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Embretados! O caso dos ‘presos em viaturas’ do Rio Grande do Sul e as novas formas de punição

‘Embretados’! The Case of the ‘Inmates in Police Cars’ in Rio Grande do Sul and the New Forms of Punishment

RESUMO

O artigo analisa o caso dos presos alojados em viaturas e carceragens de polícia que se tornou rotina no Rio Grande do Sul a partir de 2015. Em geral, detidos com base no dispositivo do “flagrante delito” (art. 302 do CPP), os suspeitos enfrentam uma punição no limiar do corpo e decidida administrativamente, isto é, anterior a uma audiência judicial. Com base em pesquisa feita entre 2015 e 2020, analisamos a emergência deste cotidiano, a partir de conceitos de “território” de Haesbaert e “dispositivo de segurança” de Foucault. Concluímos que a implantação de políticas de viés empresarial nas polícias tem relação com a formação de uma espécie de “brete governamental”, não-lugar urbano que embreta ou encurrala detentos em meio a uma punição que lhes nega até o direito a uma vaga na prisão.

Palavras-chave:
prisões; polícia; políticas públicas de segurança; “brete governamental”; punição

ABSTRACT

‘Embretados’! The Case of the ‘Inmates in Police Cars’ in Rio Grande do Sul and the New Forms of Punishment analyzes the case of prisoners housed in police vehicles and prisons, which became routine in Rio Grande do Sul from 2015 onwards. Suspects face a punishment at the body’s threshold and administratively decided upon, that is, prior to a court hearing. Based on research carried out between 2015 and 2020, we analyzed the emergency of the daily life, based on concepts of “territory” by Haesbaert and “security device” by Foucault. We concluded that the implementation of polices whit a corporate bias in the police is related to the formation of a kind of a “government brete”, an urban nonplace that imprisons or corner inmates in the midst of a punishment that denies them even the right to a place in prison.

Keywords:
prisons; police; public security policies; “brete government”; punishment

Em 2020 o Brasil ocupava o terceiro lugar no ranking dos países com maior número de pessoas presas no mundo, suscitando amplo debate político pelos efeitos violentos da superpopulação carcerária - por exemplo, os motins do Norte e Nordeste que deixaram 128 mortos em 20171 1 Os motins ocorreram em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte e o número de mortos superou o maior massacre prisional do Brasil, o do Carandiru em 1992. Eles podem ter relação com o conflito entre as facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando vermelho (CV) (CHIES e ALMEIDA, 2019). . Com 773 mil pessoas presas (DEPEN, 2020), a situação preocupava não somente pelo fortalecimento das facções, que geravam conflitos cada vez mais sangrentos, mas pela curva ascendente de novos aprisionamentos. Deve-se destacar que enquanto os EUA e a China, respectivamente primeiro e segundo países que mais encarceram, diminuíram a taxa de aprisionamento em 12% e 10% entre 2008 e 2018, a taxa brasileira cresceu 49% no mesmo período (ICPR, 2019).

No interior do Brasil, um país de dimensões continentais, alguns estados apresentaram diferenças no ritmo e na natureza das detenções, desequilibrando o ranking interno. É o caso do Rio Grande do Sul (RS), que em 2020 passava de sexto a quarto estado com mais presos entre os 27. Com 42 mil detentos, registrava aumento de 31% da população carcerária em apenas cinco anos, incluindo 13 mil novas pessoas atrás das grades (DEPEN, 2020).

Quem analisa as estatísticas não imagina que muitos desses 13 mil novos detentos gaúchos não foram inseridos inicialmente atrás das grades de uma prisão. Na ausência de vagas, eles tiveram diferentes portas de entrada: foram mantidos em bagageiros de viaturas de polícia e em um ônibus da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) readaptado e chamado de “Trovão Azul”; foram algemados a lixeiras em frente a delegacias ou superlotaram as carceragens de delegacias de polícia. Todos espaços sem colchão, chuveiro, banho de sol, visita ou atendimento médico. Por mais que o prazo de permanência neles fosse inferior a 30 dias, a situação evidenciou a emergência de uma “zona de indeterminação jurídica” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 59) em que os fundamentos legais da sociedade foram temporariamente suspensos. Em seu lugar, uma série de arranjos administrativos se estabeleceu, envolvendo as três instituições da segurança pública local: Brigada Militar, Polícia Civil e Susepe. Os improvisos territoriais foram criados pela ausência de uma diretriz de governo para enfrentar um problema anteriormente restrito aos muros do cárcere.

Este artigo analisa parte desse cotidiano, tendo por base uma pesquisa do campo da psicologia social realizada em delegacias de polícia e prisões de Porto Alegre, capital do RS, entre 2015 e 2020. A descrição do cenário e das formas improvisadas que ele tomou nos últimos cinco anos será feita na primeira parte do texto. Ali, analisaremos a emergência do que denominamos brete governamental2 2 O conceito será explicado adiante e foi uma das proposições de minha tese em psicologia social, intitulada A divina comédia da segurança pública: territorialidades e produção da transgressão no percurso punitivo do RS e defendida em 2020 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). , espécie de não-lugar urbano que captura o suspeito3 3 Utilizamos o termo suspeito, em vez de criminoso, seguindo o pressuposto da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado da sentença” (BRASIL, 1988). para imobilizá-lo em um espaço fora do ordenamento jurídico, mas plenamente inserido no território da segurança pública4 4 Optamos pelo termo território, em vez de campo ou sistema de segurança pública, por nossa atenção aos movimentos cotidianos de grupos policiais e criminais na espacialização dos espaços de segurança (HAESBAERT, 2007; SOUZA, 2006). de uma cidade. Retiramos o termo brete do universo carcerário gaúcho, em que se refere a uma cela ou corredor onde ficam os presos não aceitos nas galerias e rebaixados em seu status cultural e existencial. No caso analisado, percebe-se o surgimento de um brete que não é gerido pelo grupo de presos, mas propiciado por decisões governamentais, como a implantação de determinadas políticas públicas que propiciaram uma “reterritorialização” (HAESBAERT, 2007HAESBAERT, Rogério. “Território e multiterritorialidade: um debate”. GEOgraphia, ano IX, n. 17, pp. 19-45, 2007.) no campo da segurança pública local.

Tradicionalmente, situações de superlotação carcerária tendem a ser explicadas pela existência de mais crimes ou criminosos na sociedade. Para Gomes e Almeida (2013GOMES, Luís Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: Caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.), esse argumento engendra-se em um “populismo penal midiático” (p. 67) que tem balizado as ações de segurança pública e desconsidera as recorrentes distorções da lei existentes no Brasil. Diante disso, este artigo procura fazer o caminho inverso: problematizar como decisões governamentais do período analisado podem ter incidido sobre os fluxos de trabalho nas polícias, gerando aumento de aprisionamentos e fissuras sem precedentes no território da segurança pública local. É o caso do RS, que até 2014 figurava como um dos seis estados sem presos em delegacias (DEPEN, 2015). Logo, na segunda parte do artigo faremos uma análise de políticas públicas implantadas nas polícias Militar e Civil gaúchas a partir do conceito de “dispositivo de segurança” de Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008[1979].). A ideia é visibilizar a racionalidade econômica de programas que, baseados em metas de produtividade, passam a desconsiderar a condição humana do produto de seu trabalho.

Grande parte dos detentos que passaram pela experiência de ficar detido em viaturas e outros locais improvisados foram presos em “flagrante delito” (art. 302 do Código de Processo Penal [CPP]). Ao contrário das pessoas detidas por mandado judicial, que são alvo de investigações policiais anteriores, com tempo para a juntada de provas consistentes, o “flagrante delito” se dá geralmente em meio ao patrulhamento de rua, a partir da decisão discricionária de policiais. Para entender como esse processo é possível, faremos na terceira e última parte do artigo um breve apanhado do modelo de policiamento nacional, buscando problematizar o princípio da “discricionariedade” (MUNIZ, 1999MUNIZ, Jacqueline. “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”: Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.) que constitui o “poder de polícia” (BRASIL, 1966, art. 78) no Brasil.

Os dados analisados neste artigo foram coletados por meio de dois métodos: o do “pesquisador-conversador”, sugerido por Spink (2008SPINK, Peter Kevin. “O pesquisador conversador no cotidiano”. Psicol. Soc.,vol. 20, pp. 70-77, 2008.), e a análise de matérias jornalísticas e relatórios estatísticos da segurança pública estadual, orientada pelo olhar da genealogia de Foucault (2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. 2011[1979].). Tanto a análise do brete governamental como a das políticas públicas implementadas nas polícias do RS foram problematizadas a partir de conceitos dos estudos em “território” (HAESBAERT, 2004HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: Do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004., 2007; SOUZA, 2006SOUZA, Marcelo Lopes de. A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.) e de “dispositivo de segurança” de Foucault (2008).

Acreditamos que o caso do RS é exemplo de uma reorganização do “dispositivo de segurança” que abandona o investimento no aspecto disciplinar, representado pelas prisões, e passa a investir em um “gerenciamento emergencial da segurança pública” (AGAMBEN, 06/01/2014). Trata-se de um caso em que se substitui a lei pela aleatoriedade de normas culturais administrativas, ainda que as condições para a emergência dessa aleatoriedade sejam propiciadas por políticas de governo formalmente planejadas. Nesse processo, o conceito de território ganha força, por permitir seguir os “rastros no solo” do encontro da política pública com os grupos, em suas práticas cotidianas de trabalho.

A formação do ‘brete governamental’: quando a prisão explode para fora de seus muros

- Esta semana estou abaixo de remédio, com muita dor na coluna. As celas da delegacia lotaram e eu tive que passar o dia enchendo garrafas de água pros preso.

- Pra eles beberem?

- Não, pra tomarem banho. Não tem chuveiro na cela. Aqui é pra ficar só algumas horas, mas teve uns caras que ficaram mais de 20 dias aí.

- Nossa! E como resolveram?

- Cansei de esperar pelo Estado. Comprei uma mangueira com meu dinheiro. Isso [por]que o nosso salário tá parcelado.

- Mangueira?

- É. Pendurei na janelinha e deixo ligada pra eles se banharem.

- Nossa! E hoje estão em muitos presos?

- 18.

- Entendi. Desde quando existe essa situação?

- Desde julho de 2015. Foi quando a Susepe, não sei por que, parou de vim buscar os presos. Não me lembro de nada parecido desde que entrei, há mais de 20 anos. (Diário de campo, 2016, conversa com policial)

O diálogo acima foi realizado em uma Delegacia de Polícia e Pronto Atendimento (DPPA) de Porto Alegre. As DPPAs são as responsáveis pelos autos de prisão em flagrante (art. 302 do CPP), isto é, pelo registro das abordagens policiais que resultam em detenção de suspeitos. Geralmente, cada cidade de grande porte tem ao menos uma DPPA, que funciona 24h e cujos servidores trabalham em regime de plantão, pois precisam estar a postos para receber o produto do trabalho dos policiais militares (PMs). Em Porto Alegre há duas delegacias do tipo, sendo que a de maior movimento localiza-se no Palácio da Polícia, sede do poder da Polícia Civil gaúcha. Em termos geográficos, fica a meio caminho da Cadeia Pública, local para onde flui a maior parte dos que recebem a notícia de que sua detenção se transformou em prisão.

A partir de julho de 2015, as duas DPPAs de Porto Alegre começaram a receber levas e mais levas de pessoas presas que, ao contrário de seguirem o fluxo do percurso punitivo, ficaram trancadas em um “gargalo” que antecede a prisão. O estopim para esse processo, que envolve fatores que analisaremos adiante, foi a interdição da Cadeia Pública de Porto Alegre (antigo Presídio Central) por juízes das Varas de Execuções Criminais (VECs). Nessa e em outras interdições que se seguiram, os motivos apresentados foram os mesmos: superlotação e desvio de sua missão fundadora (G1 RS, 18/10/2015). Em julho de 2015 a instituição, com 1.824 vagas, abrigava 4.430 pessoas, ou seja, mais de 100% acima de sua capacidade. Além disso, contrariando sua função legal de abrigar presos provisórios, isto é, ainda não julgados, detinha 45% de pessoas condenadas (DEPEN, 2015). O motivo da interdição parecia justo e legalmente fundamentado, porém seus efeitos não: desde então, os presos ficaram embretados ou encurralados no meio do caminho.

As palavras brete e embretar são de uso relativamente comum no RS, estado cujas raízes culturais relacionam-se à vida no campo e à prática da pecuária. O dicionário define brete como um “corredor fechado de ambos os lados, onde o gado é inserido temporariamente para marcação ou para sacrifício” (MICHAELIS, 2018). Por uma corruptela da língua, o termo passou a designar um espaço físico separado, como um corredor ou cela, existente na maioria das prisões5 5 Não há estudos específicos sobre o tema, mas menções em trabalhos etnográficos prisionais (RUDNICK, 2012; CIPRIANI, 2016). Baseio-me aqui em diários de campo realizados em prisões do RS. gaúchas. A função que executa na cultura carcerária levou-me a tomá-lo como base de um conceito analítico da situação dos “presos sem vagas na prisão” surgida a partir de 2015.

Nas prisões, o brete é o lugar da imobilidade, da restrição e da exclusão, onde ficam os presos que não têm para onde ir, seja por guerras de facções ou porque desrespeitaram normas da cultura criminal. Antes de nos aprofundarmos na explicação do termo, é importante esclarecer o papel das facções nas prisões brasileiras contemporâneas. Para Amorin (2003AMORIN, Carlos. CV - PCC: A irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2003.), as facções seriam compostas por “sujeitos unidos em um grupo de caráter criminal, que nasce no sistema prisional com a função de gerir o cotidiano nestes espaços e ampliar os negócios criminais”. Dornelles (2014DORNELLES, Renato. Falange Gaúcha. Rio Grande do Sul: RBS, 2014.) realça que, no RS, a emergência das facções na década de 1990 tem relação com a superlotação e a necessidade de suprir direitos básicos não fornecidos pelo Estado, entendendo-as também como um ato de resistência política do grupo de presos. Atualmente, no entanto, elas se tornaram uma organização paralela ao Estado, que hoje ocupa 91% dos espaços da Cadeia Pública de Porto Alegre (DORNELLES, 03/02/2017), por exemplo.

Em sua etnografia da Cadeia Pública, Rudnick (2012RUDNICK, Dani. “Três dias no Presídio Central de Porto Alegre: o cotidiano dos policiais militares”. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 49, n. 193, pp. 49-63, 2012.) descreve um brete que é o próprio corredor de entrada, onde presos não aceitos, ou que desejam transferências, podem aguardar dias em pé. Entre os sujeitos não aceitos pela cultura carcerária estariam, por exemplo, criminosos sexuais, dependentes químicos que não honraram suas dívidas ou delatores da facção (BASSANI, 2020BASSANI, Fernanda. A divina comédia da segurança pública: Territorialidades e produção da transgressão no percurso punitivo do Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.). Ali, ficam à parte das garantias mediadas pela gestão formal da prisão, como o banho de sol e as visitações, e de outro lado, se apartam dos benefícios proporcionados pelas facções, como o acesso a televisão, geladeira ou um simples sabonete (AZEVEDO, CIPRIANI, 2015AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIPRIANI, Marcelli. “Um estudo comparativo entre facções O cenário de Porto Alegre e o de São Paulo”. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, vol. 7, n. 2, pp. 160-174, 2015.). É interessante observar que, ao materializar imobilidades e restrições, o brete torna-se uma sobrepunição à perda de liberdade instaurada pela pena formal. Por tudo isso, não é apenas um espaço físico, mas um estado de restrição existencial, que faz do embretado alguém com status político e humano rebaixado, em prol da sobrevivência física.

A partir de 2015, em Porto Alegre, vê-se emergir outro tipo de brete, que não respondia a movimentos da cultura carcerária, mas constituía-se em meio a decisões governamentais6 6 Serão mais bem analisadas na segunda parte deste artigo. . Sua localização extramuros indicava também a extensão do problema carcerário como uma novidade a ser gerenciada pelas três instituições de segurança pública locais: Brigada Militar, Polícia Civil e Susepe. O brete governamental teve sua primeira expressão na carceragem da 2ª DPPA, de responsabilidade da Polícia Civil: duas celas de 3x2m, com capacidade para dez pessoas, sem chuveiro, cama, pátio, espaço para visita ou atendimento médico. Projetadas para abrigar pessoas por até 24 horas7 7 O detido só deve ficar recolhido na unidade policial durante o tempo necessário para a finalização do flagrante, no prazo máximo de 24 horas (art. 306 do Código de Processo Penal [BRASIL, 1940]) , tempo máximo para o registro do delito, passaram a manter até 30 presos por períodos que ultrapassavam 20 dias. Em geral, após ingressar na cela o sujeito aguardava por negociações personalistas, em meio à indefinição quanto aos critérios para a “conquista” de uma vaga.

A falta de padronização e as decisões baseadas em arranjos personalistas são assunto antigo no campo da segurança pública brasileiro. Muniz (1999MUNIZ, Jacqueline. “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”: Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.) as relaciona a fatores da própria “cultura policial” (p. 121), cuja prática profissional caracteriza-se por um “saber-ato” (p. 122) constituído nas esquinas da cidade e que tem a imprevisibilidade como regra do trabalho. As características do trabalho policial, portanto, levariam à necessidade de um ambiente com maior liberdade decisória individual, aquilo que estudos chamam de “poder discricionário” (SOUZA e REIS, 2014SOUZA, Jaime Luiz; REIS, João Francisco. F. “A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitos”. Revista do Nufen, Belém, vol. 6, n. 1, pp. 125-166, 2014.) e que será abordado na terceira parte deste artigo. Diante desse cenário, Misse (2010bMISSE, Michel. “O inquérito policial no Brasil: resultados gerais de uma pesquisa”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 3, n. 7, pp. 35-50, 2010b.) entende que, em nível territorial e cotidiano, o que gere as instituições policiais brasileiras é o princípio da “informalidade eficiente”:

Uma ordem informal funcional para o tratamento das contradições sociais que se dá em escala interindividual e com tratamento desigual. Seria uma ordem legítima paralela à ordem legal, mas não necessariamente corrupta, que segue o princípio da eficiência (...), isto é, do atendimento das demandas a partir de um julgamento pessoal (...) criando uma hierarquia do que tem peso político ou que coloca a vida do policial em risco (Ibid., pp. 18-19).

Entender o trabalho dos policiais a partir da leitura de suas características culturais é uma forma de pôr em movimento a noção plural de “território”. O termo tem muitas acepções, mas Haesbaert (2007HAESBAERT, Rogério. “Território e multiterritorialidade: um debate”. GEOgraphia, ano IX, n. 17, pp. 19-45, 2007.) destaca que ele envolve sempre relações de dominação, apropriação e limites, constituindo, a partir daí, ideias de pertencimento - e exclusão - e a formação de “subjetividades territoriais” (p. 27) ou identidades sociais atreladas. Souza (2006SOUZA, Marcelo Lopes de. A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.) destaca que o território não necessariamente parte do Estado e, eventualmente, até prescinde de um solo real, sendo “a projeção espacial de relações de poder ou, em outras palavras, uma relação social diretamente espacializada” (Ibid., p. 35). Logo, mais do que espaços concretos, os territórios constituem “campos de força”, isto é, a dimensão do que é político nas relações sociais e só existe enquanto durarem as relações sociais das quais elas são projeções espacializadas (Ibid., p. 89).

A situação que se instalou nas delegacias de Porto Alegre e a falta de posicionamento das camadas superiores de governo acentuou a falta de padronização, criando um ambiente de aleatoriedade das regras. O que era para ser uma questão temporária se estendeu para delegacias da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), com o registro de rebeliões, fuga de presos, adoecimentos de servidores e conflitos entre as corporações policiais (BASSANI, 2020BASSANI, Fernanda. A divina comédia da segurança pública: Territorialidades e produção da transgressão no percurso punitivo do Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.). Tal descontrole levou o governador José Sartori (MDB) a publicar em agosto de 2016 um decreto de situação de emergência do sistema penitenciário (decreto no 53.176/2016), inédito no RS. No entanto, nenhum ato administrativo foi criado para regulamentar a situação nas delegacias e orientar ou capacitar os servidores públicos envolvidos. Circulava internamente a ideia de que “escrever sobre uma irregularidade, seria uma forma de legitimá-la”8 8 Diário de Campo, 2016. , aproximando perigosamente os policiais civis da função de “carcereiros” que, no entanto, já estavam executando. Em meio à inação governamental, a situação de emergência nas delegacias mostrava efeitos importantes:

Um detento passou mal na tarde desta quarta-feira em uma cela da carceragem da 2ª DPPA, no Palácio da Polícia em Porto Alegre. O homem de 24 anos estava em uma cela com 20 presos, há 7 dias sem tomar banho e há pelo menos 2 dias sem trocar os curativos. Precisou ser levado ao Hospital de Pronto Socorro. No final da noite de terça feira houve um princípio de rebelião quando um dos presos começou a bater a cabeça nas grades da cela “para chamar a atenção”, segundo o delegado. Outros atearam fogo no local. Trata-se de um problema enfrentado na DPPA há cerca de 4 meses (G1 RS, 09/12/2015).

Esse caso dá conta de um rebaixamento na ordem da “informalidade eficiente” sugerida por Misse (2008). Percebe-se um afastamento da mediação política no cotidiano da segurança pública, com atores passando a estabelecer negociações em torno da dimensão da vida nua, isto é do puro biológico (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.). Esse processo se relaciona com uma operação complexa proporcionada pelo brete governamental que, ao prolongar a detenção de sujeitos em condições de ampla suspensão de direitos, “desterritorializa” (HAESBAERT, 2004HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: Do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.) de seus lugares sociais tanto detentos como policiais. Vê-se que ao detento, apartado da possibilidade mínima de liberdade que a vida em galerias de prisões poderia lhe trazer, só lhe restam os ataques ao próprio corpo como forma de resistência. Do lado dos policiais civis, o fato de não terem armamento não letal ou treinamento para o cuidado de pessoas presas faz com que entendam seus novos inquilinos como permanentes ameaças. Por isso tornou-se comum ouvir de alguns policiais civis das DPPAs: “A vida é a maior arma do preso contra nós”9 9 Diário de campo, 2017. .

Em 2016, a sobrecarga e os riscos à vida dos policiais civis estimularam delegados a limitar o número de pessoas na carceragem, ainda que sem a publicação formal de um regulamento. A partir daí, um novo capítulo se desenrolou: a manutenção de presos em bagageiros de viaturas, colocados em frente ao Palácio da Polícia. Em meio aos carros lotados, PMs aguardavam a possibilidade não só de registrar o flagrante delito, mas de conquistar uma vaga para “o seu preso” (KERVALT, 24/11/2016). Criaram-se assim situações insólitas, como o fato de policiais algemarem presos em lixeiras na rua para que eles “pudessem esticar as pernas” (KERVALT, 24/11/2016) após permanecerem mais de 24 horas dentro de carros.

A aglomeração de viaturas em frente ao Palácio levou a um novo problema: a invasão das fronteiras da urbe pública, de um espaço de visibilidade popular. O problema agora não era mais apenas o “transbordamento da prisão” para o território da segurança pública, mas a explosão para o território da cidade, bloqueando seus fluxos, circulações e “colocando em situação de risco emergencial a vida da população” (AGAMBEN, 2014, p. 23). Nesse sentido, uma manchete de novembro de 2016 trazia o simbólico título: “A cadeia ocupa a Avenida na Capital: viaturas com presos trancam a Av. Ipiranga”10 10 Kerwalt, 2016, jornal Gaúcha ZH, impresso. , quando mais de dez viaturas e 25 PMs se aglomeravam no local. Dessa vez, a espera dos presos nos bagageiros já havia saltado de um para três dias e, ao passar pela calçada, era comum ouvir em gritos ou sussurros sofridos: “Por favor, me levem para uma cadeia”11 11 Diário de campo, 2016. .

No final de 2016, a repercussão midiática dos presos em viaturas nas ruas da cidade pressionou por mudanças. Em novembro, um micro-ônibus da Brigada Militar foi instalado no pátio interno do Palácio da Polícia e destruído pelos detentos em menos de 15 dias. Seguiu-se a isso a criação do “Trovão Azul”, um ônibus-cela da Susepe que foi estacionado em área afastada da zona central12 12 Kerwalt, 2017, jornal Gaúcha ZH, impresso. . Ao longo de 2017 e 2018, o ônibus-cela também passou por um processo de superlotação. A última mudança ocorreu em 2019, quando um terreno abandonado próximo ao Manicômio Judiciário, de administração da Susepe, tornou-se a sede da “carceragem sobre rodas”. Em fins de 2019, uma matéria de jornal revelou a presença de 60 homens alojados em viaturas, em condições que envolviam, entre outras precariedades, fazer as necessidades fisiológicas em garrafas plásticas (MENDES, 20/08/2019), com uma média de permanência de seis dias nesses locais. Embretados a meio caminho da prisão, a existência desses homens já não parecia mais representar uma emergência, mas incorporava-se à rotina do fluxo carcerário. Nos relatórios estatísticos, a inclusão do termo “em trânsito” para quantificar os sujeitos ali abrigados era a marca dessa nova e imprecisa realidade punitiva.

Haesbaert (2007HAESBAERT, Rogério. “Território e multiterritorialidade: um debate”. GEOgraphia, ano IX, n. 17, pp. 19-45, 2007.) aponta que o território nunca é uma entidade fixa ou estável: está sempre pronto a “desterritorializar-se”, isto é, a desfazer-se e constituir-se em outra forma ou lugar. Nesse processo, pode forçar a desterritorializações dos sujeitos associados a ele, propiciando movimentos em que “forças e funções saem do seu curso tradicional, atravessando estratos mentais e simbólicos que constituíam a identidade dos seus sujeitos” (Ibid., p. 46) - como no caso dos “policiais atados a viaturas”, confundidos e pressionados a desengajar-se de seu papel constitucional, o patrulhamento ostensivo. Embora não se possa fazer relações diretas, entre 2015 e 2018 17 PMs cometeram suicídio no RS, colocando o estado no primeiro lugar entre as polícias militares do Brasil em mortes do tipo13 13 O RS também ocupa o primeiro lugar em suicídios gerais, com 10,3 por 100 mil habitantes. Mesmo assim, o índice de 30,7 da Brigada Militar do estado é muito superior aos 20,9 do segundo lugar, a Polícia Militar de Minas Gerais (ROLLSING, 15/09/2019). . Na Polícia Civil, a busca por aposentadorias chegou a níveis incomuns: em 2015 foram 462 aposentadorias e, em 2016, 566 aposentados. Isto é, em relação a 2014, quando a situação dos presos em delegacias ainda não era uma preocupação, percebe-se um aumento de 48% nas aposentadorias, conforme informado pela Secretária de Segurança Pública do RS via Lei de Acesso à Informação ([LAI], Lei nº12.527/2011). Deve-se incluir nas análises as pressões ligadas ao parcelamento salarial que acometeu os servidores, as mudanças na previdência nacional e as precariedades do trabalho policial (MINAYO, SOUZA e CONSTATINO, 2008MINAYO, Maria Cecilia; SOUZA, Edinilsa; CONSTANTINO, Patrícia (orgs). Missão prevenir e proteger: Condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.).

Do lado dos detentos, a criação do brete governamental nos instiga a pensar sobre a emergência de novas modalidades punitivas que, para além de retirar a liberdade dos sujeitos envolvidos, também incidem sobre seu corpo, dada a ausência de recursos físicos mínimos para abrigar seres humanos em veículos. Embora precariedades nas condições de cumprimento de pena sejam comuns em prisões superlotadas, sabe-se que, desde a década de 1990, a própria organização do grupo de presos ligada à emergência das facções tem propiciado a compensação mínima de omissões do Estado (DORNELLES, 2014DORNELLES, Renato. Falange Gaúcha. Rio Grande do Sul: RBS, 2014.; CIPRIANI, 2016CIPRIANI, Marcelli. “Da ‘Falange Gaúcha’ aos ‘Bala nos Bala’: a emergência das ‘facções criminais’ em Porto Alegre/RS e sua manifestação atual”. Direito e Democracia, Canoas, vol. 17, pp. 105-130, 2016.). Mesmo que essa dinâmica seja determinante no alto índice de reincidência criminal, pelo comprometimento de dívidas materiais e simbólicas que gera entre os presos após a liberdade (CIPRIANI, 2016, p. 43), ainda assim pode ser entendida como uma forma de resistência (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. 2011[1979].[1979]). Resistência de uma vida que não aceita ser resumida ao seu puro biológico (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.) e persegue o alargamento de margens de negociação política. A figura do embretado, por outro lado, faz pensar em um sujeito envolto em uma teia de dupla punição, desprotegido pelo Estado e também pela facção.

No próximo item deste artigo, veremos que os princípios que regem essa teia punitiva cada vez mais se afastam de uma mediação jurídico-legal e são influenciados por princípios do campo da economia política.

Policiais correndo atrás das metas: as políticas públicas de segurança

A Constituição Federal, em seu artigo 144, define segurança pública como a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. A recente Lei do Sistema Único de Segurança Pública (lei no 13.675/2018) reforça que esse objetivo deve ser buscado pela prevenção dos crimes e que nesse trabalho devem ser respeitados os direitos e as garantias individuais (art. 4). Analisando legislações semelhantes, de tom garantista, mesmo que de outros tempos, Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008[1979].) já apontava que, na prática, a segurança pública busca “governar os efeitos ao invés de prevenir as causas” (p. 5). Para o autor, essa seria a máxima que organizaria os “dispositivos de segurança” modernos, tecnologia de governo que abarca o exercício das políticas, programas e ações de segurança pública adotados por um determinado governo. Foucault (2011[1979]) define dispositivo como

[u]m conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Ibid., p. 165).

O conceito de dispositivo consiste em uma ferramenta de leitura de realidades sociais as mais variadas. Já os dispositivos de segurança seriam compostos por três mecanismos: 1) jurídicos-penais, isto é, as leis e o Poder Judiciário, que trazem uma lógica de permitido-proibido, surgidos na Era Medieval; 2) disciplinares, como a própria prisão e sua busca por correção e esquadrinhamento, típicos da modernidade; e 3) de segurança, como a polícia e as pesquisas estatísticas sobre crimes, que se organizam na contemporaneidade (Ibid., p. 4). Para Foucault, foi o surgimento das grandes cidades no século XIX e a necessidade de vigiar a circulação de pessoas e mercadorias no território urbano que levaram à formulação da noção de segurança:

O que se pode entender por segurança? (...) Primeira modulação, seja uma lei penal simplíssima, na forma de proibição, por exemplo, ‘não matarás’, com sua punição, digamos, o enforcamento. Segunda modulação, a mesma lei penal ainda ‘não matarás’, acompanhada (...) por toda uma série de vigilâncias, controles, olhares diversos que permitem descobrir antes de o ladrão roubar e se vai roubar. E de outro lado, a punição não é só o espetáculo do enforcamento, mas será uma prática como o encarceramento, impondo ao culpado toda uma série de exercícios de trabalho, moralização, correção. Terceira modulação (...) a aplicação dessa lei penal, a organização da prevenção, da punição corretiva, será comandado por uma série de perguntas, como: Qual a taxa média deste tipo de crime? Como se pode prevê-lo? A repressão a este roubo custa quanto? É mais oneroso ter que tipo de repressão? (Idem, 2008, p. 7).

Em sua explicação sobre os dispositivos de segurança, o autor dirá que a organização entre seus elementos não seria regida pela “letra fria da lei”, mas por uma racionalidade econômica, um cálculo de custos e probabilidades sobre os crimes e seus efeitos. Ele retoma o famoso caso da escassez de cereais na Europa ao longo do século XVIII, cuja solução inovadora sugerida por economistas fisiocratas teria servido de inspiração para governos modernos: em vez de estocar alimentos, limitar preços e tentar prevenir a fome, deixar a escassez acontecer. Isto é, liberar o comércio, governando a fome quando ela ocorresse. Acreditava-se que, assim, se processaria uma regulação natural, a partir da ideia de que a livre competição traz o máximo de satisfação social. Inspirado nessa lógica, o objetivo último da segurança seria, na opinião de Foucault, “não prevenir os crimes, mas gerir os ilegalismos, canalizando-os em uma direção útil” (Ibid., p. 34).

A ideia de dispositivo de segurança nos ajuda a entender situações que, à primeira vista, mostram-se incongruentes, como o caso de presos alojados em viaturas, violando uma série de ordenamentos jurídicos, como a Lei de Execuções Penais (LEP) (lei no 7.210/1984). Além disso, a Cadeia Pública, principal instituição prisional do RS, já havia sido interditada outras vezes, sem os efeitos percebidos a partir de 2015, reforçando a necessidade de se examinar movimentos macropolíticos ligados à gestão governamental. Nesse sentido, em uma linha do tempo percebe-se que a situação do brete governamental surge e se estabelece ao longo do governo Sartori - fato que em depoimento de seu secretário de Segurança em 2016 é abordado como fruto do empenho no combate ao crime:

Segundo o secretário de Segurança Pública, Cezar Schirmer, nunca se prendeu tanto no Rio Grande do Sul quanto desde o início do governo de José Ivo Sartori. Entre janeiro de 2015 e outubro deste ano, houve acréscimo de 6 mil pessoas na população carcerária, totalizando 35 mil nas prisões do Estado: ‘Esse aumento demonstra que estamos determinados em não deixar os criminosos nas ruas. Obviamente, isso gera dificuldades, como a presença de presos em delegacias. Estamos examinando alternativas para sanar essa situação’, assegura (JORNAL DO COMÉRCIO, 27/08/2016).

Uma característica da dinâmica dos dispositivos de segurança é seu processo de contínuo “preenchimento estratégico” (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. 2011[1979]., p. 125). Ou seja, se algo der errado, eles se reorganizam, aproveitam os efeitos negativos de forma útil e os incluem em uma nova estratégia Aplicando-se o conceito ao caso do RS, percebe-se o reaproveitamento da imagem dos “presos sem vaga na prisão” como a prova do propósito governamental de combate ao crime, do ponto de vista da opinião pública.

Em meio a esse cenário, a população carcerária gaúcha foi crescendo em um ritmo incomum, cuja linha divisória encontra-se em 2015, primeiro ano do governo Sartori. No Gráfico 1, elaborado a partir de dados da LAI, observamos o salto populacional entre 2015 e 201814 14 A população seguiu crescendo em 2019, já no governo de Eduardo Leite. Em 2020 observou-se um decréscimo ligado à pandemia de Covid-19 (Mapa Prisional Susepe, 2019, 2020). :

Gráfico 1:
População carcerária no RS entre 2009 e 2019

No Gráfico 1, percebe-se que entre 2009 e 2014 a população carcerária do RS se manteve estável, atrelada à linha limítrofe dos 30 mil presos, com poucas variações. A época coincide com o governo de Tarso Genro (2011-2014), cujos princípios estavam atrelados, inicialmente, a uma orientação política de esquerda. Com a troca para o governo Sartori (2015-2018), percebe-se um crescimento da ordem de 20% em dois anos. Enquanto o governo Tarso Genro abandona a gestão em 2014 com o mesmo número de presos de quando ingressou, Sartori conclui seu mandato em 2018 deixando um aumento de 36% da população carcerária, representando 11 mil pessoas a mais - índice superior ao registrado no Brasil (22%) (DEPEN, 2019).

De fato, a época coincide com o aumento da violência criminal no RS. Como exemplo, apresentamos no Gráfico 2 o índice de homicídios no estado entre 2009 e 2018. Nele, pode-se observar que a elevação nos índices de violência letal é anterior ao governo Sartori, em especial a partir de 2014. Porém, a curva segue ascendente em 2015 e 2016, chegando a seu ápice em 2017. Esse aumento é associado pelos meios de comunicação de massa a uma suposta “guerra entre facções” (SPERB, 27/10/2016), cuja análise extrapola o objetivo deste artigo.

Gráfico 2:
Índice de homicídios no Rio Grande do Sul entre 2013 e 2019

Como se pode ver no Gráfico 2, em 2018 a curva dos homicídios começa a ceder. 2019, por sua vez, registrou uma queda de 24% nos homicídios e tem sido reconhecido pelos órgãos governamentais como o ano em que se venceu a “crise da segurança Pública no Estado” (RIO GRANDE DO SUL, 09/01/2020). Mesmo com a possível amenização da violência de morte, o brete governamental não foi desfeito, deixando a seguinte questão: considerando-se a queda dos índices de homicídios, que políticas públicas de segurança adquiriram um caráter estável e seguiram até 2020 retroalimentando um elevado número de aprisionamentos?

Antes de buscarmos respondê-la, devemos relembrar a noção de políticas públicas como “algo que é desenhado e formulado pelos Estados para investir determinada área da vida dos cidadãos” (GUARESCHI, LARA e ADEGAS, 2010GUARESCHI, Neuza; LARA, Lutiane de; ADEGAS, Marcos Azambuja de. “Políticas públicas: entre o sujeito de direitos e o homo economicus”. Psico, Porto Alegre, vol. 41, n. 3, pp. 332-339, 2010., p. 334) e que toma a forma de planos, programas, projetos, bases de dados ou sistemas de informação e pesquisas que pretendem resultados (Ibid., p. 336). Além disso, é também o resultado do jogo de forças entre grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações que produzem um direcionamento das ações estatais (BONET, 2016BONET, Lindomar W. Políticas públicas, direitos humanos e cidadania. JURIS, Rio Grande, v. 26: p. 189-204, 2016.). A partir dessa apropriação conceitual, podemos retroceder até 2014, quando gestores da segurança pública local iniciaram aproximações com uma consultoria empresarial privada com sede em Minas Gerais. A Consultoria Falconi é conhecida por auxiliar empresas e órgãos públicos cuja missão declarada é transferir conhecimento gerencial centrado em resultados, visando modernizar espaços burocratizados.

Em março de 2015, a Polícia Civil apresentou o então projeto de qualificação, primeira aparição pública de um programa que vinha sendo construído com a participação de diversas secretarias locais e a Consultoria Falconi (RIO GRANDE DO SUL, 04/03/2015). Em caráter experimental, o plano de trabalho vinha sendo testado desde 2014 em algumas delegacias da capital. A parceria deu origem ao Programa Qualificar - Programa de Modernização da Gestão. Entre seus quatro pilares basilares, um em especial modificou a rotina dos policiais civis: a gestão por resultados, que previa a definição de metas que deveriam ser buscadas por delegacia, equipe e também policial e avaliadas mensalmente nesses três níveis de controle. A partir de um cálculo entre o número de policiais na equipe e os índices de criminalidade da região da delegacia, foram estabelecidas as metas: 1) ocorrências em carga - ocorrência criminais que ainda estão na delegacia para averiguação/investigação; 2) procedimentos remetidos -por exemplo, inquéritos remetidos ao Judiciário ou ao Ministério Público; 3) armas apreendidas; 4) operações policiais15 15 Operações policiais são ações externas planejadas, agendadas e realizadas em grupos de policiais, podendo reunir diversas delegacias, com a finalidade de investigação ou cumprimento de mandados de prisão sob um mesmo tema e/ou local. Tendem a produzir grande repercussão midiática. ; e 5) pessoas presas.

Um dado interessante é que alguns crimes ganharam pontuação superior a outros, mas não foram feitas gradações internas à categoria criminal, de acordo com a gravidade do fato. Dessa maneira, prender um traficante de pequena quantidade de drogas ou um distribuidor de grande porte resultava na mesma pontuação final no quadro de metas. Com a expansão do programa, algumas dinâmicas começaram a se verificar, como: a sensação de uma “gincana” competitiva entre as delegacias; a pressão pelo fechamento das metas em detrimento da qualidade do trabalho de investigação; o deslocamento da concentração em investigações de grande porte para criminosos menos relevantes na hierarquia criminal; e o prejuízo nas relações de cooperação dentro das delegacias. Falas contestavam a metodologia:

- Hoje em dia o que importa é a meta do Qualificar, não mais a qualidade do inquérito. Por exemplo: o mais importante é tirar o Eduardo da rua, mas é mais mole de resolver o caso do Carlos. Aí engaveta o Eduardo e investiga o Carlos. Senão, no fim do mês a DP [delegacia de polícia] não recebe os benefícios como hora extra, que sô vêm pra DP que alcança as metas. (Diário de campo, 2017)

A meta “pessoas presas” reorganizou os fluxos de trabalho e as prioridades nas DPs. As relações de causa e efeito são sempre delicadas de serem apontadas, mas em meio à expansão do Programa Qualificar ao longo de 2016 e 2017, a situação de presos em carceragens de delegacias deixou de ser um problema local para se alastrar por todas as DPPAS da RMPA e assim tem se mantido.

A atuação de uma lógica de mercado no interior de instituições públicas foi analisada por Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008[1979].), em seu livro O nascimento da biopolítica. Na obra, o autor procura diferenciar o liberalismo do neoliberalismo, destacando que enquanto no primeiro o Estado deve regular minimamente o mercado, no segundo o mercado é que deve regular o Estado. O modelo pede, ainda, que o mercado não seja meramente o princípio de limitação, mas que intervenha ativamente, provocando e estimulando a concorrência no seio do Estado. O autor conclui dizendo que na arte de governar neoliberal a intervenção deve ser discreta no nível econômico, mas intensa nos condicionantes que garantam a concorrência.

No cotidiano da Polícia Civil, pode-se perceber que as relações de “gincana” que se estabeleceram entre as delegacias e no interior das equipes produziram, com o passar do tempo, um silenciamento quanto à complexidade envolvida nos fluxos da segurança pública. Nesse sentido, Foucault (2009) lembra que, na transposição do “modelo empresa” (p. 87), os critérios padronizados e a avaliação quantitativa tendem a produzir alienação nos profissionais. Nesse sentido, é oportuno retomar Arendt (1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.), quando diz que a banalidade do mal muitas vezes não está no ato repentino de violência física, mas na obediência cotidiana a uma maquinaria burocrática produtora de morte.

Na outra ponta do território da segurança pública, a Brigada Militar lançou em 2015 o Programa Avante. Segundo Hadler e Guareschi (2018HADLER, Oriana; GUARESCHI, Neuza. “Investimento no cárcere: o menor dos males na política de segurança pública”. Psicologia, Ciência e Profissão, vol. 38, pp. 10-26, 2018.), a operação tinha três fases de atuação: 1) a instalação de barreiras de monitoramento em locais com altos índices de crimes letais; 2) a repressão da criminalidade em pontos estratégicos; e 3) a incorporação de agentes da Força Nacional do governo federal após o decreto de emergência. Por trás da coordenação de ações externas da Operação Avante, estava também a “moldura governamental” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008[1979].) das metas, pela parceria estabelecida com a Consultoria Falconi:

A fim de garantir a melhoria dos serviços prestados à sociedade, a Brigada Militar está recebendo o auxílio da “Consultora Falconi - consultores de resultados” para aprimorar seu sistema de gestão. A partir de um alinhamento estratégico, partiremos ao desdobramento das metas, seguido da reestruturação dos processos de trabalho (Site BRIGADA MILITAR, 201716 16 “Brigada Militar avalia e propõe novos passos para Programa Avante.” https://ssp.rs.gov.br/brigada-militar-avalia-e-propoe-novos-passos-para-programa-avante ).

Por fim, é importante ressaltar que fazemos aqui a análise de políticas públicas que estão sendo implementadas; logo, trata-se de uma análise do contemporâneo, o que complexifica qualquer conclusão. De qualquer maneira, percebe-se a sintonia entre o crescimento exacerbado da população carcerária gaúcha e a implantação de programas de qualificação nas polícias baseados em metas de produtividade. Essa relação se torna ainda mais importante à medida que, a partir de 2019, os índices criminais regridem no RS sem que isso repercuta em redução da superpopulação carcerária. Retomando as noções foucaultianas, a situação gaúcha evidencia o que pode emergir quando uma lógica de mercado neoliberal passa não só a reger as políticas públicas de segurança, mas também a organizar os fluxos de trabalho em instituições. Esse traço se intensifica ao considerar que as forças policiais, segundo Reiner (2004REINER, Robert. A política da polícia. São Paulo: Edusp, 2004.), são historicamente instrumentais, requerendo permanente controle externo.

Por quem são julgados os ‘presos das viaturas’? Provocações sobre o ‘flagrante delito’

No Brasil, 41,5% das cerca de 800 mil pessoas17 17 Os EUA e a Rússia, primeiro e segundo países com as maiores populações carcerárias, têm percentuais mais baixos: 20,4% e 17,90%, respectivamente (CNJ, 2019). que se encontram encarceradas não têm condenação formal, não tiveram defesa legal e, em muitos casos, sequer foram ouvidas por um juiz. São os “presos provisórios”, cuja principal porta de entrada na prisão é o dispositivo jurídico do “flagrante delito” (art. 302 do CPP). O termo flagrante vem do latim flagrare, que quer dizer flamejar, arder. Logo, ser preso em flagrante delito indicaria ser detido no “calor do crime” (SOUZA e REIS, 2014SOUZA, Jaime Luiz; REIS, João Francisco. F. “A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitos”. Revista do Nufen, Belém, vol. 6, n. 1, pp. 125-166, 2014.). Apesar de o termo ter a acepção de “evidente e incontestável”, no dia a dia da segurança pública ele adquire uma característica relativa. O art. 302 do CPP prevê ao menos três situações em que a flagrância pode ser declarada mesmo sem ter sido presenciada pelos agentes:

Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (BRASIL, 1941).

Em pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2012, constatou-se que dos 7.734 processos de pessoas presas em flagrante delito naquele ano, 54% foram submetidos a uma situação mais grave do que a medida recebida após o julgamento, configurando o que juristas entendem como “excesso de prisão provisória no Brasil”:

O Poder Judiciário tem considerado mais eficaz e menos oneroso evitar um processo judicial amparado no princípio do amplo contraditório e tem sistemática e automaticamente chancelado a atividade policial, convertendo massivamente em prisão processual as prisões em flagrante (IPEA, 2015, p. 12).

No que tange à atuação policial, Misse (2010bMISSE, Michel. “O inquérito policial no Brasil: resultados gerais de uma pesquisa”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc., Rio de Janeiro, vol. 3, n. 7, pp. 35-50, 2010b.) aponta que um fator determinante para essa realidade são as características culturais dos órgãos de polícia, como o princípio da “informalidade eficiente”, explicado anteriormente. Diante da alta demanda de ocorrências e da ausência de diretriz estatal sobre quais crimes priorizar, os flagrantes delitos se tornam funcionais do ponto de vista do trabalho, pois vêm acompanhados do testemunho dos policiais que efetuaram a prisão e de provas capturadas no momento da abordagem, como telefones celulares, armas, drogas etc. Logo, a tendência é que o processamento desse tipo de detenção seja priorizado em detrimento de prisões por mandado judicial, que envolveriam investigações em médio prazo, com escutas telefônicas e produção de provas mais consistentes, por exemplo.

Considerando o cenário gaúcho que analisamos até aqui, é importante observar a evolução de presos provisórios nas prisões gaúchas entre 2009 e 2019. Como já visto, esses presos são aqueles ainda não sentenciados e que, em sua maioria, foram detidos a partir do dispositivo jurídico do flagrante delito:

Gráfico 3:
Prisões provisórias no RS entre 2009 e 2019

O Gráfico 3 demonstra que no primeiro ano do governo Sartori foi registrado um aumento da ordem de 65,39% nas prisões provisórias. Esse tipo de detenção seguiu em crescimento até 2017, estabilizando-se somente em 2018, quando acaba o mandato de Sartori. O aumento incomum do número de presos provisórios no primeiro ano de implantação dos programas de qualificação por produtividade nas polícias suscita reflexões. É possível que a necessidade governamental de produzir uma resposta à “opinião pública” (GOMES e ALMEIDA, 2013GOMES, Luís Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: Caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.) tenha levado à ampliação dos flagrantes delitos justamente por serem o tipo de detenção mais plástica, isto é, em que mais atua a margem discricionária dos órgãos policiais.

Para entender o papel que o dispositivo do flagrante delito tem ocupado nos processos de criminalização, é importante esclarecer traços do modelo de policiamento, que no Brasil se constitui sobre duas polícias. Segundo Rolim (26/02/2012), enquanto em países como EUA e Inglaterra é a mesma polícia que atende à ocorrência e investiga o caso, aqui o ciclo se divide entre Polícia Militar e Polícia Civil, gerando perda de provas processuais, fragilidades nos testemunhos e conflitos entre corporações. Beato (1999) define o atual fluxo de processamento criminal no Brasil da seguinte maneira:

É comum que inicie com uma abordagem da Polícia Militar que, de posse do detido, a comunica à Polícia Civil, que a registra em forma de boletim de ocorrência (BO) ou prisão em flagrante (APF). Em caso de prisão em flagrante, a PC envia o documento ao plantão da Vara criminal, para que o APF seja homologado ou não. O prazo é de até 24horas. O mesmo APF dá início ao inquérito policial, em que será averiguada a materialidade dos crimes, indicadas as testemunhas e tomados os depoimentos. Terminado o inquérito, ele é remetido ao Ministério Público para preparar a denúncia a ser remetida à Vara Criminal (Ibid., p. 45).

Um aspecto se destaca em todas as etapas do processamento criminal executadas pelos órgãos policiais: a discricionariedade policial, isto é “o poder que o policial tem de escolher o tipo de solução mais adequada a algum evento, ou mesmo de decidir agir ou não em uma determinada situação” (MUNIZ, 1999MUNIZ, Jacqueline. “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”: Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., p. 78). Para Oliveira Junior (2007), a decisão discricionária é a célula principal do poder de polícia18 18 “Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança (...) Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder (BRASIL, 1966, art. 78). (BRASIL, 1966, art. 78), permitindo a constituição de uma autoridade de força quando os meios contratuais jurídicos falham.

No caso dos PMs, voltados para o patrulhamento ostensivo de rua, o que organizaria a decisão dos policiais seria o princípio legal da “fundada suspeita” ou “suspeição intuída”. A fundada suspeita é prevista no CPP (BRASIL, 1941, art. 240, 244) como uma “desconfiança inicial que se configurou verdadeira” (MEDEIROS, 2013MEDEIROS, Paulo Rogério Farias. “Suspeita intuída”. Revista Jus Navigandi, Teresina, vol. 18, n. 3715, 2013. Disponível em:https://jus.com.br/artigos/25210
https://jus.com.br/artigos/25210...
, p. 21). Já a suspeição intuída é referida na Nota de Instrução Operacional no 024.1 da Brigada Militar, definindo o “suspeito intuído como a pessoa que, em razão das circunstâncias de conduta, tempo e/ou lugar, desperta no policial uma presunção de ameaça à tranquilidade pública, embora tal desconfiança não possua relação direta com determinado delito” (RIO GRANDE DO SUL, 2008). Para Souza e Reis (2014SOUZA, Jaime Luiz; REIS, João Francisco. F. “A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitos”. Revista do Nufen, Belém, vol. 6, n. 1, pp. 125-166, 2014.), o tema é dos mais ambíguos, pois a lei autoriza a abordagem pessoal independentemente de mandado judicial sob o nome de “busca pessoal” (BRASIL, 1941, art. 244). Assim, tem-se um “delinquente imaginário” que é “um híbrido reflexivo entre o conhecimento formal adquirido pelo PM na formação e o saber-ato que a cultura policial lhe forneceu nas esquinas da vida” (MUNIZ, 1999MUNIZ, Jacqueline. “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”: Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., p. 179).

Enquanto na Brigada Militar a liberdade de ação propicia construir cognitivamente um mapa de sinais- corporais, comportamentais e situacionais - de suspeição para decidir a abordagem (OLIVEIRA JUNIOR, 2007OLIVEIRA JUNIOR, Almir de. Cultura de polícia: Cultura e atitudes ocupacionais entre policiais militares em Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.), na Polícia Civil a discricionariedade de interpretação dos relatos recebidos na delegacia definirá a acusação policial, isto é, a decisão pelo indiciamento. A atividade de definir algo como um fato penal e de tornar alguém alvo de acusação pertence ao Delegado de Polícia, considerado a “autoridade policial no território” (BRASIL, 1941, art. 4). Misse (2010) destaca que haveria no Brasil uma ambivalência na função do delegado de polícia, que une a prerrogativa de investigar (administrativa) com a de formar a culpa (judiciária). Essa seria uma herança da época imperial, quando o chefe de polícia, cargo maior da instituição, tinha que ser, por exigência legal, um juiz:

Por mais que a legislação tenha mudado, heranças de dois séculos atrás ajudaram a constituir um sistema único de persecução penal no país, onde cabe a polícia a investigação, mas também um relatório jurídico orientado com formação de culpa, chamado inquérito. O resultado é um inquérito policial inquisitorial, pois dele não participa o contraditório e a ampla defesa e, mesmo sendo produzido administrativamente, adquire um caráter instrucional da ação penal (Ibid., p. 36).

A posição ambivalente da Polícia Civil, entre o campo jurídico e o da segurança pública, se complexifica ainda mais quando consideramos as precariedades estruturais e de recursos humanos que tradicionalmente marcam as forças policiais no país. Nem sempre os plantões de delegacia têm a participação constante dos delegados plantonistas (que precisam se dividir entre mais de uma delegacia), o número de ocorrências é excessivo e as orientações ao plantonista podem vir por telefone ou apenas quando o trabalho já está concluído.

Conforme vimos na seção anterior deste artigo, os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008[1979].) miram o crime já feito, e não suas causas. Lembremos que as estatísticas que orientam a distribuição das forças policiais no Brasil são feitas sobre crimes já ocorridos nas regiões da cidade. Por conta disso, elas deixam uma margem de manobra para os fluxos humanos, de maneira que caberia aos atores da segurança “lerem” o meio, seja nos movimentos entre os corpos seja na forma como esses corpos se apropriam da cidade - moradias, esquinas, aglomerações, dados da natureza, etc. Nesse continuum, analisar a curva de detenções de presos provisórios em um recorte de tempo e lugar pode ajudar a compreender o impacto de lógicas econômicas e populistas quando inseridas no fluxo do trabalho policial - casos em que a segurança pública se distancia de uma mediação legal e democrática, conforme já evidenciado por Benjamin (1986BENJAMIN, Walter. “Crítica da violência, crítica do poder”. In: Documentos de Cultura, documentos de barbárie: Escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986, pp. 51-61.):

Quando a governabilidade passa a ser uma meta mais importante que a necessidade dos governados, o dispositivo perde qualquer possibilidade de um impacto positivo e se transforma em uma máquina cuja função será manter, a qualquer custo, a ordem constituída. Em nome disso, o dispositivo assume um peso maior que a própria ordem legal, ficando autocentrado no poder (Ibid., p. 111).

Considerações finais

Foucault (2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. 2011[1979].) propõe analisar acontecimentos históricos considerando que a história é descontínua, e não evolutiva, podendo sempre levar a humanidade a caminhar para trás. Entre 2015 e 2020 a população carcerária gaúcha aumentou em 31%, índice superior à média nacional, de 22% (DEPEN, 2019), gerando uma explosão do problema carcerário para fora dos seus muros. A retrospectiva do que se criou a partir daí evidencia a ideia de emergência, de algo provisório e que, somente por isso, poderia ser tolerado. Sobre isso, Agamben (06/01/2014) afirma que, na contemporaneidade, a “obsessão por segurança” (p. 2) estaria levando a uma transformação da democracia, com o abandono de garantias jurídicas pela urgência de defesa da sociedade. O autor aponta que o argumento “por razões de segurança“ tem motivado medidas provisórias que são, na verdade, a célula de estados de exceção, pois a história nos mostra que a tendência é que deixem de ser temporárias e se tornem a norma geral (Ibid.).

Não se sabe quantas pessoas vivenciaram a detenção nos espaços improvisados do brete governamental gaúcho, mas somente até outubro de 2019, 12.000 pessoas haviam sido transferidas desses locais para a prisão (SUSEPE IMPRENSA, 07/10/2019). Em 2020, em plena pandemia de Covid-19, quase cem presos eram aglomerados em delegacias. Do lado da polícia, a situação tem tensionado policiais militares e civis, que se veem forçados a assumir funções para as quais não têm treinamento ou equipamentos. Além disso, a pesquisa mostrou que a convivência cotidiana com situações de punição no “limiar do corpo”, por dias seguidos, convoca a um desengajamento pessoal que supera as tradicionais pressões do trabalho policial.

O caso do RS faz pensar sobre mutações recentes do dispositivo de segurança, conceito sugerido por Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008[1979].) nos anos 1970. Hoje, em meio ao neoliberalismo, o dispositivo parece abandonar a lógica disciplinar como forma de punição em detrimento da mera imobilização de sujeitos, manejados em sua pura dimensão biológica, isto é, desconstituídos de sua condição política ou humana. A situação de presos alojados em viaturas de polícia, mesmo que por poucos dias, nos assombra com a imagem de sujeitos embretados em meio a um dispositivo que, ao mesmo tempo que os captura por uma suposta transgressão à lei, os exclui da proteção dos pressupostos mínimos legais. Por outro lado, ao retirar-lhes a possibilidade de associação grupal, que nas últimas décadas tem criado barreiras de sobrevivência diante das reiteradas omissões estatais nas prisões, adquire um papel de dupla punição.

Por fim, a forma como o brete governamental tem sido alimentado, com sujeitos em sua maioria apenas suspeitos de terem cometido crimes, isto é, ainda não julgados por um juiz, amplia os efeitos devastadores desse tipo de situação. Assim como nos bretes comuns das prisões gaúchas, gerenciados por valores culturais e morais dos grupos de presos, em vez de organizados pelo regulamento formal da instituição, há no brete governamental algo que escapa ao que a lei a estabelece. Isso nos faz questionar se o que determina o recolhimento desses suspeitos não é também um julgamento moral e cultural, que desliza da política pública governamental para a atuação policial cotidiana.

Referências

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  • SPINK, Peter Kevin. “O pesquisador conversador no cotidiano”. Psicol. Soc.,vol. 20, pp. 70-77, 2008.

Fontes da imprensa

  • 1
    Os motins ocorreram em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte e o número de mortos superou o maior massacre prisional do Brasil, o do Carandiru em 1992. Eles podem ter relação com o conflito entre as facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando vermelho (CV) (CHIES e ALMEIDA, 2019CHIES, Luiz Antonio; ALMEIDA, Bruno Rotta. “Mortes sob custódia prisional no Brasil”. Revista de Ciências Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 67-90, 2019.).
  • 2
    O conceito será explicado adiante e foi uma das proposições de minha tese em psicologia social, intitulada A divina comédia da segurança pública: territorialidades e produção da transgressão no percurso punitivo do RS e defendida em 2020 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
  • 3
    Utilizamos o termo suspeito, em vez de criminoso, seguindo o pressuposto da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado da sentença” (BRASIL, 1988).
  • 4
    Optamos pelo termo território, em vez de campo ou sistema de segurança pública, por nossa atenção aos movimentos cotidianos de grupos policiais e criminais na espacialização dos espaços de segurança (HAESBAERT, 2007HAESBAERT, Rogério. “Território e multiterritorialidade: um debate”. GEOgraphia, ano IX, n. 17, pp. 19-45, 2007.; SOUZA, 2006SOUZA, Marcelo Lopes de. A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.).
  • 5
    Não há estudos específicos sobre o tema, mas menções em trabalhos etnográficos prisionais (RUDNICK, 2012RUDNICK, Dani. “Três dias no Presídio Central de Porto Alegre: o cotidiano dos policiais militares”. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 49, n. 193, pp. 49-63, 2012.; CIPRIANI, 2016CIPRIANI, Marcelli. “Da ‘Falange Gaúcha’ aos ‘Bala nos Bala’: a emergência das ‘facções criminais’ em Porto Alegre/RS e sua manifestação atual”. Direito e Democracia, Canoas, vol. 17, pp. 105-130, 2016.). Baseio-me aqui em diários de campo realizados em prisões do RS.
  • 6
    Serão mais bem analisadas na segunda parte deste artigo.
  • 7
    O detido só deve ficar recolhido na unidade policial durante o tempo necessário para a finalização do flagrante, no prazo máximo de 24 horas (art. 306 do Código de Processo Penal [BRASIL, 1940])
  • 8
    Diário de Campo, 2016.
  • 9
    Diário de campo, 2017.
  • 10
    Kerwalt, 2016, jornal Gaúcha ZH, impresso.
  • 11
    Diário de campo, 2016.
  • 12
    Kerwalt, 2017, jornal Gaúcha ZH, impresso.
  • 13
    O RS também ocupa o primeiro lugar em suicídios gerais, com 10,3 por 100 mil habitantes. Mesmo assim, o índice de 30,7 da Brigada Militar do estado é muito superior aos 20,9 do segundo lugar, a Polícia Militar de Minas Gerais (ROLLSING, 15/09/2019).
  • 14
    A população seguiu crescendo em 2019, já no governo de Eduardo Leite. Em 2020 observou-se um decréscimo ligado à pandemia de Covid-19 (Mapa Prisional Susepe, 2019, 2020).
  • 15
    Operações policiais são ações externas planejadas, agendadas e realizadas em grupos de policiais, podendo reunir diversas delegacias, com a finalidade de investigação ou cumprimento de mandados de prisão sob um mesmo tema e/ou local. Tendem a produzir grande repercussão midiática.
  • 16
    “Brigada Militar avalia e propõe novos passos para Programa Avante.” https://ssp.rs.gov.br/brigada-militar-avalia-e-propoe-novos-passos-para-programa-avante
  • 17
    Os EUA e a Rússia, primeiro e segundo países com as maiores populações carcerárias, têm percentuais mais baixos: 20,4% e 17,90%, respectivamente (CNJ, 2019).
  • 18
    “Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança (...) Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder (BRASIL, 1966, art. 78).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2021
  • Aceito
    10 Ago 2021
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