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INTELECTUAIS NEGRAS E NEGROS PARTÍCIPES DE NÚCLEOS DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS: PRÁTICAS E PRODUÇÕES TEÓRICAS

Black men and women intellectuals who participante in the Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros: practices and theoretical productions

Intelectuales negras y negros partícipes de Núcleos de Estudios Afro-Brasileños: prácticas y producciones teóricas

Resumo

O presente artigo objetiva compreender as práticas e a produção de conhecimento de intelectuais negras e negros partícipes de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros. Foram realizadas entrevistas com oito intelectuais negras(os) vinculadas(os) a instituições federais de ensino superior na região Sudeste e análise de duas produções teóricas de cada um dos sujeitos partícipes. Os resultados da pesquisa apontam para práticas de lutas antirracistas e produções teóricas protagonistas em rememorar sujeitos e coletividades negras.

Palavras-chave:
Intelectuais negras(os); NEABs; Antirracismo; Pensamento negro

Abstract

The present paper aims to understand the practices and the production of knowledge by black women and men intellectuals who are in the Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros. Interviews were carried out with eight black men and women intellectuals linked to federal institutions of higher education in the southeast region of Brazil. The analysis of two productions from each participant was also performed. The results of the research point to practices of antiracism struggle and theoretical productions protagonist in remembering both black people and black collectivities.

Keywords:
Black intellectuals; NEABs; Antiracism; Black thinking

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo comprender las prácticas y la producción de conocimiento de intelectuales negras y negros que participan en Núcleos de Estudios Afro-Brasileños. Fueron realizadas entrevistas con ocho intelectuales negras(os) vinculadas(os) a instituciones federales de educación superior en la región sudeste y análisis de dos producciones teóricas de cada uno de los sujetos participantes. Los resultados de la investigación apuntan hacia prácticas de luchas antirracistas y producciones teóricas protagonistas en la rememoración de sujetos y colectividades negras.

Palabras-clave:
Intelectuales negras(os); NEABs; Antirracismo; Pensamiento negro

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O conceito de intelectual1 1 Vide Williams (2007) e Wasserman (2015), que trazem importantes contribuições sobre o surgimento do termo “intelectual”. está em constante disputa e movimento. A ideia hegemônica de intelectual socialmente construída está associada à presença dos modernismos ocidentais no mundo. A representação do intelectual, no masculino, é voltada ao sujeito detentor de uma erudição necessária para ter seu discurso público legitimado a partir de algumas características desse sujeito — o domínio das regras cultas, o letramento, a intelligentsia e a contemplação fazem do intelectual alguém respeitado e legitimado publicamente.

A concepção de modernidades, neste trabalho, considera a diversidade de experiências históricas relativamente articuladas e de impactos diversos em diferentes espaços geográficos nos séculos XVIII e XIX. Esta leitura ancora-se em abordagens do fenômeno da modernidade como um acontecimento global, não restrito à Europa, que conectou de forma assimétrica e desigual diferentes pontos geográficos. As modernidades não se desenvolveram de forma similar, orientadas pelas promessas da emancipação advindas da luminosidade da razão. Embora a resistência fora a métrica presente na ação de diferentes grupos humanos não brancos que passam a ser inseridos nessa lógica, o projeto de incorporação de tais sujeitos ocorreu no avesso da ilustração e como parte da força motriz e combustível da modernização europeia (Gilroy, 2001GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. 34. ed. Rio de Janeiro: Ucam, 2001.; Mbembe, 2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2014.; Hall, 2016HALL, S. O Ocidente e o resto: discurso e poder. Projeto História, São Paulo, n. 56, p. 314-361, 2016.).

A ideia hegemônica de intelectual vem sendo rasurada por diversas(os) autoras(es), como Antonio Gramsci (2011)GRAMSCI, A. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos de 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., Edward Said (2005)SAID, E. W. Representações do intelectual: as conferências de Reith de 1993. Tradução: Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. e Marilena Chauí (2006)CHAUÍ, M. Intelectual engajado: uma figura em extinção? In: NOVAES, A. (org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19-43., que trazem uma perspectiva mais inclusiva, indagadora e emancipatória de intelectualidade. Entretanto há um silenciamento das questões de raça que atravessam a intelectualidade, além de outros marcadores, como gênero, etnia e sexualidade.

O processo de enegrecer a intelectualidade, que atravessa a compreensão de intelectual abstrata, desencarnada da existência racializada, é um ato político que diz da melanina, mas também da ocupação de espaços historicamente negados e de construção de novas epistemologias que, de fato, deem conta da complexidade da história do povo preto em diáspora e em diálogo com os ameríndios.

Nesse sentido, utilizamos o marcador racial, tendo como objetivo tratar sobre as práticas e concepções teóricas de intelectuais negras e negros partícipes de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) de instituições públicas federais do ensino superior na região Sudeste do Brasil.

Participaram da pesquisa oito intelectuais negras e negros2 2 A pesquisa foi aprovada por Conselho de Ética em Pesquisa e todas(os) as(os) colaboradoras(es) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. de NEABs localizados em instituições federais de ensino superior na região Sudeste. As instituições às quais esses sujeitos se vinculam estão situadas nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, presencialmente, com as(os) entrevistadas(os), que são pensadas(os) como colaboradoras(es) e partícipes da investigação, bem como análise de duas produções teóricas de cada um dos sujeitos.

No presente artigo, fruto de tese de doutorado, de forma a avançarmos em relação a uma concepção de intelectualidade negra, dialogamos com importantes produções teóricas que tratam sobre a temática. Os NEABs são espaços de resistência coletiva constituídos por esses sujeitos, espaço de referência, onde negras, negros e aliadas(os) da luta antirracista se encontram e se organizam politicamente. Num segundo momento, tratamos sobre as práticas e produções teóricas das(os) intelectuais negras(os) partícipes da pesquisa e os importantes deslocamentos que vêm provocando no âmbito universitário e fora dele.

INTELECTUAIS NEGRAS E NEGROS PARTÍCIPES DE NÚCLEOS DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS

O debate sobre intelectual negra e negro é uma questão viva e necessária. Trata-se de uma categoria que surge da tensão com as conceituações hegemônicas e rompe com ela demarcando a importância política e epistemológica do pertencimento racial, principal-mente quando este é associado ao compromisso com a luta antirracista, a necessária perspectiva de coletividade e a crítica a uma epistemologia hegemônica ocidentalizada.

Trata-se de uma construção racial, de gênero, etnia, classe e orientação sexual construída no contexto das relações desiguais de poder na sociedade e no campo da ciência que traz em si o estereótipo de alguém de inteligência excepcional, apartado dos problemas cotidianos, dos prazeres, um ser ensimesmado. Ou, por vezes, um ser totalmente desorientado em razão de sua inteligência excepcional e com escasso ou nenhum domínio da “razão” sobre as emoções.

Algumas autoras e alguns autores têm sido importantes para avançarmos na compreensão desse grupo heterogêneo que denominamos intelectualidade negra. Neste momento, ressaltamos bell hooks3 3 O nome da intelectual bell hooks será utilizado em letras minúsculas, conforme opção política da autora. (1995), Sales Augusto dos Santos (2008)SANTOS, S. A. dos. De militantes negros a negros intelectuais. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA, 6., 2008, Lisboa. Anais… Lisboa, 2008. p. 1-13. Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/71.pdf. Acesso em: 5 jul. 2016.
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, Nilma Lino Gomes (2010)GOMES, N. L. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SOUSA-SANTOS, B.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 492-516. e Evaldo Ribeiro Oliveira (2014)OLIVEIRA, E. R. Negro intelectual, intelectual negro ou negro-intelectual: considerações do processo de constituir-se negro-intelectual. São Carlos: UFSCar, 2014., que trazem contribuições importantes para o debate sobre as(os) intelectuais, bem como para o campo das relações étnico-raciais.

Sales Santos (2008)SANTOS, S. A. dos. De militantes negros a negros intelectuais. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA, 6., 2008, Lisboa. Anais… Lisboa, 2008. p. 1-13. Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/71.pdf. Acesso em: 5 jul. 2016.
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refere-se a negros intelectuais, ressignificando a intelectualidade somada à dimensão racial e incorporando a ética antirracista, em diálogo com os Movimentos Sociais Negros.

Negros(as) intelectuais são em realidade os(as) intelectuais de origem ou ascendência negra que sofreram ou sofrem influência direta ou indireta dos Movimentos Sociais Negros, adquirin-do ou incorporando destes uma ética da convicção antirracismo que, associada e em interação com uma ética acadêmico-científica adquirida ou incorporada dos programas de pós-graduação das universidades brasileiras, produz nestes(as) intelectuais um ethos acadêmico ativo que orienta as suas pesquisas, estudos, ações, bem como as suas atividades profissionais de professores(as) universitários(as) (Santos, 2008SANTOS, S. A. dos. De militantes negros a negros intelectuais. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA, 6., 2008, Lisboa. Anais… Lisboa, 2008. p. 1-13. Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/71.pdf. Acesso em: 5 jul. 2016.
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: 1).

De forma aproximativa, Oliveira (2014)OLIVEIRA, E. R. Negro intelectual, intelectual negro ou negro-intelectual: considerações do processo de constituir-se negro-intelectual. São Carlos: UFSCar, 2014. traz a proposta de utilizar a palavra composta “negro-intelectual”, pois são dois substantivos interligados, um adjetivando o outro, a partir de uma perspectiva de processo — ser negro e se constituir intelectual.

São negros porque nas experiências das pessoas desta pesquisa, constituem-se primeiro como tal, desde a infância, no seio familiar. São intelectuais porque foram se constituindo com compromisso com a comunidade negra, com os estudos escolarizados e universitários, com o estudo do Movimento Negro, da sociedade, da realidade vivida (Oliveira, 2014OLIVEIRA, E. R. Negro intelectual, intelectual negro ou negro-intelectual: considerações do processo de constituir-se negro-intelectual. São Carlos: UFSCar, 2014.: 167).

De acordo com Oliveira (2014)OLIVEIRA, E. R. Negro intelectual, intelectual negro ou negro-intelectual: considerações do processo de constituir-se negro-intelectual. São Carlos: UFSCar, 2014., as dimensões de lugar de origem, pertencimento étnico-racial, resistência nos seus espaços de atuação, coletividade, relação com a comunidade, bem como a descolonização do saber eurocentrado são elementos essenciais para se pensar os negros-intelectuais.

A utilização, neste artigo, do termo intelectual negro não desconsidera as contribuições dos autores supracitados, que invertem a composição do termo. A opção por trabalhar com a categoria “intelectual negra(o)” está ancorada na ideia de, em primeira instância, dar centralidade à dimensão de poder presente no uso preponderante e generalizado desse termo no imaginário social e acadêmico, o qual predominantemente se reporta apenas à relação das pessoas brancas com o conhecimento, o intelecto, apartadas de uma imersão em uma prática social e de um compromisso com ela. Trata-se de desafiar o padrão hegemônico presente na sociedade e no campo acadêmico que define quem pode ser e quem é considerada(o) intelectual. Ainda, a constituição ocidental do saber que restringe o lugar de intelectual a um determinado perfil racial, étnico, de gênero e de classe social.

As contribuições de Nilma Lino Gomes (2010)GOMES, N. L. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SOUSA-SANTOS, B.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 492-516. também são importantes, na medida em que a autora localiza o intelectual negro a partir de uma prática acadêmica que questiona a ciência clássica, assim como interpela a própria desigualdade na distribuição de conhecimento.

O intelectual negro é também aquele que indaga a ciência por dentro e problematiza conceitos, categorias, teorias e metodologias clássicas que, na sua produção, esvaziam a riqueza e a problemática racial ou transformam a raça em mera categoria analítica retirando-lhe o seu caráter de construção social, cultural e política. E ainda, é aquele que coloca em diálogo com a ciência moderna os conhecimentos produzidos na vivência étnico-racial da comunidade negra (Gomes, 2010GOMES, N. L. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SOUSA-SANTOS, B.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 492-516.: 500).

Já a partir de outro lugar, com contribuições extremamente relevantes para os estudos das relações étnico-raciais no Brasil, dialogamos com a intelectual negra norte-americana bell hooks (1995)HOOKS, B. Intelectuais negras. Estudos feministas, ano 3, p. 464-478, 1995. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/10/16465-50747-1-PB.pdf. Acesso em: 12 maio 2017.
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, que deixou em evidência uma perspectiva que traz a existência do ser intelectual negra, com um recorte de gênero muito bem definido. A autora aborda, especialmente, as dificuldades para uma mulher negra se tornar intelectual e em que sentido a organização societária afugenta as mulheres negras do trabalho intelectual.

Ao dizer de um contexto mais geral, hooks (1995)HOOKS, B. Intelectuais negras. Estudos feministas, ano 3, p. 464-478, 1995. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/10/16465-50747-1-PB.pdf. Acesso em: 12 maio 2017.
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reivindica contra a invisibilidade das intelectuais negras, que está arraigada no racismo, no sexismo e na exploração de classe. Assim, ser intelectual negra significa romper com essa estrutura opressora. A autora discorre, especialmente, sobre as intelectuais negras engajadas, que expressam um pensamento crítico e questionam o status quo.

Nas entrevistas, ao tratarmos sobre o conceito de intelectual negra(o), identificamos que essas dialogam entre si e com a produção acadêmica, ainda que com pequenas diver-gências. As produções de bell hooks são destacadas positivamente na Entrevista 02, com destaque para a ideia de intelectual negra engajada. Por outro lado, as Entrevistas 04 e 05 ressaltam as contribuições de Sales Santos (2008)SANTOS, S. A. dos. De militantes negros a negros intelectuais. In: CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA, 6., 2008, Lisboa. Anais… Lisboa, 2008. p. 1-13. Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/71.pdf. Acesso em: 5 jul. 2016.
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, mas entendem que a atualidade exige uma concepção mais alargada de intelectualidade negra.

As entrevistas 03 e 05 ressaltam o fato de, em primeira instância, o conceito de intelectual negra(o) referir-se a pessoas negras. “se ele simplesmente é preto, mas produz conhecimento na sua área, ele também é intelectual negro” (Entrevista 05). Ainda que não trabalhemos com essa concepção ressaltada na entrevista supracitada, é importante considerarmos a relação entre intelectualidade negra e a experiência de ser negra(o) em uma sociedade racista.

Além da produção de conhecimento que já caracteriza a intelectualidade, as lutas antirracistas são destaque na maioria das entrevistas – 01, 02, 04, 06 e 07. “É aquele que, de fato, se sente pensador, pesquisador na lógica de uma reflexão focada na dimensão da raça negra. E esse sentir pensador, pesquisador na lógica, pressupõe algum tipo de vínculo progresso com as questões ligadas à luta antirracista no Brasil” (Entrevista 02).

É importante dizer que o foco, neste momento, está associado a intelectuais negras(os) acadêmicas(os). A universidade é aqui considerada um dos lócus centrais de produção do conhecimento e também um espaço de poder. Entretanto a concepção de intelectual negra(o) aqui desenvolvida não se restringe a esse espaço, conforme reafirmaremos abaixo.

Atuando na universidade, na música, na literatura, nas artes, na política e em outros espaços, sujeitos negras e negros com posicionamentos políticos críticos, emancipatórios, concepções teóricas e de vida cujas reflexão e atuação na sociedade indagam poderes instaurados, denunciam, contribuem para a emancipação de raça, gênero, classe; sujeitos cuja história passa por apagamentos e que, ao se posicionarem criticamente, dão visibilidade às suas histórias e se tornam corporeidades presentes e insurgentes. Esses sujeitos são intelectuais negras e negros que atuam numa produção que vai além da academia.

Determinadas(os) intelectuais são aqui adjetivadas(os) como negras(os), com o intuito de referendar que tal prática está ancorada em um tipo particular de experiência, que neste caso é a vivência do ser negra(o) em uma sociedade racista, diferentemente do conceito preponderante de intelectual, que se apoia em um tipo particular de experiência de quem social e racialmente sempre ocupou os lugares de poder. Nesse sentido, a adjetivação refere-se a um posicionamento político e epistemológico.

É importante compreender, no momento histórico atual, a necessária afirmação de uma identificação racial estratégica desses sujeitos, trazendo para o debate público, político e acadêmico as experiências, as cosmovisões e os aprendizados da vivência nos movimentos sociais, as indagações à ciência e às relações de poder e a produção de conhecimento de sujeitos historicamente considerados, pelo racismo, inferiores, com baixa capacidade intelectual e vinculados apenas ao mundo da prática e nunca das ideias. Negras e negros pensam, agem, irrompem com os padrões racistas e produzem conhecimentos elaborados sobre os vínculos entre a exploração capitalista e o racismo. As mulheres negras trazem elaborações ainda mais potentes ao articularem raça, gênero, classe, orientação sexual.

Assim, ao adjetivar a palavra intelectual para falar de sujeitos pertencentes a um segmento étnico-racial que produz conhecimento vinculado a uma realidade social, política e cultural de combate ao racismo, subvertemos a lógica do universal, mostrando o quanto ele também é um particular, e damos a devida importância a outra particularidade que emancipa e não obstrui o sujeito. A raça e o racial, aqui adotados, são feitos numa perspectiva emancipatória e não biologizante e inferiorizante.

Sobre os NEABs, são espaços engendrados pela intelectualidade negra acadêmica e outros sujeitos aliados da luta antirracista, onde se desenvolvem atividades de ensino, pesquisa e extensão voltadas para as relações étnico-raciais.

A existência dos NEABs, a partir da organização e da mobilização das(os) intelectuais negras(os), e a polissemia com que se configuram demonstram que são experiências organizativas em movimento, que produzem energia, que deslocam ao mesmo tempo em que são deslocados, pela dinâmica das instituições e da própria sociedade. Não se trata de projetos acabados de NEABs, de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas e seus correlatos. Entretanto a dinâmica da instituição, dos sujeitos que a compõem — docentes, técnico-administrativos, discentes, comunidade externa —, as possibilidades de avanços e recuos, as demandas que tencionam esses Núcleos vão moldando essa complexa rede institucional, que tem sido protagonista no combate ao racismo dentro e fora das universidades e demais instituições de ensino onde se localizam.

Os NEABs têm se configurado como espaços de encontro, que se faz no ambiente acadêmico, com o intuito de enegrecer a produção de conhecimento, de ser referência para intelectuais negras(os) e não negras(os) nas universidades, que tematizam a questão étnico-racial e se dedicam às lutas antirracistas, de ser um encontro acadêmico, político e afetivo.

Os NEABs, eles se constituem como um produto desse ativismo negro dentro da universidade. E que conseguiu pautar a temática racial no sentido de rever o currículo, de rever procedimentos, de rever o acesso e a permanência de negros, de rever, do ponto de vista crítico e do ponto de vista político, o acesso e a permanência de negros dentro da universidade (Entrevista 07).

É importante essa referência territorial preta, para diferentes sujeitos negros que compõem as universidades, considerando o quanto essa instituição, mesmo com os avanços e as conquistas a partir das políticas de cotas, ainda é muito branca, elitista e pouco afeita a outros sujeitos, outras concepções teóricas e outras práticas.

Avançamos para a compreensão das práticas e da produção de conhecimento das(os) intelectuais negras(os), partícipes de NEABs e colaboradoras(es) da pesquisa realizada.

PRÁTICAS ACADÊMICAS E CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DE INTELECTUAIS NEGRAS E NEGROS INTEGRANTES DE NÚCLEOS DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS

Intelectuais negras e negros de NEABs, partícipes da pesquisa, têm suas práticas acadêmicas e produções teóricas intrinsecamente articuladas pela luta antirracista. Pesquisar sobre relações étnico-raciais foi uma das formas que encontraram de compreender a realidade desigual e opressora em que vivem, o que os possibilita criar estratégias de resistência. “Aí você tem que tomar uma decisão… Ou de assumir a exclusão, a negação, a invisibilidade… Ou de tomar uma outra posição, que é a de compreender e buscar as razões que estão na base dessa exclusão, dessa negação, dessa invisibilidade” (Entrevista 02).

Ter as relações étnico-raciais como investigação e como inscrição no corpo tem possibilitado a intelectuais negras e negros uma ressignificação das pesquisas, trazendo questionamentos sobre o imperativo da branquitude4 4 De acordo com Priscila Silva (2017: 27-28), “a branquitude é um construto ideológico, no qual o branco se vê e classifica os não brancos a partir de seu ponto de vista. Ela implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos. Tais vantagens são frutos de uma desigual distribuição de poder (político, econômico e social) e de bens materiais e simbólicos. Ela apresenta-se como norma, ao mesmo tempo em que como identidade neutra, tendo a prerrogativa de fazer-se presente na consciência de seu portador, quando é conveniente, isto é, quando o que está em jogo é a perda de vantagens e privilégios”. , a objetificação da população negra, o apagamento e a simplificação da sua história, bem como as hierarquizações, as inferiorizações e os alijamentos de negras(os) de espaços de prestígio social e de poder. Essa turbulência provoca mais do que a presença de corpos negros nas universidades.

Questionar e desnaturalizar a ausência de negras(os) nas universidades, e em outros espaços de poder, tendo em vista a histórica interdição do corpo negro, são atravessamentos provocados por esses sujeitos em um dos países mais desigual do mundo5 5 Em novembro de 2020, de acordo com o Jornal 247, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística afirmam que o Brasil é o nono país em desigualdade. O Índice de Gini, que mede concentração de renda, aumentou pós-golpe de 2016, que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff (IBGE, 2020). e que tem a raça como um dos fatores estruturantes de desigualdades e de não acessos.

Intelectuais negras e negros têm sido importantes no questionamento da meritocracia, pois trazem consigo outra noção de mérito e, consequentemente, de meritocracia. Problematizam a ideia de neutralidade e de objetividade, mensurável por meio de testes que seguem um determinado padrão e desconsideram os lugares desiguais de onde os sujeitos saem, assim como outros méritos que têm o potencial de somar na produção de conhecimento, como a capacidade criativa e a trajetória dos sujeitos.

A relação direta ou indireta com os Movimentos Sociais Negros potencializa, ainda mais, as presenças negras nas universidades. Recorremos a Nilma Lino Gomes (2017)GOMES, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017., quando afirma que o movimento negro é educador e de luta pelo combate ao racismo.

Importa-nos compreender a potência desse movimento social e destacar as dimensões mais reveladoras do seu caráter emancipatório, reivindicativo e afirmativo, que o caracterizam como um importante ator político e como um educador de pessoas, coletivos e instituições sociais ao longo da história e percorrendo as mais diversas gerações (Gomes, 2017GOMES, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.: 23).

O protagonismo da luta da intelectualidade negra brasileira, acadêmica ou não, tem gerado frutos importantes para as comunidades negras nas últimas décadas. Os estudos acadêmicos sobre relações étnico-raciais — que desmontam a lógica da democracia racial, que comprovam a inexistência de igualdades de acesso, em detrimentos sociais e raciais, e analisam o racismo como estruturante e estruturado da organização societária —, somados às diferentes estratégias de mobilizações, levaram a avanços que têm impactado a inserção negra na sociedade. Merecem destaque a Lei n° 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” na educação básica, e a Lei n° 12.711/2012, Lei de Cotas. São legislações que tocam diretamente a vida das comunidades negras.

Assim como há um protagonismo da intelectualidade negra (e dos Movimentos Sociais Negros) nas lutas mais amplas pela aprovação das ações afirmativas, identificamos o mesmo na implementação dessas políticas no âmbito das universidades, sendo os NEABs o lócus de referência nesses processos. Três aspectos dessa política aparecem com maior frequência — a implementação das cotas na graduação e na pós-graduação, as comissões de heteroidentificação e a aprovação de disciplinas sobre relações étnico-raciais. “O NEAB teve um papel muito importante para democratização da universidade, seja pelas lutas com bônus, pela implementação das cotas, cotas na pós-graduação” (Entrevista 03).

Para além dos diálogos, especificidades foram identificadas. O NEAB localizado em São Paulo é um dos primeiros do país, criado em 1991, o que lhe confere uma trajetória robusta, assim como reconhecimentos institucionais e entre a intelectualidade negra nacional. O segundo NEAB mais longevo, localizado em Minas Gerais, foi criado em 2002, em contexto bastante árido para tratar sobre ações afirmativas nas universidades, como fica em evidência na entrevista.

O segundo NEAB de Minas Gerais partícipe da pesquisa e o de São Paulo possuem uma diversidade grande de professoras(es), vinculadas(os) a diversos departamentos, além de técnicos administrativos e estudantes, o que possibilita maior diversidade de ações dentro e fora da universidade, assim como a ocupação de diferentes frentes de atuação. Tal consideração não se trata de hierarquizar os Núcleos, apenas ressaltar que há diferenças entre os que estão mais restritos a um único departamento e outros que têm uma ocupação mais expandida no âmbito da universidade.

Quanto às(aos) partícipes da pesquisa, a maior especificidade identificada está associada ao gênero das(os) entrevistadas(os). Nota-se que, entre as entrevistadas, é frequente a afirmativa de terem que provar a todo momento que são capazes para terem suas falas e práticas legitimadas. Além disso, a sobrecarga de trabalho, fazendo menção às demandas do trabalho e à necessidade de cuidar da família, é constante, considerando que o cuidar ainda é uma atribuição essencialmente feminina na nossa sociedade.

As potencialidades e os limites da intelectualidade negra na universidade são/estão em processo. Nesse sentido, não devemos desconsiderar que são sujeitos em luta, mas criar uma expectativa de “salvadores” também pode ser problemática, seja por limites dos próprios sujeitos individuais ou coletivos, seja pelos limites institucionais-estruturais. A presença de intelectuais negras(os) ainda é numericamente pouco expressiva e, muitas vezes, concentrada em cursos das áreas das ciências humanas e sociais aplicadas, assim como ocupa poucos espaços de poder na estrutura universitária.

Diante de uma estrutura que não se mobilizou para questionar sua hegemonia branca, a presença dessa intelectualidade negra acadêmica traz consigo, ainda, uma série de demandas relacionadas à luta antirracista que tendem a significar uma sobrecarga de trabalho para tais sujeitos, pois ainda temos muito a avançar no que tange a uma compreensão de que a luta antirracista não deve ser apenas de sujeitos negros.

O ativismo negro nas universidades, compreendendo os NEABs como espaço de encontro político, teórico e afetivo, tem sido importante pelos tensionamentos e pelas conquistas geradas no interior das universidades e fora delas.

A dimensão relativa à produção de conhecimento é central para avançarmos na compreensão do que vem marcando essa intelectualidade negra acadêmica, que surge especialmente a partir dos anos 1980/1990 no Brasil. A perspectiva apontada por Gomes (2010)GOMES, N. L. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SOUSA-SANTOS, B.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 492-516. acerca da centralidade da ressignificação da raça como categoria analítica estruturante para a compreensão das relações raciais na produção de intelectuais negras(os) é apropriada aqui como um dos elementos que marcam a produção de conhecimentos acadêmicos de tais sujeitos.

Os intelectuais negros, ao elegerem a ressignificação da raça, como categoria útil de análise para entender as relações raciais, colocam-se no terreno político e epistemológico de ‘desconstrução mental’, ressignificação e descolonização de conceitos e categorias. […] os intelectuais negros repolitizam a raça e ressemantizam-na (Gomes, 2010GOMES, N. L. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SOUSA-SANTOS, B.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 492-516.: 504).

A assertiva traz consigo a possibilidade de compreendermos que, por meio da atuação de intelectuais negras e negros, temáticas relativas às relações étnico-raciais, assim como às múltiplas e diversas experiências históricas negras, passem a ser reinterpretadas por pesquisadoras(es) que evidenciam a dimensão de raça como elemento estruturante para a interpretação da realidade sócio-histórica. Dessa forma, aspectos sociológicos e históricos de sociedades racializadas, como a brasileira, investigados na academia há algum tempo e tratados somente como objetos de investigação, são reinterpretados e ressignificados por sujeitos outrora numericamente pouco inseridos no circuito de produção de conhecimentos acadêmicos.

Esses sujeitos têm desenvolvido um trabalho de reflexão e conscientização que é um passo fundamental para desmascarar a lógica da harmonia racial, fortemente difundida e incorporada na realidade brasileira, criando e legitimando estudos que comprovam que o Brasil foi calcado e ainda se mantém estruturado em bases racistas, machistas e classistas.

As pesquisas têm sido realizadas em sintonia e diálogo com os Movimentos Sociais Negros. Os sujeitos negros não são colocados no lugar de objeto de pesquisa, mas coparticipantes na produção de conhecimento, movimento essencial no combate aos dualismos e subalternização de negras e negros, que são fundamentais na produção e reprodução do racismo.

É importante a afirmação de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Maria Lucia de Assunção Barbosa (1997)GONÇALVES & SILVA, P. B.; BARBOSA, L. M. de A. (org.). O pensamento negro em educação no Brasil. São Carlos: Edufscar, 1997. sobre a não aceitação, por parte de negras e negros, da subordinação que lhes foi imposta.

É conhecido o estereótipo, fundamentado em ideologias racistas, de que o negro não pensa, é apenas força bruta, emoção, tendo muita habilidade para esportes e atividades ligadas à música. Estudos e ponderações como as de Fanon, de Freire, de Nkomo e outros demonstram que a desconsideração aos conhecimentos produzidos pelos grupos oprimidos, as tentativas de fazer-lhes crer na sua falta de capacidade intelectual e assumir a postura de consciências dependentes, embora causem muitos danos, não os mantêm indefinidamente – muito menos completamente – subordinados ao opressor (Gonçalves & Silva e Barbosa, 1997GONÇALVES & SILVA, P. B.; BARBOSA, L. M. de A. (org.). O pensamento negro em educação no Brasil. São Carlos: Edufscar, 1997.: 13).

As perspectivas positivadas dos saberes e das epistemologias negras como parte da experiência da negritude, historicamente, estiveram fora da academia, uma forma de epistemicídio. Sobre o conceito de epistemicídio, Sueli Carneiro (2005)CARNEIRO, S. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. 339f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. dialoga com o conceito de Boaventura de Sousa Santos como um instrumento eficaz e duradouro de dominação étnico--racial, ao negar a legitimidade da produção de conhecimento dos sujeitos que compõem os grupos dominados; assim, retira-lhes a afirmação como sujeitos de conhecimento. Entretanto a autora amplia o conceito ao afirmar que:

Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc. (Carneiro, 2005CARNEIRO, S. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. 339f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.: 97).

Diante da longa duração da presença da interdição e da desqualificação de saberes e conhecimentos (epistemes) de povos subjugados nos circuitos de produção de conhecimento acadêmico, consideramos pressuposto que a presença de intelectuais negras(os) na universidade, sujeitos cujos corpos foram inviabilizados e invisibilizados no interior da academia, possa provocar tensões, rasuras, fissuras, espaços de concorrência no interior da produção intelectual.

Passamos a olhar o campo a partir das lentes raciais, e isso nos faz interrogar as ausências, nos faz pensar o porquê só aquelas presenças e não outras, isso nos faz procurar outras bibliografias que não as que fomos formados. Nossos convidados, bibliografias, disciplinas, tudo isso vai causando um tensionamento teórico-metodológico, que não se encerra em nós, nos intelectuais negros e negras que estão exercendo funções de professores(as), mas que reverberam (Entrevista 01).

Se a assertiva sobre a inserção de “outros sujeitos” na ambiência acadêmica provoca o desenvolvimento de “outras pedagogias”, como menciona Miguel Arroyo (2014)ARROYO, M. G. Outros sujeitos, outras pedagogias. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2014., é importante considerarmos que a agência6 6 Pereira e Pereira (2021: 38) afirmam sobre agência: “Um dos aspectos mais relevantes acerca da ideia e do sentido de agência está relacionado, portanto, à intencionalidade com que os sujeitos sociais agem e produzem ação para transformarem dadas estruturas. Sob este ponto de vista, agência é a capacidade e/ou desejo para transformar que supõe, por outro lado, deter o poder para fazê-lo ou para mobilizar recursos ao seu projeto, seja ele em um período imediato ou ao longo do tempo”. das(os) intelectuais negras(os) tem o potencial de incorporar ao conhecimento acadêmico elementos pertencentes às perspectivas positivadas dos saberes e epistemologias negras, fissurando a hegemonia epistemicida na universidade brasileira.

Ao questionar a universidade e suas estruturas de poder, ao interpelar a produção de conhecimento colonial e denunciar as estruturas racistas sobre as quais foi constituída a sociedade brasileira, intelectuais negras e negros deslocam estruturas, articulando produção de conhecimento e luta antirracista.

O corpo violentado, golpeado, humilhado é o mesmo corpo que ginga, que não se acomoda, que ressignifica a raça, que ressignifica a história, que combate o apagamento, o silenciamento, a subalternização de seus corpos e seus seres, mas que também não compactua com a política do esquecimento.

Sobre o imperativo do não esquecimento, ressaltamos a contraposição à lógica do silenciamento e do apagamento, evidenciando o protagonismo e a participação ativa de negras e negros em diversos aspectos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira, por um lado, e a contraposição ao apagamento das violências e opressões às quais negras e negros foram submetidas(os), individual e coletivamente, por outro. As experiências de opressão não devem cair no esquecimento, como muitos negacionistas desejam, para que a premência das políticas afirmativas não seja questionada e para que não seja admitida a expectativa de voltarem a existir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia hegemônica de intelectual, forjada na modernidade ocidental e alastrada de forma violenta, a partir da Europa, para outras partes do planeta, e que ainda se mantém forte-mente presente no imaginário social, está associada ao homem branco, culto, letrado e afastado da realidade social. As indagações acerca desse conceito não são fenômenos recentes, entretanto a inscrição negra na categoria intelectual ocorre a partir de intelectuais negras e negros, como bell hooks, Patrícia Hill Collins, Sales Augusto dos Santos, Nilma Lino Gomes e Evaldo Ribeiro Oliveira.

A concepção de intelectual negra(o) que guia esta pesquisa vai além do mundo acadêmico e está associada a posicionamentos críticos e emancipatórios, a práticas que contribuem para emancipação de raça, gênero e classe. São corporeidades presentes e insurgentes. A luta antirracista, a perspectiva de coletividade, a crítica à branquitude presente nas epistemologias hegemônicas ocidentalizadas são movimentos que têm marcado a intelectualidade negra acadêmica nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 1990.

Dizer sobre intelectuais negras e negros trata-se de uma afirmação estratégica, considerando a ideia de poder presente nas representações da intelectualidade, bem como a possibilidade de ressignificar e reposicionar conceitos e lugares sociais dualistas e hierarquizantes.

Os NEABs são espaços negros necessários nas universidades, de encontros teóricos, políticos e afetivos para negras, negros e aliadas(os) da luta antirracista. Nacionalmente, formam uma importante e complexa rede de combate ao racismo e à desigualdade racial, dentro e fora das universidades.

Os questionamentos das estruturas universitárias e suas lógicas hierárquicas, supostamente objetivas e neutras, têm possibilitado a ressignificação a partir de lógicas mais inclusivas e democráticas. Nesse mesmo sentido, a produção acadêmica tem possibilitado avançarmos na reinterpretação da experiência histórica negra, negando a simplificação da leitura objetificada de negras(os) na história, bem como rememorando a presença de sujeitos e coletividades negras.

Ressaltamos que esta pesquisa vem se somar àquelas(es) que vieram antes, que são resistência, que têm lutado, dentro e fora da academia, para que os caminhos se abram para inscrição potente de negras e negros na sociedade. Neste momento, permitimo-nos citar Abdias do Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Kabenguele Munanga, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Nilma Lino Gomes e tantas(os) mais que possibilitam que hoje seja possível dizer, na ambiência universitária, de intelectuais negras e negros.

Finalizo com a ancestralidade, com a coletividade, com a resistência, com o esperançar presente nas palavras da intelectual negra Conceição Evaristo:

Todas as manhãs junto ao nascente dia ouço a minha voz-banzo, âncora dos navios de nossa memória.

E acredito, acredito sim que os nossos sonhos protegidos pelos lençóis da noite ao se abrirem um a um no varal de um novo tempo escorrem as nossas lágrimas fertilizando toda a terra onde negras sementes resistem reamanhecendo esperanças em nós.

Todas as manhãs (Evaristo, 2017EVARISTO, C. Todas as manhãs. In: EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017. p. 13.: 13).

NOTAS

  • 1
    Vide Williams (2007)WILLIAMS, R. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução: Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 464. e Wasserman (2015)WASSERMAN, C. História intelectual: origens e abordagens. Tempos Históricos, v. 19, n. 1, p. 63-79, 2015. https://doi.org/10.36449/rth.v19i1.12762
    https://doi.org/10.36449/rth.v19i1.12762...
    , que trazem importantes contribuições sobre o surgimento do termo “intelectual”.
  • 2
    A pesquisa foi aprovada por Conselho de Ética em Pesquisa e todas(os) as(os) colaboradoras(es) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
  • 3
    O nome da intelectual bell hooks será utilizado em letras minúsculas, conforme opção política da autora.
  • 4
    De acordo com Priscila Silva (2017SILVA, P. E. da. O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo. In: MÜLLER, T. M.; CARDOSO, L. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris, 2017. p. 19-32.: 27-28), “a branquitude é um construto ideológico, no qual o branco se vê e classifica os não brancos a partir de seu ponto de vista. Ela implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos. Tais vantagens são frutos de uma desigual distribuição de poder (político, econômico e social) e de bens materiais e simbólicos. Ela apresenta-se como norma, ao mesmo tempo em que como identidade neutra, tendo a prerrogativa de fazer-se presente na consciência de seu portador, quando é conveniente, isto é, quando o que está em jogo é a perda de vantagens e privilégios”.
  • 5
    Em novembro de 2020, de acordo com o Jornal 247, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística afirmam que o Brasil é o nono país em desigualdade. O Índice de Gini, que mede concentração de renda, aumentou pós-golpe de 2016, que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff (IBGE, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Brasil é o nono país mais desigual do mundo. Brasil247, 2020. Disponível em: https://www.brasil247.com/economia/ibge-brasil-e-o-nono-pais-mais-desigual-do-mundo. Acesso em: 24 ago. 2021.
    https://www.brasil247.com/economia/ibge-...
    ).
  • 6
    Pereira e Pereira (2021PEREIRA, A.; PEREIRA, V. Miradas sobre o poder: A nova agência política do movimento negro brasileiro (2004-2021). Revista Brasileira de História, v. 41, n. 88, p. 33-56, 2021. https://doi.org/10.1590/1806-93472021v41n88-04
    https://doi.org/10.1590/1806-93472021v41...
    : 38) afirmam sobre agência: “Um dos aspectos mais relevantes acerca da ideia e do sentido de agência está relacionado, portanto, à intencionalidade com que os sujeitos sociais agem e produzem ação para transformarem dadas estruturas. Sob este ponto de vista, agência é a capacidade e/ou desejo para transformar que supõe, por outro lado, deter o poder para fazê-lo ou para mobilizar recursos ao seu projeto, seja ele em um período imediato ou ao longo do tempo”.
  • Fonte de financiamento: nenhuma.

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  • WILLIAMS, R. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução: Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 464.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2022
  • Aceito
    23 Ago 2022
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