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Wilson Cano - Um professor a serviço do Brasil

Tive o privilégio de conviver com Wilson Cano ao longo de quatro décadas. Primeiro, na condição de seu aluno no programa de mestrado do Departamento de Planejamento Econômico do Instituto de Ciências Humanas, na Universidade Estadual de Campinas, no início dos anos 1980, e, posteriormente, como seu colega docente no Instituto de Economia. Como professor, Cano foi um exemplo de dedicação e comprometimento. Trazia para a sala de aula o resultado de suas pesquisas e reflexões. Seu entusiasmo pelo conhecimento era contagiante. Muitas vezes o debate em sala de aula se estendia para a mesa de bar. Não surpreende que tenha arrebanhado uma legião de leais discípulos pelo Brasil afora. Como colega docente, Wilson foi uma referência de seriedade, integridade e compromisso com a causa de uma universidade pública. No Instituto de Economia, exerceu destacada liderança intelectual e política. Com a chegada do furacão neoliberal, tornou-se um baluarte da resistência ao falso brilho da modernidade. Não abandonou a trincheira do pensamento crítico e lutou até o fim para manter acesa a perspectiva da economia política. Quando a ofensiva reacionária deu início à estigmatização do pensamento crítico, transformou o CEDE - Centro de Estudos do Desenvolvimento Econômico - num refúgio para os que teimavam em remar contra a maré. No final da vida, mesmo aposentado compulsoriamente (pela idade), não abandonou a sala de aula e as atividades de orientação. Ainda combalido pela enfermidade, enquanto pôde, manteve o espírito ativo e uma intensa rotina de atividades.

Para Wilson Cano, a vida universitária era um sacerdócio. A dedicação era integral. A pesquisa sempre foi sua atividade prioritária. Investigador voraz e sistemático, vivia no meio de pilhas de livros, tabelas, relatórios de pesquisas, monografias de alunos, teses acadêmicas e fotocópias espalhadas pela sala. Seus trabalhos originais sobre a industrialização e o desenvolvimento regional tornaram-no uma referência na compreensão da matriz territorial da economia brasileira. Seus textos viraram bibliografia obrigatória nos cursos de formação econômica do Brasil, economia brasileira e desenvolvimento regional. Encarnou como ninguém as esperanças e as frustrações do capitalismo tardio. Acreditava piamente na possibilidade da industrialização brasileira e não se conformou com a rendição incondicional da burguesia às facilidades da globalização dos negócios.

Wilson Cano não se acomodava aos confortos da vida universitária. Foi um intelectual fortemente engajado nas lutas sociais e políticas de sua época. Apesar da agenda acadêmica carregada, que o levava a participar de seminários, bancas, palestras e conferências no Brasil e no exterior, participou ativamente do debate público. Por mais remoto e humilde que fosse a origem do convite, Cano atendia indistintamente. E assim, fez amizades em todos os cantos, certo de que suas andanças faziam parte de sua missão pedagógica como professor universitário e, sobretudo, como cidadão comprometido com a construção de uma sociedade livre, democrática e soberana. Durante a ditadura militar, Cano não se iludiu com a euforia do crescimento acelerado e não se intimidou diante da força bruta. Contribuiu ativamente para a crítica do famigerado modelo econômico que terminou com a economia brasileira mergulhada na crise da dívida externa, na hiperinflação e na maior estagnação da história moderna. No combate à ditadura militar, Cano foi um soldado do MDB de Ulysses Guimarães. No entanto, quando o partido chegou ao poder, não se deixou cooptar pelas suas benesses. Decepcionado com a absoluta anemia reformista do governo José Sarney, a partir de 1990, colaborou sistematicamente com o grupo de economistas do Partido dos Trabalhadores. Na contramão dos ventos liberais impulsionados pelos organismos internacionais, não tergiversou nem um segundo em advertir para os perigos da inserção subalterna na ordem global. No momento em que a maioria dos economistas celebrava a adesão ao Consenso de Washington, lançou um alentado livro alertando para os efeitos desastrosos da renúncia da soberania da política econômica sobre o futuro da América Latina (Cano, 2000CANO, Wilson. Soberania e política econômica na América Latina. São Paulo: Unesp, 1980.).

Quando Lula foi eleito Presidente da República, Cano não se deixou enfeitiçar com o brilho do poder. Ao constatar que o novo governo estava preso a compromissos que bloqueavam qualquer possibilidade de mudança nas estruturas responsáveis pela perpetuação dos privilégios, não poupou críticas à política econômica e afastou-se das atividades partidárias. Sem se impressionar com a aparência dos fenômenos e sem temer a solidão dos que têm compromisso inegociável com a busca da verdade, Wilson foi um dos primeiros a advertir para a gravidade da crise monumental que ameaçava os alicerces do sistema econômico nacional. No último período de sua fértil vida intelectual, radicalizou a denúncia dos efeitos desastrosos do neoliberalismo sobre a economia brasileira. Seus trabalhos mostrando os condicionantes do processo de desindustrialização, quando o senso comum celebrava entusiasticamente um suposto ciclo neodesenvolvimentista que mal se sustentou, permanecem como referências fundamentais para a compreensão da grave crise econômica que há anos abala a vida nacional.

Intelectual da velha estirpe, existencialmente comprometido com a busca do conhecimento e profundamente envolvido nas lutas sociais e políticas de seu tempo, Cano deixa como legado uma vasta obra, fies seguidores pelo Brasil afora e muita saudade entre seus amigos. Foi um dos grandes economistas de sua geração. Generoso, frugal e despretensioso, Wilson foi uma personalidade ímpar, que enriqueceu humanamente todos que o conheceram. Sua vida é um exemplo de honradez, inteligência e dignidade na luta pela construção de uma sociedade democrática e soberana.

Referência bibliográfica

  • CANO, Wilson. Soberania e política econômica na América Latina. São Paulo: Unesp, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2021
  • Aceito
    17 Ago 2021
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