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Aparelho intrabucal para o tratamento dos transtornos respiratórios do sono: qual a sua influência nos parâmetros cardiológicos do paciente?

O QUE HÁ DE NOVO NA ODONTOLOGIA

Aparelho intrabucal para o tratamento dos transtornos respiratórios do sono: qual a sua influência nos parâmetros cardiológicos do paciente?

Aída A. A. Abreu e Silva RodriguesI; R. Nonato D. RodriguesII

IPneumologista do Hospital do Coração do Brasil, Brasília-DF. Professora Substituta da Universidade de Brasília (UnB)-DF

IINeurologista, Doutor em Ciências Médicas pela UnB. Professor Adjunto da Universidade de Brasília-DF

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Aída A. A. Abreu e Silva Rodrigues SQN 206 bloco K ap. 303 CEP: 70.844-110 - Brasília DF E-mail: alvimbsb@uol.com.br

A Síndrome da Apnéia Obstrutiva do Sono (SAOS) é uma doença sistêmica cujos sintomas principais são o ronco e a sonolência diurna. Um estreitamento da faringe que ocorre durante o sono, decorrente principalmente do relaxamento da musculatura que a envolve e de alterações anatômicas locais, acarreta em um aumento de resistência à passagem do ar. Isso leva a uma vibração dos tecidos moles da região, caracteristicamente chamada ronco. À custa do esforço respiratório do paciente, o ar continua a fluir pela região estreitada até que a crescente pressão negativa intra-torácica leve ao colabamento das partes moles do faringe e fechamento da via aérea superior5,7. A essa parada respiratória dá-se o nome de apnéia obstrutiva do sono (AOS). Contudo, nem sempre a oclusão da via aérea é total, permitindo reduzida passagem de ar pelas estruturas, o que ocasiona uma hipopnéia obstrutiva. Quando mais de cinco eventos respiratórios ocorrem em uma hora de sono, o diagnóstico de SAOS fica estabelecido7.

Como as apnéias e hipopnéias são secundárias ao relaxamento muscular que ocorre com o início do sono, a forma encontrada pelo organismo para dar fim ao esforço respiratório é despertar o indivíduo. Dessa forma, o tônus muscular retorna e o fluxo aéreo é restabelecido. No entanto, quando tais eventos se repetem muitas vezes durante o sono, a qualidade deste é prejudicada em razão da intensa fragmentação e, conseqüentemente, no dia seguinte o paciente se sente cansado e sonolento.

A ativação autonômica exacerbada é marcante nos pacientes apnéicos, pois aos freqüentes despertares noturnos, que lançam na corrente sanguínea diversas catecolaminas, associam-se a hipoxemia e o próprio esforço muscular respiratório2. Assim, órgãos nobres, como o coração e o cérebro, tornam-se os principais alvos dos efeitos deletérios dessa doença. Portanto, caso não haja adequado tratamento, eleva-se o risco de se desenvolverem doenças cardiovasculares como arritmias, infarto do miocárdio e cerebral e, principalmente, a hipertensão arterial sistêmica, cuja relação com os transtornos respiratórios do sono (TRS) já está muito bem estabelecida5,10. Tais doenças não ocorrem da noite para o dia no paciente portador de SAOS, por isso o tratamento precoce dos TRS torna-se muito importante, pois sabe-se que, se não tratadas, tendem a se agravar com o tempo.

Para o diagnóstico dessa síndrome faz-se indispensável a realização da polissonografia, que é o exame padrão-ouro para o diagnóstico e acompanhamento das doenças relacionadas ao sono7,9. No caso dos TRS, a polissonografia é ainda mais importante, pois a determinação do tratamento adequado depende, principalmente, da gravidade da SAOS7,9.

Uma vez que a alteração básica da via aérea superior na SAOS é mecânica, a solução para seu tratamento é igualmente mecânica. No início da década de oitenta foi estabelecido, com sucesso, o uso da pressão positiva em via aérea, fornecida ao paciente através de um aparelho que denominaram CPAP, da sigla inglesa continuous positive airway pressure (pressão positiva contínua em via aérea). Esse aparelho mantém a via aérea patente através de um fluxo contínuo de ar gerado por um compressor, permitindo ao paciente respirar normalmente durante o sono6.

Apesar de sua eficácia, o CPAP não é universalmente aceito entre os pacientes e, por isso, diversas alternativas terapêuticas vêm sendo desenvolvidas10. Entre elas está o aparelho protusor mandibular, também chamado aparelho intrabucal.

Os aparelhos intrabucais (AIB) para o tratamento dos TRS estão formalmente indicados no casos de ronco habitual e nos casos leves da síndrome da apnéia obstrutiva do sono ou, ainda, quando existe falha ou má adaptação à terapia de pressão positiva em via aérea9. Nos casos graves a primeira opção de tratamento é a utilização do CPAP6,8,9.Os casos moderados deverão ser individualmente analisados, para se decidir entre as duas modalidades de tratamento6,9.

No entanto, quando existe uma comorbidade como, por exemplo, a hipertensão arterial sistêmica (HAS) ou a insuficiência cardíaca congestiva (ICC), o CPAP tem sua indicação estendida até mesmo aos casos mais leves4. Essa indicação leva em consideração estudos que mostram maior morbimortalidade dos pacientes portadores de ICC que apresentam concomitantemente SAOS11. Além disso, há maior dificuldade em se controlar a hipertensão arterial nos pacientes com SAOS não tratada e aumentado risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares7.

Enquanto tem sido demonstrado o benefício clínico do tratamento com o aparelho intrabucal, incluindo a redução do número de apnéias-hipopnéias por hora de sono, da sonolência diurna e da qualidade de vida1, pouco se sabe sobre sua influência no sistema cardiovascular, maior vítima dos efeitos deletérios da SAOS.

Assim - levando-se em consideração as descrições de maior adesão ao tratamento ortodôntico em relação à pressão positiva, a conhecida maior dificuldade de adaptação ao CPAP do grupo de pacientes portadores de ICC11 e a particular importância de se tratar o TRS desses pacientes - passaram a ser cada vez mais necessários os estudos sobre os efeitos do tratamento da SAOS com o AIB no sistema cardiovascular.

As variáveis usadas nos diversos estudos para se verificar a modulação do sistema cardiovascular autonômico nos pacientes com TRS antes e após o tratamento com AIB foram obtidas através da avaliação do intervalo RR no eletrocardiograma2, enquanto os estudos sobre a ICC basearam-se na dosagem do peptídeo natriurético e da fração de ejeção do ventrículo esquerdo3. Tais estudos obtiveram sucesso ao demonstrar a existência de melhora na modulação autonômica cardiovascular com o uso do AIB e a redução dos níveis séricos do peptídeo natriurético dos pacientes com ICC, fato que poderia indicar uma tendência à redução na mortalidade2,3. Por outro lado, a fração de ejeção ventricular esquerda, índice muito importante na avaliação da gravidade da insuficiência cardíaca, não apresentou mudanças com o tratamento com AIB3, inversamente aos resultados dos estudos com CPAP.

Como dito anteriormente, a HAS é a comorbidade mais freqüentemente encontrada nos portadores de TRS. Ela pode preceder o transtorno do sono ou ser agravada por ele. Diversas pesquisas foram feitas para tentar comprovar se existiria uma redução da pressão arterial (PA) quando o paciente era submetido ao tratamento com CPAP. Ao contrário do que se esperava, nem todos os estudos obtiveram sucesso em provar essa teoria e, portanto, esse tópico permanece controverso dentro da Medicina do Sono4.

Recentemente foi realizado no Canadá um trabalho para observar o comportamento da pressão arterial (PA) nos pacientes com TRS tratados com AIB10. Nesse estudo os grupos de pacientes portadores de SAOS leve a moderada foram examinados antes e após a utilização do AIB por um período de 60 dias, notando-se uma redução significativa da PA naqueles pacientes cujo tratamento havia sido eficaz. No entanto, este estudo não apresentou grupo controle e os sujeitos não foram divididos em normotensos e hipertensos. Assim, devido a falhas metodológicas das pesquisas apresentadas até então, persiste a dúvida quanto ao efeito benéfico do tratamento ortodôntico sobre a PA. Uma outra pesquisa feita em 2004 na Austrália5, por sua vez, conseguiu demonstrar uma redução estatisticamente significativa, tanto da PA quanto da freqüência cardíaca, com o uso do AIB durante 4 semanas. Trata-se de um estudo randomizado e controlado, mas que ainda não foi reproduzido.

Vale frisar, mais uma vez, a importância da polissonografia no acompanhamento dos pacientes apnéicos em uso do AIB9, uma vez que os propósitos do tratamento são alcançados com a melhora subjetiva dos sintomas e objetiva dos parâmetros polissonográficos, como a abolição dos roncos ou a redução dos microdespertares relacionados ao esforço respiratório, não devendo se basear apenas em informações clínicas obtidas do paciente.

A eficácia do tratamento da SAOS com o aparelho protrusor mandibular está bem definida na literatura1. Trata-se de uma opção terapêutica mais bem aceita pelos pacientes, quando comparada ao CPAP, e igualmente eficaz quando corretamente indicada. Novos trabalhos tentam estudar o seu efeito sobre as variáveis cardiovasculares nos apnéicos2,5,10. Assim, caso se estabeleça de fato um benefício, o uso do aparelho intrabucal poderá vir a ser indicado inclusive nos casos onde existam comorbidades cardiovasculares, cujo tratamento hoje se encontra restrito à pressão positiva, melhorando a adesão ao tratamento e certamente aumentando o leque de opções terapêuticas a serem apresentadas ao paciente com TRS.

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  • Endereço para correspondência

    Aída A. A. Abreu e Silva Rodrigues
    SQN 206 bloco K ap. 303
    CEP: 70.844-110 - Brasília DF
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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