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Absolvições em crimes sexuais: Estudo de casos da Comarca de Irati-PR (1940-1945)

Acquittals in Sexual Crimes: Case Studies of Irati-PR County (1940-1945)

RESUMO

Neste artigo, analisamos os vistos finais nos casos de absolvições em crimes sexuais ocorridos na Comarca de Irati, no interior do Paraná, nos cinco primeiros anos da década de 1940. Com base em textos de autoras e autores que se debruçaram sobre o contexto envolvendo crimes sexuais na primeira metade do século XX, articulamos as discussões bibliográficas com a apreciação qualitativa das fontes, situadas em um momento de transição entre os códigos penais, e as discussões envolvendo tal natureza de crime. Em comum, além das absolvições, os casos se caracterizam por terem sido julgados por um mesmo juiz, que, em suas decisões absolutórias, condenava o comportamento das mulheres.

Palavras-chave:
crimes sexuais; decisões judiciais; verdade jurídica; processos criminais; Irati-PR

ABSTRACT

In Acquittals in Sexual Crimes: Case Studies of Irati-PR County (1940-1945), we analyze the verdict in cases of acquittal in sexual crimes occurred at Irati County, in the state of Paraná, in the first five years of the 1940s. Based on texts that dwell on the context involving sexual crimes in the first half of the 20th century, we articulate the bibliographic discussions with the qualitative assessment of the sources, situated in a moment of transition between the Penal Codes, and the debates involving such nature of crime. In common, besides the acquittals, the cases are characterized by being judged by the same judge, who, in his acquittal decisions, condemned women’s behavior.

Keywords:
sexual crimes; judge decision; legal truth; criminal process; Irati Country

Introdução

Na cidade de Rebouças, Distrito Judicial desta Comarca, em a noite de 30 de março do ano findo, às 23 horas mais ou menos, o denunciado foi a casa onde como empregada doméstica residia a menor NOÊMIA1 1 Optamos por utilizar apenas os primeiros nomes das partes envolvidas, bem como manter as grafias originais das fontes citadas. , de 14 anos de idade, e estando a mesma a sós em casa, por estarem os seus patrões assistindo uma sessão cinematográfica, o denunciado aproveitando dessa oportunidade, levou a menor para um quarto da casa, e ai defloro-a, usando no ato de violência, e em seguida, com a chegada do proprietário da casa, foi o denunciado encontrado no mesmo quarto onde praticara o evento, escondido atrás de uma penteadeira (Cedoc/Irati, 1941, fls. 2).

A narrativa do caso de Noêmia foi elaborada por Manoel Antônio da Cunha Neto, promotor público da Comarca de Irati, no sudeste do Paraná, que deu encaminhamento à denúncia contra Abrahão, de 15 anos de idade. O representante do poder público considerou que o menor estava incurso nas sanções dos artigos 213, 217 e 224c - estupro, estupro de vulnerável e pela impossibilidade de a vítima oferecer resistência. Com isso, Manoel solicitou que fosse designado dia, hora e local para o sumário de culpa do processado.

Mariza Corrêa (1983CORRÊA, Mariza. Morte em família: Representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.), no riquíssimo Morte em família, já foi bastante citada quando o assunto era o papel desempenhado pelos manipuladores técnicos (delegados, peritos, advogados, promotores, escrivães, juízes) na produção da verdade jurídica (que condena e absolve, criminaliza e inocenta), a que chamou de “fábula”. Nesta, os atores jurídicos trabalham, cada um, de acordo com os objetivos pretendidos da função, adequados aos moldes legais e sociais do contexto da ação, o que indicaria uma coerência entre as normas escritas e as vividas e aceitas pelo grupo que atua nas instituições penais. Essa coerência, mostra Corrêa, seria testada a partir da aceitação da violação cometida, de sua atenuação ou condenação, expressa na imputação de penas baixas ou elevadas ou em absolvições.

Em processos de crimes sexuais, na primeira metade do século XX, os atos eram transformados em autos - construídos dentro de esquemas de crenças, valores, normas e usos - por manipuladores técnicos que encaminhavam o caso para o julgamento e a decisão. Sem tribunal de júri nessa natureza de crime, eram os juízes que decidiam os destinos de personagens como Abrahão e Noêmia. Com base em jurisprudências e manuais, a absolvição ou condenação em um caso de crime sexual exigia um trabalho realizado em muitos momentos: nas peças anexas (auto de exame de idade, auto de exame de defloramento/conjunção carnal2 2 A vítima deveria comparecer, no dia e hora definidos, para realizar os exames ritualizados dos médicos. Neles, os peritos deveriam se apoiar em cinco elementos: 1) se houve defloramento; 2) qual o meio empregado; 3) se houve cópula carnal; 4) se houve violência para fim libidinoso; e 5) qual o meio empregado, se força física ou outros que privassem a mulher de suas faculdades e a impedissem de resistir e se defender. Depois da mudança do Código Penal, outras questões permeavam os laudos: houve conjunção carnal? Qual a data provável? A paciente era virgem? Houve violência para essa prática? Qual o meio dessa violência? Da violência, resultou para a vítima: incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias, perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função, aceleração de parto, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, deformidade permanente ou aborto? É a vítima alienada ou débil mental? Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir? , auto de qualificação, atestado de miserabilidade3 3 O Ministério Público, encarregado da manutenção da ordem jurídica no Estado e da fiscalização do poder público, estava envolvido na defesa dos interesses sociais e, assim, era o órgão que atuava diretamente na defesa da honra/costumes nos casos de crimes sexuais, considerados com base para denúncia. Uma família sem condições financeiras de custear as despesas dos procedimentos judiciários teria a possibilidade de emitir uma certidão de atestado de miserabilidade, na intenção de obrigar o Estado a responsabilizar-se pelos custos da investigação e, a partir disso, era o promotor público o encarregado da denúncia e da defesa dos interesses da vítima. Junto ao atestado de miserabilidade, o prosseguimento do caso só era efetivado quando o responsável legal, especialmente nos casos de menoridade da ofendida, realizava a solicitação da intervenção da Promotoria Pública. Desse modo, enfatizamos que os processos-crime mencionados nesta pesquisa fazem referência, exclusivamente, às mulheres de famílias pobres. , termos de declarações, normativos, cartas, prognósticos); nas narrativas da vítima sobre si mesma e o denunciado, presentes no registo da queixa nas delegacias de polícia; por meio da declaração do acusado e das testemunhas chamadas no inquérito policial; no relatório do delegado, representando a primeira versão institucional sobre o caso; na denúncia elaborada por promotores; nos novos depoimentos de envolvidos e testemunhas, que confirmavam ou não as declarações prestadas na alçada policial; na manipulação dos elementos por parte de advogados; e, enfim, na verdade que assumia sua forma nas palavras dos juízes (COULOURIS, 2010COULOURIS, Daniella Georges. Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 36).

Em seu texto “A história nos porões dos arquivos judiciários”, Keila Grinberg (2009) apresenta algumas considerações sobre o uso de processos criminais como fonte para a história. Para a historiadora, é necessário que o estudioso ou estudiosa que se interessar por esse tipo de documento entenda que sua tarefa não é desvendar o crime; não há maneira de descobrir o que realmente se passou e essa não deve ser, nem de longe, a pretensão. A tarefa é outra, somos um tipo diferente de detetive: é na relação entre a produção do discurso a respeito de um crime e o movimento real que está a análise. Sob esse prisma, tais documentos, no Brasil, serviram para os estudos, principalmente, a partir da década de 1980.

Um dos primeiros autores brasileiros que investigaram as particularidades dos autos judiciais foi Boris Fausto (1984FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora brasiliense, 1984.), em Crime e cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). Com largas referências estatísticas oficiais para representar a criminalidade e o comportamento judiciário em São Paulo, Fausto não se concentrou apenas nos crimes sexuais, mas mostrou os distintos níveis da justiça criminal e, de certo modo, quais valores sociais e legais estavam em jogo em cada um deles. A obra é significativa pelas considerações a respeito da criminalidade real e da criminalidade apurada, ou seja, deve-se levar em conta que os registros de crimes sexuais não demonstram a realidade de fato, haja vista que, pela natureza da violência, nem sempre os delitos sexuais chegavam à Justiça.

Entre os estudos brasileiros precursores que utilizaram a documentação judiciária como fonte de pesquisa e apontaram para a problemática particular do gênero, temos Meninas perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque, de Martha de Abreu Esteves (1989ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.). A autora analisou processos-crimes de atentado ao pudor, estupro e rapto e demonstrou que o principal valor que transpassava a investigação era a virgindade moral, ou seja, a inocência, a submissão das mulheres e a castidade.

Outra obra sem precedentes para o estudo de crimes sexuais é o livro Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940), de Sueann Caulfield (2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.). A autora demonstra como as gerações de juristas e médicos teriam recorrido ao conjunto de leis para definir a noção de honra e aumentar a intervenção estatal na família a partir do crime de defloramento. Investigando as diferentes atribuições à noção de honra de políticos, juristas, médicos, diversas outras autoridades e pessoas comuns, Caulfield discute a importância da honra sexual nas escolhas pessoais e nos conflitos vividos pela população. A historiadora americana procurou articular os significados relacionados à honra das famílias nos debates próprios ao futuro da nação, concentrando-se nos discursos jurídicos heterogêneos a respeito dos crimes sexuais e nos diversos debates em torno do hímen em que os especialistas da medicina legal se envolveram.

De maneira geral, essa historiografia que utilizou os processos criminais como fonte de pesquisa discutiu que a atribuição de valores aos diferentes personagens que compõem a trama processual não é a mesma. O peso dos testemunhos e evidências se dão por critérios que fogem da legalidade, como se nota em trabalhos de estudiosos e estudiosas que se debruçaram sobre o tema dos crimes sexuais a partir da década de 1980, como Fausto, Esteves e Caulfield.

Em “Notas sobre o uso de documentos judiciais e policiais como fonte de pesquisa histórica”, André Rosemberg e Luís Souza (2009ROSEMBERG, André; SOUZA, Luís Antônio Francisco. “Notas sobre o uso de documentos judiciais e policiais como fonte de pesquisa histórica”. Patrimônio e Memória, Assis, vol. 5, n. 2, pp. 159-173, 2009., pp. 166-167), por exemplo, destacaram que em processos, inquéritos, portarias e termos a representação e o valor do papel social dos sujeitos envolvidos, sejam eles ofendidos, acusados ou testemunhas, por parte dos agentes da Justiça interferem na interpretação dos atos e, por consequência, no desfecho dos autos. A denominada acuidade das declarações depende de diversos valores que se situariam para além da esfera jurídica, uma vez que cor, sexo, origem e posição social, entre outros fatores, influenciam o julgamento.

Imbricada por essas questões e por relações de gênero, as violências institucionais ainda são presentes em casos de crimes sexuais praticados contra mulheres, moças e meninas. Casos contemporâneos demonstram como a desconfiança em relação à palavra da vítima (que passa a ser a julgada) e a impunidade nos casos de estupro são práticas seculares da instituição judiciária brasileira. A jurisprudência de Francisco José Viveiros de Castro, produzida no final do século XIX e muito citada na primeira metade do século XX, foi organizada em torno disto: não seria qualquer homem considerado um estuprador, um criminoso, e, principalmente, não era qualquer mulher que merecia justiça:

(...) duas espécies de mulheres apresentam-se perante a justiça como vítimas de atentados contra a sua honra. Umas são em verdade dignas da proteção das leis e da severidade inflexível do juiz. Tímidas, ingênuas, incautas, foram realmente vítimas da força brutal do estuprador ou dos artifícios fraudulentos do sedutor. Mas há outras corrompidas e ambiciosas que procuram fazer chantagem, especular com a fortuna ou a posição do homem, atribuindo-lhe a responsabilidade de uma sedução que não existiu, porque elas propositalmente a provocaram, ou uma suposta violência, imaginária, fictícia (CASTRO, 1942CASTRO, Francisco José Viveiros de. Os delitos contra a honra da mulher. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942., pp. 24-25).

O sociólogo Marcos Alvarez (1996ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: Saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889-1930). Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.), em Bacharéis, criminologistas e juristas: Saber jurídico e nova escola penal no Brasil, destacou como a criminalidade da mulher se tornou uma preocupação em termos de defesa social. Embora contribuíssem menos para o crescimento dos delitos e transgressões, as mulheres eram pensadas, muitas vezes, como causas excitadoras da criminalidade: elas, pelos comportamentos, seriam as responsáveis pelos próprios crimes de que foram vítimas. Em oposição à fragilidade, que seria intrínseca à feminilidade, a mulher necessitava de proteção naquilo que tinha de mais particular: sua honra. Desse modo, foi ao redor do conceito de honra que se organizou o discurso da defesa social em relação à mulher no campo do direito penal.

A partir dessas considerações iniciais, destacamos que, neste texto, optamos por analisar os vistos finais dos processos de crimes sexuais em que ocorreram absolvições - o que pode revelar aspectos das desigualdades refletidas na produção da verdade dos autos, bem como o sentido da punição nessa natureza de crime. Para tal proposta, utilizamos documentos que tramitaram nos cinco primeiros anos da década de 1940. Esse período é singular por ser a época da efetivação das redefinições da legislação penal brasileira e dos termos que passaram a determinar os julgamentos nos crimes de sedução e estupro. Afinal, seria possível perceber diferenças e repetições com a alteração dos códigos e das leis? Os valores socialmente considerados que atravessaram os processos são os mesmos?

Mas o que seriam os vistos finais? Em suma, eram as sentenças em sua forma escrita, registrada, edificada, no que poderia ser o ato final dos autos. No Código de Processo Penal (CPP), de 1941, entre os artigos 381 e 392, estavam explicitados os passos a serem seguidos por um juiz na ação condenatória ou absolutória. No art. 385, o juiz é citado como o responsável por proferir a sentença nos crimes de ação pública (como os sexuais), ainda que o Ministério Público tivesse opinado pela absolvição, o que demonstra bem o poder do julgador. Entre os demais artigos do CPP, destaca-se o de número 386, que definia as razões para que um juiz absolvesse o réu: estar provada a inexistência do fato; não haver prova da existência do fato; não constituir o fato infração penal; estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; haver circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência4 4 Decreto-lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941. . De que modo essas categorias foram articuladas para absolver os homens acusados de terem cometidos crimes sexuais na década de 1940 em Irati?

Com base em textos de autores e autoras que se debruçaram sobre o contexto e o discurso jurídico envolvendo crimes sexuais na primeira metade do século XX, articularemos as discussões bibliográficas com a apreciação qualitativa dos vistos finais que compuseram os casos de sedução e estupro da Comarca de Irati5 5 Os documentos estão arquivados no Centro de Documentação e Memória (Cedoc) da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), campus de Irati-PR. . Optamos por esses processos, para além do ineditismo da fonte, pela possibilidade de perceber as dinâmicas entre doutrina e prática em espaços menos urbanos - muitos estudos ainda se concentravam nos processos criminais dos grandes centros, como fizeram Fausto, Caulfield e Coulouris.

Além disso, no início da década de 1940 Irati já era uma comarca, assim mantendo a presença de magistrados e lá tramitando documentos de outros municípios da região, como Rebouças e Mallet. Isso sinaliza, ao menos, para uma prática de justiça (institucionalmente regulada e reguladora) em parte da região sudeste do Paraná e em determinado período. Nesse momento, os casos foram julgados por uma mesma figura: Joaquim Ferreira Guimarães. Ele foi responsável pela cristalização de verdades que absolveram homens em quatro casos de estupro e quatro casos de sedução nos primeiros cinco anos da década. Antes desse período, o magistrado atuava como juiz de direito na Comarca de Imbituva; depois, foi removido para a Comarca de Ponta Grossa e, por último, para Curitiba, em 1951. A relevância desse sujeito foi ainda mais atestada quando foi nomeado desembargador, em 1958 (TJPR, 2021).

Nascido em São Mateus do Sul, cidade próxima à Irati, Joaquim colou grau pela Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, em 1920, no período dos primeiros anos das sciencias juridicas na capital paranaense. Nesse mesmo contexto, o embate entre as escolas penais - positivismo criminológico versus direito penal clássico - estava presente nas faculdades de direito do país. Em Curitiba, a partir de 1915, Antonio Martins Franco foi o responsável por indicar o perfil que a disciplina de direito penal teria pelos próximos 20 anos6 6 “O programa arranca, no primeiro tópico intitulado Parte Geral, da análise dos institutos tratados pelo Código Penal de 1890 (efeitos da lei penal em relação ao tempo, espaço e às pessoas; distinção entre crime e contravenção e entre dolo e culpa; atos preparatórios, tentativa e crime consumado; autoria e cumplicidade; casos de não imputabilidade, circunstâncias justificativas, agravantes e atenuantes; crime uno e crime conexo; pena), para depois passar, em tópico intitulado Sociologia Criminal, ao estudo do crime a partir da evolução das teorias que trataram da individualização da pena (a escola clássica e os defeitos da individualização da pena, a escola neoclássica e a individualização fundada sobre a responsabilidade, e a escola italiana e a individualização fundada sobre a temibilidade do delinquente). Trata-se então especificamente sobre a tradicional questão do livre arbítrio e do determinismo, e ainda das formas de individualização da pena (legal, judiciária e administrativa). Por fim, dando-se ao terceiro tópico do programa o título de Criminologia, ingressa-se no estudo da classificação dos criminosos (natos, eventuais e passionais, loucos e epiléticos, políticos e sociais, patológico e psicológico)” (DRUMMOND, 2011, p. 155). : baseada nos saberes da sociologia criminal e da criminologia, em oposição à Escola Clássica.

A ampla inclusão das questões atinentes ao positivismo criminológico no programa de ensino elaborado por Antonio Martins Franco, ao invés de indicar o estabelecimento de um determinado conteúdo para os estudos do direito penal a partir da influência trazida de São Paulo, parece refletir um discurso mais amplo, que nesse momento já circulava e era aceito por muitos juristas brasileiros (DRUMMOND, 2011DRUMMOND, Paulo Henrique Dias. Ciência e ensino na cultura jurídica paranaense: Direito Penal e Filosofia do Direito no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Paraná (1913-1953). Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011., p. 155).

Tal discurso estaria circunscrito nos postulados pelos principais juristas e professores de direito criminal das Faculdades de Direito do Rio de Janeiro, como Viveiros de Castro, Lima Drummond e Esmeraldino Bandeira, que defendiam a necessidade de atualizar o direito penal para a garantia da defesa social contra a degenerescência causada pela modernidade.

Destinando-se às preocupações com os tipos criminosos, os fatores dos crimes, o papel da mulher na etiologia do crime, entre outras questões, Viveiros de Castro foi uma das maiores influências da corrente criminológica positivista nacional e suas abordagens já circulavam em Curitiba antes mesmo da fundação do curso de direito da Universidade do Paraná7 7 “O advogado José Alencar Piedade, em texto com o qual abria o primeiro exemplar da Gazeta dos Tribunais, periódico ao qual já foi feito referência, dizia, partindo do conhecido texto de Viveiros de Castro sobre a ‘Nova Escola Penal’ e fazendo conclamo em prol do estabelecimento de um instituto de advogados no Paraná” (DRUMMOND, 2011, p. 156). . Citado diretamente ou não, o jurista, com a obra Os delitos contra a honra da mulher, lançada em 1898, influenciou as decisões de Joaquim registradas nos vistos finais.

Embora nossa intenção não seja escrever uma história iratiense ou fazer um estudo com relances biográficos, encontramos nos processos analisados informações intencionalmente registradas que fizeram parte da produção de uma verdade jurídica que, no fim das contas, absolveu homens e condenou mulheres. São as formas difusas de tais verdades produzidas, nem sempre definitivas ou exatas, que nos interessam.

Antes de tematizar as práticas judiciárias, Michel Foucault percebeu a importância de dizer e mostrar o que era feito com a linguagem (poesia, filosofia, discurso em geral), que obedecia a determinadas leis e regularidades internas. Daí a necessidade de se considerar os fatos de discurso não simplesmente sob o aspecto linguístico, mas como jogos estratégicos. É desse ponto de vista que investigamos a “produção da verdade”. Em A verdade e as formas jurídicas (2002), a instituição judiciária é vista pelo autor como um dos vários lugares em que a verdade se forma a partir de certas regras de jogo definidas, que determinam formas de subjetividade, domínios de objeto e tipos de saber. Desse entendimento, Foucault quis mostrar que se pôde formar, a partir do século XIX, um determinado saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra - saber esse que nasceu de práticas sociais de controle e vigilância. Temos, assim, a visão geral do tema: as formas jurídicas e a mudança do direito penal estão em um lugar de origem de um determinado número de formas de verdade.

Nos documentos judiciais (inquéritos ou processos), observamos traços das regras do jogo jurídico que procuram fazer dos autos a verdade. Em mandados de apreensão, os delegados pedem ao escrivão que se intime o réu. Neles, a afirmação “indo por mim assinado” ressalta que a assinatura da autoridade local confere legitimidade à ação. Há sempre a assinatura de escrivães, delegados, promotores, advogados, juízes ou outros sujeitos que procuram atestar que o relatado e exposto nos autos é a verdade. Após a realização de um exame, os peritos certificavam que realizaram a tarefa e enunciavam: “o referido é verdade e dou fé”. Isso aparece nas diversas vezes que o método jurídico exige uma certidão ou conclusão, transcrita pelo escrivão, que dá conta de fornecer ao enunciado status de verdadeiro. Testemunhas, indicados ou vítimas não se esquivam da ação: prestar a promessa legal e assinar era o atestado de que aquela era a verdade narrada dos fatos. De formas elaboradas, também havia os termos de promessa legal de promotores e advogados que “assinam na forma da lei”.

Em geral, a Justiça fundamenta a verdade dos enunciados ao nível da correspondência semântica e da funcionalidade das expressões (ou seja, entre as expressões linguísticas do Direito e os seus objetos), em que a linguagem, por meio dos operadores jurídicos, passa a ser técnica e instrumental, tendo uma competência específica: produzir a verdade8 8 Nesse sentido, as práticas e os discursos jurídicos aparecem na análise de Bourdieu como determinadas pelas relações de força e pela lógica interna, conforme Coelho (1981) e Coulouris (2010). De um lado, as forças organizam os conflitos de competências no interior do campo jurídico — com suas instâncias hierárquicas de resolução de conflitos entre intérpretes e interpretações; de outro lado, há a lógica das obras jurídicas que demarcam em cada ocasião o espaço do possível e o “universo das soluções propriamente jurídicas”. . Na composição dos documentos, produz-se um consenso da ordem estabelecida, concretizada pelas regras do jogo jurídico, na medida em que relatórios de delegados e argumentações de promotores e advogados devem estar organizados em categorias reconhecidas para os juízes mediarem as partes e chegarem a uma conclusão.

Assim, falar dos discursos oficiais de inquéritos e processos criminais é se remeter às regras do jogo que peritos, delegados, advogados e promotores seguiram ao produzir as verdades sobre os crimes sexuais. Regras essas sempre relacionadas ao sentido da punição nos casos de defloramento, sedução ou estupro, atravessadas pelos saberes médico e jurídico que definiram os termos das leis nas primeiras décadas do período republicano no Brasil. Esse papel era desempenhado por personagens com discursos autorizados, detentores de um saber formal, com a linguagem da especialização e da lei9 9 Conforme Eva Gravon (2002): “Tal discurso serve como instrumento de proliferação da desigualdade dentro do tribunal. As pessoas em litígio são excluídas ou ao menos prejudicadas no debate no tribunal quando o padrão ou nível de discurso em que estão localizados não está em conformidade com os padrões do Poder Judiciário. O poder judiciário fora constituído por homens e por uma visão de mundo hierárquica e desigual, aproveitava-se, nesse momento, para a divulgação dos comportamentos aceitáveis, normais, corretos. Assim, as condutas eram enquadradas dentro de moldes burgueses, que visavam a proliferação de comportamentos idealizados e que serviriam como o padrão de julgamento das atitudes entre os homens e as mulheres das camadas populares” (p. 95). . Os peritos determinavam a materialidade do crime; os delegados realizavam uma primeira síntese investigativa; os advogados mobilizavam estratégias de defesa; a promotoria movimentava discursos punitivos; e os juízes exerciam o poder de decidir e instituir criminosos ou inocentes, “vítimas honestas” ou “mulheres desonestas”.

Os julgamentos de Abrahão e a transição nos crimes sexuais no Brasil

Em 1942, Ildefonso, juiz substituto da Comarca de Irati, se concentrou em levantar três tópicos que, para ele, estavam presentes nos autos e confirmavam que Abrahão era um estuprador: materialidade, provas e violência. Sobre a materialidade, o juiz, conciso, comentou que o processo obedecia aos trâmites legais, uma vez que a miserabilidade estava comprovada, havia certidão de nascimento anexa e foi realizado o exame de conjunção carnal. Antes de passar para a análise das provas, Ildefonso se queixou da falta de iniciativa por parte das autoridades policiais:

Refiro-me à circunstância especialíssima de terem sido os personagens do crime sido apanhados a sós, no local da sua consumação. Ora, nada mais fácil que proceder imediato exame de ambos, eis que, ainda gravemente visíveis estariam os vestígios (Cedoc/Irati, 1941, fls. 98).

O juiz chamou a circunstância da denúncia sobre Abrahão de “especialíssima”, o que de fato era. Diferentemente dos outros casos, das décadas anteriores e da década de 1940, os personagens da trama foram “apanhados a sós”. Esse elemento era atípico porque os próprios juristas reconheciam que os crimes sexuais eram geralmente perpetrados longe da presença de testemunhas. Para Idelfonso, o flagrante facilitaria a realização dos exames e evitaria as contradições dos laudos médicos, pois “ainda gravemente visíveis estariam os vestígios”, o que fortaleceria os argumentos em torno da materialidade do crime. Em vista do que chamou de “falta de iniciativa” por parte dos policiais, a vítima teve que ser submetida a dois exames de conjunção carnal e, segundo o magistrado, ficou “provado o defloramento” (Ibid., fls. 98-100). A partir disso, Idelfonso passou a comentar o segundo tópico.

Quanto às provas, discutiu a partir de dois pontos principais: a palavra das partes envolvidas e a narrativa das testemunhas. Para iniciar as ponderações, afirmou que, embora as declarações de Noêmia fossem contraditórias, em certos pontos não poderiam ser descartadas por inteiro. A defesa do acusado tentava explorar tais contradições, afirmando que tudo teria sido um plano da vítima. Em resposta, Idelfonso disse que, pela pouca idade de Noêmia, “é inconcebível [que] tivesse atingido a tão elevado grau de depravação moral” (Ibid., fls. 100).

O julgador quis demonstrar que a narrativa do réu era sim contraditória. Abrahão confessou que esteve, por longo tempo, à noite, em companhia da vítima; acrescentou que foi ao interior da casa, tirou os sapatos e deitou-se ao lado dela e, quando “se dispunha a iniciar a cópula”, percebeu a chegada dos patrões de Noêmia (Ibid., fls. 100-101). Idelfonso disse que os princípios do direito orientavam que a hipótese mais favorável fosse dada ao réu - porque a desconfiança era dada à palavra da vítima - e indagou: “admitindo como verdadeiras as declarações deste, quem teria sido o autor do defloramento da ofendida?” (Ibid., fls. 101). Argumentando sobre a questão, o juiz proferiu que não havia “a mais elevada presunção” de pertencer a responsabilidade do crime a outro homem. Com isso, “não há como negar que o acusado ao entrar na casa em que foi encontrado já o fez com intenções menos honestas e, provavelmente, com o intuito preconcebido de agir como refere a denúncia” (Ibid., fls. 102). O juiz considerou menos aceitável a alegação do réu: Abrahão afirmou que teria sido a ofendida quem, puxando-o pelo braço, o levou ao quarto e o convidou para “manterem relações sexuais”. Se isso fosse verdade, nas palavras de Idelfonso: “Estaríamos, então, em face de alguém que, mal grado a sua pouca idade, seria um poço de desonestidade e perversão, capaz de praticar atos próprios das infelizes que mercadejam o seu corpo” (Ibid., fls. 102).

Entre ambas as narrativas, a de Noêmia e a de Abrahão, qual seria a verdadeira? O que, de fato, teria ocorrido? Não há como saber, tampouco é nosso interesse investigar os atos. Trata-se, sim, de apreender, a nível discursivo, o que foi autuado sobre eles. E os processos funcionam como uma batalha, em que cada parte logra prevalecer uma verdade. Mas, afinal, em uma relação consentida, sendo flagrados, teria Noêmia outra opção que não fosse alegar que havia sido estuprada? Era obrigação moral declarar que havia sido violentada, que buscou resistir, porque sobre ela caíam as demandas da pureza e do recato.

Desse modo, aos olhos da Justiça, poderia haver narrativas que falhavam em seus intentos. Alguns elementos apareciam nos depoimentos e não se encaixavam na representação ideal da mulher vítima: os depoimentos permeados de incertezas sobre o dia e a hora da relação sexual; as afirmativas de que ela estava desacompanhada; o trânsito pela cidade; o consentimento sem maiores resistências; a frequência e recorrência das relações sexuais; a conivência com os desejos sexuais do parceiro; a experiência em relacionamento anteriores; entregar-se a um homem que conhecia há pouco tempo; colocações que demonstravam que não era submissa, recatada, frágil, delicada. Todos esses elementos poderiam compor a verdade dos autos, produzida pela Justiça ao inocentar o acusado. É preciso, assim, considerar as variações sobre os papéis masculino e feminino que contrariavam os ideais jurídicos, em que algumas mulheres, particularmente, não eram tão passivas quanto diziam e, por isso, recriavam as imagens que apareciam nos depoimentos.

Ora, apoiando-se na versão de Abrahão sobre ter sido aquela uma relação consentida, teria havido violência sobre ambas as partes, uma vez que, sendo proibido o desejo feminino, a narrativa de Noêmia, por conta das exigências sociais, fez com que, deliberadamente, escolhesse que o punido fosse Abrahão.

Se havia um sentido assumido de virgindade, ele poderia ser utilizado como uma arma estratégica nas mãos das mulheres e dos familiares que se queixavam de um caso de defloramento e sedução, especialmente dobrando a disciplina a seu favor: os agentes da lei passavam a agir como árbitros nas disputas que envolviam virgindade e deveriam pressionar os defloradores para que se casassem. E mesmo que a virgindade fosse um bem valorizado nesses casos, as mulheres e os homens nem sempre pretendiam obedecer aos costumes ordenados pela ideia de que deveria haver relações sexuais apenas após o casamento. O discurso jurídico delineava identidades femininas por meio de categorias baseadas na honestidade ou na desonestidade. No mais das vezes, as pessoas que se envolviam com o ritual processual assumiam certos papéis, na intenção de responder e corresponder às questões das autoridades e pareciam estar totalmente capturadas pelo dispositivo disciplinar.

Em relação à prova testemunhal, o juiz comentou que nada adiantou, além da afirmativa das testemunhas de que sabiam ter sido o acusado encontrado a sós com a vítima, altas horas da noite, na casa dos patrões de Noêmia. Até mesmo dos antecedentes da vítima, as testemunhas, segundo o magistrado, deixaram de fornecer dados seguros, pois “se umas lhe atribuem bom procedimento, outras há que silenciam sobre esse ponto e, as arroladas pela defesa, não trouxeram elementos convincentes de desregramento ou maus costumes” (Ibid., fls. 102).

Por fim, acerca da violência, Idelfonso comentou que a certidão de nascimento comprovava a menoridade da vítima e, juris et de jure, não poderia ser admitida alegação contrária ao elemento da violência presumida, mesmo que as provas periciais não apontassem para a violência física. Para respaldar essa posição, o juiz citou Viveiros de Castro e suas considerações sobre a menoridade: a menor de 16 anos, conforme a legislação da época, era considerada “incapaz, inconsciente” e seu consentimento seria nulo. Nesse sentido, o réu deveria provar que “a menor tinha inteligência perspicaz e viva, sabia perfeitamente o que fazia, ‘virgo et intacta’ fisicamente, estava moralmente pervertida” (Ibid., fls. 103).

Com as considerações da materialidade, das provas e da violência ajustadas às definições do Código Penal, da jurisprudência e do “livre-convencimento”, o juiz lançou o nome de Abrahão ao rol dos culpados. Com base no decreto, na forma do parágrafo segundo do art. 68 do Código de Menores10 10 Decreto no 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. , o recolhimento de Abrahão, que também era menor de idade, deveria ser feito na Escola de Reforma do Estado do Paraná, pelo prazo de dois anos e seis meses.

O caso de Abrahão, entretanto, não se encerrou com a sentença favorável à sua condenação. Esse processo é bem representativo acerca da época de transição e substituição de um Código Penal por outro. O episódio, inicialmente, estava sendo julgado de acordo com o crime de estupro da legislação penal de 1890, e passou a ser considerado a partir do Código de 1940, assim como outros processos do mesmo período.

Ao “modernizar” as noções jurídicas e médicas quanto ao corpo das mulheres e, por consequência, aos crimes sexuais, os profissionais liberais reformistas buscavam fortalecer a própria autoridade moral e as hierarquias de gênero. Sua atuação ajudou a institucionalizar novas políticas sociais e jurídicas intervencionistas. A queda da República Velha já modificava diversas relações sociais e o Estado Novo apropriou muitos dos discursos que pretendiam acabar com o que os conservadores positivistas consideravam o “liberalismo excessivo” das instituições jurídicas e políticas brasileiras.

A “questão social” e a “questão da mulher” exigiam que os profissionais reformistas dessem respostas ao desejo de modernizar o Brasil para além das aparências. Caulfield (2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000., p. 165), ao analisar a moralidade e a honra no período da Primeira República, reforça que os juristas e médicos procuraram substituir as tradições autoritárias e patriarcais, associadas às oligarquias agrárias, por um sistema democrático mais complexo, distinto por ser preenchido com famílias nucleares física e moralmente higiênicas.

Esses grupos não estavam dispostos a liberalizar a política ou as relações de gênero e se uniam em torno do lema fascista “Deus, pátria e família”. Os conservadores procuravam demonstrar a autoridade dando novos sentidos ao conceito de honra e controlando as paixões populares. Os apoiadores de Getúlio Vargas baseavam-se na estrutura patriarcal da “família tradicional brasileira” para produzir e gerir um modelo de organização social que manteria a estabilidade das hierarquias sociais e as promessas da modernização e dos avanços econômicos.

Com o Estado Novo instaurado, o governo Vargas se esforçou para programar o objetivo suposto de zelar pela moral pública e pelos valores da família, vinculando-os à honra nacional. Todavia,

não foi Vargas quem inventou a honra sexual ou da família, e ele não impôs esses valores a uma população ingênua. As campanhas moralizadoras do Estado Novo também não significaram um simples retorno aos valores tradicionais. Ao contrário, a efervescência das décadas anteriores havia modificado de forma irreversível as concepções tanto popular como jurídica sobre as relações de gênero e família. Essas mudanças tomaram forma concreta com a redefinição de família, honra e crimes sexuais nas leis brasileiras, no início do período autoritário (CAULFIELD, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000., p. 27).

As medidas de um poder estatal centralizado produziram retórica ativa do sentido da honra nacional e sobre a família tradicional brasileira. O regime de Vargas requalificou a honra como um mecanismo de legitimação de autoridade. Desse modo, a jurisprudência que orientaria o Código Penal de 1940 colocava o objetivo de que, ao proteger a virgindade, não estava garantindo unicamente a abstinência sexual das moças solteiras, mas, em especial, a integridade moral delas. Além de adaptar os mais recentes conhecimentos médicos a respeito do hímen, os juristas que redigiram a legislação sexual de 1940 esforçavam-se para considerar as “meninas modernas”11 11 Abreu e Caulfield (1995) afirmam que muitos juristas “alegavam que as mudanças no código penal de 1940 refletiam urna nova ‘média do comportamento social’ e um novo ‘padrão médio da moralidade’, resultado do ‘modernismo’ dos tempos e das liberdades, ‘principalmente das moças nas altas camadas sociais’. As ‘moças modernas’, diziam os juristas, sem deixarem de ser honestas, frequentavam ‘oficinas, repartições públicas e lojas comerciais’, tornando-se muito cedo conhecedoras dos segredos do sexo” (p. 28). e seguir de perto as condições da vida pública das mulheres. Apesar das críticas às estruturas políticas oligárquicas, às tradições patriarcais e a noções como a supervalorização da virgindade física, os juristas reformistas ainda se preocupavam com os efeitos da vida moderna nas funções maternas, na moral das mulheres e na sexualidade feminina.

Em 1940 foi publicado um novo Código Penal, por meio do decreto-lei no 2848, de 07 de dezembro de 1940, que passou a vigorar em 1942, no governo de Vargas. O título dos crimes sexuais foi modificado para “Crime contra os Costumes”. Caulfield assinala:

Ao final da década de 1930, o significado de honra tinha sido ampliado em tantos aspectos que sua eficácia como um meio de diferenciação social havia diminuído dramaticamente. Os juristas passaram a discutir se a defesa legal da honra ainda servia a algum propósito. Redefiniram a honra no novo código penal de 1940, no qual, entre outras mudanças, os crimes sexuais foram classificados como uma ofensa contra os costumes, não mais contra a honra das famílias (Ibid., p. 41).

Além das alterações que implicavam na redefinição do antigo crime de defloramento para o crime de sedução, o crime de estupro (art. 213) passou a ser definido, a partir do Código de 1940 até 2008, como o ato de “constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça”12 12 A pena para o crime de estupro também foi modificada: as penas aumentaram de um a seis anos (1890) para três a oito anos (1940) de prisão. Enquanto isso, no crime de defloramento a pena era de um a quatro anos, passando a ser de dois a quatro anos de prisão nos casos de sedução (PIERANGELI, 2001). . Entre as alterações do Código Penal, esteve o suposto deslocamento da concentração na virtude feminina - além da supressão da categoria “mulher honesta” - para a proteção das menores de idade13 13 Na vigência do Código Penal republicano, manter relações sexuais, sendo a mulher virgem ou não, mas menor de 16 anos, era considerado violência presumida e caracterizado como crime de estupro. Com a mudança do código, a idade instituída para presunção de violência passou a ser 14 anos (PIERANGELI, 2001). .

O Código, redigido por homens, definia que “os crimes de sedução e estupro só poderiam ser praticados pelo homem, sujeito ativo, sendo sempre vítima a mulher, sujeito passivo, de forma que seja o pênis que provoque a introdução na vagina, caso contrário o delito seria enquadrado como atentado público ao pudor”14 14 Diferentemente de todos os documentos de 1931 a 1950 em Irati, o processo autuado em 1929, que ofereceu denúncia contra Domingos — qualificado como um lavrador, de 19 anos —, teve como vítima um menino, de cinco anos. Conforme a portaria, “o denunciado penetrou num matto próximo à casa de José de tal, no logar Iraty-Velho, desta Comarca, às 9 e meia horas, no dia 12 de julho de 1929, levando em sua companhia o referido menor, e ahi, escondido das vistas dos paes do menino, obrigou a sua victima a consentir nos seus desejos, resultando do seu acto carnal e brutal”. Nesse caso, a concepção elaborada por homens sobre o estupro, em que as mulheres eram as vítimas, fez com que o crime fosse enquadrado como “um acto attentatório ao pudor”. Ver processo-crime, Irati, 1929, Cedoc/I. . Em relação a isso, ao estudar as masculinidades em processos-crime do Paraná, Kety Carla de March (2015MARCH, Kety Carla. “Jogos de luzes e sombras”: Processos criminais e subjetividades masculinas no Paraná dos anos 1950. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015.) discutiu como a noção de violência estaria diretamente ligada ao engendramento dos sujeitos e dos papéis sociais circunscritos no gênero, em que diversos campos do saber passaram a considerar a violência como parte integrante das subjetividades. Baseadas em noções naturalizadas sobre as capacidades físicas masculinas e dos homens, sua consistência moral e potência sexual, as leis tinham definições de violência calcadas nos ideais de virilidade e masculinidade relativas à força e ao papel ativo da macheza.

Para Heleieth Saffioti (1987SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987., p. 19), a definição da lei é reflexo de uma sexualidade masculina que foi culturalmente genitalizada por um processo histórico que levou o homem a concentrar a sexualidade nos órgãos genitais. Dessa concentração é originária a expressão “falocracia”, ou seja, “o poder do macho”. Para a autora, de tal posição de poder dos homens nas relações sexuais com as mulheres adveio a noção de que eles são única e exclusivamente os sujeitos do desejo, restando a elas a posição de objeto do desejo masculino.

Se as definições masculinistas de violência e prazer já perpassavam o Código Penal de 1890, elas se estenderam às redefinições da nova lei penal amparada pela cientificidade positivista. Em 1939, com a direção do ministro da Justiça Francisco Campos, os desembargadores Vieira Braga e Narcélio de Queiroz, junto do procurador público Roberto Lira e do jurista Nelson Hungria, participaram da comissão que produziu o novo Código Penal. Era a visão de Nelson Hungria que se empregava na redação do título “Crimes contra os Costumes”. Para ele (HUNGRIA e LACERDA, 1959HUNGRIA, Nelson; LACERDA, Romão Cortez. Comentário ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959., p. 103), o vocábulo “costumes” representava melhor os hábitos sexuais aprovados pela moral prática, ou seja, os costumes eram relativos à conduta sexual adaptada à convivência e disciplina social.

Hungria comandava uma tendência da jurisprudência, no período pós-Primeira Guerra Mundial, que persistia nos ataques ao Código de 1890. Para ele, os juízes precisavam se adaptar à realidade por meio da intepretação criativa, uma vez que a vida moderna apresentava um tipo de mulher bem diferente daquele de meio século antes. Havia em juristas como Hungria a elaboração de um mecanismo retórico para justificar um sistema moral frequentemente transgredido. As mulheres independentes e trabalhadoras, distantes da segurança do lar, eram as já mencionadas “moças modernas”.

Assim como Viveiros de Castro, Hungria escrevia sobre a necessidade de estabelecer critérios para separar e classificar as mulheres honestas das desonestas nos processos de crimes sexuais. Enquanto o primeiro apontava a necessidade de se defender os padrões do que considerava civilizado, presentes no Código de 1890, o segundo expressava o que era consenso entre os juristas dos anos 1930: o Código Penal Republicano precisava ser revogado por ser teoricamente ultrapassado. Foi preciso, positivamente, alterar as leis. De todo modo, todo o ritual jurídico e todos os elementos processuais deveriam ser estritamente seguidos, todas as peças deveriam estar devidamente ajustadas ao que definiam as novas normas.

Aproveitando-se de aberturas presentes nos autos, relacionadas à legitimidade da sentença, o defensor de Abrahão encaminhou para o Tribunal de Apelação novas alegações referentes, entre outras questões, ao que sublinhou como “incompetência de juízo”. Com isso, o advogado declarou que a sentença deveria ser anulada, pois, sendo o réu menor de 16 anos, deveria ser submetido a legislação especial. Segundo o decreto estadual no 794, de 20 de julho de 1925, deveria ser um juiz de menores o responsável pelo julgamento e, fora da capital paranaense, a responsabilidade dos julgamentos, nesses casos, seria do juiz de direito da comarca (Cedoc/Irati, 1941, fls. 110-122). Como a sentença condenatória a Abrahão foi redigida e encaminhada por um juiz substituto, Ildefonso, os autos continuaram tramitando até um novo julgamento.

Em abril de 1942, os vistos finais do novo julgamento foram dados por Joaquim, juiz de direito da Comarca de Irati em boa parte da década de 1940. Inicialmente, o magistrado comentou que a denúncia correspondia ao crime de estupro do novo Código Penal, e que havia legitimidade na ação do Ministério Público em representar os interesses da vítima. Encaminhados os primeiros apontamentos ritualísticos, o julgador passou a construir seus argumentos que levaram a um resultado diferente para o que antes havia sido considerado uma ação criminosa.

Para o juiz, as prova colhida nos autos contra o denunciado residia nas declarações da vítima e no fato de Abrahão ter sido flagrado a sós com Noêmia, mas “[a]s declarações desta, porém, são um amontoado de absurdos que diminuem consideravelmente o seu valor probante” (Ibid., fls. 157-159). Além disso, disse o magistrado, “a vítima pela sua condição de vida, gozando de bastante liberdade, não evidenciou o necessário recato ou sua honestidade” (Ibid., fls. 157-159). Sobre a prova pericial, o magistrado entendeu que elas “nada valiam” para “constatar defloramento recente”. Sem se alongar - característica própria dele -, Joaquim considerou não provada a denúncia e absolveu Abrahão da acusação.

Até aqui, foi interessante perceber, a partir de um caso particular, como os termos da jurisprudência e os estabelecimentos das leis definiam, em muitos sentidos, as articulações dos juízes para determinar as absolvições ou condenações, sempre ancorados pela suposta imparcialidade. Porém, analisar um momento de transição entre os códigos penais, com dois juízes apontando para resultados e verdades diferentes, levanta a seguinte questão: por que, com a mesma literatura jurídica e os mesmos elementos dos autos, os casos poderiam ser julgados e lidos de maneiras distintas? Evidencia-se que a incorporação dos “avanços científicos” de Afrânio Peixoto15 15 Se até a década de 1920 os estudos de medicina legal estavam em estágios iniciais, nos anos 1920 e 1930 as pesquisas de Afrânio Peixoto repercutiram entre os médicos legistas e conquistaram significativa legitimidade nas disputas relacionadas à virgindade. Para Peixoto e outros que escreveram nessas décadas, a preocupação jurídica excessiva com a virgindade fisiológica era evidência do atraso nacional. A medicina legal, que investia na concepção da integridade do hímen como prova inquestionável, entrava em conflito com o desenvolvimento dos estudos sobre fisiologia e as constatações da existência de diferentes hímens e da variedade de formas de seu rompimento. Peixoto era autoridade por ser fundador do Serviço de Medicina Legal do Rio de Janeiro, em 1922, onde havia uma grande amostragem. Sozinho, examinou, ao longo de oito anos, 2.701 hímens, enquanto os mestres da Europa não contavam com 300. Nesse momento, Afrânio Peixoto desembocou uma luta para erradicar a “himenolatria” (PEIXOTO, 1936). ou a redefinição dos termos das leis não alteraram, pronta ou necessariamente, os valores ou os modos de julgar em muitos dos casos e por muitos dos homens da lei. Em ambos os julgamentos, nota-se que o caso, na realidade, estava sendo avaliado de acordo com os apegos do Código Penal anterior, que, na letra da lei, se valia da categoria “honestidade” para determinar as procedências e as sentenças. Mas, diferentemente de Idelfonso, Joaquim leu nos autos que a vítima não era recatada, que a prova pericial não era conclusiva e que a narrativa de Noêmia não deveria ser considerada, remontando toda a tradição de desconfiança em relação à palavra da vítima.

É notável como o modo de produzir as verdades nos crimes sexuais, representados em termos como “defloramento”, com emprego pautado em uma considerável tradição jurídica anterior às novas leis penais de 1940, não foram facilmente abalados e não perderam seus usos pelos magistrados. O mesmo aconteceu com a jurisprudência de Viveiros de Castro, por exemplo. Termos e jurisprudências vestigiais da preocupação dos juízes com a virgindade física das mulheres e com determinação de padrões de comportamento: as “moças de família”, que viviam no “recato do lar doméstico”, “sob a vigilância materna”, virgens “no corpo” e moralmente eram o tipo de mulher que tinha credibilidade e merecia a proteção da Justiça.

As representações dos juízes sobre as condutas das mulheres acabavam determinando suas concepções para o julgamento de crimes contra os costumes. Seriam os casos “sem solução”, que não escapavam nem por uma vírgula dos elementos processuais e das definições das leis, que poderiam levar um homem à condenação. Já os casos de absolvição dos indiciados por crimes sexuais revelam as adjetivações dadas às vítimas, sob um método particular de produção: identificação, exame e classificação (ver FOUCAULT, 2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.). Foram os comportamentos das mulheres que entraram na pauta de diversos outros processos de sedução e estupro julgados em Irati na década de 1940.

Demais absolvições no início da década de 1940

Uma série de denúncias do antigo crime de defloramento passaram a ser reconhecidas, investigadas e julgadas de acordo com o art. 217 do novo Código Penal brasileiro. O que uniu todos esses processos foram as absolvições dadas por Joaquim, o mesmo juiz do segundo julgamento de Abrahão.

O crime de defloramento, previsto no Código Penal de 1890, definia bem a preocupação nevrálgica de uma sociedade que materializava a honra em uma peça anatômica16 16 Ainda nesse contexto, sobretudo nas duas primeiras décadas do século XX, o exame obrigatório de defloramento incluía não apenas o estado do hímen, mas também outras evidências que a medicina legal havia rejeitado, como a flacidez dos seios da mulher não mais virgem, a existência de forte dor e a grande quantidade de sangue na primeira relação sexual. Esses elementos eram usados nas estratégias dos advogados de defesa, o que certamente foi eficaz quando os crimes sexuais eram julgados pelo júri, antes de 1922, e as noções médicas e criminológicas não estavam tão consolidadas. : o hímen representava um acidente biológico que facilitaria a distinção entre as mulheres puras e impuras17 17 “O termo ‘deflorar’ foi uma inovação do código penal de 1830. O direito romano havia usado desvirginatio e devirginare, ao passo que as Ordenações Filipinas eram menos precisas, condenando o homem que ‘dorme com’ ou ‘corrompe’ uma mulher virgem ou uma viúva honesta. Embora muitas nações modernas punissem a sedução de menores de acordo com condições específicas, estas geralmente não incluíam a virgindade prévia das mulheres. Portugal e algumas nações latino-americanas adotaram leis específicas sobre a sedução ou o estupro de moças virgens, mas somente no Brasil se chegou a exigir o defloramento, dando assim ênfase ao elemento material do crime” (CAULFIELD, 2000, p. 75). . Com os estudos de Afrânio Peixoto, a partir da década de 1930, ao menos na letra da lei não se podia mais falar nas marcas físicas de um corpo prostituído, de modo que o Código Penal de 1940 cristalizaria essas alternâncias eliminando do artigo 217 a expressão “defloramento” e fazendo vigorar o crime de “sedução”. O novo código definia como sedução o crime disposto em “[s]eduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança” (PIERANGELI, 2001PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: Evolução histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001., p. 476).

As características próprias do antigo crime de defloramento estavam postas no processo de Miguel e Maria: a materialidade constatada e a confissão da autoria. No entanto, o juiz destacou que a vítima já tinha mais de 18 anos de idade e levantou outro aspecto que considerou fundamental para tornar a denúncia improcedente:

a vítima maior de 18 anos, moça robusta, de inteligência normal e até bastante ativa, cedeu sem maior relutância ao convite de seu namorado, certo pelo impulso de amor carnal, de desejo sexual, desde que seu afeto pelo deflorador não foi além do momento de conseguir um outro namorado (Cedoc/Irati, 1940, fls. 50-51).

Nesse caso, a nulidade do processo foi resultante da alteração de termos e critérios legais, e essa condição bastava para que a culpa não fosse imputada ao réu. No entanto, o julgamento não ficou restrito às questões processuais. A descrição da vítima - “robusta”, de “inteligência normal” e “bastante ativa” - intentava associar tais características ao comportamento considerado não adequado, de quem “cedeu sem maior relutância” ao “impulso de amor carnal”, “de desejo sexual”. Segundo Joaquim, essa avaliação servia para comprovar que, além de tudo, não houve engano nem fraude e, por isso, a vítima não merecia a proteção da Justiça.

A análise dos processos aponta para a existência de certa autonomia dos juízes, sobretudo ao se considerar que eles deveriam adequar suas decisões com base em leis amplas e jurisprudências extensas, abertas a interpretações, por vezes colidentes, que se modificaram e alteraram as práticas jurídicas ao longo do tempo. Em um sistema restrito, com eficácia nas palavras e o discurso específico de um saber, ao juiz era dada a permissão de começar a condenar (MOREIRA, 2014MOREIRA, Mayara Laet. O poder médico de “penetrar” e o poder jurídico de “infamar”: Um crime de defloramento em Cuiabá (1920-1940). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014., p. 102). O poder de saber a “verdade” em jogo, do começo da queixa ao fim dos vistos, é representado pela pronúncia feita por um juiz da improcedência ou da razão do processo instaurado.

Para Fausto (1984FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora brasiliense, 1984.), as decisões condenatórias ou absolutórias obedeciam determinado padrão:

No primeiro caso, as dúvidas quanto à autoria - através do laudo mal feito, da variação da fala da queixosa ou das testemunhas -, os indícios de relações sexuais espontâneas, a inexistência de namoro ou o namoro breve, as ‘manchas’ na vida cotidiana da vítima, a desigualdade social abre caminho à absolvição. No segundo, preponderam os elementos opostos: a autoria apurada, a credibilidade de uma promessa de casamento dada a posição social semelhante dos parceiros e o namoro formal, o recato da vítima, a sexualidade ‘excessiva’ do ofensor, a premeditação do ato por ele praticado (Ibid., pp. 282-283).

Alicerçado basicamente no comportamento social das mulheres, caberia a um juiz a análise das narrativas de vítimas e acusados, assim como as demais provas assentadas nas fases inquisitivas e processuais, com o intento de se chegar a um desfecho para o caso, avaliando a procedência ou a improcedência da ação. Assim, o magistrado deveria formular sua convicção sobre os eventos narrados com base na legislação aplicável ao crime e na jurisprudência dominante, que encaminhava para tal postura. Na sentença, deveria estar abarcada a descrição dos fatos, a fundamentação de sua decisão - articulando as provas materiais, as narrativas dos envolvidos, a prova testemunhal, as alegações de promotores e advogados - e o dispositivo final, que condenaria ou absolveria o réu.

Há ainda outro aspecto importante a ser considerado no ritual: com todos os elementos levantados durante a investigação policial e sintetizados no relatório do delegado, nas investigações judiciais novas informações eram recolhidas na presença do juiz e mediadas por suas intervenções. Em relação a isso, Coulouris (2010COULOURIS, Daniella Georges. Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 55) comenta que o elemento do “livre-convencimento”, juridicamente chamado de “indícios”, era utilizado pelos juízes para examinarem o conteúdo dos autos18 18 De acordo com Coulouris (2010, p. 55): “Em processos de estupro, qualquer elemento é um ‘indício’, qualquer indício é uma prova e qualquer prova serve ao ‘livre-convencimento’ dos juízes. Como observa Foucault, o princípio que legitima esse livre- convencimento é o critério da convicção íntima: ‘regime de verdade universal que se sustenta na capacidade de um sujeito qualquer, de um indivíduo pensante, capaz de conhecimento e de verdade, de formar um convencimento a respeito dos fatos’”. Desse modo, esse princípio nos dá a impressão de que o juiz pode condenar sem provas, ainda mais nos casos de crimes sexuais em que a palavra das vítimas não constituía valor de prova. . A lei previa a imparcialidade dos juízes como um dos pontos centrais para um julgamento justo, sendo que o magistrado deveria se ater apenas ao que era legalmente estipulado, não levando em consideração sua visão íntima sobre o caso. No entanto, os padrões, observados por Fausto, que dividem os casos entre passíveis de absolvição ou de condenação também evidenciam que o “livre-convencimento” estava calcado por padrões de moralidade do julgador.

Não se pode pensar que o juiz fazia parte do ritual da Justiça simplesmente com o papel de julgador, mas, sim, “como sujeito que mede a extensão da pena, como sujeito que assimilou o conhecimento de alguém e que depende de sua aceitação, circulação e proliferação” (MOREIRA, 2014MOREIRA, Mayara Laet. O poder médico de “penetrar” e o poder jurídico de “infamar”: Um crime de defloramento em Cuiabá (1920-1940). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014., p. 97). E, nesse sistema de prova judiciária, procurava-se localizar quem estava dizendo a verdade, sempre de acordo com o que a lei estabelecia, com a orientação das jurisprudências que legitimavam desconfianças e valorações, com base nos saberes incorporados que orientavam o “livre-convencimento” e não desarticulados com o sentido da punição nos casos de crimes sexuais.

Apesar de o Código Penal de 1940 retirar a preocupação com a virgindade física, o juiz poderia continuar afirmando que a prova material, com a realização do exame, constatava que o “defloramento era antigo”. Foi essa a expressão utilizada por Joaquim sobre o caso de Maria Luiza, ressaltando que as provas colhidas nos autos não convenciam da culpabilidade de Boleslau. Atenção maior, no entanto, foi dada ao comportamento da vítima: “jamais foi moça recatada; tanto isto é verdade que, muito antes de acusar o denunciado como autor de seu defloramento se entregara a relações sexuais com mais de uma pessoa” (Cedoc/Irati, 1940, fls. 75). E as considerações valorativas do juiz não pararam por aí: “a vítima teve namorados com intenções honestas e perdeu casamentos pela sua conduta pornográfica demonstrada em suas próprias palestras” (Ibid., fls. 76). Com base nessas afirmações, Joaquim alegou que era impossível presumir a virgindade ou a honestidade da vítima e deu como não provada a denúncia para absolver o réu.

Caulfield (2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000., p. 253) percebeu que os juristas justificavam as intervenções nos domínios da moralidade pela condenação dos crimes sexuais como ofensas contra instituições sociais mais abrangentes, e não como agressões contra indivíduos específicos: era a honra da família ou os costumes que se protegia. Segundo a historiadora, embora os juízes tivessem dificuldade para deliberar sobre a virgindade e o comportamento “honesto” com as redefinições das leis penais, eles continuavam a entender que os códigos deveriam defender um padrão mínimo de ética de sociedade civilizada ou uma moralidade média da população. Os juízes, como Joaquim, não negavam acreditar que uma mulher que perdesse a virgindade reduzia as chances de se casar e construir uma família, tampouco negavam a crença de que a mulher solteira e sexualmente ativa ameaçava a ordem social.

Em outro caso de sedução, julgado pela mesma autoridade, elementos semelhantes afastavam uma sentença condenatória para o réu. Passando a fazer suas considerações sobre Ulisses, indiciado pela sedução de Anasília em 1945, o magistrado comentou que era evidente que o acusado havia mantido relações sexuais com a vítima, mas não teria como “concluir se foi ele o autor do defloramento, muito menos se tivesse se aproveitado da inexperiência” (Cedoc/Irati, 1945, fls. 104). De outro modo, para Joaquim a vítima era “bastante livre em seus amores e na frequência de festas e passeios a noite, não pode arrogar-se uma inexperiente aos perigos da vida mundana” (Ibid., fls. 104).

A pontualidade desses casos evidencia que as autoridades públicas entendiam como normal e aceitável a vida sexual ativa dos homens, ao mesmo tempo que condenavam a vida “bastante livre em seus amores” das mulheres. É impossível não considerar as relações sociais que estruturam essa desigualdade, conforme Coulouris (2010COULOURIS, Daniella Georges. Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., pp. 119-120). No que tange às práticas sexuais, os homens eram definidos por sua configuração biológica, entendida como indispensável para a conservação da espécie - daí as justificativas para uma vida ativa sexualmente. Em oposição, as mulheres não foram pensadas como desejantes e deveriam assumir outra postura: se resguardar, se proteger, ter comportamentos adequados e vestuário discreto para não provocar o instinto sexual dos homens.

Tal posição também foi conferida por Saffioti (2015SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.) em Gênero, patriarcado, violência. Nesse sentido, a posição da autora é categórica: “o poder é macho, branco e, de preferência, heterossexual” (Ibid., p. 33). Aos homens, foram historicamente atribuídos os usos da racionalidade, com a socialização baseada na e estimulada pela agressividade, força e virilidade. A organização social de gênero, fundada na virilidade como força-potência-dominação, naturalizou a violência contra as mulheres. Já em O poder do macho, Saffioti (1987, p. 18) concluiu que o caso extremo do uso do poder na relações homem-mulher poderia ser caracterizado pelo estupro. Contrariando a vontade e a ideia de consentimento, a violência sexual provaria, assim, a capacidade masculina de submeter a outra parte, ou seja, aquele que, segundo a noção dominante, não teria direito ao desejo, não teria direito à escolha.

Para se livrar da “extravagância” de recorrer a tal natureza de crime, Saffioti (Ibid.) lembrou como em relações amorosas estáveis, legais ou consensuais, o estupro aparece como norma e não é sempre pensado como violência. Isso porque, no discurso sexista, o marido teria direito à posse sexual da mulher. Ao se casar e aceitar a vida em comum, a mulher não poderia se furtar das relações sexuais, cujo fim mais “nobre” seria a perpetuação da espécie. Saffioti (Ibid., p. 18) ainda lembra como o direito do homem ao uso sexual da mulher inscreveu-se até mesmo no Código Civil brasileiro, que instituiu que caberia à mulher o dever de procriar, cuidar dos filhos e da casa.

No Código Penal de 1940, extremamente influenciado pelo código italiano fascista, a projeção continuava sendo a da mulher dentro da casa, cuidando da família. A estrutura familiar deveria ser a base desse regime, como também era propagandeado pela ditadura de Vargas. Em termos civis, a conquista do voto das mulheres em 1934 não trouxe muitas mudanças legais; as mulheres permaneciam estigmatizadas e os homens, pensados como dominadores. Nessa direção, as estudiosas de gênero discutiram largamente como a identidade social das mulheres e a dos homens foram construídas a partir da atribuição de distintos papéis a serem cumpridos pelas diferentes categorias de sexo, delimitando e naturalizando os campos em que cada um poderia operar. Assim: “Quando se afirma que é natural que a mulher se ocupe do espaço doméstico, deixando livre para o homem o espaço público, está-se, rigorosamente, naturalizando um resultado da história” (Ibid., p. 11).

É interessante pensar como o direito encarnou essas diferenças e passou a julgar a partir delas: em meados do século XX, o direito penal não queria proteger apenas a mulher honesta, mas também a conservação social que empregava a homens e mulheres diferentes papéis sociais. Também é interessante notar esses elementos nos autos iratienses.

Em um processo de sedução de 1942 que envolveu Júlio e Doralice, Joaquim reconhecia que os peritos constataram a materialidade do crime, mas, diferentemente da década anterior, esse elemento não era mais o principal ponto a ser considerado no julgamento. Mais importante, para o juiz, era a afirmativa de que a vítima, com 17 anos, não era ingênua a ponto de andar a sós com Júlio “se não tivesse como concebido que iria satisfazer os desejos da carne” (Cedoc/Irati, 1942, fls. 116). Junto a isso, o julgador considerou a narrativa das testemunhas de que Doralice não era uma moça recatada e deu o seguinte parecer:

a ausência de seu recatamento, afasta a presunção de sua virgindade. Do mesmo modo afasta a possibilidade de inexperiência, ante a liberdade que gozava a vítima, frequentando bailes suspeitos, passeando a noite com seus namorados, conversando com eles até altas horas, ora aqui, ora ali. Aliás, para corrigir estes males atentatórios a moral, já temos solicitado a ação policial que infelizmente não tem sido eficiente (Ibid., fls. 117).

Mais do que falar sobre os fatores que afastavam a presunção de virgindade e inexperiência do caso de Doralice, Joaquim demonstrou sua preocupação, como autoridade pública, com o que era pensado como um problema moral da sociedade: as mulheres que “gozavam de liberdade”, frequentavam “bailes suspeitos”, passeavam “[à] noite com seus namorados” etc. Essa preocupação, com efetividade prática ao ter “solicitado a ação policial”19 19 A criação de “novas policiais” no Paraná também se relaciona com esse processo. Entre elas, a Delegacia de Costumes, criada pela Polícia Civil do Paraná em 1928, destacava-se pela promoção de um projeto de moralização dos comportamentos dos habitantes da capital paranaense, com a incumbência de investigar e reprimir a prostituição, a mendicância, a vadiagem, a embriaguez e demais ações que pudessem afetar a honra, a dignidade das famílias e a moral. Nayara Elisa de Moraes Aguiar (2016), ao discutir o meretrício e seus meios de controle em Curitiba, analisou como a iniciativa policial respondia à demanda de parte da população da cidade que não aceitava dividir o espaço urbano com aqueles que não eram criminosos, mas afetavam a ordem pública. De maneira geral, o investimento na capital na ordem policial pode ser pensado como um laboratório para as experiências de modernização — das práticas, das técnicas, das estratégias — que depois passaram a ser replicadas no restante do estado do Paraná, na intenção de também combater os desvios sociais. , reflete um dos sentidos da punição nos crimes sexuais: controlar condutas, ajustar posturas, definir limites e, ao mesmo tempo, reproduzir uma moralidade específica. As preocupações dos juristas refletiam as mudanças sociais que envolveram a frequência das mulheres nos espaços públicos, ou seja, as preocupações dos intelectuais da elite brasileira estavam voltadas às mulheres de carne e osso. Essas mudanças sociais, sem dúvidas, também impactaram as mudanças jurídicas.

Luzia Margareth Rago (1990RAGO, Luiza Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990., p. 50), em Os prazeres da noite, analisou como a urbanização e o crescimento socioeconômico das cidades misturavam as demarcações tradicionais entre as atividades femininas e masculinas, pois as mulheres de várias classes sociais passaram a ocupar fábricas, escritórios, escolas, comércios. Assim, a vida urbana ameaçava os códigos cristalizados de participação na vida social e da devida separação entre o público e o privado20 20 Em seu texto, Rago (1990) discute como ao homem sempre foi reservado o privilégio de ser o chefe da família, o principal contribuidor no orçamento familiar, de ocupar os espaços públicos, enquanto a mulher, por oposição, era responsabilizada por ser a boa dona de casa, a protetora do espaço privado do lar. No mesmo sentido, a separação entre o público e o privado foi evidenciada, entre muitas outras estudiosas e estudiosos, por Clarisse Ismério (2019) em Mulher: A moral e o imaginário (1889-1930); por Susan Moller Okin (2008), em “Gênero, público e o privado”; e por Michele Perrot (1998), em Mulheres públicas. Sobre as percepções em relação à presença das mulheres nos espaços públicos, Perrot comenta: “Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher - também se diz a ‘rapariga’ - pública é uma ‘criatura’, mulher comum que pertence a todos. O homem público, sujeito eminente da cidade, deve encarnar a honra e a virtude. A mulher pública constitui vergonha, a parte escondida, dissimulada, noturna, um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria” (Ibid., p. 7). . Segundo a autora, havia um medo latente entre as autoridades públicas em relação às transformações da sociedade urbano-industrial - o que é visível, igualmente, no interior paranaense -, em que a conquista de determinados espaços e direitos no cenário público apontava para a possível igualização entre os sexos. Esse medo também foi suscitado pelos movimentos das sufragistas que reivindicavam o direito ao voto e a igualdade de remuneração salarial pelos mesmos serviços que os feitos pelos homens e questionavam as teorias que justificavam a desigualdade biológica e social entre os sexos. Desse processo, decorreu a associação da “mulher pública” com a prostituta21 21 A prostituta, conforme Rago (1990, p. 53), figurava entre as autoridades públicas como uma ameaça imaginária que habitava a sexualidade de todas as mulheres: elas eram livres, descontroladas e irracionais. , que servia, a juristas e médicos, como um contra ideal, necessário para atuar no limite à liberdade das mulheres.

Assim, “[a] ingenuidade e a inocência das moças de família eram contrapostas ao cinismo das mulheres não submetidas à vigilância familiar, as quais eram consideradas enigmáticas, facilmente corruptíveis e dissimuladas” (CAULFIELD, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000., p. 78). Nesse sentido, juízes como Joaquim, inspirados por Viveiros de Castro e pela doutrina jurídica anterior, em suas decisões, enfatizavam as questões da evolução moral sexual que estavam relacionadas ao respeito pela honra das mulheres por meio da valorização da virgindade.

Em geral, parece estar claro que aspectos relacionados à moralidade do crime de sedução se tornaram o fio condutor para optar pela absolvição dos indiciados, uma vez que a definição do delito não dependia mais da materialidade comprovada pela prova pericial. Nisso, a virgindade deveria ser presumida. Os juízes aproveitavam essa abertura para enfatizarem ainda mais as razões pelas quais as vítimas não mereciam tal presunção: era o comportamento social que falava pela honestidade. Já nos casos de estupro, a materialidade do crime era crucial: para considerar uma vítima verdadeiramente vítima, seria necessário, após a denúncia de estupro, que a violência estivesse positivamente observada, atestada, comprovada. Sem isso, abriria espaço para que se agisse com desconfiança em relação à palavra das mulheres e que se deslocasse o julgamento do crime em si para o comportamento social das vítimas. Os exemplos que confirmam tal postura, ao menos no Judiciário iratiense da década de 1940, não se esgotaram.

Referente ao caso em que João Leandro foi denunciado, em 1941, Joaquim ressaltou que a única acusação que pesava sobre o réu era a palavra da vítima. Com isso, ele quis dizer que a violência ou grave ameaça, características de uma relação não voluntária, não poderiam ser comprovadas com a narrativa de Herta. Aliás, para o julgador, a vítima não merecia credibilidade, pois era “bastante liberal com seus namorados e até de moral suspeita (...) não podia ser tão ingênua” (Cedoc/Irati, 1941, fls. 84). E o juiz encerrou os vistos do seguinte modo: “Si a vítima, na realidade, cede aos instintos bestiais de seu deflorador, pelo ardil empregado, sinceramente, confessamos nosso sentimento em não poder descobrir a verdade dos fatos” (Ibid., fls. 84). O desejo de sentimentos em “não poder descobrir a verdade dos fatos” é praticamente uma confissão dos limites jurídicos e de seu mecanismo de produção da verdade, baseado exclusivamente naquilo que os autos consideravam, conforme a máxima jurídica quod non est in actis non est in mundo22 22 “O que não está nos autos não está no mundo” é uma noção advinda do Direito Romano em que o “mundo” teria uma ligação com a verdade real. Isto é, os autos estabeleceriam a verdade efetiva. .

Nessa mesma direção, Ary foi absolvido em 1943 da culpa pelo crime de estupro. Nos vistos de Joaquim, que julgou a improcedência do caso, ele se concentrou em dizer que a prova dos autos girava em torno da declaração de Catarina, que se apresentava “defeituosa pela suspeita de coação de Afonso”23 23 Inspetor de quarteirão acusado de querer utilizar o caso para se vingar do réu. . Ainda, o juiz atribui o crime ao “estado de abandono e perversão moral que diminui a credibilidade de Catarina” (Idem, 1943, fls. 99).

Com a mesma conotação, Joaquim julgou o caso do estupro de Jesuvina, que tramitou até meados de 1945: “A vítima quase menina ainda, infelizmente já procedia contra os princípios da moral, mantendo relações sexuais com várias pessoas, seguindo, por certo, o exemplo do lar de sua progenitora que vivia amancebada” (Idem, 1944, fls. 99). Segundo o magistrado, a materialidade do crime estava provada pelo exame pericial, mas a vida da vítima retirava a possibilidade de “ser visado com segurança o autor do delito” e Pedro foi absolvido.

De forma geral, nos casos de estupro os discursos continuavam centrados na honra e a violência ou o não consentimento não chegavam a serem citados. A virilidade do homem e a passividade da mulher eram elementos considerados naturais, próprios do que a condição biológica havia imposto aos sexos e, em algum sentido, é por essa dinâmica que a questão não apareceu nos casos de estupro. Se a análise do crime, da violência sofrida pelas mulheres, não entrava no jogo, cabia ao juiz, nas suas sempre breves considerações, seguir desconfiando de mulheres que “procediam contra os princípios da moral”.

Ora, a desconfiança em relação à palavra da vítima era elemento determinante para a sentença dos juízes nos casos de estupro. Em sua pesquisa com os processos da cidade de São Paulo, Coulouris (2010COULOURIS, Daniella Georges. Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.) delegou como tal desconfiança organizava o procedimento de produção da verdade nos crimes sexuais:

apesar de aparentemente estar dentro de uma lógica de investigação ‘normal e correta’, a desconfiança em relação à palavra da vítima nos casos de estupro é uma questão que, por movimentar determinados discursos sobre as mulheres e a verdade e se relacionar aos alvos privilegiados da punição de cada período histórico, interessa discutir (Ibid., p. 12).

Para a autora, esse procedimento de investigação da verdade advém de determinadas representações referente às mulheres que foram reelaboradas e articuladas, a partir do século XIX, por meio da instrumentalização do seguinte trinômio: comportamento adequado é igual a credibilidade, que é igual a verdade. Coulouris ainda discute como esse processo está relacionado ao princípio da norma que, a partir de certos critérios, atribuiu veracidade aos discursos de uns indivíduos em detrimento de outros. Nesse sentido, poderia haver confiança (emprestando a credibilidade) nas declarações de determinadas vítimas - consideradas honestas - em detrimento da palavra dos homens (salvaguardados pela presunção absoluta de inocência do acusado).

Grosso modo, nos casos de sedução e estupro, o tempo todo eram as vítimas que tinham seus comportamentos questionados: a discordância do comportamento em relação a qualquer padrão esperado colocava as mulheres em posição de serem questionadas. Daí a dicotomia mulher honesta versus mulher desonesta.

Considerações finais

Olhar para os documentos judiciais é também olhar para a pluralidade de vozes que se cruzam, por meio das quais os encarregados da Justiça produziram uma verdade formal. Na transformação dos atos em autos, esses processos se tornam documentos oficiais caracterizados pela linguagem da especialização: de peritos, delegados, promotores, advogados e, finalmente, juízes. Produzidos conforme certas fórmulas e parâmetros, com a redução das possibilidades expressivas verbais às amarras do texto escrito, os documentos da Comarca de Irati descrevem as práticas da instituição judiciária, ou de um juiz em particular, que atuaram na regulação dos comportamentos dos homens e, principalmente, das mulheres, meninas, moças.

Convém enfatizar que nos primeiros anos da década de 1940, em Irati, além do fato de os agentes da lei serem todos homens, eles pertenciam às classes mais elevadas. Essa questão atravessava todo o embate pela produção da verdade. As principais personagens das disputas foram sempre mulheres pobres que tiveram suas histórias reveladas apenas em processos criminais; elas eram vítimas que passavam por um anterior processo de exclusão social e financeira. Decorrente disso, essas mulheres, que participavam do ambiente público e tinham um menor monitoramento familiar, tinham seus comportamentos avaliados por um Judiciário despreocupado com questões de classe e suas características sociais e culturais.

Discursos protetores da honra das mulheres poderiam condenar os réus por suas ações, mas, principalmente, condenar as vítimas por não agirem de acordo com os padrões de moralidade: preservação da intimidade, recato, submissão, dedicação ao lar e ao marido. Com isso, os vistos finais de Joaquim Ferreira Guimarães registraram como os comportamentos das mulheres determinavam as concepções para o julgamento de um crime de sedução ou estupro e como, mesmo com a alteração das leis, as narrativas jurídicas agiram com desconfiança em relação à palavra da vítima. Sua análise permitiu perceber como determinados indivíduos, detentores de um saber específico, tinham o poder de dizer a verdade. Munido com a legitimação de sua função, Joaquim parecia acreditar no papel disciplinar que tinha ao falar dos usos que as mulheres poderiam fazer de sua sexualidade e do espaço público. Essa mesma postura não foi necessariamente repetida por Idelfonso, primeiro a julgar o caso de Abrahão. Mas seria ele regra ou exceção, considerando os padrões observados pela historiografia do crime? De todo modo, Joaquim parecia mais alinhado às jurisprudências de Viveiros de Castro e Nelson Hungria.

Não nos livramos de conjecturar como julgamentos avaliados como improcedentes pelo juiz de direito da Comarca de Irati, seja nos processos de sedução ou nos de estupro, poderiam impactar as escolhas futuras, no sentido da “mancha” ocasionado pelo evento nas vidas dos sujeitos envolvidos. Em caso de condenação, com o cumprimento da pena, o homem poderia ter a vida modificada por passar a ser qualificado como um criminoso; os acusados, livres de condenação ou do casamento, viriam a possibilidade de continuar as práticas delituosas e manter a mesma postura em relação às mulheres. A “desonra”, de todo modo, acompanharia a vida das mulheres. Esses, também, eram os efeitos das verdades produzidas.

Antes das análises, parecia certo pensar que seriam encontradas muitas mudanças, apenas por conta das renovações propostas pelo Código Penal, sem considerar que, antes de 1940, já havia uma tradição na produção da verdade há pelo menos meio século. Por isso, pensar as continuidades e rupturas das verdades produzidas nos casos de crimes sexuais exige novas pesquisas que encarem os documentos iratienses e da região sudeste do Paraná, ainda inexplorados, e com maior distância da mudança da legislação penal. Mesmo assim, a retórica permite perguntar: será que até hoje a Justiça não opera com desconfiança em relação à palavra da vítima?

Por um lado, a questão da palavra da vítima e a operacionalização da desconfiança em relação às suas declarações é, de fato, importante. Por outro lado, a ideia de “mulher estuprável” atravessou e atravessa investigações e sentenças nos ditos crimes sexuais. Ainda hoje, não apenas as palavras das vítimas continuam subestimadas, mas, além disso, o sistema jurídico continua retendo a necessidade de recato como único elemento protetivo legítimo contra o estupro. Enfim, as mulheres que não aderem ou não aceitam os padrões “mereceriam ser estupradas”.

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Outras fontes

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  • 1
    Optamos por utilizar apenas os primeiros nomes das partes envolvidas, bem como manter as grafias originais das fontes citadas.
  • 2
    A vítima deveria comparecer, no dia e hora definidos, para realizar os exames ritualizados dos médicos. Neles, os peritos deveriam se apoiar em cinco elementos: 1) se houve defloramento; 2) qual o meio empregado; 3) se houve cópula carnal; 4) se houve violência para fim libidinoso; e 5) qual o meio empregado, se força física ou outros que privassem a mulher de suas faculdades e a impedissem de resistir e se defender. Depois da mudança do Código Penal, outras questões permeavam os laudos: houve conjunção carnal? Qual a data provável? A paciente era virgem? Houve violência para essa prática? Qual o meio dessa violência? Da violência, resultou para a vítima: incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias, perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função, aceleração de parto, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, deformidade permanente ou aborto? É a vítima alienada ou débil mental? Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?
  • 3
    O Ministério Público, encarregado da manutenção da ordem jurídica no Estado e da fiscalização do poder público, estava envolvido na defesa dos interesses sociais e, assim, era o órgão que atuava diretamente na defesa da honra/costumes nos casos de crimes sexuais, considerados com base para denúncia. Uma família sem condições financeiras de custear as despesas dos procedimentos judiciários teria a possibilidade de emitir uma certidão de atestado de miserabilidade, na intenção de obrigar o Estado a responsabilizar-se pelos custos da investigação e, a partir disso, era o promotor público o encarregado da denúncia e da defesa dos interesses da vítima. Junto ao atestado de miserabilidade, o prosseguimento do caso só era efetivado quando o responsável legal, especialmente nos casos de menoridade da ofendida, realizava a solicitação da intervenção da Promotoria Pública. Desse modo, enfatizamos que os processos-crime mencionados nesta pesquisa fazem referência, exclusivamente, às mulheres de famílias pobres.
  • 4
    Decreto-lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941.
  • 5
    Os documentos estão arquivados no Centro de Documentação e Memória (Cedoc) da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), campus de Irati-PR.
  • 6
    “O programa arranca, no primeiro tópico intitulado Parte Geral, da análise dos institutos tratados pelo Código Penal de 1890 (efeitos da lei penal em relação ao tempo, espaço e às pessoas; distinção entre crime e contravenção e entre dolo e culpa; atos preparatórios, tentativa e crime consumado; autoria e cumplicidade; casos de não imputabilidade, circunstâncias justificativas, agravantes e atenuantes; crime uno e crime conexo; pena), para depois passar, em tópico intitulado Sociologia Criminal, ao estudo do crime a partir da evolução das teorias que trataram da individualização da pena (a escola clássica e os defeitos da individualização da pena, a escola neoclássica e a individualização fundada sobre a responsabilidade, e a escola italiana e a individualização fundada sobre a temibilidade do delinquente). Trata-se então especificamente sobre a tradicional questão do livre arbítrio e do determinismo, e ainda das formas de individualização da pena (legal, judiciária e administrativa). Por fim, dando-se ao terceiro tópico do programa o título de Criminologia, ingressa-se no estudo da classificação dos criminosos (natos, eventuais e passionais, loucos e epiléticos, políticos e sociais, patológico e psicológico)” (DRUMMOND, 2011DRUMMOND, Paulo Henrique Dias. Ciência e ensino na cultura jurídica paranaense: Direito Penal e Filosofia do Direito no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Paraná (1913-1953). Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011., p. 155).
  • 7
    “O advogado José Alencar Piedade, em texto com o qual abria o primeiro exemplar da Gazeta dos Tribunais, periódico ao qual já foi feito referência, dizia, partindo do conhecido texto de Viveiros de Castro sobre a ‘Nova Escola Penal’ e fazendo conclamo em prol do estabelecimento de um instituto de advogados no Paraná” (DRUMMOND, 2011DRUMMOND, Paulo Henrique Dias. Ciência e ensino na cultura jurídica paranaense: Direito Penal e Filosofia do Direito no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Paraná (1913-1953). Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011., p. 156).
  • 8
    Nesse sentido, as práticas e os discursos jurídicos aparecem na análise de Bourdieu como determinadas pelas relações de força e pela lógica interna, conforme Coelho (1981COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1981.) e Coulouris (2010COULOURIS, Daniella Georges. Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.). De um lado, as forças organizam os conflitos de competências no interior do campo jurídico — com suas instâncias hierárquicas de resolução de conflitos entre intérpretes e interpretações; de outro lado, há a lógica das obras jurídicas que demarcam em cada ocasião o espaço do possível e o “universo das soluções propriamente jurídicas”.
  • 9
    Conforme Eva Gravon (2002): “Tal discurso serve como instrumento de proliferação da desigualdade dentro do tribunal. As pessoas em litígio são excluídas ou ao menos prejudicadas no debate no tribunal quando o padrão ou nível de discurso em que estão localizados não está em conformidade com os padrões do Poder Judiciário. O poder judiciário fora constituído por homens e por uma visão de mundo hierárquica e desigual, aproveitava-se, nesse momento, para a divulgação dos comportamentos aceitáveis, normais, corretos. Assim, as condutas eram enquadradas dentro de moldes burgueses, que visavam a proliferação de comportamentos idealizados e que serviriam como o padrão de julgamento das atitudes entre os homens e as mulheres das camadas populares” (p. 95).
  • 10
    Decreto no 17.943-A, de 12 de outubro de 1927.
  • 11
    Abreu e Caulfield (1995ABREU, Marta; CAULFIELD, Sueann. “50 anos de virgindade no Rio de Janeiro: As políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890 a 1940)”. Caderno Espaço feminino, Uberlândia, vol. 1, n. 1, pp. 15-52, 1995.) afirmam que muitos juristas “alegavam que as mudanças no código penal de 1940 refletiam urna nova ‘média do comportamento social’ e um novo ‘padrão médio da moralidade’, resultado do ‘modernismo’ dos tempos e das liberdades, ‘principalmente das moças nas altas camadas sociais’. As ‘moças modernas’, diziam os juristas, sem deixarem de ser honestas, frequentavam ‘oficinas, repartições públicas e lojas comerciais’, tornando-se muito cedo conhecedoras dos segredos do sexo” (p. 28).
  • 12
    A pena para o crime de estupro também foi modificada: as penas aumentaram de um a seis anos (1890) para três a oito anos (1940) de prisão. Enquanto isso, no crime de defloramento a pena era de um a quatro anos, passando a ser de dois a quatro anos de prisão nos casos de sedução (PIERANGELI, 2001PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: Evolução histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.).
  • 13
    Na vigência do Código Penal republicano, manter relações sexuais, sendo a mulher virgem ou não, mas menor de 16 anos, era considerado violência presumida e caracterizado como crime de estupro. Com a mudança do código, a idade instituída para presunção de violência passou a ser 14 anos (PIERANGELI, 2001PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: Evolução histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.).
  • 14
    Diferentemente de todos os documentos de 1931 a 1950 em Irati, o processo autuado em 1929, que ofereceu denúncia contra Domingos — qualificado como um lavrador, de 19 anos —, teve como vítima um menino, de cinco anos. Conforme a portaria, “o denunciado penetrou num matto próximo à casa de José de tal, no logar Iraty-Velho, desta Comarca, às 9 e meia horas, no dia 12 de julho de 1929, levando em sua companhia o referido menor, e ahi, escondido das vistas dos paes do menino, obrigou a sua victima a consentir nos seus desejos, resultando do seu acto carnal e brutal”. Nesse caso, a concepção elaborada por homens sobre o estupro, em que as mulheres eram as vítimas, fez com que o crime fosse enquadrado como “um acto attentatório ao pudor”. Ver processo-crime, Irati, 1929, Cedoc/I.
  • 15
    Se até a década de 1920 os estudos de medicina legal estavam em estágios iniciais, nos anos 1920 e 1930 as pesquisas de Afrânio Peixoto repercutiram entre os médicos legistas e conquistaram significativa legitimidade nas disputas relacionadas à virgindade. Para Peixoto e outros que escreveram nessas décadas, a preocupação jurídica excessiva com a virgindade fisiológica era evidência do atraso nacional. A medicina legal, que investia na concepção da integridade do hímen como prova inquestionável, entrava em conflito com o desenvolvimento dos estudos sobre fisiologia e as constatações da existência de diferentes hímens e da variedade de formas de seu rompimento. Peixoto era autoridade por ser fundador do Serviço de Medicina Legal do Rio de Janeiro, em 1922, onde havia uma grande amostragem. Sozinho, examinou, ao longo de oito anos, 2.701 hímens, enquanto os mestres da Europa não contavam com 300. Nesse momento, Afrânio Peixoto desembocou uma luta para erradicar a “himenolatria” (PEIXOTO, 1936PEIXOTO, Afrânio. Medicina legal. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1936.).
  • 16
    Ainda nesse contexto, sobretudo nas duas primeiras décadas do século XX, o exame obrigatório de defloramento incluía não apenas o estado do hímen, mas também outras evidências que a medicina legal havia rejeitado, como a flacidez dos seios da mulher não mais virgem, a existência de forte dor e a grande quantidade de sangue na primeira relação sexual. Esses elementos eram usados nas estratégias dos advogados de defesa, o que certamente foi eficaz quando os crimes sexuais eram julgados pelo júri, antes de 1922, e as noções médicas e criminológicas não estavam tão consolidadas.
  • 17
    “O termo ‘deflorar’ foi uma inovação do código penal de 1830. O direito romano havia usado desvirginatio e devirginare, ao passo que as Ordenações Filipinas eram menos precisas, condenando o homem que ‘dorme com’ ou ‘corrompe’ uma mulher virgem ou uma viúva honesta. Embora muitas nações modernas punissem a sedução de menores de acordo com condições específicas, estas geralmente não incluíam a virgindade prévia das mulheres. Portugal e algumas nações latino-americanas adotaram leis específicas sobre a sedução ou o estupro de moças virgens, mas somente no Brasil se chegou a exigir o defloramento, dando assim ênfase ao elemento material do crime” (CAULFIELD, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000., p. 75).
  • 18
    De acordo com Coulouris (2010COULOURIS, Daniella Georges. Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 55): “Em processos de estupro, qualquer elemento é um ‘indício’, qualquer indício é uma prova e qualquer prova serve ao ‘livre-convencimento’ dos juízes. Como observa Foucault, o princípio que legitima esse livre- convencimento é o critério da convicção íntima: ‘regime de verdade universal que se sustenta na capacidade de um sujeito qualquer, de um indivíduo pensante, capaz de conhecimento e de verdade, de formar um convencimento a respeito dos fatos’”. Desse modo, esse princípio nos dá a impressão de que o juiz pode condenar sem provas, ainda mais nos casos de crimes sexuais em que a palavra das vítimas não constituía valor de prova.
  • 19
    A criação de “novas policiais” no Paraná também se relaciona com esse processo. Entre elas, a Delegacia de Costumes, criada pela Polícia Civil do Paraná em 1928, destacava-se pela promoção de um projeto de moralização dos comportamentos dos habitantes da capital paranaense, com a incumbência de investigar e reprimir a prostituição, a mendicância, a vadiagem, a embriaguez e demais ações que pudessem afetar a honra, a dignidade das famílias e a moral. Nayara Elisa de Moraes Aguiar (2016AGUIAR, Nayara Elisa de Moraes. Um incômodo moral: O meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.), ao discutir o meretrício e seus meios de controle em Curitiba, analisou como a iniciativa policial respondia à demanda de parte da população da cidade que não aceitava dividir o espaço urbano com aqueles que não eram criminosos, mas afetavam a ordem pública. De maneira geral, o investimento na capital na ordem policial pode ser pensado como um laboratório para as experiências de modernização — das práticas, das técnicas, das estratégias — que depois passaram a ser replicadas no restante do estado do Paraná, na intenção de também combater os desvios sociais.
  • 20
    Em seu texto, Rago (1990RAGO, Luiza Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990.) discute como ao homem sempre foi reservado o privilégio de ser o chefe da família, o principal contribuidor no orçamento familiar, de ocupar os espaços públicos, enquanto a mulher, por oposição, era responsabilizada por ser a boa dona de casa, a protetora do espaço privado do lar. No mesmo sentido, a separação entre o público e o privado foi evidenciada, entre muitas outras estudiosas e estudiosos, por Clarisse Ismério (2019ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: A moral e o imaginário (1889-1930). Bagé: Ediurcamp, 2019.) em Mulher: A moral e o imaginário (1889-1930); por Susan Moller Okin (2008OKIN, Susan Moller. “Gênero, público e o privado”. Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 16, n. 2, pp. 305-322, 2008.), em “Gênero, público e o privado”; e por Michele Perrot (1998PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Unesp, 1998.), em Mulheres públicas. Sobre as percepções em relação à presença das mulheres nos espaços públicos, Perrot comenta: “Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher - também se diz a ‘rapariga’ - pública é uma ‘criatura’, mulher comum que pertence a todos. O homem público, sujeito eminente da cidade, deve encarnar a honra e a virtude. A mulher pública constitui vergonha, a parte escondida, dissimulada, noturna, um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria” (Ibid., p. 7).
  • 21
    A prostituta, conforme Rago (1990RAGO, Luiza Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990., p. 53), figurava entre as autoridades públicas como uma ameaça imaginária que habitava a sexualidade de todas as mulheres: elas eram livres, descontroladas e irracionais.
  • 22
    “O que não está nos autos não está no mundo” é uma noção advinda do Direito Romano em que o “mundo” teria uma ligação com a verdade real. Isto é, os autos estabeleceriam a verdade efetiva.
  • 23
    Inspetor de quarteirão acusado de querer utilizar o caso para se vingar do réu.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2021
  • Aceito
    15 Abr 2021
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