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Adam Smith’s America: how a Scottish philosopher became an icon of American capitalism

Liu, Glory M. Adam Smith’s America:. how a Scottish philosopher became an icon of American capitalism. Princeton: Princeton University Press, 2002

A difusão do pensamento econômico em países e contextos específicos tem sido um uma das áreas mais representativas da pesquisa recente em história do pensamento econômico. No caso de Adam Smith, a profusão de conferências motivadas pelas comemorações de seu tricentenário de nascimento (em 2023) deve apenas confirmar essa orientação. Se lembrarmos que Smith publicou na segunda metade do século XVIII nos domínios da filosofia (Teoria dos Sentimentos Morais, 1759) e da economia (A Riqueza das Nações, 1776), e que suas anotações de aula sobre governo e jurisprudência (publicadas sob o título de Lectures on Jurisprudence) vieram a público entre o final do século XIX e o século XX, concluiremos que o prestígio do autor, somado ao amplo campo de abrangência de sua reflexão, não poderia deixar de ter aberto uma variada trilha de debates, através dos tempos. Acresça-se a revivescência do liberalismo econômico, nas décadas finais do século XX, e entenderemos que Smith tenha deixado de ser visto apenas como um economista e filósofo importante da segunda metade do século XVIII: para muitos, converteu-se em um arauto da ordem econômica moderna.

No plano acadêmico, um dos símbolos da apropriação do nome de Smith a causas políticas do final do século XX foi a construção do “Smith de Chicago”, uma interpretação de sua obra que, em especial na versão de economistas como Friedman e Stigler, situou o autor do século XVIII não apenas como o “pai” da ciência econômica, senão também como uma inspiração para a retomada de princípios liberais e de defesa dos “mercados”. Enfim, o nome de Smith passa a ser utilizado para o fortalecimento de demandas de política econômica do final do século XX, o que acresce a seu papel na história das ideias o peso enorme (e duvidoso) de patrono de interpretações e proposições em política e em economia em nosso tempo.

Naturalmente, a reapreciação acadêmica de Smith vai além disso. No campo da história do pensamento econômico, da filosofia, da política, Smith e o iluminismo escocês têm sido objeto de reconstituição e reapreciação nas universidades de todo o mundo. Não apenas críticas às simplificações do debate econômico, como uma onda intensa de estudos motivada em grande parte pela reedição das obras completas de Smith, no bicentenário da Riqueza das nações (1976). Pode-se dizer que ocorreu uma reapreciação profunda de sua obra, tanto no domínio econômico quanto no filosófico e político.

O livro de Glory Liu (Liu, 2002LIU, Glory M. Adam Smith’s America: how a Scottish philosopher became an icon of American capitalism. Princeton: Princeton University Press, 2002.) se dedica a um dos espaços nacionais desta reapreciação, os Estados Unidos. Embora tenha sido muito orientado – como fica claro nos capítulos finais – por um apanhado crítico do “Smith de Chicago”, o livro percorre um amplo caminho na recepção de Smith pelos norte-americanos, da Revolução Americana aos dias de hoje. Os capítulos, significativamente, abordam: o conhecimento e utilização de Smith pelos founding fathers (Hamilton, Madison, Jefferson, Adams), na constituição da nação norte-americana; a penetração da Riqueza das Nações e da Teoria dos Sentimentos Morais no universo acadêmico e no debate político nos Estados Unidos, na virada do século XVIII ao XIX; as conexões entre a ideologia sulista e escravista, antes e ao longo da Guerra da Secessão, e os princípios do “livre comércio” e os ensinamentos de Smith; o continuado debate sobre Smith, na virada do século XIX ao XX, em especial no meio acadêmico; o “Smith de Chicago”, tanto na versão original (Knight, Viner, Hayek) quanto na do pós-guerra (Stigler, Friedman); finalmente, a moderna scholarship sobre Smith, em particular após a publicação da edição crítica de suas obras completas, a partir de 1976.

Adam Smith’s America abarca, desse modo, tanto a utilização das obras de Smith na constituição da nação norte-americana e nos períodos subsequentes, como a penetração de seu nome na economia e mesmo na ideologia das diversas épocas, do final do século XVIII aos dias de hoje. Em outras palavras, abarca o conhecimento acadêmico e uma espécie de smithianismo fundamental, ou mesmo popular, que converteu o autor escocês em um arauto ideológico em temas como a constituição da nação, o livre comércio, protecionismo, escravidão, relações internacionais, e liberdade versus submissão.

A obra de Liu impressiona, inicialmente, pela variedade – eu diria mesmo, o caráter exaustivo – das referências editoriais. Notas de rodapé longas e detalhadas oferecem ao leitor guias preciosos sobre diversas dimensões dos estudos smithianos. É claro que as referências dão ainda uma boa ideia da pujança intelectual da nação norte-americana, a partir de sua constituição: razoável taxa de alfabetização da população livre, mercado editorial sofisticado, abertura ao conhecimento europeu, ambiente universitário precoce. Tanto no corpo do texto quanto nas referências, em especial nos capítulos 1 e 2, percebe-se a excepcionalidade das colônias e da jovem nação, o que permite que sua recepção por grandes líderes políticos da independência – Madison, Hamilton, Jefferson, Witherspoon – transforme-se em algo mais do que uma mostra de erudição e prestígio intelectual. Smith vem a ser admitido, por concordância ou por objeção a sua visão liberal, como um dos inspiradores do debate de construção nacional. Uma obra intitulada “Adam Smith no Brasil” teria bem menos a dizer, a despeito de sabermos que também em nosso país Smith teve cultores e estudiosos já ao início do século XIX. Em resumo, embora não pretenda tanto, a autora nos fornece um ângulo de observação da evolução intelectual e política da América do Norte que estimulará comparações internacionais.

Chama atenção ainda a qualidade literária da obra. Glory Liu é de fato uma brilhante escritora e se dirige não apenas ao restrito grupo dos acadêmicos especialistas em Smith, como ao leitor culto em geral. O capítulo sobre os founding fathers é muito sugestivo a respeito dos dilemas políticos e intelectuais de lideranças cultas, no momento de formação da nação. Esclarece também quais os personagens do iluminismo escocês mais lidos, no ambiente da revolução americana. Do mesmo modo, os relatos sobre a penetração da obra de Smith no ambiente universitário (cap. 2) sugerem o dinamismo da educação superior nos Estados Unidos. E mesmo os capítulos sobre o “Smith de Chicago” são bem provocativos e atuais – talvez não por acaso, uma resenha ácida sobre o livro, publicada no Wall Street Journal em dezembro de 2022, tenha se centrado no tema.

Liu dirige-se preferencialmente, ou quase exclusivamente, às dimensões políticas e filosóficas da obra de Smith, assim como suas repercussões e apropriações, considerando-se tais dimensões. É claro que um tema como “livre comércio versus protecionismo” é antes de mais nada econômico. No entanto, Liu evita a retaguarda clássica das teorias do comércio internacional (e o papel de Smith nelas), dirigindo-se preferencialmente aos aspectos políticos e mesmo filosóficos da matéria. O mesmo ocorre com outros tópicos econômicos do smithianismo. Em resumo, por mais que a autora recorra a nomes credenciados da interpretação econômica de Smith – Sen, Knight, Viner, Medema –, a ótica é quase sempre a da política e da filosofia. Para não falarmos, naturalmente, das transmutações que sofrem as mensagens originais na difusão do pensamento econômico; ou, se quisermos, dos variados usos políticos dos grandes autores, nos diversos tempos e circunstâncias.

Eu diria que os capítulos mais estimulantes são o primeiro, que trata dos founding fathers e da revolução americana; o terceiro, que mostra os dilemas dos norte-americanos ao considerarem comércio internacional e escravidão, bem como as apropriações de Adam Smith na nova federação, diante das assimetrias regionais de interesse e dos impasses políticos suscitados pelo regime escravista; e, afinal, o último, em que a atualização do debate acadêmico em torno de Smith por estudiosos como Hirschman, Hont e Ignatieff, Raphael, Forbes, Meek, Skinner, Pocock, Winch, Rothschild, fornece uma espécie de panorama do melhor smithianismo acadêmico recente.

Ainda assim, ao tratar de “… quem Adam Smith era e quem ele se tornou na América” (ASA, Prologue, XV), a obra apenas tangencia as contribuições econômicas de Smith. Liu está preocupada sobretudo com os “… compromissos políticos, ideológicos e metodológicos a que o recrutamento daquelas ideias [de Smith] serviu, bem como com o que elas [nos ensinam] sobre o próprio Smith” (ASA, Introduction, p.1). Enfim, pouca preocupação com as categorias econômicas da Riqueza das Nações e o próprio significado de Smith na linha evolutiva do pensamento econômico; atenção total aos “compromissos políticos, ideológicos e metodológicos” e a suas transmutações, em um ambiente nacional específico, em períodos diversos.

Pode-se perguntar se algumas das ideias econômicas centrais da Riqueza das Nações não nos forneceriam um quadro mais claro das possibilidades de apropriação, mesmo política e ideológica, de Smith nas diversas épocas. Por exemplo, as noções de rendimentos e de classes sociais definidas, no Livro I; a distinção entre stock e capital, do Livro II; o hino à liberdade desenvolvido no Livro III, no comentário às vicissitudes da passagem da sociedade alodial e feudal à mercantil; as minúcias da crítica ao “sistema mercantil”, no Livro IV; a visão sobre tributos e dívida pública do Livro V – todos estes momentos da construção econômica da Riqueza das Nações muito nos dizem sobre a visão de sociedade, política e história de Smith, assim como sobre as possibilidades abertas para o pensamento pós-smithiano. Talvez – argumento eu –, a própria apropriação feita por Stigler ou por Friedman da Riqueza das Nações baseie-se em um entendimento no mínimo controverso da economia de Smith, para não falarmos de sua adequada (ou inadequada) aplicação ao capitalismo dos últimos cinquenta anos. Teríamos aqui, sobretudo, um típico problema em história do pensamento econômico.

Feita a observação, volto aos méritos de Liu. Adam Smith’s America é uma obra não apenas erudita e bastante esclarecedora sobre o panorama intelectual e político dos Estados Unidos, em diversos momentos, como de certo modo incita os pesquisadores a realizarem esforços semelhantes, aplicados a distintas realidades nacionais. Por outro lado, Liu mostra como a obra de um autor planetário admite variadas interpretações e aplicações. Uma perspectiva que será certamente bem explorada no tricentenário do nascimento de Smith.

Referências bibliográficas

  • LIU, Glory M. Adam Smith’s America: how a Scottish philosopher became an icon of American capitalism. Princeton: Princeton University Press, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2022
  • Aceito
    07 Ago 2023
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