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Identificar e discriminar: Notas sobre a política criminal em Fortaleza nas décadas iniciais do século XX

Identify and Discriminate: Notes about Fortaleza’s Criminal Policy in the Early Decades of the 20th Century

RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar a política criminal e seus fundamentos em Fortaleza no início do século XX, evidenciando como as doutrinas criminais lombrosianas fomentaram discursos que associavam o crime à miséria e ao vício, bem como a discussão de mecanismos de vigilância e controle visando reordenar o espaço urbano e social. Nesse sentido, pretende-se analisar como a política criminal foi se constituindo a partir da apropriação de ideias da criminologia moderna, elaboradas pela elite intelectual e política, além de evidenciar a relação que o Estado manteve com o contingente pobre da população, tratado como “classes perigosas”.

Palavras-chave:
política criminal; criminologia; classes perigosas; intelectuais; Estado

ABSTRACT

Identify and Discriminate: Notes about Fortaleza’s Criminal Policy in the Early Decades of the 20th Century aims to analyze the criminal policy and its foundations in Fortaleza at the beginning of the 20th century, highlighting how the Lombrosian criminal doctrines fostered discourses that associated crime with misery and vice, as well as the discussion of surveillance and social control mechanisms aimed at reordering the urban and social space. In this sense, we intend to analyze how the criminal policy was constituted from the appropriation of ideas from the modern criminology, developed by the intellectual and political elite, in addition to highlighting the relationship that the state maintained with the poor contingent of the population, treated as “dangerous classes”.

Keywords:
criminal policy; criminology; dangerous classes; scholars; state

Introdução

A partir de sua inserção no sistema capitalista, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o Brasil passou por transformações estruturais. Fatores como a abolição da escravidão, a introdução do trabalho assalariado e a Proclamação da República, que forçaram o desenvolvimento de uma nova ordem social e política, foram acompanhados por um processo de urbanização das principais cidades do país, que passaram por “reformas urbanas e sociais visando adequar o espaço citadino e sua população aos padrões de civilização importados da Europa e à lógica de trabalho capitalista” (PONTE, 1999PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). Fortaleza: Multigraf, 1999., p. 13).

A principal questão discutida em meio a essas modificações nas capitais do país dizia respeito a como disciplinar a população, moldando-a às novas regras de trabalho, visto que as elites não poderiam mais se valer da dominação e sujeição física, como acontecia na época da escravidão (CHALHOUB, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). Nesse momento, novos valores sociais foram forjados, destacando-se o apreço ao trabalho, à propriedade e à razão. Esses valores deveriam ser internalizados pela população para que, conforme os anseios das classes dominantes, o “progresso” fosse atingido. Com base nesses valores e interesses, estigmatizou-se a população mais pobre, vista com maior propensão ao crime e aos vícios da vida cotidiana, o que era justificado por uma visão científica da época e que serviu para legitimar uma maior vigilância e repressão a tais grupos sociais.

Fortaleza, a capital do Ceará, não ficou apartada desse processo. Chegando a ter quase 100 mil almas na década de 1920, destacou-se entre as dez maiores cidades do Brasil. Em seu caso, o contexto de mudanças e reformas envolvia questões particulares: as secas e seus retirantes. As constantes estiagens que atingiram o território cearense (em 1877, 1899, 1900, 1915 e 1932) foram modificando as percepções ou estruturas de sentimentos (NEVES, 2000NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: Saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.) que tanto a elite dirigente quanto a população tinham do retirante, das migrações periódicas para a capital e da pobreza. A nova realidade instalada na cidade demandou novas formas de lidar com a situação, apelando para um controle mais efetivo do ambiente em que se achavam esses “flagelados” e a população mais pobre e havendo, portanto, uma vigilância de seus movimentos, hábitos e costumes, considerados inadequados e, muitas vezes, perigosos.

Para pensar em técnicas e mecanismos de vigilância, profilaxia social e até de repressão, as elites letradas, compostas por profissionais liberais (médicos, engenheiros, bacharéis em direito, entre outros), valeram-se de leituras científicas e de seu status de detentores da “verdade” para traçar estratégias que pudessem auxiliar o poder público no processo de reordenamento social e urbano. Devido à posição de destaque que ocupavam, esses intelectuais utilizavam espaços de escrita de instituições de saber para angariar maior prestígio social, passando a ocupar cargos no corpo burocrático do Estado e a influenciar o ambiente político.

Foi na Academia Cearense e na Academia Livre de Direito, fundadas, respectivamente, em 1894 e 1903, e na corporação policial que esses sujeitos, por meio de artigos publicados nas revistas dessas instituições, se inseriram em debates, discutiram e construíram discursos, representações sobre a cidade e sua população pobre, prescrevendo medidas saneadoras, higienistas e de combate à criminalidade.

Em meio a esse cenário, uma política criminal começou a ser gestada nas falas e materializada nos relatórios oficiais da elite intelectual e política cearense. Por meio da apropriação das teorias da criminologia moderna1 1 “Ciência voltada para o estudo do criminoso e das causas da criminalidade legitimando-se como saber acadêmico no final do século XIX, sendo importada para o Brasil e discutida nos espaços intelectuais dos principais centros urbanos, voltando-se para o desenvolvimento de mecanismos de controle social de setores da população considerados perigosos e mais propensos ao crime” (ÁLVAREZ, 2006, p. 147). Ver também Cunha (2002). , procuravam dar novos significados a suas ideias (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.), para que se adequassem às necessidades contextuais de combate à criminalidade no espaço urbano cearense. Na estrutura dessa política estavam presentes discussões sobre as concepções teóricas do crime, os fatores determinantes da criminalidade, as características e os tipos de criminoso, os meios profiláticos de contenção criminal, tipos de regimes penitenciários e a finalidade dos meios coercitivos do Estado.

Enquanto as discussões sobre quais seriam os moldes ideais de combate à criminalidade e quem seriam os grupos potencialmente perigosos rompiam os limites dos circuitos letrados e invadiam o espaço político, ficavam evidentes alguns obstáculos à instauração dessa política criminal. Destacam-se: a estrutura deficitária das cadeias do estado, inclusive a da capital; uma polícia despreparada e sem recursos; a falta de mecanismos de identificação criminal2 2 Para saber mais sobre a tentativa de modernização e os desafios da atuação policial em Fortaleza nas décadas iniciais do século XX, conferir Fonteles Neto (2006, pp. 95-11). ; as mazelas das secas, que demandavam muitos recursos públicos para setores de assistência; e a presença, em diversos espaços de Fortaleza, de grupos considerados indesejáveis para setores aburguesados e o poder público, como mendigos, ociosos, considerados vadios, meretrizes e menores de rua.

A análise da política criminal desenvolvida nos discursos dos intelectuais de Fortaleza no início do século XX nos permite ver como eram criados estereótipos que criminalizavam indivíduos tidos como indesejáveis. Ao mesmo tempo, possibilita-nos observar como o Estado se valia desse imaginário para engendrar políticas públicas que definiriam suas relações de poder com as classes populares. Vale frisar que essas representações e relações ainda persistem no presente, revelando-nos as formas de interação entre diferentes grupos sociais e como o poder público e a própria sociedade lidam com a pobreza e o pobre.

Circulação e apropriação de ideias: a construção de estereótipos

A ciência criminológica começou a ser repensada e a se renovar a partir do final do século XIX na Europa e teve seu auge, em diversas partes do mundo, no início do século XX, quando se institucionalizou como disciplina nos principais centros universitários, baseando-se em novas concepções acerca do crime, do criminoso e de sua responsabilidade penal. Essa revisão de ideias consistia na crítica às teorias da Escola Clássica do Direito Penal, que enfatizava a liberdade individual sem atentar para o estudo do delinquente e de suas características singulares, além do meio em que estava inserido.

Dessa cisão no campo científico surgiu a Escola Positiva, liderada por Césare Lombroso, Raffaele Garofalo, Enrico Ferri, Gabriel Tarde e Alexandre Lacassagne, deslocando a atenção para o conhecimento do indivíduo criminoso a partir de uma visão determinista, que levava em consideração as condições externas e internas para explicar a ocorrência do delito. Entretanto, mesmo nessa nova escola houve disputas pelo monopólio do discurso sobre o criminoso a partir de interpretações diferentes em relação aos fatores determinantes da criminalidade, que iam desde fatores biológicos até condições sociais.

Para o professor italiano Lombroso, criador da chamada antropologia criminal, o crime seria resultado de uma degenerescência biológica do indivíduo, viciado física e moralmente. O tipo criminoso também seria marcado por taras físicas que os denunciariam, além de deter estigmas atávicos (características hereditárias) de propensões sanguinárias que poderiam passar hereditariamente para sua prole. Nessa doutrina, foi esculpido o conceito mais caro à escola, o do “criminoso nato”, que caracterizaria o indivíduo como perigoso, com tendência criminal, incorrigível e com instintos antissociais (DARMON, 1991DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: A medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.).

As ideias antropológicas foram constantemente discutidas em congressos científicos por toda a Europa. Nas últimas décadas do século XIX, porém, passaram a sofrer severas críticas por conta de seu apego exagerado ao “biologismo”, em detrimento de outras variáveis de explicação, o que demandou ajustes nas proposições dos seus próprios adeptos. Por consequência, Enrico Ferri, professor de direito penal, discípulo de Lombroso, preocupou-se em escrever um ensaio chamado Sociologia criminal, em que considerou também os fatores sociais, juntamente com os individuais e físicos, no estudo da etiologia do crime.

Contrária à Escola Positiva, nasceu a Escola Sociológica Francesa, crítica das teses lombrosianas e defensora da visão do crime como fruto do meio social, e não produto de degenerescência biológica. O delito passava a ser considerado um fenômeno social e a criminalidade seria gestada a partir de “condições ambientais, como o clima, a geografia do meio, a pobreza, a educação, o alcoolismo” (HARRIS, 1993HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: Medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993., p. 100), entre outras, que criariam justificativas teóricas para medidas intervencionistas na realidade urbana. Para esse grupo científico, os fatores sociais seriam preponderantes na explicação do crime e da tendência criminosa do indivíduo, apesar de os cientistas não descartarem a existência e interação com agentes patológicos (Ibid.).

O aparecimento dessas ideias no Brasil se deu nos centros de ensino jurídico, como a Faculdade de Direito de São Paulo e a Faculdade de Direito do Recife, principalmente após os anos 1870, momento de discussões acerca das doutrinas do evolucionismo, darwinismo, liberalismo e positivismo. Assim, teve início a formação de uma casta intelectual versada nessas interpretações, que se espalhavam por todo o país. Vários membros da elite letrada cearense eram egressos desses dois centros e contribuíram para a ampla difusão das doutrinas criminais nos circuitos letrados e no âmbito político do Estado.

O cenário nacional foi marcado por intensas transformações políticas e sociais, desde o contínuo enfraquecimento do regime imperial e a Proclamação da República até o processo de urbanização, que definiam novas formas de sociabilidade e de lidar com o espaço da cidade. Concomitantemente, a apropriação das doutrinas criminais pelos intelectuais serviu para traçar estratégias de conformação, controle e reordenamento dessa nova realidade emergente e dos indivíduos nela inseridos, como tinha acontecido em momentos pontuais na história de países europeus3 3 “Na Itália, as teorias lombrosianas ganharam destaque em meio ao processo de unificação do país, sendo usadas para identificar as áreas de ‘regressão’ que assolavam o país e que dificultava a estabilidade política, justificando o estado de “selvageria” dos seus habitantes e a presença de atavismos naqueles que participavam das constantes dissidências regionais e que, portanto, seriam excluídos do poder civil e político. Já na França, no início da Terceira República, em meio a uma tentativa do governo de ‘civilizar’ e ‘colonizar’ regiões distantes da nação, a criminologia fez parte de uma tentativa mais ampla de identificar e eliminar os elementos de ‘selvageria’ e instabilidade política hostis aos interesses nacionais” (HARRIS, 1993, p. 94). .

O primeiro registro que se tem das discussões sobre as ideias criminais no Ceará, mais especificamente em Fortaleza, é de 1894 e diz respeito a uma publicação na revista científica Ceará Ilustrado, de circulação quinzenal. O artigo, intitulado “Sociologia criminal: palavras de política criminal”, é assinado pelo Dr. Pedro de Queiróz e traz uma discussão sobre as principais teses da Escola Positiva, tendo sido republicado posteriormente pela Academia Cearense, da qual o autor era sócio e fundador.

No ano seguinte, Clóvis Beviláqua4 4 “Matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1878, bacharelando-se em novembro de 1882. Em 1891 foi nomeado lente da dita faculdade, onde professou a cadeira de legislação comparada. Autor do Código Civil de 1916, escritor da obra Criminologia e Direito abordada por P. de Queiróz que fez muitas adjetivações honrosas, chamando-o de másculo pensador, erudito direitista. Foi membro correspondente da Academia Cearense e do Centro literário, de Fortaleza” (STUDART, 1900, p. 19). , professor cearense da Faculdade de Direito do Recife, publicou partes do seu livro Criminologia e direito no jornal O Pão, a fim de fomentar a discussão sobre as renovações das ideias no campo criminal e suas implicações no ordenamento jurídico. Seus escritos foram mencionados pelo próprio Pedro de Queiróz, na revista da Academia Cearense, em 1896, como importante bibliografia científica. Os dois intelectuais mantinham conversas sobre as teses criminais que estavam em voga. Dessa forma, inseriu-se no circuito letrado cearense o debate acerca de leituras científicas do campo da criminologia, que proporcionaria uma apropriação peculiar vinculada às necessidades da época.

A grande questão sobre a qual se debruçaram esses letrados, e que representa boa parte das discussões à época, diz respeito aos fatores biológico e social, considerados por ambos produtores da criminalidade, mas em proporções diferentes. Apesar de defender algumas contribuições da escola antropológica, Beviláqua a criticava pelo fato de sua argumentação “consistir na interpretação puramente biológica das modalidades criminaes, como se por basear-se na biologia não tivesse uma esfera própria a sociologia” (BEVILÁQUA, 1896BEVILÁQUA, Clóvis. Criminologia e direito. Salvador: Livraria Magalhães, 1896., p. 15). Para ele, o crime deveria ser visto sob o prisma social, interpretando-se o criminoso primordialmente como fruto do meio em que estava inserido. O jurista não desprezava a presença de uma constituição biológica que tornasse o indivíduo mais propenso ao crime, apenas defendia que os fatos sociais eram preponderantes na orientação dos delitos e na produção dos transgressores. Em suas palavras:

é sempre verdade que este ponto de vista biológico não explica o crime de um modo completo, pois que este é, antes de tudo, um facto social. Muito embora seu aparecimento exija, geralmente, da parte dos indivíduos certas condições physiológicas especiaes, muito embora sua embryogenia se desdobre no domínio da psychologia, sua eclosão se vae fazer na sociedade, seu germen veio dela e, dentre os factores que concorrem para a sua producção, os sociaes são, sem dúvida, os mais valiosos, o que não importa afirmar que os physicos e anthropologicos sejam de exígua importância (Ibid., p. 54).

Em síntese, a crítica de Beviláqua à antropologia criminal era direcionada à ideia do criminoso nato, por discordar da existência de um delinquente que pudesse ser marcado por taras atávicas e instintos selvagens independentemente do ambiente em que estivesse inserido.

Enquanto ele se filiava às ideias da Escola Sociológica Francesa, capitaneada por Tarde e Lacassagne, Pedro de Queiróz5 5 “Bacharelou-se em Direito, em 1880, na Faculdade de Direito do Recife. Colaborou igualmente no Ceará Illustrado, nele expondo a doutrina da Escola Anthropologica Criminal Italiana. É um dos redactores da Revista da Academia Cearense, associação de que é vice-presidente. Ocupou diversos cargos públicos, como o de chefe de polícia no Ceará e desembargador” (STUDART, 1906, p. 161). parecia divergir delas em determinados pontos e convergir em outros. Em seu artigo publicado no Ceará Ilustrado, ele elogia a “descoberta, quase genial, do criminoso nato” por Lombroso e diz que, pelo método antropométrico deste, surgiu com a criminologia um novo conceito de crime e também uma nova teoria da repressão. O membro da Academia Cearense de Letras concordava com a forma de pensar o criminoso como fruto de condições determinantes que subvertiam o livre-arbítrio do indivíduo, o que garantiria subsídios para uma ação interventora contra determinados ambientes e tipos indesejáveis. Essa ação era vista como uma autodefesa da própria sociedade e, na criminologia, foi conceitualmente chamada de “defesa social”. Aí estaria a justificativa científica usada por parte dos membros da elite letrada e política para a adoção de medidas saneadoras e de controle social que construiria estigmas sobre a população pobre da urbe.

Apesar das conversas e do maior contato com o Dr. Beviláqua, mostrando também certa afeição pelas teses lombrosianas, Pedro de Queiróz discordava de ambos em se tratando de justificar as origens da criminalidade. Ele se aproximava das ideias de Ferri e de sua sociologia criminal, ao dizer que:

O crime não é um acto meramente voluntario do homem, um seu feito puramente arbitrário - é antes um resultado dos modificadores cósmicos e sociaes. (...) A teratologia moral - como a da anatomia, dobra-se ao influxo de causas que se podem dividir em extrínsecas e intrínsecas, estranhas ou peculiares ao delinquente. As primeiras se subdividem em cósmicas, clima, fertilidade do solo, etc., e sociaes, densidade da população, concorrência econômica, instrucção, miséria, riqueza, etc. As intrínsecas - que E. Ferri chama de factores anthropologicos - são a edade, o temperamento, o caracter, a hereditariedade - a de mais nota, etc., isto é, o estado psycho-somatico do criminoso (QUEIRÓZ, 1914QUEIRÓZ, Pedro de. “Sociologia criminal: Palavras de política criminal”. Revista da Academia Cearense, Fortaleza, vol. 19, pp. 97-116, 1914., p. 111).

Pensar o criminoso como fruto da convergência de fatores físicos, antropológicos e sociais fazia parte do entendimento desse intelectual, que também compartilhava da crença na existência de um criminoso nato, que seria aquele reincidente, incorrigível, portador de taras físicas que denunciavam sua inferioridade de raça.

Mesmo com certa heterogeneidade na forma de interpretar o crime, o discurso de Pedro de Queiróz muito se assemelha ao de Beviláqua quando este elenca os fatores para o fenômeno e ressalta que o meio social propício ao crime seria aquele “cujos meios de repressão se afrouxam, a educação descurada não tracta de cultivar o caracter”, assim como aquele marcado pelas “crises econômicas e políticas, a miséria invencível dos que não podem luctar vantajosamente pela vida, o alcoolismo” (BEVILÁQUA, 1896BEVILÁQUA, Clóvis. Criminologia e direito. Salvador: Livraria Magalhães, 1896., p. 55). Percebe-se pontos em comum entre os discursos quando ambos falam da miséria, da instrução e também do alcoolismo, apontado por Pedro de Queiróz em outros textos seus.

Após analisarmos as produções da época, apesar de algumas divergências, percebemos certo padrão em relação às condições que explicariam a criminalidade. Grande parte dos debates entre as elites intelectuais se pautava na ideia de que o criminoso era identificado tanto por suas características biológicas - quando, por exemplo, suas taras internas eram despertadas por fatores externos - como pelas condições do meio em que estava inserido.

Em um artigo publicado na revista A Juricidade, da Academia Livre de Direito, o crime foi definido como “produto das disposições hereditárias do indivíduo combinadas com as impressões [sociais] que desde o berço agiram sobre ele” (CÉZAR, 1907CÉZAR, Mello. “Etiologia do crime e meios de defesa social”. A Juricidade: Revista de Direito theorico, Legislação e Direito prático, Fortaleza, ano 1, n. 1, pp. 24-40, 1907., p. 27). Tempos depois, na Revista Policial, o crime ainda era interpretado como “consequência de um traço orgânico, duma anormalidade biológica, a ser visto na própria pessoa do criminoso e no meio em que este delinquiu, oferecendo assim melhores probabilidades para o efeito da repressão do delicto e regeneração dos delinquentes” (FIRMEZA, 1930FIRMEZA, Virgílio. “Universidades do delicto”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 6, pp. 35-36, 1930., p. 35). A distância temporal entre os discursos mostra como as transformações sociais e políticas no contexto cearense ainda demandavam a apropriação dessas ideias para fomentar estratégias de controle social e de combate aos indivíduos identificados como indesejáveis e perigosos.

Em meio a um contexto de intensas reformas urbanas e sociais pelas quais passava Fortaleza - quando se buscava alinhar o centro urbano aos padrões europeus de civilização por meio de uma regeneração da cidade (PONTES, 1999PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). Fortaleza: Multigraf, 1999.) -, enfrentava-se grandes problemas derivados das secas. Destaca-se o movimento de retirantes para a capital, responsável pelo crescimento desordenado do espaço urbano que se queria embelezar e organizar.

A partir da sua posição de entreposto comercial com o mundo industrializado, a capital alencarina começava a se inserir no sistema capitalista, o que gerou uma mudança na forma de se ver a força do trabalho, o espaço urbano e a relação entre os grupos sociais. Assim, os migrantes passaram a ser vistos como mão de obra em potencial para financiar as obras e reformas do Estado. Entretanto, para que fossem postos nessa posição, precisavam ser disciplinados, reeducados “às normas da sociedade capitalista nascente: ordem, trabalho, sentido do tempo, respeito à propriedade” (PERROT, 2017PERROT, Michele. Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017., p. 284).

Pode-se dizer, então, que a apropriação das teorias criminais se deu com a intenção de identificar suspeitos que se contrapusessem aos valores burgueses, os quais passariam a compor grupos que seriam taxados de classes perigosas6 6 “Classes perigosas” é uma expressão que surge na primeira metade do século XIX para designar as pessoas que passaram pela prisão e estavam envolvidas em práticas de furto e não se adaptavam ao trabalho. Ela foi incorporada ao discurso de parlamentares na Corte imperial brasileira durante o processo de abolição da escravidão para designar as classes pobres que apresentavam problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem (CHALHOUB, 1996, p. 29). , sendo-lhes atribuídas características biológicas e sociais determinantes que justificariam sua periculosidade. Logo, foi criada uma estreita vinculação entre miséria, vício e crime para explicar a formação do transgressor (KALIFA, 2017KALIFA, Dominique. Os bas-fonds: História de um imaginário. São Paulo: Edusp, 2017.), explicação legitimada por um discurso científico que também embasaria certa lógica de suspeição, partindo-se da premissa de que alguns cidadãos são mais suspeitos que outros.

A intenção de estigmatizar as classes mais pobres como perigosas partia do interesse em atribuir-lhes a responsabilidade por suas condições materiais de vida, criando a imagem desses grupos como avessos ao trabalho e à disciplina, entregues à ociosidade, à vadiagem e, por consequência, ao crime. Além disso, a miséria já era vista pelas teorias criminais como uma das causas produtoras da criminalidade, o que serviu para propagar a ideia de que esse contingente populacional vivia em ambientes promíscuos, cercado de vícios do cotidiano que os desvirtuariam da lógica capitalista de produção de riqueza.

Dessas classes populares, portanto, sairiam os “tipos suspeitos”, desordeiros, servindo como primeiro exemplo a figura do vagabundo, mencionada em 1927 pelo então presidente do Ceará, Desembargador José Moreira da Rocha, em sua mensagem à Assembleia Legislativa. Ele já destacava que a vagabundagem era um ato preparatório para o crime e que “o indivíduo, vivendo assim, será levado, por suas necessidades e ociosidade, a cometer crimes e delictos ou, pelo menos, a viver como parasita da sociedade, repelindo a lei do trabalho, que se impõe a todos” (ROCHA, 1927ROCHA, José Moreira da. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1927 pelo Presidente do Estado Desembargador José Moreira da Rocha. Fortaleza: Typographia Moderna, 1927., p. 27).

Para os anseios de uma sociedade cearense dita moderna, aqueles que não se adaptavam aos valores constitutivos da vida social - a lógica capitalista do trabalho - eram taxados pejorativamente de vadios, inclinados ao crime, indivíduos perversos e, posteriormente, marginalizados (BRESCIANI, 1996BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1996.).

Ainda no seu governo, em 1928, Dr. Moreira da Rocha evidenciou um dos principais problemas enfrentado por Fortaleza: “a attracção do urbanismo põe a caminho os vadios e os pedintes do interior, de envolta com os indivíduos acossados pela falta de trabalho, que vêm á Capital, sem recursos, elevar o número de factores de desequilíbrio, dos typos suspeitos ou desconhecido” (ROCHA, 1928ROCHA, José Moreira da. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1928 pelo Presidente do Estado Desembargador José Moreira da Rocha. Fortaleza: Typographia Moderna, 1928., p. 47). Percebe-se, em sua fala, que a migração dos flagelados da seca era vista como um problema aos interesses das classes abastardas, por desorganizar o espaço urbano e aumentar a vadiagem na capital. Os retirantes já estavam circunscritos no estereótipo criado pelas elites como figuras selvagens, governados por seus instintos, vistos como doentes que protagonizavam cenas de barbárie e miséria (NEVES, 2000NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: Saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.).

Além da tendência à “vagabundagem”, outros fatores que explicavam as origens da criminalidade, como certos hábitos cotidianos, foram sendo apregoados aos menos abastados pelo discurso elitista, a exemplo do alcoolismo. Este foi abordado em vários artigos da Revista Policial, em 1930, a partir de saberes médicos e jurídicos e discursos moralistas que tentavam apresentar relações entre alcoolismo e criminalidade. A bebida não somente era vista como elemento produtor do criminoso, mas também como substância cuja ação consistia “apenas em acordar a fera que à jaula adormecia. O gérmen do crime [que] dormia naquelas veias, apenas acordou. Perturbados os sentidos pela acção do álcool, o indivíduo não póde mais dissimular. Revela-se então, todas as suas falhas” (CÉSAR, 1930CÉSAR, Euclides. “A embriaguez e o crime”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 12, pp. 22-23, 1930., p. 22). Por todos esses efeitos, as classes populares, tidas como mais propensas aos vícios, passaram a ser consideradas mais inclinadas ao crime, tanto pelo meio em que habitavam como por uma possível degenerescência anatômica que carregavam.

Essa percepção apareceu de forma ainda mais clara ao serem identificadas nas classes proletárias tendências à degeneração. Na Revista da Faculdade de Direito, em 1935, um de seus artigos dizia: “é na classe operária que vamos encontrar maior percentagem de alcoólatras. Dada a sua condição da miséria, o homem sente-se impelido ao vício e daí o desequilíbrio do seu orçamento e o estado de completa degradação moral a que é atirado” (SILVEIRA, 1935SILVEIRA, Cândido. “Alcoolismo como cranco social”. Revista da Faculdade de Direito do Ceará, Fortaleza, ano 1, n. 2, pp. 45-47, 1935., p. 47). Forjava-se, assim, um estereótipo a partir do discurso letrado cientificista, que definia os “tipos suspeitos” e orientaria toda uma política criminal discriminatória e excludente criada pelo Estado.

Com a discussão acerca da criminalidade ganhando espaço no âmbito político, a percepção de que os mais pobres eram mais propensos aos vícios e, por consequência, ao crime passou a se naturalizar nas falas de autoridades do governo. Novamente, no relatório de 1928, o presidente do Ceará afirmou serem “precisamente as classes trabalhadoras as que mais se deixam avassalar pelo álcool, que as debilita e arrasta para o aniquilamento, além de lhes prejudicar a prole. Além da loucura, concorre o alcoolismo para o desenvolvimento da criminalidade” (ROCHA, 1928ROCHA, José Moreira da. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1928 pelo Presidente do Estado Desembargador José Moreira da Rocha. Fortaleza: Typographia Moderna, 1928., p. 48).

O alinhamento entre os discursos mostra como as ideias iam circulando entre os espaços de poder e como essa visão estigmatizada de parte da população estava associada ao interesse de produzir um novo tipo de trabalhador, de hábitos sóbrios, higiênicos, disciplinados, que teria seus comportamentos controlados tanto no trabalho quanto fora dele (RAGO, 2014RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista (Brasil, 1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2014.).

Além de associar as classes mais desfavorecidas e seus locais de vivência aos ambientes “perniciosos”, propícios à produção da criminalidade, as elites intelectuais e políticas começaram a bestializar a figura do criminoso em crônicas criminais que circulavam em periódicos, apresentando-o como fruto de uma anormalidade biológica que conferia a ele traços de inferioridade e perversidade. Por conseguinte, propagava-se a sensação de que seria novamente das classes pobres da sociedade que sairiam esses indivíduos selvagens, instintivos, “cínicos”, “perversos”.

Em uma das crônicas criminais da Revista Policial de 1929, que falava de um latrocínio no Ceará, observa-se a caracterização do criminoso como “impassível e frio, inexorável e tirânico”, detentor de um “cérebro de tarado”. Esse tipo de transgressor era visto como detentor de “sentimentos baixos e sumamente reprovados, [que] influem de preferência no cérebro dos que talhados para o crime, trazem o stygma da perversidade e da maledicência, tornando-se verdadeiros monstros, febronios horripilantes e temíveis” (GUEDES FILHO, 1929GUEDES FILHO, Terêncio. “Na senda dos grandes crimes: A desconhecida e horripilante tragédia de Maniçobas”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 3, pp. 17-19, 1929., p. 18).

O processo de naturalização do estado de criminoso, feito de forma deliberada ou pela própria crença de uma época, acabou por fomentar uma política de segregação social que não levava em conta propostas de melhoramento das condições de vida da parcela pobre da população, isentando de responsabilidades o poder público.

Outra fonte em que aparece a prática de “demonizar” a figura do delinquente é o livro de memórias de Porfírio de Lima FilhoLIMA FILHO, Porfírio de. No tempo dos Látegos e dos Grilhões: Fatos históricos e perfis de criminosos. Fortaleza: Tipografia Progresso, 1931.7 7 Tido como policial de ambições intelectuais, detentor de patente de 1º tenente, Porfírio de Lima Filho teve participação em grandes periódicos da época, sendo redator da Revista Policial e publicando em jornais como O Nordeste e O Povo. Tornou-se administrador prisional da Cadeia Pública da Capital em 1931, permanecendo no cargo até 1941. Durante esse período, Lima Filho escreveu um livro de memórias sobre o ambiente do cárcere que dirigia e registrou uma etnografia sobre os criminosos que por lá passavam. Podendo ser considerado o primeiro repórter policial da cidade, seus relatos e narrativas sobre o perfil dos criminosos foram primeiramente publicados na imprensa, sendo alguns posteriormente compilados em seu livro, que acabou por criar uma galeria de criminosos, expostos em pequenas biografias (LIMA FILHO, 1931). (1931), então diretor da Cadeia Pública de Fortaleza. Ele se preocupou em descrever características de alguns detentos para traçar seus perfis criminais. Entre os relatos, encontra-se o caso de José Colares, definido pelo autor como:

Frio, imperturbável, José Colares mata com a maior naturalidade. A sua biografia delitual é impressionante. (...) Preso a 2 de agosto de 1913, por desordens, e a 3 de outubro de 1914, por embriaguez, desordens e uso de armas proibidas, José Colares iniciou, em 1916, sua carreira de criminoso nato. (...) Cumpria pena na Cadeia de Pacatuba quando, a 7 de agosto de 1930, dela se evadiu e veio matar, a faca, sua mulher (Maria Batista Colares), no Arraial Moura Brasil, desta capital. (...) À primeira vista, porém, José Colares ilude ao melhor psicólogo. Tem ótima conduta no presídio. As suas tendências para o crime revelam-se, manifestam-se, especialmente quando faz libações alcoólicas (LIMA FILHO, 1931LIMA FILHO, Porfírio de. No tempo dos Látegos e dos Grilhões: Fatos históricos e perfis de criminosos. Fortaleza: Tipografia Progresso, 1931., pp. 51-52).

Observa-se, nesse relato biográfico, como era feita a representação do criminoso, aqui entendida como uma “percepção construída da realidade social, de acordo com os interesses dos grupos que a forjam” (CHARTIER, 1988CHARTIER, Roger. A história cultural: Entre práticas e representações. Lisboa: Difusão, 1988., p. 17), adequando-a às classificações de delinquentes trazidas pela criminologia moderna. Ao biografar os perfis dos criminosos, o diretor da cadeia concorreu para a produção da figura do delinquente, dos seus tipos e características, bem como da noção de indivíduo “perigoso”. Além disso, contribuiu para a proposição de um conhecimento positivo que prescreveria formas eficazes de punição (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.) e criminalizaria determinados comportamentos. De acordo com esse conhecimento, os comportamentos considerados indesejáveis, incivilizados eram aqueles que se contrapunham à lógica do trabalho disciplinar e produtivo para a sociedade e que, por isso, foram objetos de criminalização.

Em outro relato do livro em análise, ao definir o perfil criminoso de Raimundo Ferreira Maciel, tido como “tipo perfeito do delinquente pernicioso” e “tarado”, Lima Filho reprovou sua conduta devido ao fato de o sujeito estar convencido de que “a melhor coisa do mundo é roubar e que esse negócio de trabalhar se faz para os bestas” (LIMA FILHO, 1931LIMA FILHO, Porfírio de. No tempo dos Látegos e dos Grilhões: Fatos históricos e perfis de criminosos. Fortaleza: Tipografia Progresso, 1931., p. 54). Portanto, ao mesmo tempo que se multiplicavam as normas, e na medida em que eram feitas codificações e interdições, fabricava-se delinquentes, mostrando que os “fatos criminais não existem em si mesmos, mas são fundados por juízos de valor traduzidos em um discurso criminal que denunciava as obsessões de uma sociedade” (PERROT, 2017PERROT, Michele. Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017., p. 261).

Para Howard Becker (2008BECKER, Howard Saul. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.), essas normas são criações de determinados grupos que, em função de sua posição de poder e de seus interesses, buscaram forjar padrões comportamentais e, ao fazerem isso, criaram também os hábitos tidos como desviantes. Ou seja, a elite intelectual e política, que se valia de discursos moralizantes para impelir o indivíduo ao trabalho ordeiro e disciplinado, ao mesmo tempo rotulava aqueles que não se adequavam a esses hábitos, taxando-os de vadios, ociosos, “indivíduos perversos”, “tipos suspeitos”, atribuindo-lhes um caráter desviante que, para a linguagem científica, seria próprio daqueles considerados mais propensos ao crime.

Assim, nota-se que cada sociedade produz suas verdades por meio dos discursos que acolhe, e que a formação dessas representações do criminoso foram produtos de relações de poder atreladas a interesses de classe, o que torna necessário ver a dimensão histórica que caracteriza esses estereótipos para compreendê-los como construções sociais, e não como verdades a serem naturalizadas. Visões de mundo, com suas “verdades normativas”, quando não contextualizadas, tendem a legitimar determinadas hierarquias sociais que contribuem para a manutenção de relações socialmente excludentes.

No que se refere às visões estigmatizadas acerca das classes populares atreladas a interesses de manutenção de uma estratificação social desigual, elas ficam claras em outro artigo da Revista Policial, publicado em 1930. Seu autor, Ernani Gomes, aluno da Faculdade de Direito, discutiu a instrução como uma possível causa de propagação do crime, respondendo ao seguinte questionamento:

Será a instrucção um meio de propaganda do delicto? (...). Outros, no entanto, valendo-se das ideias sadias da sciencia moderna, erigem-se em defensores intransigentes da concepção rebelde, focalizada, entre outros, por Garofalo e Tarde. Pensam como Quetelet, quando este assegura que ella faz despertar instinctos adormecidos, acendendo no cérebro do indivíduo ambições superiores ao seu nível, á sua posição na sociedade. Evidentemente, como se conceber o equilíbrio da sociedade, sem a divisão desta em classes distinctas, que se completam e se auxiliam, mutuamente, e sem a consequente proporcionalidade das ambições, dos desejos e das aspirações de cada um? (...) A segurança do organismo social está, precisamente, queiram ou não queiram os bolchevistas visionários, na coexistência das classes diversas: ricos e pobres, plebeus e fidalgos, ignorantes e letrados. Ora, a instrucção, exaltando a curiosidade nas pessoas nervosas, de imaginação ardente, acendendo o estopim das ambições descabidas, faz com que rebente no cérebro do operário infeliz a ideia absurda de se equiparar aos possuidores de milhões, muito embora o ambiente em que vive lhe seja impiedosamente hostil, assim como pode fazer germinar na alma do plebeu embrutecido no trabalho o sentimento de revolta contra o privilégio racial das aristocracias. (...). A instrucção, para nós, tanto pode ser um meio de propagação, como um fator repressivo do delicto. (...). Tratando-se, porém, de um degenerado, que carregue consigo, como uma dádiva sinistra dos seus antepassados, os estygmas das mais perversas inclinações, neste caso, a instrucção se nos afigura um atentado à estabilidade social, uma vez que symbolisa perigoso auxílio a um cérebro predisposto à perpetração de todos os crimes, sobre o qual, a ser verdadeiro o conceito de Garofalo, nem sempre a educação produzirá os efeitos de um correctivo salutar (GOMES, 1930GOMES, Ernani. “O fator social na etiologia do delicto: Será a instrucção um meio de propagação do crime?”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 5, pp. 21-22, 1930., pp. 21-22).

Esse trecho, apesar das singularidades do autor, se alinha com as outras manifestações de membros elitistas apresentadas ao longo deste artigo e que se utilizavam do conhecimento científico para legitimar e defender a permanência de estruturas rígidas a partir da marginalização de sujeitos considerados ameaças à manutenção do poder, seja econômico seja político. Nele, observa-se ainda uma defesa da manutenção de privilégios, quando o autor fala em restringir a “instrução” para determinado grupo, ou quando prescreve determinados papéis sociais a indivíduos que deveriam se conformar com a sua realidade para preservar certo equilíbrio coletivo. Percebe-se também a utilização das teorias criminais para avalizar essa divisão social, ao atribuir à classe pobre a presença mais numerosa de pessoas com “os estygmas das mais perversas inclinações” - pessoas essas que, se devidamente instruídas, poderiam nutrir “sentimento de revolta contra o privilégio racial” e “afigurar um atentado à estabilidade social”. Esse foi, portanto, o principal motivo da necessidade de se rotular tais grupos como “degenerados”, “predispostos a perpetração de todos os crimes”, excluindo-os e legitimando sua exclusão, apartando-os do direito de reivindicação dos seus direitos e de participação política na construção de uma sociedade mais igualitária.

A perpetração dos discursos que carregavam representações estereotipadas da pobreza - vista como condição produtora de delinquentes - e da população pobre, criminalizando seus hábitos e locais de moradia, considerados perigosos, compuseram um imaginário social do crime cultivado até hoje. Todavia, à época, serviram de auxílio e validação para uma política criminal desenvolvida pelo Estado, cuja premissa era tratar desigualmente os desiguais para manter a desigualdade e consolidar determinadas hierarquias sociais.

Gestação da política criminal

A biografia dos intelectuais envolvidos nas discussões sobre o fenômeno criminal, alguns citados em notas e outros em considerações neste trabalho, traz dados que ajudam a pensar a política criminal na capital do Ceará nas décadas iniciais do século XX. Esses textos permitem conhecer a formação acadêmica e os posteriores itinerários dessas elites letradas cearenses. Sua leitura revela o rastro de circulação das ideias desses intelectuais pelos espaços de poder, indo desde o circuito letrado até o campo político, muito por conta daqueles que ocupavam os dois espaços. Esses senhores atuaram como mediadores culturais ao se apropriarem das ideias criminais e conferirem a elas novos significados, voltando-se para práticas de difusão que faziam os produtos culturais circularem em grupos sociais mais amplos (GOMES e HANSEN, 2016GOMES, Ângela Maria de Castro; HANSEN, Patrícia Santos (orgs.). Intelectuais mediadores: Práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.).

Por meio da análise dos textos dos bacharéis cearenses egressos da Faculdade de Direito do Recife, por exemplo, observou-se que eles tiveram um contato inicial com as doutrinas evolucionistas, positivista e criminais. O contato se deu muito por conta da característica do curso, que exigia a discussão dessas teorias, que acabavam sendo refletidas na escrita dos formandos. Esses sujeitos transportaram essas ideias reinterpretadas para sua terra natal, onde contribuíram para a editoração de periódicos, ocuparam cargos públicos e compuseram o quadro de lentes da Academia Livre de Direito do Ceará, que, por sua vez, tornou-se o centro de letramento da elite versada, em boa parte, nessas leituras científicas.

Importante frisar, entretanto, que as teorias criminais só ganharam projeção no Ceará no espaço político do governo de Franco Rabelo (1913RABELO, Marcos Franco. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1913 pelo Presidente do Estado Cel. Marcos Franco Rabelo. Fortaleza: Typographia Moderna, 1913.), quando, em seu relatório oficial à Assembleia Legislativa, foram propostos melhoramentos na cadeia pública e modificações no regime penitenciário, de acordo com as lições dadas por essas doutrinas presentes nos principais centros científicos do mundo moderno.

Foi devido às dificuldades políticas e sociais que assolavam o estado, advindas das secas do início do século XX e que culminaram na revolta popular urbana de 1912, que houve maior preocupação em criar estratégias de controle social atreladas a interesses classistas e perspectivas modernizadoras. Nesse último episódio, houve uma ampla explosão popular provocada por uma crescente tensão política entre os partidários da oligarquia aciolyna8 8 A oligarquia aciolyna consistia em um grupo político, homogêneo e disciplinado que dominou a política cearense de 1896 à 1912, sob o comando do bacharel Nogueira Accioly. Foi marcada por práticas autoritárias como empastelamentos de jornais, espancamentos, assassinatos, corrupção e nepotismo, além de investimentos na normalização urbano-social em Fortaleza. Encontrou seu fim em 1912, por meio de uma revolta popular espontânea que durou três dias e levou à formação de trincheiras e barricadas, resultando na deposição do oligarca (PONTE, 1999, p. 45). e seus opositores, liderados por Franco Rabelo. O estopim foi o uso da força, pelas tropas policiais, contra a população em uma das passeatas organizadas em protesto aos desmandos do oligarca, resultando em uma intensa guerra civil.

A insurreição, que acabou por depor o oligarca, transformou a cidade em um grande campo de batalha, resultando em quebra de postes e depredação de praças e bondes. A manifestação foi rotulada pelos grupos elitistas como “fruto de um movimento de massas inconscientes, enfurecidas e bárbaras, que atentavam contra a remodelação urbana de Fortaleza” (PONTES, 1999PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). Fortaleza: Multigraf, 1999., p. 47). Mesmo sendo interpretadas como investimentos contra os signos da modernização excludente, tais manifestações serviram como justificativa para que Franco Rabelo, já como governante, adotasse medidas para conter as ações dos grupos mais pobres, considerados perigosos, além de procurar se salvaguardar de retaliações de grupos oligárquicos, que desembocaram na Sedição de Juazeiro, em 1914.

Ainda em sua mensagem à Assembleia Legislativa, Franco Rabelo comunicou sobre as condições das cadeias no Ceará e a urgência de implementação de um novo regime penitenciário que tornasse o combate à criminalidade mais eficaz. Suas palavras foram:

As cadeias regorgitam de criminosos, a maior parte delas reclamando obras de segurança pública, conforto e hygiene, de que se ressentem pelo abandono e deterioração, a que chegaram, não correspondendo, em taes condições, aos intuitos e misteres para que foram construídas. A desta capital, que, durante o ultimo anno, encarcerava na média 70 criminosos, actulmente está com o seu effectivo augmentado quase ao duplo, tendo atingido o numero de 127 detentos. Muito oportunos, foram nella realizados diversos melhoramentos materiaes, notadamente quanto á iluminação interna e á reconstrucção de suas oficinas, tornando-a mais segura, mais commoda e saudável. Resta porém, modificar o seu regimen penitenciário, que é por demais antiquado e defeituoso, exigindo uma reforma progressista, accórde com as lições e sentimentos da criminologia hodierna e com as práticas humanitárias da punição regeneradora do delinquente (RABELO, 1913RABELO, Marcos Franco. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1913 pelo Presidente do Estado Cel. Marcos Franco Rabelo. Fortaleza: Typographia Moderna, 1913., p. 6).

O discurso de Franco Rabelo mostra sua intenção de aliar as diretrizes teóricas da criminologia moderna às práticas cotidianas de punição no Ceará por meio de melhorias nos cárceres do estado. Ao mesmo tempo, revela uma série de obstáculos às pretensões elitistas de controlar totalmente os ditos desviantes, os estigmatizados. Apesar disso, desejava-se dar início a uma “campanha coercitiva” a favor “da eliminação da mendicidade e da vagabundagem nas ruas e praças desta cidade; e da proibição dos jogos”, empregando-se meios de regeneração social para que essas pessoas abandonassem “seus maus hábitos, reintegrando-se na civilização e na ordem social, afeiçoado ao trabalho e ao progresso todas as suas energias e estímulos” (Ibid., p. 6).

No entanto, a implementação dessas medidas de reestruturação do sistema carcerário e até mesmo da atividade policial, a partir das diretrizes oferecidas pelas teorias criminais, demoraram a sair do papel. Além disso, a deposição de Franco Rabelo em 1914 e a seca de 1915 resultaram em grande desorganização administrativa e urbana, somada a uma grande “invasão” de flagelados, que demandou novas formas de contenção desse contingente e estratégias para restringir seus movimentos pela cidade.

Dos abarracamentos nos subúrbios, nas praças e em locais públicos, onde residiam os “flagelados” famintos, sujos e doentes que, para o imaginário elitista, enfeiavam o espaço urbano, passou-se à construção do Campo de Concentração do Alagadiço, com o intuito de preservar o centro de Fortaleza das andanças desses retirantes (NEVES, 2000NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: Saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.). O aumento de fluxo de migrantes gerou problemas na manutenção desse espaço, resultando no aumento da mortalidade e na sua posterior extinção, sem contar com a permanência de retirantes na condição de mendigos, moradores de rua na cidade, que passaram a ser vistos como vadios e criminosos.

A relação entre os flagelados da seca e a cidade foi marcada por conflitos envolvendo uma multidão de retirantes em torno da distribuição de recursos de assistência, acarretando, por vezes, saques e confrontos com a força policial. Essas ações foram interpretadas pela elite dirigente como fruto de uma decadência moral e física, ao ponto de, em 1925, o presidente do Ceará caracterizar as multidões como aglomerações governadas por sentimentos irracionais e propulsoras de “agitações intempestivas e apaixonadas [buscando] promover escândalos, pregar ideias subversivas, negar as nossas virtudes cívicas e o nosso progresso” (ROCHA, 1925ROCHA, José Moreira da. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1925 pelo Presidente do Estado Desembargador José Moreira da Rocha. Fortaleza: Typographia Moderna, 1925., p. 31).

Essa perspectiva sobre a multidão, que atrelava seus atos a um “barbarismo”, permaneceu por um longo tempo no imaginário da sociedade cearense. Em 1930 foram publicadas na Revista Policial partes do texto do criminalista italiano Scipio Sighele, discípulo de Lombroso que abordava a psicologia coletiva das aglomerações, que chamava de “multidão criminosa”:

Devemos notar que antes de tudo que a multidão está em geral mais disposta para o mal do que para o bem. (...). Há na multidão uma tendência occulta para a ferocidade, que constitue - posso dizer assim - o fator orgânico, complexo, de suas futuras manifestações; e esse fator (como o fator antropológico no indivíduo) pode seguir uma direção boa ou má, conforme a ocasião e conforme a sugestão que lhe é imposta pelas condições externas. (...). Portanto, na multidão - como no indivíduo - toda a manifestação é devida ás duas ordens de factores, antropológico e social; - a multidão pode ser em potência, o que quiserem, mas é ocasião que há de fazer nascer tal ou tal acontecimento (SIGHELE, 1930SIGHELE, Scípio. “A multidão criminosa: Na multidão, o micróbio do mal se desenvolve mais que o do bem”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 6, pp. 42-44, 1930., pp. 42-43).

A circulação desse artigo, à época, evidenciava a tentativa de criminalização desse contingente populacional, utilizando-se de um discurso criminal que legitimaria a perspectiva da elite urbana que atribuía a irracionalidade a esses movimentos e seus componentes, tratando-os como bestas-feras que precisavam ser contidas. A partir desse processo de estigmatização, teve início a fundação de uma política criminal cearense baseada em uma estratégia biopolítica, que tomava o corpo de determinados indivíduos como objetos de investimento de poder, por meio da disciplinarização dos seus hábitos, utilizando-se da imagem produzida do delinquente para consolidar esse projeto de controle social (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.).

Com a nomeação de Eduardo Torres Câmara9 9 “Nascido em Fortaleza, em 13 de outubro de 1867, formou-se bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo. Em 1891, atuou como Juiz na comarca de Ribeirão Preto, depois como Promotor de Justiça na comarca de Batatais, no interior de São Paulo. Acabou por regressar em 1907 ao Ceará, onde ocupou o cargo de Juiz e, posteriormente, a Chefatura de Polícia ente 1916-1919. A sua administração foi marcada por uma postura inédita com relação ao combate ao crime no Ceará” (VICTOR, 1943, p. 180). para o cargo de chefe de polícia, em 1916, percebe-se esforços para modernizar a atividade policial, além da volta de um olhar mais sensível para a situação das instituições carcerárias do Ceará e de seu regime penitenciário. Isso está presente nos relatórios de presidentes do estado, tudo à luz das doutrinas criminais. O então chefe de polícia procurou equipar a atividade policial com modernas técnicas de combate à criminalidade, “oferecendo novos aparelhos e serviços, como o de identificação criminal por meio de fotos e impressões digitais, utilizando-se da cientificidade para legitimar suas operações” (FONTELES NETO, 2005FONTELES NETO, Francisco Linhares. Vigilância, impunidade e transgressão: Faces da atividade policial na capital cearense (1916-1930). Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005., p. 19).

A real situação em que se encontrava o sistema penitenciário cearense antes da posse de Torres Câmara é narrada pelo presidente Dr. Thomé de Saboya e Silva no relatório de 1917SILVA, José Thomé de Saboya e. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1917 pelo Presidente do Estado Dr. João Thomé de Saboya e Silva. Fortaleza: Typographia Moderna, 1917.:

Segundo o nosso Código vigente a prisão typo é a cellular. Mas esta não tem sido observada á falta de estabelecimentos apropriados, não tendo assim execução o artigo 4 do Código Penal. Entretanto, com a adopção do actual systema penitenciário, o legislador brasileiro teve em vista, di-lo o eminente autor do Código Penal, a repressão e a emenda do criminoso pelo isolamento, que convida á meditação, pela segregação que é exigência elementar de ordem e de moralidade, pelo trabalho para evitar os vícios causados pela ociosidade da prisão; combinando de modo harmônico todos esses elementos em um systema penal (...). A cadeia da capital funciona em prédio estadual de construção solida, necessitando, porém, de reparos quanto á hygiene e asseio, até que se possa adaptar ao regimen penitenciário estabelecido pelo Código Penal (SILVA, 1917SILVA, José Thomé de Saboya e. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1917 pelo Presidente do Estado Dr. João Thomé de Saboya e Silva. Fortaleza: Typographia Moderna, 1917., pp. 45-46).

Assim se apresentava uma parte das nossas casas de detenção, com problemas que iam desde questões de higiene até a falta de adequação ao sistema penitenciário previsto na legislação brasileira, que prescrevia a separação dos presos de acordo com sua periculosidade. Ao mesmo tempo que esses obstáculos eram apresentados, o caminho proposto para alcançar a modernização dessas estruturas era o confinamento dos criminosos, visto que se falava da necessidade de implementar a prisão celular. Essa necessidade convergia com as discussões no circuito letrado e com o pensamento de Pedro de Queiróz, que defendeu, em 1909QUEIRÓZ, Pedro de. “Sociologia Criminal: A luta contra o crime”. Revista da Academia Cearense, Fortaleza, vol. 14, pp. 92-104, 1909., o isolamento de delinquentes de acordo com a tipologia criminal que os classificava. Queiróz se opunha, portanto, a “um regime penal de prisão em comum [que] equivale a castigar o delinquente pelo seu acto criminoso aperfeiçoando-o no crime à custa da sociedade” (QUEIRÓZ, 1909QUEIRÓZ, Pedro de. “Sociologia Criminal: A luta contra o crime”. Revista da Academia Cearense, Fortaleza, vol. 14, pp. 92-104, 1909., p. 100).

Um pouco mais à frente, em um relatório de 1925, é possível ter noção da amplitude da difusão das teorias criminais, cada vez mais impregnadas nas políticas de Estado e que orientavam a forma de lidar com o contingente de desviantes, servindo de parâmetro para a modernização das instituições. Conforme o relatório:

O criminoso há de ser tratado por processos racionaes, dentro de uma legislação que faça a pena elástica, dúctil, adaptável ao individuo, Se o criminoso é um enfermo, a sociedade não tem o direito de condemnal-o (...) sem indagar se ele é passível ou não de regeneração ou de cura. A pena, diz notável criminalista patrício, carece de adaptar-se ao criminoso e não ao crime. A penitenciária de Fortaleza, relata o ilustre criminologo Dr. Lemos Britto, ‘é uma das de melhor aspecto do norte do Brasil.... representa um meio termo entre várias espécies de prisões do paiz’. Este estabelecimento, que denota o empenho do Estado em atender, segundo os preceitos da criminologia moderna, o problema da reclusão dos sentenciados, recomenda-se pela ordem, disciplina, asseio com que é mantido (ROCHA, 1925ROCHA, José Moreira da. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em 1925 pelo Presidente do Estado Desembargador José Moreira da Rocha. Fortaleza: Typographia Moderna, 1925., p. 39).

A intenção política, portanto, era separar os delinquentes mais difíceis de se disciplinar - taxados como criminosos natos, incorrigíveis e portadores de taras degenerativas - daqueles que poderiam se regenerar por meio de uma disciplina rígida imposta na cadeia a seus comportamentos, considerados inadequados para uma sociedade de hábitos aburguesados. Daí a importância de implementação de oficinas laborais nas casas de detenção, para transformá-las em “escolas de regeneração criminal pelo trabalho ordeiro e constructor”, incutindo no indivíduo “o hábito do trabalho, [buscando] aplicação útil da capacidade productiva como poderoso estimulo de ordem moral no sentido da sua reabilitação” (LIMA FILHO, 1930LIMA FILHO, Porfírio de. “A acção dynamica e fecunda do Dr. Mozart Gondim na Secretaria de Polícia”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 12, pp. 100-104, 1930., p. 100).

A lógica do discurso de regenerar esses delinquentes, ou os potencialmente perigosos, se sustentava na ideia de disciplinar seus hábitos e costumes conforme outra lógica, a do trabalho, vendo neste um meio de conformação dessas pessoas às estruturas sociais rígidas e excludentes. Isso garantiria comportamentos ordeiros em tempos de crescimento populacional, devido à migração de retirantes e ao aumento da pobreza, da criminalidade e de revoltas populares e oligárquicas, que fizeram despertar um sentimento de terror coletivo nas elites e em setores da classe média cearense em relação às classes populares, demandando estratégias de rotulação e, posteriormente, de controle social. Por essa razão, aliar ociosidade, vadiagem e criminalidade se fazia tarefa primordial. Essa fusão serviria para estigmatizar como delinquentes em potencial aqueles avessos ao trabalho e que deveriam, portanto, ser vigiados constantemente.

Os grupos elitistas atrelados ao Estado buscaram legitimar esse processo de criminalização por meio da apropriação do conceito de temibilidade, tida como “criterium da reação penal”, que servia para medir a periculosidade do delinquente a partir da sua classificação criminal, ou seja, da sua constituição biológica e do meio social em que estava inserido. Isso faria com que “a pena [perdesse] sua concepção de castigo para ser uma medida de prophylaxia tomada pela sociedade em seu benefício, no interesse de sua conservação” (FIRMEZA, 1930FIRMEZA, Virgílio. “Universidades do delicto”. Revista Policial, Fortaleza, ano 1, n. 6, pp. 35-36, 1930., p. 36).

Em suma, o objetivo das elites era classificar os tipos suspeitos a partir das causas da criminalidade, identificando em que ambientes se encontrariam os vícios e em quais pessoas estariam os “germens do crime” e facilitando, assim, a atividade repressora do poder público, que deveria agir preventivamente sobre os ambientes e indivíduos agora criminalizados. Não por coincidência, o ambiente de miséria e a população pobre - incluindo os retirantes, que nessa época lotavam os campos de concentração no Ceará e aguçavam a rejeição da elite à pobreza - foram os mais potencializados como produtores de delitos. As medidas de profilaxia eram acompanhadas, portanto, de intenções segregacionistas.

Considerações finais

As maneiras de se lidar com o fenômeno da criminalidade em Fortaleza em épocas de instabilidade social e política suscitaram demandas de controle sobre a população mais pobre da cidade, tanto os que habitavam os bairros periféricos como os que perambulavam pelos espaços centrais da urbe. O intuito era preservar projetos de poder defendidos pelas classes abastardas por meio da criação da figura do inimigo interno, que serviria como bode expiatório para justificar medidas mais enérgicas na implementação de uma normalidade social. Ao mesmo tempo, nota-se o forjar de uma política criminal cearense a partir de visões preconceituosas e excludentes que buscavam enquadrar as classes populares em posições de passividade e conformação social, em vez de defender formas mais igualitárias de convivência.

A observação da história possibilita refletir sobre alguns “demônios” do presente, como, por exemplo, as relações entre o Estado e a pobreza e entre os diferentes grupos sociais, bem como as formas de se ver o outro. Ainda hoje paira a suspeição sobre os grupos mais pobres, moradores da periferia, sempre associados ao comportamento desviante e às tendências criminais, sendo alvos preferenciais de abordagens policiais que estabelecem critérios diferentes de tratamento com base na posição social e também na cor da pele.

Os estigmas raciais e de classe que sustentaram e ainda sustentam o imaginário do crime contribuíram para a constituição do alvo predileto da violência social e institucional: o homem negro, pobre, morador dos subúrbios das grandes cidades, que é vitimado e compõe predominantemente as estatísticas de mortes derivadas de operações policiais e está majoritariamente definindo o perfil da população carcerária brasileira, expondo assim o caráter seletivo do nosso sistema de justiça.

Para além da violência física que esses grupos estigmatizados enfrentam cotidianamente na sua relação com o Estado, eles ainda se encontram segregados espacialmente. Essa realidade é resultado de um processo de marginalização característico dos grandes centros urbanos do país, a exemplo de Fortaleza, sendo esses sujeitos fixados em regiões sem infraestrutura básica, abandonada pelo poder público e isolada dos espaços urbanos modernos e considerados elitizados. Vistos como perigosos, esses grupos têm seus movimentos pela cidade vigiados pela ação violenta do Estado, que empreende uma política de segurança pública partindo do pressuposto de vigilância, suspeição e repressão, somando-se ainda a discriminação dos seus comportamentos pelas classes mais abastardas, que costumam dividir a cidade em áreas nobres e áreas pobres, a fim de preservar seus privilégios e suas formas e espaços de sociabilidade.

Assim vão sendo constituídas as relações nos centros urbanos, carregadas de estigmas que orientam códigos de conduta e sociabilidade, que constituem fronteiras delimitadoras de quem deve ou não ocupar um determinado espaço e, a partir daí, prescrevem papéis sociais determinados para cada grupo que compõe a sociedade, de modo a reproduzir uma estrutura historicamente desigual. Esses estereótipos, legitimadores de formas de não convivência entre grupos, são baseados em imagens pejorativas que criminalizam o diferente, orientando a análise das políticas de Estado como fruto dessas relações sociais excludentes que lhes dão subsídios e, em vez de contribuírem para a justiça social, reproduzem as diferenças de um país já imensamente desigual.

A análise da gestação da política criminal em Fortaleza possibilitou, em específico, perceber como se deu no passado a construção de estereótipos que permanecem atuais. Além disso, permitiu entender a constituição de políticas públicas como fruto de projetos de poder. Ao mesmo tempo, favoreceu a desnaturalização de certos discursos tidos como “verdades” na sociedade, oferecendo uma interpretação da realidade social e de seus problemas não como algo dado, acabado ou natural, mas construído socialmente.

Referências

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  • VICTOR, Hugo. Chefes de polícia no Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1943.
  • 1
    “Ciência voltada para o estudo do criminoso e das causas da criminalidade legitimando-se como saber acadêmico no final do século XIX, sendo importada para o Brasil e discutida nos espaços intelectuais dos principais centros urbanos, voltando-se para o desenvolvimento de mecanismos de controle social de setores da população considerados perigosos e mais propensos ao crime” (ÁLVAREZ, 2006ÁLVAREZ, Marcos César. “Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil”. In: KOENER, Andrei (org). História da justiça penal no Brasil: Pesquisas e análises. São Paulo: IBCCrim, 2006, pp. 129-151., p. 147). Ver também Cunha (2002CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e gesto: Pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.).
  • 2
    Para saber mais sobre a tentativa de modernização e os desafios da atuação policial em Fortaleza nas décadas iniciais do século XX, conferir Fonteles Neto (2006FONTELES NETO, Francisco Linhares. “Cotidiano e atuação policial em Fortaleza: Entre o dever e a prática nas primeiras décadas do século XX”. Trajetos: Revista de História (UFC), vol. 4, pp. 95-118, 2006., pp. 95-11).
  • 3
    “Na Itália, as teorias lombrosianas ganharam destaque em meio ao processo de unificação do país, sendo usadas para identificar as áreas de ‘regressão’ que assolavam o país e que dificultava a estabilidade política, justificando o estado de “selvageria” dos seus habitantes e a presença de atavismos naqueles que participavam das constantes dissidências regionais e que, portanto, seriam excluídos do poder civil e político. Já na França, no início da Terceira República, em meio a uma tentativa do governo de ‘civilizar’ e ‘colonizar’ regiões distantes da nação, a criminologia fez parte de uma tentativa mais ampla de identificar e eliminar os elementos de ‘selvageria’ e instabilidade política hostis aos interesses nacionais” (HARRIS, 1993HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: Medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993., p. 94).
  • 4
    “Matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1878, bacharelando-se em novembro de 1882. Em 1891 foi nomeado lente da dita faculdade, onde professou a cadeira de legislação comparada. Autor do Código Civil de 1916, escritor da obra Criminologia e Direito abordada por P. de Queiróz que fez muitas adjetivações honrosas, chamando-o de másculo pensador, erudito direitista. Foi membro correspondente da Academia Cearense e do Centro literário, de Fortaleza” (STUDART, 1900STUDART, Guilherme. “Pequeno diccionario Bio-Bibliographico cearense”. Revista da Academia Cearense, Fortaleza, vol. 5, pp. 5-91, 1900., p. 19).
  • 5
    “Bacharelou-se em Direito, em 1880, na Faculdade de Direito do Recife. Colaborou igualmente no Ceará Illustrado, nele expondo a doutrina da Escola Anthropologica Criminal Italiana. É um dos redactores da Revista da Academia Cearense, associação de que é vice-presidente. Ocupou diversos cargos públicos, como o de chefe de polícia no Ceará e desembargador” (STUDART, 1906STUDART, Guilherme. “Pequeno diccionario Bio-Bibliographico cearense”. Revista da Academia Cearense, Fortaleza, vol. 11, pp. 143-207, 1906., p. 161).
  • 6
    “Classes perigosas” é uma expressão que surge na primeira metade do século XIX para designar as pessoas que passaram pela prisão e estavam envolvidas em práticas de furto e não se adaptavam ao trabalho. Ela foi incorporada ao discurso de parlamentares na Corte imperial brasileira durante o processo de abolição da escravidão para designar as classes pobres que apresentavam problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem (CHALHOUB, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 29).
  • 7
    Tido como policial de ambições intelectuais, detentor de patente de 1º tenente, Porfírio de Lima Filho teve participação em grandes periódicos da época, sendo redator da Revista Policial e publicando em jornais como O Nordeste e O Povo. Tornou-se administrador prisional da Cadeia Pública da Capital em 1931, permanecendo no cargo até 1941. Durante esse período, Lima Filho escreveu um livro de memórias sobre o ambiente do cárcere que dirigia e registrou uma etnografia sobre os criminosos que por lá passavam. Podendo ser considerado o primeiro repórter policial da cidade, seus relatos e narrativas sobre o perfil dos criminosos foram primeiramente publicados na imprensa, sendo alguns posteriormente compilados em seu livro, que acabou por criar uma galeria de criminosos, expostos em pequenas biografias (LIMA FILHO, 1931LIMA FILHO, Porfírio de. No tempo dos Látegos e dos Grilhões: Fatos históricos e perfis de criminosos. Fortaleza: Tipografia Progresso, 1931.).
  • 8
    A oligarquia aciolyna consistia em um grupo político, homogêneo e disciplinado que dominou a política cearense de 1896 à 1912, sob o comando do bacharel Nogueira Accioly. Foi marcada por práticas autoritárias como empastelamentos de jornais, espancamentos, assassinatos, corrupção e nepotismo, além de investimentos na normalização urbano-social em Fortaleza. Encontrou seu fim em 1912, por meio de uma revolta popular espontânea que durou três dias e levou à formação de trincheiras e barricadas, resultando na deposição do oligarca (PONTE, 1999PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). Fortaleza: Multigraf, 1999., p. 45).
  • 9
    “Nascido em Fortaleza, em 13 de outubro de 1867, formou-se bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo. Em 1891, atuou como Juiz na comarca de Ribeirão Preto, depois como Promotor de Justiça na comarca de Batatais, no interior de São Paulo. Acabou por regressar em 1907 ao Ceará, onde ocupou o cargo de Juiz e, posteriormente, a Chefatura de Polícia ente 1916-1919. A sua administração foi marcada por uma postura inédita com relação ao combate ao crime no Ceará” (VICTOR, 1943VICTOR, Hugo. Chefes de polícia no Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1943., p. 180).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2020
  • Aceito
    10 Fev 2021
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