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MEMÓRIA, CONSCIÊNCIA E LITERATURA INDÍGENAS: VOZES REVELADAS

INDIGENOUS MEMORY, CONSCIOUSNESS AND LITERATURE: REVEALED VOICES

MEMORIA, CONCIENCIA Y LITERATURA INDÍGENA: VOCES REVELADAS

O artigo Literatura Indígena: entre memórias, escrito pelas pesquisadoras Eliana Márcia dos Santos Carvalho e Renata Lourenço dos Santos (2022CARVALHO, Eliana Márcia dos Santos; SANTOS, Renata Lourenço dos: Literatura Indígena: entre memórias, Educação em Revista, Belo Horizonte, 2022.), trata da literatura produzida por povos indígenas e, também, como esses povos fazem o registro desse tipo de produção, a fim de se efetivarem como produtores de conteúdo, ou seja, como escritores das reais vivências deles. Ademais, é importante ressaltar o seguinte: a pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica. Assim, ela enfatizou os teóricos indígenas e efetuou uma análise de trechos de obras de autores indígenas e, além disso, utilizou alguns recursos audiovisuais utilizados por autores indígenas. A divisão do texto acontece em duas partes e cada uma delas utilizou subseções, a saber: 1. Do social à literatura, 2. Indígenas e a literatura, seguidas das considerações finais - Concluindo, mas sem acabar e, também, contou com as referências bibliográficas, com o objetivo de fundamentar o artigo.

Na introdução do texto, Do Social à Literatura, Carvalho e Santos mencionam as décadas de 70 e 80 do século XX e argumentam que tais décadas foram bem marcantes para os povos indígenas do Brasil. Por essa razão, elas descrevem os movimentos realizados nessa época e, com o intuito de justificar tal importância, fazem uma citação na qual existe a seguinte afirmação: “foi um período extremamente rico, principalmente no que diz respeito às mobilizações indígenas” (Baniwa, 2006BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: MEC; Unesco, 2006.. p. 73).

Elas continuam, ainda na introdução do texto, relatando que a luta em favor dos direitos indígenas culminou na conquista dos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988. De forma suscinta é declarado na Constituição Federal de 1988BRASIL. Constituição (1988). Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973. Dispões sobre o Estatuto do Índio.1973.: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Nesse período, há a promoção de um considerável avanço do movimento indígena, com o aparecimento de representações e bases diversas organizadas. Isso tudo em inúmeras associações para tal fim.

A título de acréscimo, é relevante mencionar nesta resenha a seguinte questão: posteriormente à promulgação da Constituição Federativa Brasileira de 1988, surgiram inúmeros documentos oficiais, com a finalidade de estabelecer padrões igualitários no tratamento das minorias no Brasil. Estes relacionados à educação. Alguns exemplos: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, promulgada em 1996. Além disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs foram publicados em 1997 e 1998. Ademais, houve o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Tal referencial foi lançado pelo MEC em 1998. Já em 2007, surgem os Cadernos da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Enfatizamos que o terceiro número trata sobre a Educação Escolar Indígena.

A seguir, no artigo, é registrado o ponto acerca dos Indígenas e a Literatura. Nele, discute-se sobre os indígenas e as primeiras obras sobre esses povos. Elas citam um movimento cultural que, por bastante tempo, ocupou um pretenso lugar de literatura indígena no Brasil. Esse movimento contava com poesias, ficções etc. Porém, conforme Carvalho e Santos, tudo mencionado acerca desse movimento, reportava aos leitores das obras desse tipo de literatura um personagem muito diferente da realidade, isto é, um índio de traços bastante caricatos. Ademais, mostrava um personagem muito idealizado e muito distante aos olhos dos autores das obras literárias, já que eles eram homens brancos e letrados.

Em outras palavras, esse tipo de literatura denotava uma literatura indigenista de cunho romântico. Representantes dessa literatura foram Gonçalves Dias e José de Alencar. Nas obras desses escritores são mostrados índios de características extremamente idealizadas, como por exemplo: bravura, coragem, fidelidade e uma grande dedicação às tradições da época. Com isso, tais autores buscavam uma figura representativa da identidade brasileira. Entretanto, tudo isso configurava-se em uma enganadora visão de nossas origens.

Posteriormente, na parte sobre a Literatura Indígena, Carvalho e Santos revelam o conceito de literatura indígena. Nesse quesito, elas referenciam alguns autores, com o propósito de definir tal questão. São eles: Olívio Jekupé, Graça Graúna e Daniel Munduruku. Desse modo, a literatura indígena é conceituada:

aqueles textos escritos, ilustrados e idealizados pelos próprios indígenas, de dentro de suas vivências, sejam elas nos espaços rurais ou urbanos, e sejam individualmente ou de autoria coletiva, em sua maioria estimulados e iniciados como forma de registro das histórias orais dos avós, avôs, anciões e conhecedores da história local onde vivem os autores dessa literatura. (Carvalho e Santos, 2022CARVALHO, Eliana Márcia dos Santos; SANTOS, Renata Lourenço dos: Literatura Indígena: entre memórias, Educação em Revista, Belo Horizonte, 2022., p. 6).

Neste momento do texto, acreditamos ser importante relembrar a voz de Roland Barthes (2007BARTHES, Roland (2007). Aula. São Paulo: Cultrix.): “ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente de linguagem”. No nosso entender, a real literatura indígena descrita no artigo corrobora com essa revolução permanente da linguagem. Essa linguagem pode e deve expressar, por meio da literatura indígena, um contato com a temática indígena de forma mais revolucionária e, consequentemente, os saberes, as memórias e as vozes desses povos são realmente ouvidas, reveladas e valorizadas.

Em seguida, as pesquisadoras afirmam que Eliane Potiguara foi a primeira representante pública feminina na literatura indígena e expôs o poema “Identidade indígena”, em 1975, como uma maneira de registrar sua trajetória e de sua família. Além disso, o impresso pioneiro desta literatura foi em 1994 com a publicação do livro Todas As Vezes que Dissemos Adeus de Kaká Werá Jekupé. Tal livro foi uma inspiração para as próximas publicações e traz relatos do autor sobre a suas vivências entre os dois mundos, o mundo da aldeia e o mundo branco.

Subsequentemente, as autoras discutem no artigo o texto nativo, a literatura nativa e a literatura indígena. Por isso, faz-se necessário enfatizar que autores e autoras indígenas produzem literatura, com a finalidade de preservar suas origens e com o objetivo de mostrar que a literatura é uma das formas de representar a memória, o saber e a diversidade de seus povos. Com isso, em nosso entender, a literatura nasce, também, de sentimentos. Por essa razão, o termo literatura indígena é mais representativo, visto que fortalece, muitas vezes, registros autorais e bastante imbuídos de sentimentos, valores e desejos de quem está inserido na história. Além de tudo, tais registros são feitos permeados de reais visões e reais vivências representadas pelas pessoas incluídas no contexto histórico.

Depois, no texto, Carvalho e Santos apontam vários exemplos para mostrar, de maneira mais real, a literatura indígena. Vejamos alguns deles: a) a realização de entrevistas e registros feitos pelos professores indígenas nas comunidades nas quais essas pessoas estavam inseridas e com as pessoas de referência das histórias e saberes locais, b) a escrita da história de alguns povos, numa transcrição possível da vasta oralidade presente, c) o papel da escola situada nas comunidades indígenas, exercendo um pilar construtivo na produção literária desses povos.

Além disso, as autoras revelam alguns exemplos bastante pertinentes nesse percurso, tais como: i) a criação, em 2004, do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (NEArIn), ligado ao Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI); ii) a presença de alguns autores na criação do NEArIn, a saber: Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Graça Graúna, Edson Kayapó, Cristino Wapichana e Olívio Jekupé; iii) a referência de outros escritores e escritoras presentes no encontro em 2004: Kaká Werá Jekupé, Lia Minapoty, Márcia Wayna Kambeba, Cacique Juvenal Payayá, Ailton Krenak, Glicélia Tupinambá e Julie Dorrico.

Outro ponto considerável no texto de Carvalho e Santos revela o fato de que, em 2003, a Lei 10.639/03 entrou em vigor que alterou a Lei de Diretriz da Educação (LDB) e trata da inserção obrigatória do ensino da História e Cultura Afro-brasileira em todos os anos de ensino. Já em 2008, a Lei 11.645/08, que inclui a temática indígena em todo o currículo escolar, particularmente nas áreas de educação artística, literatura e história brasileira. Ademais, em 2008, a Organização da Nações Unidas (ONU) proclamou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, reconhecendo a necessidade urgente de respeitar e promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas.

Tudo isso, foi mais um estímulo à escrita indígena no Brasil. Continuando nesse sentido, as pesquisadoras registram no texto exemplos bem valiosos de como os indígenas brasileiros começaram a usar diferentes tipos de registros, a fim de revelar a autoexpressão desses povos. Ademais, elas descrevem, apropriadamente, mais detalhes sobre a questão do texto nativo indígena. Exemplos e detalhes esses que valem a pena ser lidos no artigo das autoras.

Nas considerações finais, denominada pelas autoras: Concluindo, mas sem acabar, Carvalho e Santos manifestam suas vozes revelando que, depois de séculos de saberes acumulados e, muitas vezes violados em seus direitos fundamentais, os povos indígenas brasileiros registram, de inúmeras maneiras, o que escutam em suas aldeias, o que dizem suas memórias, afirmando-se como autores de suas próprias histórias. Isso tudo, em línguas nativas desses indivíduos e, também, em língua portuguesa. Outrossim, eles publicam livros, declamam poesia, exibem seus filmes, realizam lives nas redes sociais, dentre outras formas de interação social. Desse modo, segundo elas, esses povos comunicam-se por meio das rádios e/ou buscam e produzem informações em diferentes sites. Ainda no que se refere à conclusão do artigo, Carvalho e Santos convidam os leitores para uma apropriada reflexão. Nela, elas argumentam o seguinte ponto: a literatura indígena possui o intuito de despertar, em diversas pessoas, uma visão realística dos povos indígenas e, por consequência, do Brasil.

Por conseguinte, recomendamos a leitura do artigo Literatura Indígena: entre memórias, de Eliana Márcia dos Santos Carvalho e Renata Lourenço dos Santos. Uma razão para essa leitura: esse texto oferece-nos um excelente esclarecimento acerca da visão estereotipada sobre os indígenas brasileiros. Visão essa ainda divulgada e reproduzida pela mídia brasileira e, em nossa compreensão, particularmente, por algumas instituições do sistema escolar brasileiro.

Como bem argumenta Lima (2005LIMA, A. C. S. Os povos indígenas na invenção do Brasil: na luta pela construção do respeito à pluralidade. In: Lessa, C. (Org.). Enciclopédia da brasilidade: autoestima em verde amarelo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 218-231.) parece ainda existir um "arquivo colonial". Dito de outro modo, a existência de um artefato cultural destinado a conservar, guardar, classificar, ordenar e preservar algumas questões incoerentes sobre a história dos povos indígenas. Tal artefato teria o intuito de abstrair dos povos indígenas diversas concepções e muitos fatos de representação da própria identidade desses povos.

Além disso, uma outra razão para a leitura do artigo seria porque tal ação contribui para o conhecimento, a divulgação e a valorização das autoras e dos autores indígenas. Ademais, colabora para a existência de mais e mais discussões relevantes sobre a temática da literatura indígena no Brasil. Vale salientar que, embora já existam excelentes trabalhos publicados nessa área, outros podem, também, ampliar a publicação de artigos tanto sobre o panorama da situação sociopolítica dos índios no Brasil quanto sobre a produção literária desses povos.

Por fim, essas pesquisadoras conseguiram mostrar, vividamente, em todo o artigo, uma situação que, em nossa interpretação e análise, deslinda como as vozes dos povos indígenas brasileiros revelam, atualmente, saberes, memórias e diversos tipos de literatura. Também, o foco do artigo pode auxiliar algumas reflexões e ações, isso por parte de pessoas envolvidas em busca de melhorias nos currículos da educação básica no Brasil, no que se refere a esse assunto. Em vista disso, pode existir alguns avanços no processo de ensino e de aprendizagem nas escolas brasileiras através da inclusão, cada vez mais, de questões como a diversidade humana, a história e a multiculturalidade de uma nação.

REFERÊNCIAS

  • BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: MEC; Unesco, 2006.
  • BARTHES, Roland (2007). Aula. São Paulo: Cultrix.
  • BRASIL. Constituição (1988). Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973. Dispões sobre o Estatuto do Índio.1973.
  • CARVALHO, Eliana Márcia dos Santos; SANTOS, Renata Lourenço dos: Literatura Indígena: entre memórias, Educação em Revista, Belo Horizonte, 2022.
  • LIMA, A. C. S. Os povos indígenas na invenção do Brasil: na luta pela construção do respeito à pluralidade. In: Lessa, C. (Org.). Enciclopédia da brasilidade: autoestima em verde amarelo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 218-231.

Editado por

Editora-Chefe: Suzana dos Santos Gomes; Editora Adjunta: Maria Gorete Neto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2022
  • Aceito
    16 Dez 2022
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