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Ensino de Ciências e Biologia: amores estranhos, não humanos, conversas & alianças com as plantas e outras formas de narrar a vida

RESUMO

Fauna, flora, ambientes e seres vivos, bem como as relações ecológicas, culturais e sociais entre eles e nós, humanos, e, igualmente, tudo aquilo que lhes/nos acontece em dados tempos e espaços, se articulam com o que chamamos de ensino de Ciências e/ou de Biologia no âmbito da educação escolar e universitária. Os não humanos articulam-se, de modo profundo, com a Literatura, as Artes Visuais, a Antropologia, as Ciências da Vida, a Divulgação Científica e, especialmente, com a vida cotidiana dos humanos – mas parecem afetar, ainda timidamente, as salas de aula escolares e as da formação docente. Nesta direção, o texto busca elencar possibilidades de encontros entre humanos e não-humanos na escola e fora dela.

Palavras-chave
Ensino de Ciências e Biologia; Educação Ambiental; Animalidades; Alianças Vegetais; Antropoceno

ABSTRACT

Fauna, flora, environments and living beings, as well as the ecological, cultural and social relations between them and us humans, and, equally, everything that happens to them/us in given times and spaces, are articulated with what we call Science and/or Biology education in the scope of school and university education. Non-humans are deeply articulated with Literature, Visual Arts, Anthropology, Life Sciences, Scientific Dissemination and, especially, with the daily life of humans – but they seem to affect, still timidly, school classrooms and teacher education classrooms. In this sense, the text seeks to list possibilities of encounters between humans and non-humans at school and outside it.

Keywords
Science and Biology Education; Environmental Education; Animalities; Vegetable Alliances; Anthropocene

Nos últimos tempos, vários eventos extremos – que funcionam como encontros perturbadores dos modos como compreendemos a presença dos não humanos entre nós – vêm desafiando os seres humanos. Sentimos na pele, no corpo, nas nossas subjetividades, nas nossas vidas cotidianas, os efeitos de uma pandemia provocada, entre inúmeros fatores, pela disseminação de um vírus de nome estranho, o SARS-CoV-2. Sobre o encontro entre os vírus e os humanos, o filósofo Paul Preciado (2020)PRECIADO, Paul. Aprendiendo del virus. El País, Opinión, 20 mar. 2020. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html?outputType=amp Acessado em: 1 jan. 2023.
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mostra, em um texto repleto de provocações, que nele se escancara “[…] a utopia da comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, externalizando seus sonhos de onipotência (e os retumbantes fracassos) de sua soberania política”. Mostra, ainda, que uma pandemia materializa, “[…] no âmbito do corpo individual, as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num determinado período”1 1 Veja mais na seção temática As lições da pandemia publicada em Educação & Realidade (2020), disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/i/2020.v45n4/. .

Para além da pandemia, assombram-nos muitos outros fenômenos (ou, talvez, pudéssemos chamar de “encontros”, “crises de convivência” etc.) desencadeados por uma decisiva participação antrópica, tal como as mudanças climáticas. Elas são enunciadas, tanto no âmbito acadêmico quanto no da cultura, como responsáveis pelo incremento das queimadas, das inundações, das migrações, dos riscos de extinção de muitas espécies da biodiversidade planetária. Assistimos, ainda, a uma vertiginosa e catastrófica expansão das grilagens de terra, dos garimpos ilegais, dos genocídios, de rios, de bichos, de plantas em áreas ambiental e culturalmente sensíveis do nosso país. E mais: temos presenciado o acirramento dos discursos de ódio, erigidos contra a diversidade cultural, os direitos de existência e voz das minorias, a ciência, a arte, a educação. Tudo isso cria tensões produtoras de adoecimentos físicos e mentais e produz violências massificadas. Cria, também, estranhamentos sobre o modo como posicionamos e tratamos os outros – todos aqueles outros, humanos ou não-humanos, com os quais compartilhamos este mundo. Santos e Dorneles (2022)SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos; DORNELES, Dandara Rodrigues. Corpo Humano – corpo animal (ou “o que a importância dada aos animais nos revela sobre as pessoas?”). Contrapontos, Itajaí, v. 22, n. 1, p. 45-60, 2022., biólogos inspirados nos trabalhos de Maria Esther Maciel, enfatizam que os modos como nos vinculamos com os não humanos ressoam nas relações estabelecidas entre nós, humanos. Trata-se, portanto, de uma “[…] chave interpretativa para a importância dada a alguns animais e a alguns animais humanos em detrimento de outros” (Santos; Dorneles, 2022SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos; DORNELES, Dandara Rodrigues. Corpo Humano – corpo animal (ou “o que a importância dada aos animais nos revela sobre as pessoas?”). Contrapontos, Itajaí, v. 22, n. 1, p. 45-60, 2022., p. 48). Assim, em meio às imagens de rios amazônicos “virando barro” com o avanço do garimpo, das árvores tombadas, da desertificação progressiva dos campos sulinos e das queimadas no bioma pantanal, assistimos também a vida (e seus mecanismos garantidores) se enfraquecer, dando lugar à morte e à necropolítica em todos os âmbitos.

Nesse contexto aterrorizante, vimos aflorar, paradoxalmente, pensamentos, sensibilidades, práticas de vida e de pesquisa em diferentes áreas – das Ciências Biológicas às Artes Visuais, passando pela Literatura, pela Antropologia, pelos Estudos Culturais – que têm lançado olhares diferenciais aos não humanos. Por um lado, pesquisas apontam para as inteligências e a profunda sensibilidade dos não-humanos, marcando suas resiliências, suas potências, suas forças; por outro, aprofundam perguntas éticas sobre o que temos feito conosco enquanto espécie do gênero Homo, abrindo brechas para a construção de modos mais “escutadores” e sensíveis de convivência entre nós e os não humanos, tornando visíveis os conflitos a serem enfrentados e apostando nas alegrias potenciais dos encontros.

Os efeitos de nossas ações como espécie são tomados como decisivos para inserir a Terra em uma nova era (com aspiração) geológica nomeada como Antropoceno, para enfatizar tal participação decisiva da nossa espécie nas transformações do planeta. Para sublinhar a visão de que toda e qualquer forma de vida pode vir a ser valorada como uma commodity, ter um valor financeiro e uma utilidade precificada, a bióloga Donna Haraway (2016)HARAWAY. Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. Tradução de Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy.ClimaCom, Campinas, ano 3, n. 5, 2016. apresenta o termo Capitaloceno. A estudiosa estadunidense da cultura aponta, ainda, para outras denominações dessa nova “era geológica”. A intitulação Plantationoceno sobreleva os modos históricos de produção agrícola, as plantations, as imensas monoculturas e suas conexões estruturais com o racismo. Já a noção de Chthuluceno faz alusão a um monstro, de um conto de ficção científica de H.P. Lovecraft, que sai dos subterrâneos para se apropriar de tudo e de todos. A pesquisadora reconfigura o sentido de Chthuluceno ao realçar a necessidade de levarmos em conta, em nossas ações cotidianas e práticas de vida e de pesquisa, a tudo e a todos. Viver no e pelo Chthuluceno tem a ver com o cultivo de afetos alegres, com a criação de mais e mais conexões expansivas da nossa capacidade de agir coletivamente. Ainda desdobrando os termos em debate, Malcom Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom. Uma Ecologia Decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: UBU, 2022. propõe o vocábulo Negroceno para podermos lidar, ao mesmo tempo, tanto com a fratura ambiental quanto com a fratura racial e colonial.

Animais, plantas, fungos, líquens, vírus, bactérias, todos os seres vivos conhecidos ou ainda por conhecer, bem como as relações ecológicas, culturais e sociais entre eles e nós, humanos, e, igualmente, tudo aquilo que lhes/nos acontece em dados tempos e espaços, se articulam com o que chamamos de ensino de Ciências e/ou de Biologia no âmbito da educação escolar e universitária. Tecem relações também com a divulgação científica e com a vida cotidiana – quando pensamos, especialmente, em artefatos, instâncias e práticas que não são, usual e formalmente, tidos como educativos, mas apresentam-se a nós, como afirma Giroux (2003)GIROUX, Henry. Atos Impuros: a prática política dos Estudos Culturais. Porto Alegre: ArtMed, 2003., como verdadeiras “máquinas de ensinar” a ser, estar e pertencer ao mundo vivo. Livros literários, poesias, programas de televisão, filmes cinematográficos, episódios de áudio em plataformas digitais, revistas de divulgação científica, blogs de ciência, postagens em redes sociais, jornais impressos e digitais, exibições artísticas em museus, nas ruas, na internet: há toda uma miríade cultural produzindo saberes diversificados sobre seres e ambientes em acelerada e vertiginosa transformação antrópica. Nossos próprios corpos também são mostrados, por vezes, como paisagens modificadas pelos seres desejados ou indesejados que nos habitam.

Entretanto, todas essas questões que nos chegam de diferentes campos de produção de saber – da Literatura, das Artes Visuais, da Antropologia, das Ciências da Vida – a partir de uma escuta atenta e sensível dos não-humanos, parecem (ainda!) afetar timidamente as salas de aula escolares e as da formação docente. Assim, para que pudéssemos vislumbrar como tais discussões vêm permeando as práticas pedagógicas e a pesquisa em Educação em Ciências e Biologia – e, sobretudo, para que pudéssemos entender como a educação escolar vem incorporando esses novos conhecimentos a respeito dos não-humanos articulados a aspectos literários, antropológicos, históricos, artísticos, éticos e políticos que organizamos esta seção temática.

Vimos sendo desdobradas, ao longo dos 14 textos selecionados, algumas perguntas e provocações formuladas quando da chamada pública de convite à submissão dos artigos: o que tais conhecimentos trazem em termos de novos modos de entender, de narrar e, portanto, de constituir o mundo? Que tipos de experiências vêm sendo realizadas em diferentes práticas pedagógicas que permitam compreender a vida, as diversas formas de vida, os ambientes e suas transformações de outras maneiras? Que possíveis posições ético-político-ecológicas nós, humanos, poderemos ou deveremos ocupar?

Esta seção temática abre com uma entrevista que fizemos por e-mail com a pesquisadora e ficcionista Maria Esther Maciel, que pode ser lida na página da revista Educação & Realidade2 2 O endereço da página na web é o que segue: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/. . Nela, amplia-se enormemente o alcance do debate proposto, visto que a autora, ao falar sobre zooliteratura, amplia as possibilidades de os autores criarem estratégias, por meio da escrita, para narrar as vidas animais a partir de seus “próprios pontos de vista” (ou seja, aqueles criados por meio das narrativas), bem como, no limite, empreenderem suas “próprias” (auto)biografias. Assim, trata-se, como nos demais textos que se seguem, de narrar outras histórias, possibilidades, modos de pensar e agir.

Dois artigos, no início da seção temática, apostam na escrita como uma força intensificadora da vida. Modos de escrever implicam, parecem querer dizer esses textos, em modos de existir. Para ampliar e variar a vida, há uma aposta no emaranhamento, na convivência, no descongelamento das existências insípidas e fixas que o Ensino de Biologia por vezes insiste em representar e inscrever através de textualidades normativas monocromáticas.

Em Abomináveis Amores entre Estranhos, Thiago Ranniery e Nathália Terra Barbosa defendem um Ensino de Biologia como a arte “de cultivar histórias emaranhadas”. Ao longo de um delicioso e consistente percurso textual, os leitores se deparam com diferentes intercessores, como, por exemplo, livros ficcionais específicos de Marguerite Duras e de Octavia Butler. O artigo se move no entorno de uma pergunta instigante: “[…] o que acontece às histórias contadas pelo ensino de biologia se tomadas desde o amor para e por entre criaturas que não geram a priori nenhum apelo ético?”.

No desejo de queerizar o Ensino de Biologia, o ensaio aposta em “uma materialidade afetiva emaranhada” a interromper os eixos normativos da heterossexualidade catapultados nas salas de aula por uma perspectiva linear e progressiva dos eventos biológicos, por uma ideia de inteireza e fortaleza corporal, pela integridade e manutenção fixa do binômio natureza e cultura, pela diferença vista como uma alteridade espelhada. Os autores nos lembram que não escrevem para salvar as sociedades ou para informar e denunciar algo que possa ser facilmente capturado pelas redes moralizantes da linguagem pedagógica. Se escreve eroticamente para performar a presença perturbadora de um estranho em nós. “Queer é uma questão de intimidade, de tornar-se íntima/o de outros seres, vivos e não vivos”. Ensinar biologia se confunde com o cultivo de histórias nutridoras de intimidades estranhas. São “[…] histórias de amor, isto é, de vulnerabilidade corporal a uma conexão erótica apaixonante, cuja infestação deixa marcas em nós, a despeito de nós”.

Em Modos de habitar o Mundo: uma Educação em Ciências com/em meio à/pela Vida, Tiago Amaral Sales, Fernanda Monteiro Rigue e Alice Copetti Dalmaso também nos ofertam um manifesto em defesa da criação intensa de vidas variadas, múltiplas e híbridas no ensino de biologia. Habitar um processo formativo, um texto, é viver em relação, em enredamento com outros seres humanos e não humanos, em hibridação. É permitir, dizem os autores, que um território se torne parte de nós, que uma paisagem faça corpo. O ensino de ciências e de biologia costuma entregar narrativas e histórias prontas sobre o mundo vivo, deixando pouca margem para uma experimentação corpórea, aventurosa, sensível e inventiva de outras e diferentes formas de existir. No ensaio-manifesto há uma defesa da mobilização e da ativação de forças escriturais que se desdobram a partir de uma pergunta ética e urgente: o que temos feito de nós mesmos no Antropoceno? O texto materializa tensionamentos e esperanças ao abrir brechas para escaparmos, argumentam os autores,

[…] das linhas solidificadas que se apresentam nos cotidianos educativos, instaurando espaços férteis ao sonho, ao desejo, à defesa das múltiplas formas de vida e, sobretudo, à possibilidade de misturar-se com elas, de ser outro e de experimentar a diferença como modo de habitação, capaz de ensaiar a si mesmo, em co-criação contínua com seres e coisas do mundo, outros jeitos de ser, outras perspectivas, outros vínculos corporais e mentais com possibilidades de aprender e de educar.

Dois outros artigos tecem relações com o campo de saberes e de práticas da Educação Ambiental. A frágil possibilidade de tecermos encontros entre eles reflete, em certa medida, a vertiginosa dispersão temática, procedimental e conceitual da própria área. Um dos artigos se articula mais densamente a uma Educação Ambiental conceituada no artigo como menor, não hegemônica, estabelecida nos interstícios, nas frestas, dos discursos utilitários, envolventes, capitalísticos e inebriantes da sustentabilidade. O outro texto tem na Educação Ambiental um eixo de análise explicativo da transformação histórica nas práticas pedagógicas escolares de uma professora-personagem que dedicou sua vida à defesa da biodiversidade.

Em Educação Ambiental Menor, Decolonialidade e Ativismo Artístico, Fabiana Aparecida de Carvalho e Leonardo Aparecido de Souza Bergamo, tornam visíveis produções artísticas que rasuram a dimensão colonial do saber espraiada nas sociedades através da noção de desenvolvimento sustentável. Ao estabelecer a hegemonia e o privilégio de certos modos de conhecer advindos de extratos sociais e econômicos privilegiados, o ideário do desenvolvimento sustentável se impõe utilitariamente colapsando as linhas compositivas das culturas minoritárias. Muitas delas são tecidas em processos, ainda que conflituosos, de convivência com diversos seres não humanos. Os processos artísticos de indígenas como Denilson Baniwa, Daiara Hori, Jaider Esbell, Emerson Munduruku são examinados no artigo e, com eles, se defende a força molecular do conhecimento sensível e político dos diferentes povos originários. Nesse movimento, o artigo cartografa, através da arte, uma Educação Ambiental menor, florestal. Uma das perguntas que atravessa o artigo, tramado conceitualmente de forma densa e consistente, é como pensar em outras relações socioambientais a partir da suspensão e da rasura de uma Educação Ambiental maior, colonial.

O artigo História Natural e Educação Ambiental em Diálogo no Ensino de Ciências, de Rodrigo Cerqueira do Nascimento Borba e Sandra Escovedo Selles, permite ao leitor uma deliciosa viagem pelas histórias de vida de Nilza Vieira, professora de ciências de uma escola pública do Rio de Janeiro. Em um tom biográfico, mas sem se deixar levar por uma construção personalista, a partir, sobretudo, de entrevistas e de fotografias, o ensaio nos apresenta um panorama dos entendimentos e das transformações das práticas pedagógicas relativas à proteção da biodiversidade no ensino de ciências nas décadas finais do século XX, a partir dos anos 1960 até a década de 1980. No texto, são discutidas as imbricações tênues de um ensino sobre a ecologia e a evolução dos seres vivos com um educativo-ambiental nascente nas sociedades na segunda metade do século XX e fortemente relacionado aos ideários contestatórios dos movimentos ambientalistas emergentes. São mostrados no artigo os repertórios de uma professora-ecologista que via o contato direto dos alunos com os animais não humanos como imprescindível para um ensino ecológico-evolutivo ativo em resposta às práticas pedagógicas passivas, memorialísticas e fixistas dos seres vivos. Segundo os autores, a professora Nilza Vieira “[…] viveu radicalmente o ideário ambientalista ao se empenhar para dirimir qualquer separação entre sociedade, cultura e natureza”. O ensaio pontua uma virada nas intencionalidades da professora a partir dos anos 1980, que passaram a estar cada vez mais relacionadas à preservação do meio ambiente e menos ao ensino da ecologia e da evolução dos seres vivos. E é exatamente nos anos 1980 que a Educação Ambiental começa a se constituir como área, sendo que na década seguinte ela se espraia pelas sociedades e se consolida como um campo de saberes e de práticas. Se inicialmente, argumentam os autores, a professora era movida por um “amor aos animais”, e isso a fez constituir um pequeno zoológico na escola, tornando sua própria casa parte dele; anos depois, o ideário de uma professora ambientalista foi se constituindo a partir da valorização dos cuidados éticos com os animais.

Em uma outra direção e perspectiva, o artigo Gradismo e Cladismo no Ensino em uma Análise Foucaultiana, também abre uma discussão sobre o ensino das classificações biológicas. Ana Laura Pureza Pantoja, Eduardo Paiva de Pontes Vieira, Silvia Nogueira Chaves mostram que há descontinuidades históricas entre diferentes modos de se pensar sobre a classificação dos seres vivos. O artigo se vale em suas análises dos pressupostos teóricos e epistemológicos de Michel Foucault mostrando as disputas de poder-saber em jogo entre os discursos da sistemática gradista ou evolutiva e da sistemática cladista ou filogenética. O texto oportuniza aos leitores a apreensão de tais diferenciações conceituais e incentiva um ensino de ciências e de biologia em que os fatos científicos são estudados a partir das condições que possibilitaram suas construções, mostrando que algo não é aceito, simplesmente, por ser tomado de saída e irrefletidamente como uma verdade descoberta. O estabelecimento de um fato científico passa pelo desnovelo de uma teia de fios, por tramas complexas de poder-saber, de participações de inúmeros seres, coisas, fenômenos e conceitos.

Um outro texto que conversa intimamente com a evolução biológica é o inspirador ensaio intitulado Lições da Evolução: uma Abordagem Transdisciplinar a partir da Arte. O artigo de Hugo Fortes desdobra o processo de criação de um vídeo artístico, o qual relaciona três diferentes narrativas:

[…] o aprisionamento de corvos na Torre de Londres ao longo dos séculos devido a superstições sobre seu poder mágico na manutenção do Império Britânico; a passagem de Darwin pela Terra do Fogo e sua percepção dos indígenas locais; e a convivência destes indígenas com lobos-marinhos que hoje encontram-se ameaçados devido ao aquecimento global.

Essas histórias estão entrelaçadas no vídeo pelo estranhamento do outro e seu subjugo por tessituras coloniais, antropocêntricas, capitalísticas. A análise do vídeo não se resume a significar essas histórias, que só são apreendidas pelo leitor através do acesso aos bastidores de sua criação, pela leitura do próprio ensaio. Como um artefato de arte, ele provoca estranhamentos, abre perguntas, nos afeta de distintos modos a partir do campo experiencial de cada espectador. De todo modo, nossa experiência de leitura se amplia enormemente se vemos o vídeo após a leitura do ensaio, que funciona como um mediador-provocador de outras percepções e sensações.

Em conversas com o campo da arte, também há o artigo chamado Pode um Museu de Ciências Sonhar? Notas sobre um Artefato Museal, de Vinícius Abrahão de Oliveira. O texto provoca rasuras e fugas de estereótipos sobre como era, é, ou poderia ser uma moradia sertaneja no Cerrado. A partir do Museu de Biodiversidade do Cerrado (MBC), localizado em Uberlândia, Minas Gerais, o autor sonha possibilidades fabulares de se criar histórias sobre os modos de habitar uma casa de pau a pique construída no museu, tipificada como “comum” aos modos de viver sertanejo no Cerrado. Nos convites ficcionais sonhados para os visitantes se mesclam artefatos audiovisuais, encenações, performances, objetos sensoriais como cheiros e texturas. Uma mescla de elementos que, segundo o autor, “[…] (re)montem e (re)signifiquem, na perspectiva de uma hibridação cultural, o morar e o viver no Cerrado”, procurando conectar linhas poéticas e visuais que abram sensações, perguntas e estranhamentos nos espectadores.

Os três textos seguintes têm em comum a urgência em repensar as relações entre humanos e plantas – e, mais: a urgência em reposicionar o ensino de Botânica como parte do pano de fundo que fomenta a própria crise ambiental, já que todas as ações humanas (incluindo, aí, as próprias ações docentes) podem ser intensificadoras dos processos climáticos naturais do planeta. Assim, a problematização do que alguns professores e professoras vêm fazendo em sala de aula – ao abordarem as plantas (e todos os não humanos, na verdade) de maneira hierarquizada, cientificista, utilitarista e descontextualizada, às vezes bastante distante da vida cotidiana – passa a ser uma importante ferramenta de desantropocentrização das relações (ou, ainda, uma ferramenta de descentramento do humano).

Em Encontros e Ficções: Conversando com as Plantas, Eduardo Silveira discute e problematiza as perspectivas utilitaristas, funcionalistas e comparativas que usualmente caracterizam as relações entre humanos e plantas e marcam o ensino de Botânica no Ensino Médio. Articulando uma série de conceitos potentes (“cegueira botânica”, “virada vegetal”, “sopro”, “biofonia” etc.), autores de diversas áreas do conhecimento (Ciências Biológicas, Literatura, Antropologia, Artes Visuais, Filosofia etc.) e exemplos da própria ação docente, Eduardo constrói possibilidades de encontro entre humanos, não humanos e plantas. Aponta, também, outras problemáticas frequentemente relacionadas ao ensino de Botânica na Academia, tais como os excessos na abordagem cientificista, a descontextualização e a consequente falta de interesse dos estudantes sobre as plantas, bem como menciona algumas raras abordagens alternativas – geralmente, empreendidas a partir dos Estudos Culturais em Educação. O texto é sensível e repleto de conceitos, ideias e reflexões sobre o modo como as plantas permeiam a vida cotidiana de humanos e não humanos. Ao final, o autor apresenta algumas produções artísticas de estudantes do Ensino Médio técnico, sob a forma de “conversas”, que mostram a possibilidade de os humanos se relacionarem com as plantas de outros modos – segundo ele, “[…] fazer parentesco e entregar-se a outras formas de narrar, em sala de aula”.

Outro texto que dialoga com as plantas é o de Susana Oliveira Dias, intitulado Alianças Vegetais – Espécies Companheiras de Ensino Diante do Antropoceno. Aliás, mais que um diálogo: o texto propõe que consideremos as plantas como “espécies companheiras” (conceito de Donna Haraway que, segundo Susana, “[…] exige um interesse em escutar os não humanos, uma disposição para ganhar efetiva intimidade com eles, um desejo e comprometimento em desenvolver procedimentos, ferramentas, materiais para que essas escutas sejam possíveis, reais e múltiplas”), indo além do que óbvia e historicamente fazemos com elas. Susana mostra possibilidades para pensar o ensino no limiar entre biologias e artes diante do Antropoceno, narrando seus processos de ensino (que mesclam árvores, rios, pedras, estrelas e animais), bem como as alianças que os humanos buscam estabelecer com as árvores (em aulas práticas de Botânica oferecidas a estudantes de Ciências Biológicas), com os autores e as obras de referência utilizadas na área, bem como com as obras de vários artistas – Marli Wunder, Fernanda Pestana, Sebastian Wiedemann, Marcelo Moscheta, Sara Melo, Tatiana Oliveira, Rodrigo Rodrigues, Mauro Tanaka, Silvia Figueroa e Paulo Teles. Os resultados de tais “alianças vegetais” são incrivelmente potentes e inspiradores!

Em Reencantar a Biologia: como Cresce uma Raiz quando Decidimos Olhar para Ela?, Fabíola Simões Rodrigues da Fonseca, inspirada fortemente em Deleuze, Guattari e nos escritos da filósofa e historiadora belga Isabelle Stengers, lança uma série de questionamentos para a Biologia que se ensina na escola e para os seus professores: “[…] como [o ensino de Biologia] tem entrado nesse rizoma da criação das sociabilidades? Como temos criado condições para experienciar com ela [a Biologia, a Botânica]?”. A autora narra um conjunto de experimentações botânicas feitas ao longo de um curso, e que servem “[…] como um convite para pensarmos com as plantas e não mais sobre elas”.

A Ciência e os Conhecimentos da ‘Cidade Invisível’, de Erica Mariosa Carneiro, avança sobre outras questões onipresentes no ensino de Ciências e Biologia: a Comunicação e a Divulgação Científicas. Por meio da análise da primeira temporada da série “Cidade Invisível”, a autora nos provoca a pensar a Ciência e a sua comunicação de outras formas:

[…] ao entender que a série não poderia ser de divulgação científica, justamente porque não é sobre Ciência, ignora-se que Ciência também é sobre cultura popular e histórias tradicionais, e que discutir o apagamento de uma cultura pela imposição do capitalismo e apresentar problemas ambientais enfrentados pelas comunidades tradicionais e sua dificuldade em manter sua cultura, tradições e estilo de vida também é falar de Ciência.

Ao misturar entidades de lendas brasileiras – tais como o Saci Pererê, o Boto cor-de-rosa e a Cuca – com os humanos em uma comunidade periférica do Rio de Janeiro, a série se mostra potente para “[…] estimular o pensamento crítico sobre qual cultura estamos deixando para as gerações futuras e quais culturas estamos apagando” e propiciar, no limite, discussões (inclusivas, produtivas, não-excludentes, “borradas”) entre os saberes científicos e populares.

Em Trazendo a Prática da Educação em Ciências e em Biologia de volta à Vida, Lilian Alves Schmitt, Alci Albiero Junior e Isabel Cristina de Moura Carvalho fazem uma série de provocações sobre práticas de ensino de ciências a partir de duas experiências: uma no âmbito da Educação de Jovens e Adultos, com uma turma de Ensino Médio de Biologia fortemente impactada pela pandemia do coronavírus; e a outra com alunos da pós-graduação stricto sensu, matriculados em disciplinas de metodologia científica e residência científica em Ciências Florestais e Ambientais do Amazonas. A partir de tais experiências e inspirados em autores como Timothy Ingold, Bruno Latour e Emanuele Coccia, o texto questiona: que vidas estão presentes no fazer pedagógico dos professores e professoras de Ciências e Biologia? Que vidas são essas que valem a pena serem vividas, aprendidas e ensinadas? Como “trazer a Biologia de volta à vida” no ensino de Ciências e Biologia? Como é possível repensar os métodos diante da contingência das práticas pedagógicas?

Em Drosophila melanogaster: un Punto de Encuentro de la Historia, la Filosofía, la Sociología y la Didáctica de la Biología, Julio Alejandro Castro Moreno e Irma Catherine Bernal Castro interrogam-se sobre um organismo-modelo extremamente relevante na pesquisa biológica – a mosca Drosophila melanogaster. Os autores, ao longo do texto, posicionam a mosca em uma encruzilhada de saberes – ou, como o próprio título diz, em um ponto de encontro entre a História e a Filosofia da Ciência, a Ecologia, a História Natural, a Sociologia e a Didática da Biologia, estabelecendo alguns aspectos que podemos aprender (e ensinar) com este pequeno e, muitas vezes, tido injustamente como insignificante ser. A leitura, repleta de aspectos históricos e culturais, é deliciosa tanto para os biólogos e biólogas que se aventuraram – ou que o fazem, ainda hoje – na “vida de laboratório” (já que a mosca é onipresente em laboratórios de Genética, Biologia Molecular e Embriologia ao redor do mundo, extensivamente criada, cruzada, testada, “mutada” e friamente descartada) quanto para aqueles e aquelas que já se encontraram com uma mosca da fruta dentro de casa, praticamente domesticada e entrelaçada às vidas dos humanos.

Finalmente, em Zoologia, Ambiente e Sociedade no Planejamento Didático da Formação Inicial, Gabriel de Moura Silva, Rosana Louro Ferreira Silva apresentam alguns dos resultados de sequências didáticas com foco na Zoologia elaboradas por estudantes de licenciatura, ao longo de cinco anos, em uma disciplina de graduação de uma universidade pública do estado de São Paulo. Tais sequências foram analisadas pelos próprios estudantes e organizadas em duas dimensões: socioambiental e de saúde. As atividades são interessantes e instigantes, envolvendo antropomorfização; utilização de saberes tradicionais; práticas diversas relativas à ética, à estética e às animalidades; a crítica aos zoológicos e às práticas da “coleta” de espécimes etc. Além disso, as percepções dos próprios estudantes mostram que a possibilidade de articulação entre saberes zoológicos e questões socioculturais é extremamente potente – especialmente em contextos curriculares e de sala de aula, onde prevalecem visões técnico-utilitaristas da natureza, entendimentos essencialistas (e fragmentados) da taxonomia e a lógica do ordenamento progressivo do conhecimento sobre a biodiversidade.

Ao partilharem suas experiências e reflexões, os autores e autoras aqui reunidos produzem um texto com múltiplas vozes – vozes que “[…] nos desequilibram, nos convidam para o embate e para o debate” (Serpa, 2018SERPA, Andréia. Conversas: possibilidades de pesquisa com o cotidiano. In: RIBEIRO, Tiago; SOUZA, Rafael; SAMPAIO, Carmem Sanches (Org.). Conversa como Metodologia de Pesquisa: por que não? Rio de Janeiro: Ayvu, 2018., p. 94) e que abrem novas possibilidades de encontros profícuos entre humanos e não humanos na escola e fora dela.

Notas

Referencias

  • FERDINAND, Malcom. Uma Ecologia Decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: UBU, 2022.
  • GIROUX, Henry. Atos Impuros: a prática política dos Estudos Culturais. Porto Alegre: ArtMed, 2003.
  • HARAWAY. Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. Tradução de Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy.ClimaCom, Campinas, ano 3, n. 5, 2016.
  • PRECIADO, Paul. Aprendiendo del virus. El País, Opinión, 20 mar. 2020. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html?outputType=amp Acessado em: 1 jan. 2023.
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  • SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos; DORNELES, Dandara Rodrigues. Corpo Humano – corpo animal (ou “o que a importância dada aos animais nos revela sobre as pessoas?”). Contrapontos, Itajaí, v. 22, n. 1, p. 45-60, 2022.
  • SERPA, Andréia. Conversas: possibilidades de pesquisa com o cotidiano. In: RIBEIRO, Tiago; SOUZA, Rafael; SAMPAIO, Carmem Sanches (Org.). Conversa como Metodologia de Pesquisa: por que não? Rio de Janeiro: Ayvu, 2018.

Editado por

Editor responsável: Luís Henrique Sacchi dos Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Aceito
    11 Abr 2023
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