Acessibilidade / Reportar erro

Globalização financeira

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

André de Melo Modenesi

Doutorando do IE/UFRJ

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: R. General Polidoro, 69/801 - Botafogo Rio de Janeiro - RJ - CEP 22280-004 E-mail: modenesi.eco@globo.com

Ferrari Filho, F.; Paula, L. F. Globalização financeira; ensaios de macroeconomia aberta. Petrópolis: Vozes, 2004, 646p.

Após o colapso do sistema de Bretton Woods, na década de 1970, o sistema financeiro internacional passou por intensas transformações. Destaca-se o processo de desregulamentação (liberalização) dos mercados financeiros, patrocinado pelo FMI nos anos 1990 - ou a adoção das chamadas reformas estruturais de cunho liberalizante. Este processo, aliado à revolução da tecnologia da informação,

A crença de que a livre mobilidade de capitais resultaria em uma maior eficiência na alocação dos capitais e, conseqüentemente, traria importantes benefícios, principalmente para os países em desenvolvimento, não se materializou. Ao contrário, durante os anos 1990 verificou-se uma sucessão de crises cambiais e financeiras justamente nos países que supostamente mais se beneficiariam com a abertura financeira: México, Sudeste Asiático, Rússia, Brasil e Argentina.

Os benefícios do processo de liberalização financeira têm sido contestados por muitos economistas. F. Ferrari Filho e L.F. de Paula chamam atenção para a inexistência de uma correlação positiva entre a liberalização da conta de capitais e a taxa de crescimento do PIB. Dentre os problemas associados à globalização financeira geralmente são destacados: i) a perda de autonomia na condução da política econômica; e ii) um maior grau de interdependência entre as economias, ampliando-se as possibilidades de contágio (ou transmissão) de crises cambiais e financeiras entre os países. Diante da gravidade dos efeitos negativos da globalização financeira, os organizadores do livro postulam a necessidade de alguma forma de regulação dos fluxos internacionais de capitais.

O livro apresenta uma visão alternativa à teoria econômica ortodoxa - tanto do ponto de vista teórico quanto aplicado (i.e., proposições de política econômica) - das principais questões da economia internacional diante da globalização financeira. Mas não se trata de um corpo teórico unificado ou de um modelo. A despeito de não ser um manual de economia internacional, constitui-se em um conjunto coeso e orgânico de artigos escritos por economistas heterodoxos. A maioria é formada por representantes da escola pós-keynesiana, mas também há autores que desenvolvem algumas contribuições à la Marx e Kalecki.

Apesar da pluralidade teórica existem importantes pontos de convergência entre os autores: os mercados não devem operar livremente de toda e qualquer forma de regulação. Ao contrário, os autores crêem que o Estado deve ter participação ativa para garantir a obtenção de determinados resultados (maior eqüidade, estabilidade, eficiência etc.) sempre que o mercado não se mostrar capaz de produzi-los livremente.

O caráter heterodoxo que caracteriza essa abordagem da globalização financeira se fundamenta nos axiomas da: i) endogenidade da moeda; e ii) não-neutralidade da moeda. Adotar esses axiomas significa negar dois dos principais postulados da teoria econômica ortodoxa: i) a dicotomia entre os setores real e monetário; e ii) a lei de Say.

São 16 capítulos agrupados em quatro partes: i) Globalização financeira e economia aberta: implicações teóricas e de política econômica; ii) Arranjos institucionais internacionais, Fundo Monetário Internacional e blocos regionais; iii) Crises cambiais, bolhas especulativas e reforma do sistema monetário internacional; e iv) Ajustamento macroeconômico, poupança externa e crises cambiais na América Latina.

O capítulo, "Riscos e implicações da globalização financeira para a autonomia de políticas nacionais", de J. Kregel, merece destaque. Kregel contesta aquilo que identifica como um mito: a concepção de que o investimento direto estrangeiro (IDE) é preferível às demais formas de investimento, como os empréstimos externos e o investimento de portfólio. Segundo ele, essa crença se fundamenta em dois pilares: i) o IDE é uma forma de investimento de mais longo prazo e, portanto, os seus fluxos são menos voláteis (notadamente com relação aos investimentos de portfólio); e ii) ao IDE não estão associados pagamentos de juros, como no caso dos empréstimos bancários. Assim, os fluxos de IDE se constituiriam em uma forma especialmente benigna de capital externo que, além de pouco volátil e menos oneroso, funcionaria como um mecanismo de difusão tecnológica entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. O autor nega essa tese ressaltando que em razão das inovações financeiras é impossível diferenciar entre os três tipos de investimento externo. Finalmente, Kregel ressalta a importância de uma instituição internacional - autônoma dos governos nacionais - que atue como emprestador de última instância.

No segundo capítulo, "'Financeirização' da riqueza, inflação de ativos e decisões de gastos em economias abertas", L. Coutinho e L. G. Belluzzo mostram como a intensa ampliação da riqueza mobiliária tem afetado as decisões de consumo e de investimento nas economias desenvolvidas, notadamente nos EUA. Eles concluem que a ampliação da participação da riqueza financeira nos portfólios das famílias tende a exacerbar os ciclos econômicos.

Nos dois últimos capítulos da primeira parte, S. Dow e O. Canuto formulam modelos fundamentados na teoria monetária keynesiana. Em "A teoria monetária pós-keynesiana para uma economia aberta", Dow apresenta um modelo de economia aberta. No capítulo "Mobilidade de capital e equilíbrio de portfólios", Canuto desenvolve uma abordagem do equilíbrio de portfólios.

A segunda parte se inicia com dois capítulos sobre o sistema financeiro internacional e o papel do FMI, escritos por F. Cardim de Carvalho ("Mudanças no papel e nas estratégias do FMI e perspectivas para os países emergentes") e por M. Aglieta ("O FMI e a arquitetura internacional"). É particularmente interessante a análise feita por Cardim acerca da evolução do papel e das estratégias adotadas pelo FMI, desde sua criação até os anos 1990, quando essa instituição "mudou diametralmente seu modo de definir a sua própria missão." (p. 200). Originalmente, o Fundo tinha a função de gerenciar o sistema de pagamentos internacional e seus principais clientes eram economias desenvolvidas, com problemas no balanço de pagamentos. Nestes casos, o FMI impunha como condicionalidades (aos desembolsos de seus empréstimos) a adoção de políticas recessivas de contenção da absorção interna que, via redução das importações, corrigia o desequilíbrio externo. Após o colapso de Bretton Woods, a clientela do Fundo passou a se concentrar no mundo subdesenvolvido, cujos problemas eram considerados de natureza mais estrutural do que nos países desenvolvidos. Em linha com essa mudança, as condicionalidades associadas à tomada de recursos do FMI passaram a incluir não apenas metas quantitativas, mas também qualitativas. Foi a partir daí que o Fundo passou a patrocinar as chamadas reformas estruturais liberalizante, em linha com o chamado Consenso de Washington.

Nos dois últimos capítulos dessa parte abordam-se os blocos regionais. P. Arestis e M. Sawyer analisam a condução da política econômica na União Econômica e Monetária Européia (UEM) no capítulo intitulado "União econômica e monetária européia..." . Os autores alertam para a inexistência de instrumentos de política econômica disponíveis para remediar o problema do desemprego na Europa. Com o objetivo de contornar esse problema, Arestis e Sawyer sugerem mudanças no Banco Central Europeu (BCE) e no Pacto de Crescimento e Estabilidade. Essas mudanças deveriam contemplar a superação do viés antiinflacionário que, conjugado com as metas de austeridade fiscal (que limitam o déficit público dos países a 3% de seu PIB), tem restringido seriamente a autonomia dos membros da UEM na condução da política econômica. Os autores afirmam que o BCE deve possuir outros objetivos macroeconômicos além da estabilidade de preços, como a obtenção do pleno emprego e de elevadas taxas de crescimento do PIB. Além disso, reclama-se um papel mais ativo dessa instituição na regulação do sistema financeiro, que também deveria exercer a função de emprestador de última instância. De acordo com os autores, assim seria possível reverter a tendência crescente da taxa de desemprego, verificada nos países do bloco.

M. L. Mollo e A. Amado encerram essa parte com o capítulo "Globalização e blocos regionais...". As autoras discutem as vantagens e desvantagens da liberalização econômica e da globalização financeira. Mollo e Amado mostram que quanto maior o grau de liberalização entre os países membros de um bloco regional, maior a concentração do sistema bancário.

Na terceira parte, destaca-se o capítulo de P. Davidson, "Especulação cambial e moeda internacional: Tobin versus Keynes". Ele considera que a adoção do imposto Tobin não é suficiente para evitar as conseqüências negativas da alta volatilidade dos fluxos de capitais. Além de afirmar que a cobrança de um imposto sobre os movimentos internacionais de capitais "elevará apenas marginalmente o custo da especulação." (p. 344), o autor considera que essa medida geraria custos não desprezíveis para o comércio exterior, podendo assim reduzir o fluxo internacional de mercadorias. Inspirado no Plano Bancor, elaborado por Keynes para a conferência de Bretton Woods, Davidson propõe a criação de uma instituição monetária internacional que possibilitasse: i) dinamizar a demanda global; ii) gerenciar um mecanismo de ajuste do balanço de pagamentos que seja automático e recíproco (evitando-se a chamada assimetria do ajuste, que caracterizou o sistema de Bretton Woods); iii) monitorar e controlar os fluxos de capitais; e iv) garantir um adequado volume de liquidez internacional.

A. J. Alves Júnior, F. Ferrari Filho e L. F. de Paula assinam o capítulo "Crise cambial instabilidade financeira e reforma do sistema monetário internacional". Eles apresentam uma proposta de reforma do sistema monetário internacional com base nas idéias de Keynes e nos trabalhos de P. Davidson. Com esse propósito os autores prescrevem a adoção de: i) regime de câmbio relativamente fixo; ii) controle da conta de capitais; e iii) políticas macroeconômicas expansionistas.

G. Dimsky, em "Bolhas de ativos e crises em Minsky: uma abordagem espacializada", analisa o papel das bolhas de preços de ativos na criação e propagação das crises financeiras do Japão e da Coréia. Trata-se de uma adaptação da teoria de Minsky sobre crises financeiras fundada no conceito de "espacialização". Dimsky chama atenção para a necessidade de se levar em conta "fronteiras econômicas espaciais" dentro de uma determinada economia. Ele ressalta que a existência de desequilíbrios nos movimentos de capitais entre regiões de um mesmo país ("interfronteiras") constitui potencial fonte de instabilidade financeira, independente do ciclo econômico.

No capítulo "Bolhas, incerteza e fragilidade financeira", J. L. Oreiro apresenta uma abordagem pós-keynesiana (baseada no conceito de fragilidade financeira de Minsky) da teoria sobre bolhas de preços de ativos financeiros. Oreiro propõe que as bolhas decorrem de dois fatores: i) mudança endógena no "estado de confiança" quanto a capacidade de as firmas honrarem seus compromissos (com os bancos comerciais); e ii) uma elevação do grau de fragilidade financeira da economia.

A quarta parte se inicia com o capítulo "Crescimento econômico com poupança externa?", escrito por L. C. Bresser-Pereira e Y. Nakano. Os autores chamam atenção para os riscos associados à estratégia de desenvolvimento econômico adotada pelos países latino-americanos na década de 1990, que se fundamentou na liberalização dos fluxos de capitais e no endividamento externo - em linha com o que os autores identificam como os dois Consensos de Washington. Nesses países freqüentemente se conjugam os seguintes fatores: i) a sobrevalorização de suas moedas; ii) a manutenção de taxas reais de juros elevadas; e iii) elevados déficits na conta corrente do balanço de pagamentos. Particularmente interessante é a identificação de um ciclo cambial, que se inicia com a adoção de uma âncora cambial, cuja adoção configura uma forma de populismo econômico. No apêndice é apresentado um teste econométrico que mostra evidências de que o crescimento econômico é pouco sensível à poupança externa, notadamente nos países endividados.

J. Lopez, no capítulo "A estratégia da modernização, crises e ajustamento nas economias latino-americanas", trata da estratégia de modernização adotada pelos países da América Latina, com base nos casos do Chile e do México.

O capítulo "Vulnerabilidade externa e ataques especulativos: a experiência brasileira recente", escrito por L. F. de Paula e A. J. Alves Júnior, é especialmente relevante visto que trata da experiência brasileira no período de implantação do Plano Real. Os autores desenvolvem um índice de fragilidade financeira externa com base em uma amostra que compreende o período 1992-1999. Os dados apontam uma crescente fragilidade da economia brasileira, notadamente a partir de 1996-1997. Este processo culminou na crise cambial de 1999 que, segundo os autores, teria ocorrido em razão: i) do impacto negativo (contágio) das crises do Sudeste Asiático e da Rússia; e ii) da deterioração dos fundamentos macroeconômicos - notadamente o comportamento adverso das contas externas - e, portanto, um elevado grau de fragilidade da economia brasileira (ampliando sua vulnerabilidade a mudanças na conjuntura internacional). Estes elementos conjugados teriam, por sua vez, desencadeado iii) o processo de deterioração das expectativas dos agentes financeiros quanto à capacidade de o governo sustentar a política econômica (em particular, a âncora cambial).

O último capítulo do livro trata do caso da Argentina. Em "Crescimento, estabilidade e crise da conversibilidade na Argentina", J. M. Fanelli analisa a brusca reversão da fase de expansão econômica experimentada pela economia argentina durante o período 1991-1998. O autor considera que o baixo grau de utilização dos recursos produtivos - por trás da reversão do ciclo expansivo - é explicado notadamente pelo colapso da "infra-estrutura institucional e contratual" do país, após o abandono do conselho da moeda. Esta espécie de falha institucional aumenta o grau de incerteza dos agentes econômicos; conseqüentemente, são reduzidos os incentivos para que os agentes tirem "melhor proveito dos recursos disponíveis".

Em suma, trata-se de um livro indicado para quem busca uma abordagem alternativa à teoria econômica ortodoxa para as principais questões colocadas pela globalização financeira. A relevância desta obra reside no fato de trazer rica contribuição para o debate contemporâneo sobre a globalização financeira. Os organizadores ressaltam que: "a globalização vem alterando de forma importante a relação entre mercados e os Estados nacionais, torna-se então necessário repensar as formas através das quais esses últimos possam intervir de maneira mais efetiva por intermédio de políticas mais progressistas." (p. 11). Sem dúvida, o livro cumpre o seu objetivo: contribuir para o aprofundamento da discussão - tanto do ponto de vista teórico quanto com relação à prescrição de medidas de política econômica - sobre os impactos da globalização financeira.

(Recebido em janeiro de 2005. Aceito em abril de 2005).

  • 1 Castells, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
  • 1
    culminou na
    globalização financeira. Esta se caracteriza, notadamente, por uma drástica intensificação dos fluxos de capitais internacionais - i.e., uma elevação de seu volume e de sua velocidade de circulação - que tendem a constituir um
    único mercado mundial de moedas e de crédito.
  • Endereço para correspondência:

    R. General Polidoro, 69/801 - Botafogo
    Rio de Janeiro - RJ - CEP 22280-004
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
    Departamento de Economia; Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Av. Prof. Luciano Gualberto, 908 - FEA 01 - Cid. Universitária, CEP: 05508-010 - São Paulo/SP - Brasil, Tel.: (55 11) 3091-5803/5947 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: estudoseconomicos@usp.br