e espoliações.

Bem aventurados os que não tem terra, nem casa: nem propriedade, nem família.

Bem aventurados os que não tem Pátria: os que são estrangeiros no seu próprio Continente Africano…

As inúmeras citações a Tolstoi nas cartas africanas foram mobilizadas por Mattos (2018MATTOS, H. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: a África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, I. S.; GRINBERG, K.; REIS, D. A. (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-93.), inicialmente, como um indício do profundo conhecimento e interesse de André pelos desdobramentos das reformas que aboliram a servidão na Rússia, ao lado do pós-emancipação nos Estados Unidos. São, porém, mais que isso. Ao contrário do que imaginou Spitzer, o final do “Idílio Africano” de Rebouças revela a utopia positiva que o movia em sua viagem africana. Como o próprio Rebouças indicou ainda na Europa, quando planejava em Cannes a viagem africana:

Nada posso fazer de melhor do que ir à África: escrever um livro tolstoico — Entorno d’África — e esperar por lá que termine a expiação aguda dos seculares pecados do Brasil escravocrata e monopolizador de terra em latifúndios indefinidos2 2 Carta de André Rebouças a Taunay, 12 de fevereiro de 1892. Registro de Correspondência, v. 4. Fundação Joaquim Nabuco. .

O livro que pretendia escrever e escreveu sobre e na África, infelizmente não localizado entre os papéis que deixou, devia ser, para seu autor, antes de tudo, um livro tolstoico.

UMA ÁFRICA DE TOLSTOI E ULISSES

André Rebouças passa a se autodeclarar um “Tolstoi africano” em 1891, na Europa, antes de realizar sua viagem à África no ano seguinte. As primeiras menções à expressão aparecem nas Cartas a Nabuco (5 de abril de 1891), a Taunay (20 de maio, 14 e 19 de julho, 21 de agosto de 1891), sempre na Europa3 3 Volumes 1, 2 e 3 do Registro de Correspondência de André Rebouças. Fundação Joaquim Nabuco. .

Na África, continuou a se qualificar muitas vezes como “tolstoico”. Mencionou “escrúpulos tolstoicos” em carta a Taunay de 14 de julho de 1892 e declarou-se “filósofo pitagórico e tolstoico” em carta a Antônio Júlio Machado de 11 de dezembro de 1892, quando fugiu de Barberton, na África do Sul, após testemunhar o incêndio criminoso de um hotel vizinho e um episódio de violência racial4 4 Cartas de André Rebouças a Antônio Júlio Machado e a Taunay. V. 5. Registro de Correspondência de André Rebouças. Fundação Joaquim Nabuco. . Não usou mais, porém, a alcunha Tolstoi africano após a chegada em Lourenço Marques, Moçambique, em abril de 1892.

As impressões de Rebouças durante a viagem de circum-navegação da África, partindo de Marselha em março de 1892 em um paquete da Mala Real Portuguesa, através do Canal de Suez, até alcançar Funchal, em julho de 1893, na Ilha da Madeira, são marcadas por um progressivo desencanto com as possibilidades civilizadoras da presença colonial europeia no continente (Mattos, 2013MATTOS, H. André Rebouças e o pós-abolição: entre a África e o Brasil (1888-1898). In: MATTOS, H.; ABREU, M.; DANTAS, C. V. Histórias do pós-abolição no mundo atlântico: identidades e projetos políticos. Niterói: Editora da UFF, 2013. v. 1. p. 13-31.).

Durante esse período, Sonata a Kreutzer (1889), curto romance de Tolstoi em forma de diálogo, e L’argent et Le Travail (O dinheiro e o Trabalho), libelo contra a desigualdade capitalista, então recém-publicado na França, em 1892, são tema de sua correspondência com Taunay. Seu estilo de vida, reduzido ao mais rigoroso ascetismo, é continuamente classificado por ele como “tolstoico”.

Nos meses passados entre Lourenço Marques, Barberton, Queenstown e Cidade do Cabo, entretanto, é Ulisses, o personagem da Odisseia de Homero, quem toma o lugar de Tolstoi na autorrepresentação de sua faceta universal. Na África, vai afirmar-se um Ulisses a fricano (Mattos, 2022MATTOS, H. “The East River Reminds Me of the Paraná”. Racism, subjectivity, and transnational political action in the life of André Rebouças. In: FISHER, B.; GRINBERG, K. (org.). The boundaries of freedom: slavery, abolition, and the making of modern Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. p. 315-338.).

Tolstoi seguirá com ele, porém, durante seus últimos anos de vida em Funchal. Sem dúvida, é possível afirmar que Tolstoi é o escritor mais citado nos quase nove anos de exílio, o que nos leva a afirmar que seus textos ocupavam lugar de destaque no repertório de leituras realizadas por Rebouças naquele período.

Tomando como um todo as cartas do exílio, quais as apropriações de André Rebouças do pensamento tolstoico para pensar a si mesmo, à sociedade ao seu redor e a seu projeto intelectual de inserção e interferência nela?

Tolstoi foi sua inspiração para a luta contra a miséria desde a publicação do livro Que faire?, na França, em 1887, lido por André no mesmo ano. Com base nas ideias do autor, Rebouças escreveu uma série de artigos intitulada “Abolição da miséria”, na Revista de Engenharia, entre setembro de 1888 e fevereiro de 18895 5 Revista de Engenharia, Rio de Janeiro, n. 194-204, set. 1888-fev. 1889. . Em seus escritos de exílio, Rebouças aprofundou essa identificação com Tolstoi e buscou nas ideias do escritor russo elementos para interpretar os problemas sociais e políticos, sobretudo do Brasil, após o golpe de 1889, e da colonização e “civilização” da África. Assim, em suas cartas do período, abundam referências aos problemas sociais e à pobreza material e moral vivenciados nesses territórios, interpretados em consonância com as ideias do escritor russo.

André apropriou-se das ideias de Liev Tolstoi tanto no modo de perceber a si mesmo quanto na forma de idealizar sua participação nas transformações da sociedade de seu tempo. Autodeclarando-se um tolstoico, na África, ou um “Tolstoi a fricano”, na Europa, ele se apropriou muitas vezes do pensamento do escritor russo para esboçar, por um lado, diagnósticos dos problemas das sociedades brasileira ou africana e, por outro, prognósticos, tentando encontrar caminhos para a solução deles. Sob o ponto de vista pessoal, Rebouças afirmava: “Cada vez embrenho-me mais no Tolstoismo e fujo de todas as complicações plutocráticas”6 6 Registro de Correspondência de André Rebouças a Alfredo Taunay, 15 de março de 1891. V. 1. Fundação Joaquim Nabuco. .

Desde o início do exílio, André denunciava a grande exploração presente nas novas relações de trabalho nas fazendas brasileiras, considerando que, apesar do fim da escravidão, o monopólio da terra nas mãos de grandes proprietários continuava a produzir miséria. Segundo ele, tanto ex-escravizados quanto imigrantes sofriam um processo de re escravização ou escravização na medida em que eram submetidos ao endividamento e à agiotagem de seus patrões. “O Fazendeiro é quem regula tudo: o colono tem de sujeitar-se a seus cálculos de avareza ou a sua penúria, quando ele não tem dinheiro nem crédito na praça”7 7 Carta de André Rebouças para Alfredo Taunay, 19 de setembro de 1891, Registro de Correspondência, v. 3. Fundação Joaquim Nabuco. . Mostrando-se bem informado sobre o que acontecia no País, segundo ele, a produção total era dividida em dez ou 12 partes das quais os trabalhadores recebiam uma única parcela. O restante ficava com o fazendeiro. Mesmo assim havia atrasos nos pagamentos, uso de cadernetas de dívidas infindáveis que desapareciam e uma série de estratégias que submetiam os trabalhadores à exploração criminosa dos grandes proprietários responsáveis por um “satânico parasitismo”. Ao tratar do assunto em carta dirigida a Taunay, Rebouças comentava: “Imagina agora a interposição de um feitor, de um administrador; de um desses entes abjetos, como tão justamente descreve Leon Tolstoi, e terás o Pandemônio a que está reduzido esse mísero Brasil. Esse é o grande crime”8 8 Carta de André Rebouças para Alfredo Taunay, 19 de setembro de 1891, Registro de Correspondência, v. 3. Fundação Joaquim Nabuco. .

A crítica à questão do monopólio da terra e ao aprofundamento da miséria decorrente dele foi o tema que mais aproximou André Rebouças dos escritos de Tolstoi durante seu exílio e seus últimos anos de vida. A crítica feroz do escritor russo ao monopólio da terra em seu país alimenta o ativismo e a crítica social de Rebouças. Por um lado, Tolstoi produzia uma crítica contundente às estruturas arcaicas e parasitárias da elite dominante russa, responsáveis pela miséria da população. Por outro, o autor é igualmente crítico das promessas de felicidade vindas da modernização ocidental europeia que, a seu ver, aprofundavam a pobreza e a desigualdade. Esse era um ponto fundamental de identificação para Rebouças, sobretudo durante a viagem de 15 meses pela África e a decorrente desilusão com o colonialismo europeu no continente. Com base na leitura de Tolstoi e na experiência de observação tanto do território brasileiro quanto do africano, ele construía seu olhar para a questão social, aplicando o mesmo diagnóstico do escritor russo para esses espaços.

Mas qual seria a solução para o problema? Qual o prognóstico? Inspirando-se em Tolstoi, André Rebouças o idealizava em certa leitura do Sermão da Montanha e seus princípios éticos-morais de condenação do apego à riqueza e aos bens materiais. Em junho de 1895, em Funchal, André escreveu a Taunay sobre essa questão.

A questão social será resolvida não por utopias socialistas e comunistas, mas sim convencendo ao operário que o trabalho é uma necessidade higiênica; que sem trabalho impossível é ter saúde, o fator principal da felicidade e do bem-estar; e também, por outro lado, demonstrando aos ricos que todos os abusos do luxo, da gula e da volúpia, proporcionados pelo excesso de riqueza, conduzem fatalmente à perda da saúde, isto é, do maior bem que há neste mundo. Quando o operário amar o trabalho e a vida simples que leva; quando souber que imensa felicidade é estar livre da terrível tirania da etiqueta e das cerimônias; quando o rico tiver a virtude higiênica de abster-se do abono da riqueza; a questão social estará resolvida sem guerras, sem atrocidades e sem revoluções. Abstenção tolstoica para os ricos; simplicidade, vida frugal o trabalho para todos, essa solução infalível do problema social9 9 Carta de André Rebouças para Alfredo Taunay, 16 de junho de 1895, Registro de Correspondência, v. 8. Fundação Joaquim Nabuco. .

A solução para o progresso da Humanidade estaria no fim das grandes fortunas construídas com base na exploração acirrada dos mais pobres. Seria necessária uma conversão das classes ricas aos princípios cristãos relidos por Tolstoi, numa grande confluência motivada pelo desapego ao luxo e ao acúmulo de bens materiais em um grande projeto que, se por um lado não se confundia com a caridade conduzida por pequenas doações, por outro também não resvalava para uma proposta comunista ou socialista.

Era preciso mexer na estrutura produtora da miséria, mas caberia também aos miseráveis uma conversão aos princípios cristãos moralizantes, sobretudo de desapego às ambições materiais e amor ao trabalho. Rebouças também defendia, inspirando-se em Tolstoi, uma série de medidas moralizantes para todos os grupos sociais, principalmente o abandono dos vícios e do alcoolismo, vistos também como fatores responsáveis pela miséria humana nos sentidos material e moral. Assim como Tolstoi, Rebouças defendia a democratização do acesso à terra e a educação da população como caminhos pertinentes para combater a miséria. Mas e a questão racial e a “alma africana”, estariam elas totalmente ausentes d e sua apropriação do tolstoísmo?

O OUTRO OCIDENTE: MODERNIDADE E DUPLA CONSCIÊNCIA NO ATLÂNTICO SUL

Como vimos, Tolstoi foi pioneiro ao questionar as pretensões de superioridade da cultura europeia em relação às culturas tradicionais agrárias do campesinato russo, criticando sua classificação como arcaicas ou atrasad as. Ao voltar-se para um cristianismo laico, rompia com o liberalismo e com certa ideia de progresso, construindo outra possibilidade de Ocidente, verdadeiramente universal porque justo, sem hierarquias e pretensões de superioridade que refundavam sistemas de casta e sem exploração da miséria.

Até onde identificamos nos escritos de André Rebouças, a primeira menção a si como “Tolstoi africano” foi em um trecho de carta a Nabuco copiado no volume 1 do Registro de Correspondência, em 5 de abril de 1891, em que se contrapunha, como Tolstoi africano, a nada mais nada menos que D. Pedro II, um Tolstoi coroado e germano. Poderiam viver juntos, perguntava?

Ledes a inclusa cópia da carta do nosso Bom Imperador para aconselhar-me se devo ou não ir para sua companhia em Cannes. O Taunay chama a D. Pedro II Tolstoi coroado. Você, em Petrópolis, deu-me fama de Tolstoi. Agora resta a decidir com o teu critério Macaulay [opinião de nosso Hilário] se devem viver juntos um Tolstoi germano e um Tolstoi africano, ainda com muita ferocidade de Otelo.

Alcunhar-se como Tolstoi já era em si uma demarcação crítica da ordem liberal individualista prevalecente, que não conseguia superar os “castismos” nem impedir a desigualdade e os monopólios. Era também afirmar a possibilidade de convivência democrática entre diferentes almas nacionais; entre um germano coroado e um africano “ainda com muita ferocidade de Otelo”, referência ao personagem de Shakespeare.

Uma vez na África, sem deixar de ser tolstoico, precisou afirmar ainda mais profundamente sua universalidade, precisou ser grego. Na África, Rebouças evoca, em sintonia com seus contemporâneos negros de língua inglesa no continente, a dupla consciência dos negros no Ocidente. Ali, falou como nunca sobre sua identidade racial e sobre a selvageria e barbárie da civilização ocidental. Em 3 de julho de 1893, anunciou da Cidade do Cabo, a Taunay, sua decisão de partir para Funchal, na Ilha da Madeira, como “novo Capítulo na Odisseia deste mísero Ulisses Africano”.

Paul Gilroy (2001GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001.: 52-63) utiliza a metáfora do Atlântico negro para pensar os efeitos do intenso intercâmbio de mercadorias, culturas e ideias que se deu entre os continentes banhados por esse oceano desde a vigência do tráfico negreiro, contribuindo para a formação de um sistema de comunicação transnacional na modernidade. Por meio dessa rede de trocas, as populações negras puderam desfrutar, desde o contexto da diáspora, de uma espécie de cultura híbrida (americana, caribenha, africana, europeia) não delimitada por identidades étnicas nem nacionais. Segundo o autor, seu livro é “essencialmente um ensaio sobre a inevitável hibridez e mistura de ideias” (Gilroy, 2001GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001.: 30).

Nesse sentido, o autor afirma que “as realizações intelectuais e culturais das populações do Atlântico negro existem em parte dentro e nem sempre contra a narrativa gloriosa do iluminismo e seus princípios operacionais” (Gilroy, 2001GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001.: 113). Tais reflexões remetem-nos diretamente às problematizações em torno das possíveis faces de André Rebouças. Em consonância com a análise de Paul Gilroy (2001GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001.), podemos vislumbrar uma coexistência entre elas. O autor argumenta que os intelectuais negros oitocentistas, sobretudo em situações de exílio, viagens ou deslocamentos, vivenciaram as tensões inerentes a essa dupla consciência enquanto experiência ambivalente da modernidade. Nesse sentido, de acordo com Gilroy (2001GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001.: 33),

esforçar-se por ser ao mesmo tempo europeu e negro requer algumas formas específicas de dupla consciência. Ao dizer isto não pretendo sugerir que assumir uma ou ambas identidades inacabadas esvazie necessariamente os recursos subjetivos de um determinado indivíduo.

Tais reflexões ajudam-nos a pensar nas diferentes faces de André Rebouças enquanto identidades inacabadas e em constante construção, como recursos que lhe permitiram se posicionar diante da variedade de conjunturas, algumas vezes fazendo uso seletivo delas, e outras vezes sobrepondo identidades particulares às universais ou vice-versa.

Em 9 de abril de 1893, ainda no contexto de seu exílio na África, André Rebouças escrevia a seguinte carta ao amigo Conrado Wismann:

Ainda não posso dizer quando voltarei à Europa, e, portanto, ao Hotel Bragança. Sou, em corpo e alma, meio brasileiro e meio Africano; não podendo voltar ao Brasil parece-me melhor viver e morrer na África. No entanto nada se pode afirmar por certo neste fim de século de bancarrotas e revoluções10 10 Carta de André Rebouças a Conrado Wismann, 9 de abril de 1893. Registro de Correspondência, v. 4. Fundação Joaquim Nabuco. .

No exílio, Rebouças expressou de diferentes maneiras esse duplo pertencimento, ambos ancorados na universalidade da raça humana, que lhe permitia conciliar sua identidade nacional de brasileiro, específica e particular, com a macroidentidade — racial e cultural — de africano, construída no Atlântico Negro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após esse percurso, é possível afirmar que o tolstoísmo de André Rebouças acomodou suas diferentes autocompreensões e favoreceu, por meio do teor religioso e universalista das ideias do escritor russo, um equilíbrio entre posições identitárias aparentemente contraditórias ou ambivalentes em sua experiência11 11 Esta é a hipótese central do projeto de pesquisa Escrita de si, leituras do outro: faces de André Rebouças no exílio (1889-1898), atualmente desenvolvido por Robert Daibert Jr. sob supervisão de Hebe Mattos, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. . O tolstoísmo adequava-se a seu reformismo social e fornecia elementos para que ele pudesse tecer críticas sociais profundas ao colonialismo europeu na África, ao escravismo, ao militarismo, ao clero e ao monopólio da terra no Brasil. André Rebouças identificava-se com Tolstoi tanto em relação a suas críticas aos rumos da civilização ocidental em suas formas de dominação quanto no que diz respeito às propostas do escritor russo voltadas para um ativismo social, que tentavam solucionar os problemas da população marginalizada e excluída. O ponto de contato central entre os dois era a defesa de mudanças profundas na estrutura fundiária que modificassem a condição de subalternidade dos marginalizados por meio da expansão do acesso à terra, acompanhada por um investimento educacional, por um projeto moralizador em termos de comportamento e pelo desapego ao dinheiro e ao consumo de bens materiais.

As cartas de exílio de Rebouças, desde a viagem africana, mas sobretudo aquelas produzidas em seus últimos anos de vida, em que ele se encontrava bastante doente e debilitado, são expressões do que Brigitte Diaz chamou de síndrome do velho trovador (Diaz, 2016DIAZ, B. O gênero epistolar ou o pensamento nômade: formas e funções da correspondência em alguns percursos de escritores no século XIX. São Paulo: EDUSP, 2016.: 107). Segundo a autora, nesses momentos, importa perceber o conteúdo do olhar lamentoso sobre “aquilo que se não é mais”, quando na autoconstrução aparecem sinais de um luto de si mesmo e de suas utopias (Diaz, 2016DIAZ, B. O gênero epistolar ou o pensamento nômade: formas e funções da correspondência em alguns percursos de escritores no século XIX. São Paulo: EDUSP, 2016.: 107). Para além da dimensão depressiva e psicológica que essas reflexões encerram, nelas é possível perceber o que Rebouças diz de suas utopias, que lugar dá a elas, que balanço produz de sua trajetória, de suas faces e de sua história.

O tolstoísmo de Rebouças configurou-se como forma promissora de acomodação de suas diferentes faces. Como espécie de estrutura guarda-chuva, esse pensamento acolheu tanto seu “coração africano” quanto seu universalismo. A mobilização do pensamento de Tolstoi a partir do final dos anos 1880 relaciona-se diretamente com a redefinição de seu pensamento racial e permite-lhe transitar, em base universalista e cristã, para um pensamento crítico da modernidade liberal. O teor religioso do discurso tolstoico permitiu certo equilíbrio entre posições aparentemente contraditórias ou ambivalentes, expressas na dupla consciência dos intelectuais negros na modernidade. Como um Tolstoi africano, André Rebouças buscava conciliar e acomodar as ideias pretensamente universais e racionais do liberalismo e do cristianismo com as expressões particulares de sua identidade negra, africana e brasileira. Por meio do tolstoísmo, ele encontrou, por um lado, uma forma de ser universal e ao mesmo tempo crítica das promessas liberais de felicidade; e, por outro, particular, como um brasileiro e africano desenraizado. A utopia tolstoica foi uma maneira encontrada por Rebouças para mover-se, de modo ambivalente, entre posições identitárias distintas. Essa posição utópica era seu lugar no mundo.

NOTAS

  • 1
    Idílio Africano VI — Ideado em Krokodil Poorta, 23 de maio de 1892; e scrito em Barberton a 30 de maio de 1892. Publicado no ano seguinte em: Rebouças (1893REBOUÇAS, A. Por que o negro africano canta, ri e dança? Cidade do Rio, 4 fev. 1893.).
  • 2
    Carta de André Rebouças a Taunay, 12 de fevereiro de 1892. Registro de Correspondência, v. 4. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 3
    Volumes 1, 2 e 3 do Registro de Correspondência de André Rebouças. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 4
    Cartas de André Rebouças a Antônio Júlio Machado e a Taunay. V. 5. Registro de Correspondência de André Rebouças. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 5
    Revista de Engenharia, Rio de Janeiro, n. 194-204, set. 1888-fev. 1889.
  • 6
    Registro de Correspondência de André Rebouças a Alfredo Taunay, 15 de março de 1891. V. 1. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 7
    Carta de André Rebouças para Alfredo Taunay, 19 de setembro de 1891, Registro de Correspondência, v. 3. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 8
    Carta de André Rebouças para Alfredo Taunay, 19 de setembro de 1891, Registro de Correspondência, v. 3. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 9
    Carta de André Rebouças para Alfredo Taunay, 16 de junho de 1895, Registro de Correspondência, v. 8. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 10
    Carta de André Rebouças a Conrado Wismann, 9 de abril de 1893. Registro de Correspondência, v. 4. Fundação Joaquim Nabuco.
  • 11
    Esta é a hipótese central do projeto de pesquisa Escrita de si, leituras do outro: faces de André Rebouças no exílio (1889-1898), atualmente desenvolvido por Robert Daibert Jr. sob supervisão de Hebe Mattos, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
  • Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2022
  • Aceito
    16 Ago 2022
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