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Políticas de memória, verdade e justiça de transição: Análise da experiência brasileira

Politics of memory, truth, and transitional justice: Analysis of the Brazilian experience

Resumos

O presente estudo busca identificar as possíveis causas do insucesso das políticas de justiça transicional no Brasil em construir uma consciência coletiva sobre as atrocidades da Ditadura Civil-Militar de 1964, redundando na ascensão do ultraconservadorismo ao comando do país e na ameaça de uma iminente ruptura democrática. Através de revisão bibliográfica, exploraram-se os principais legados do período de exceção que geraram obstáculos ao avanço da justiça transicional no Brasil e resultaram na ascensão do ultraconservadorismo no país, tendo em comum a evidência da manutenção dos interesses de grupos ligados à Ditadura Civil-Militar.

Palavras-chave:
Justiça de transição; ditadura; memória; verdade; justiça


This study seeks to identify the possible reasons for the failure of transitional justice policies in Brazil to build a collective consciousness regarding the atrocities committed during the Civil-Military Dictatorship of 1964, leading to the rise of ultraconservatism in the country and the threat of an imminent democratic rupture. With a bibliographic review, we explored the main legacies of this exceptional period that hindered the progress of transitional justice in Brazil and resulted in the ascendance of ultraconservatism in the country, with common evidence of the preservation of interests of groups linked to the Civil-Military Dictatorship.

Keywords:
Transitional justice; dictatorship; memory; truth; justice


Introdução

O processo de justiça de transição com relação à Ditadura Civil-Militar de 1964 foi desenvolvido tardiamente no Brasil, quando comparado a outros países da América Latina. As primeiras políticas públicas nesse sentido só se deram muitos anos após o processo de redemocratização, a partir de pressões externas, tendo seus primeiros passos dados em meados da década de 1990, mas assumidas de modo efetivo como agenda de governo apenas a partir de 2008.

Ocorre que, apesar da instituição de políticas públicas, como a Caravana da Anistia e as Comissões da Verdade1 1 As comissões da verdade são órgãos instituídos em países que atravessaram períodos de instabilidade política, com a suspensão dos direitos individuais e das normas democráticas, como no caso de ditaduras. Tendo a primeira delas surgido em Uganda a fim de apurar as violações dos direitos humanos ocorridas durante o governo autoritário do general Idi Amin Dada, as comissões da verdade foram relevantes na apuração dos crimes perpetrados pelas ditaduras latino-americanas, como a uruguaia, a chilena, a paraguaia, a argentina e a brasileira. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída pela Lei nº 12.528/2011 e apurou as violações aos direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, detendo-se sobretudo nos 21 anos da Ditadura de 1964. A criação da CNV inspirou a formação de órgãos municipais e estaduais semelhantes, além de entidades não governamentais, como os sindicatos (BRASIL, 2022). Por seu turno, as Caravanas da Anistia, ou Caravanas da Verdade, realizam ações itinerantes. Trata-se de projeto educacional em direitos humanos desenvolvido a partir de 2008 pelo Ministério da Justiça. A Comissão de Anistia (CA) realiza sessões de apreciação pública dos pedidos de anistia que recebe em todo o território nacional, tornando o passado recente acessível a todos (COELHO; ROTTA, 2012). - importantes instrumentos para efetivação da justiça transicional pelos governos progressistas que estiveram à frente da nação nas primeiras décadas deste século -, o Brasil foi influenciado por uma onda de conservadorismo e de negação das atrocidades perpetradas pelo Estado durante o regime de exceção que se instaurou a partir do Golpe Civil-Militar de 1964.

Esse movimento conservador e negacionista da ultradireita, difundido e fortalecido nos últimos dez anos através das mídias digitais, nova arena de articulação política, redundou em um governo eleito sobre uma plataforma política de “combate à criminalidade”, baseada na premissa de que a segurança pública deveria ser garantida a qualquer custo, relativizando os direitos humanos e a legitimidade do Estado enquanto agente de repressão irrestrita. Como lastro ideológico desse movimento ultraconservador, a exaltação à Ditadura Civil-Militar que assolou nosso país, a adoção de seus agentes repressores, assassinos e torturadores vis como heróis, e a promoção de uma narrativa distorcida da história, na qual o regime de exceção teria advindo de uma “revolução” que libertou o país de uma “ameaça comunista”.

A justiça de transição, por meio de políticas públicas, como as de memória e verdade, busca a responsabilização de Estado pelos atos cometidos em regimes autoritários e totalitários2 2 O autoritarismo é muitas vezes confundido com o totalitarismo. Não obstante, possuem esses conceitos têm diferenças relevantes. No autoritarismo, há um controle centralizado e restrição da liberdade, mas ainda existem espaços sociais relativamente autônomos, enquanto no totalitarismo o Estado busca um controle total sobre todos os aspectos da vida, eliminando a esfera pública e a liberdade individual. No totalitarismo, há uma busca por conformidade ideológica e a supressão de qualquer forma de oposição (ARENDT, 2007). contra a população, bem como a constituição de uma consciência social que impeça que novas experiências totalitárias sejam perpetradas.

Em função do movimento tardio e de outras condicionantes que passarão a ser abordadas, a instituição dessas políticas no Brasil não obteve a efetividade esperada no sentido da constituição de uma consciência social,3 3 Segundo Inez Stampa e Vicente Rodrigues (2016, p. 8), “há uma geração, principalmente nascida após a década de 1990, que, de forma geral, tem poucas informações sobre o regime de exceção, e outra que passou pelo período de ditadura e, também de forma geral, olha para nossa democracia como um processo em construção. trazendo consigo um efeito colateral: o recrudescimento do conservadorismo no Brasil. A tentativa de estabelecimento de uma política de justiça transicional efetiva no Brasil foi encarada como uma ameaça por aqueles agentes remanescentes do período militar, causando uma forte reação contrária por parte das Forças Armadas (FFAA) e de políticos vinculados, ou mesmo simpáticos, ao Regime.

Nesse cenário, repleto de contradições, a proposta do presente estudo é avaliar quais fatores levaram ao insucesso, no Brasil, dessas políticas de memória e justiça e quais forças atuantes no cenário político contribuíram para isso. Assim, tem-se por desiderato determinar por que as políticas de memória, verdade e justiça de transição não obtiveram êxito no Brasil.

Para alcançar o objetivo proposto, realizou-se o cotejo de obras de referência quanto à temática dos regimes autoritários na América Latina, identificando os fatores assinalados pelos autores como possíveis causadores de óbices para a realização de uma efetiva política pública de memória e justiça no Brasil.

Como se demonstrará, o insucesso da política transicional que buscou se efetivar no Brasil é resultado de uma combinação multifatorial e interdependente, que vai além dos prejuízos de sua implantação tardia, ou mesmo do legado remanescente de uma transição negociada, pois é perpassada também por uma variável sociocultural inata ao Estado brasileiro.

Justiça de transição: Conceitos e evolução histórica no Brasil

Para que tenhamos clareza quanto às causas que contribuíram para o insucesso das políticas de justiça transicional no Brasil, cumpre primeiro delimitar os marcos teóricos que consubstanciam a categoria justiça de transição, bem como essa iniciativa se deu em nosso país.

A justiça de transição é definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como

o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades e exigir a efetividade do direito à memória e verdade, fortalecendo as instituições com valores democráticos e garantindo a não repetição das atrocidades (ONU, 2004ONU - ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS. Consejo de Seguridad. El Estado de derecho y la justicia de transición en las sociedades que sufren o han sufrido conflictos: Informe del Secretario General. [Nueva York]: ONU, 23 ago. 2004. S/2004/616, 2004. Disponível em: https://www.refworld.org.es/publisher,UNSC,,,4a895b752,0.html. Acesso em: 25 nov. 2023.
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, p. 8, tradução nossa).

Tarso Genro (2010GENRO, Tarso. Direito, Constituição e transição democrática no Brasil. Brasília, DF: Francis, 2010., p. 23) apresenta o conceito de justiça transicional destacando o papel restaurativo:

[A] justiça transicional é uma resposta concreta às violações sistemáticas ou generalizadas aos direitos humanos. Seu objetivo é o reconhecimento das vítimas e a promoção das possibilidades de reconciliação e consolidação democrática. A justiça transicional não é uma forma especial de justiça, mas uma justiça de caráter restaurativo, na qual a sociedade transforma a si mesma depois de um período de violações generalizada dos direitos humanos.

Renan Honório Quinalha (2013)QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013., ao tratar do conceito de justiça de transição, explica que, embora decorra da união de duas palavras as quais, isoladamente, carregam uma diversidade de significados, a expressão, em seu conjunto, é de fácil compreensão: o termo “justiça” se refere a um ideal do que seja justo, e “transição” alude a um recorte histórico de excepcionalidade política. O autor também destaca aquilo que considera ser a sua “mais singular característica”: o fato de a Justiça de transição “ocorrer em um momento de profundas mudanças políticas” (QUINALHA, 2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013., p. 135), sendo a incerteza e a instabilidade características desse período, responsáveis pela necessidade de uma justiça mais adequada e menos normatizada.

Em termos de efetivação, a justiça de transição envolve uma combinação de estratégias complementares, judiciais e não judiciais. Entre elas, são tidas como elementos-chave para a justiça de transição as seguintes ações (VAN ZYL, 2009VAN ZYL, Paul. “Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, DF, n. 1, jan./jun. 2009. pp. 32-55. Dossiê: O que é justiça de transição? Disponível em: https://docvirt.com/DocReader.net/docreader.aspx?bib=DocBNM&pagfis=75924. Acesso em: 25 nov. 2023.
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):

  1. processar, julgar e punir violadores dos direitos humanos: sendo alguns dos primeiros anseios das vítimas e de seus familiares, são elementos essenciais para a garantia de que a violência sofrida não fique impune. Além dessa resposta da justiça às vítimas e aos familiares, significa demonstrar que a violação dos direitos humanos implica aplicação de sanções e não pode ser tolerada. Essa lógica é decisiva na prevenção de novos abusos;

  2. garantir o direito à verdade e memória, honrar e relembrar as vítimas por meio de memoriais, publicações e espaços públicos destinados a homenageá-las: dar amplo conhecimento ao fato de que ocorreram violações dos direitos humanos, promover o reconhecimento por parte de governos, cidadãos e perpetradores da injustiça de tais abusos. A justiça de transição, a partir da revelação dos fatos do passado e consequente compreensão de suas causas e consequências, permite estabelecer responsabilidades e educar novas gerações com base na verdade histórica. Por meio de comissões da verdade, é possível dar voz, no espaço público, às vítimas, e seus testemunhos podem contribuir para contestar as mentiras oficiais e os mitos relacionados às violações dos direitos humanos.

Segundo esclarece Paul Van Zyl (2009VAN ZYL, Paul. “Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, DF, n. 1, jan./jun. 2009. pp. 32-55. Dossiê: O que é justiça de transição? Disponível em: https://docvirt.com/DocReader.net/docreader.aspx?bib=DocBNM&pagfis=75924. Acesso em: 25 nov. 2023.
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, p. 51):

Ao demonstrar que as violações dos direitos humanos no passado não constituíram um fenômeno isolado ou atípico, as comissões podem melhorar as opções daqueles que, dentro ou fora de um novo governo, desejam implementar reformas reais para assegurar o fomento e a proteção dos direitos humanos.

Inez Stampa e Vicente Rodrigues (2016, p. 9) destacam o resgate da memória como instrumento para a construção de uma consciência coletiva, não só sobre as violações ocorridas no passado, mas da necessidade de se criar mecanismos para coibir no presente violações de mesma natureza:

E a memória, cabe apontar, é um meio de significação social e temporal de grupos e instituições, o que implica em reconhecer sua importância para a compreensão coletiva da sociedade sobre determinados eventos do passado. […] Dessa forma, a adoção da memória, [a] busca da verdade e justiça, específicas para enfrentar o legado histórico de violações sistemáticas dos direitos humanos, como as que ocorreram entre 1964 e 1985, têm por objetivo não somente garantir a compreensão do que ocorreu, mas também reforçar o entendimento coletivo de que são necessárias estratégias para combater, no presente, essas violações que teimam em persistir como parte da realidade social brasileira.

Outras ações de justiça transicional são:

  • c) promover políticas de reparação às vítimas, aos sobreviventes e aos familiares afetados pela violência: o dever de reparação às vítimas de graves violações dos direitos humanos pelos Estados é previsto no direito internacional. Essa reparação ocorre através de ajuda material, assistência psicológica e medidas simbólicas, como a construção de monumentos ou o estabelecimento de dias de comemoração nacionais;

  • d) reformar ou dissolver as instituições do Estado que cometeram os abusos: para confrontar as atrocidades em massa, é preciso estabelecer a verdade sobre as violações e reparar as vítimas. Ocorre que, para atingir esse desígnio, é imperioso mudar radicalmente ou, em alguns casos, dissolver as instituições responsáveis por violações dos direitos humanos.

Todas essas ações, além de responder às vítimas e aos familiares, têm por fim estabelecer uma consciência coletiva acerca do quão nocivos são os regimes antidemocráticos a uma nação. Visa-se, ao edificar tal consciência, evitar que novas políticas de exceção sejam experimentadas pela população.

No Brasil, as primeiras iniciativas visando instituir políticas de justiça e memória se deram de forma tardia. Segundo Thiago Netto e Yájna Moreira (2012NETTO, Thiago; MOREIRA, Yájna. Ditaduras na América Latina. In: RECH, Nathalia (coord.). Comissão da Verdade: um movimento para calar o silêncio. Porto Alegre: Famecos; PUCRS, 2012. pp. 41-53., p. 41), “o Brasil foi o último país latino-americano a começar oficialmente a investigar os crimes cometidos durante o período de regime militar no país”.

Optou-se, durante quase duas décadas, pelo silêncio e o esquecimento quanto às atrocidades cometidas durante a Ditadura Militar, escolhendo não responsabilizar agentes da repressão que promoveram desaparecimentos, sequestros, mortes, estupros, torturas, entre outros crimes hediondos, de opositores do Regime e dos familiares e amigos.

Nesse sentido, são oportunas as palavras de Anthony Pereira (2010PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o Estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010., p. 25):

Além de tentativas atrasadas e pouco divulgadas de investigar a morte e o desaparecimento de algumas das vítimas do Regime Militar e de indenizar as famílias, a atitude oficial do governo brasileiro com relação à justiça transicional foi, principalmente, de silêncio e amnésia.

O governo brasileiro começa a dar sinais de mudança de pensamento quando, em 1995, passa a indenizar algumas vítimas dos crimes cometidos pelos agentes do Regime Militar; sempre, porém, de forma tímida e cautelosa, para não entrar em conflito com militares que faziam parte do governo à época. A partir daquele momento, começam a surgir e a se organizar grupos políticos que buscam pela verdade daqueles “anos de chumbo”.

Com inúmeras dificuldades, aqueles grupos se valiam muito mais da memória oral do povo do que de documentos oficiais, mantidos pelas FFAA em arquivos fechados e classificados como secretos; tudo em nome da “segurança nacional”. Por isso, os pesquisadores recorreram a depoimentos orais e matérias jornalísticas.

No que diz respeito às políticas públicas destinadas à memória da repressão no Brasil, os primeiros avanços significativos se deram apenas a partir da Conferência de Viena, em 1993, com maior visibilidade a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, quando começou a ser edificada uma política para os direitos humanos. Durante seus dois mandatos como presidente da república, entre 1995 e 2002, deram-se importantes passos em direção à evolução de políticas destinadas ao tratamento da memória da repressão, como a elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH); a edição da Lei nº 9.140/1995, reconhecendo casos de mortes e desaparecimentos políticos durante a Ditadura, a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a criação da Comissão de Anistia (CA) (GALLO, 2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018.).

Os avanços promovidos continuaram durante os mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010, e incrementados através da revisão da Lei nº 9.140/1995 - inclusão de mortos durante atos contra o Regime ou decorrentes de suicídio pós tortura como sendo de responsabilidade do Estado brasileiro -; continuação dos trabalhos da CA, que iniciou a realização de caravanas; criação do portal Memórias Reveladas; e a edição da terceira versão do PNDH, que previu a criação de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) (GALLO, 2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018.).

A promulgação da Lei nº 11.111, em 2005, por Lula, é um marco de mudança de atitude por parte do Estado brasileiro, que passa à busca efetiva pela verdade. Essa norma autorizou a transferência dos documentos que até então estavam sob sigilo para o acervo do Arquivo Nacional. Tal possibilidade causou grande agitação entre os pesquisadores e grupos políticos que lutavam pela apuração dos crimes cometidos pela Ditadura, pois começava-se a aprofundar os estudos sobre os fatos criminosos cometidos sob a proteção do Regime Militar.

Depois, em 2006, o Ministério Público (MP), quando procurado por familiares das vítimas, começa a representá-los judicialmente contra os agentes da repressão, pedindo que fosse declarada a sua responsabilidade civil e/ou criminal.

Em 2011, o Brasil dá um passo importante por meio da criação da CNV, amparada pela Lei nº 12.597, promulgada pela presidenta Dilma Rousseff, também vítima do período ditatorial. Essa lei passou a garantir o amplo acesso às informações dos poderes públicos. A normativa dispõe expressamente em seu texto: “Artigo 21, parágrafo único - As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso” (BRASIL, 2011BRASIL. Lei nº 12.597, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso à informação prevista no inciso XXXIII do artigo 5º, no inciso II do §3º do artigo 37 e no §2º do artigo 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2011]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2011/lei/l12527.htm#:~:text=de%20direitos%20fundamentais.-,Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico.,22.. Acesso em: 12 out. 2022.
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).

Mesmo com as iniciativas promovidas pelo Estado brasileiro visando consolidar a justiça transicional, mormente no período dos governos progressistas de Lula e Dilma, os resultados alcançados foram tímidos, suscitando, em contrapartida, um sentimento de revanchismo nas alas conservadoras, que ainda transitam nos bastidores do poder.

Com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, político de acepções ultraconservadoras, os impactos sobre as políticas de verdade e justiça foram devastadores. Na contramão de se tentar avançar nesses temas e nessas políticas de reparação aos direitos humanos violados pelo Estado durante a Ditadura, engendrou-se uma tentativa tanto de dificultar, ou impedir, a efetividade das políticas de memória quanto de subverter a história no que concerne ao caráter repressivo da Ditadura, negando as graves violações aos direitos humanos e/ou buscando justificar tais atos (BENETTI et al., 2020BENETTI, Pedro; CATEB, Caio; FRANCO, Paula; OSMO, Carla. “As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: Entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, vol. 11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/muralinternacional/article/view/48060/35880. Acesso: 12 ago. 2022.
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).

No âmbito das políticas de justiça de transição, o governo bolsonarista interveio diametralmente na CEMDP e na CA. Mesmo impedido de extinguir totalmente as comissões e os órgãos criados para a justiça transicional - haja vista serem instituídos e regulamentados por leis, e que foram elaborados em cumprimento de obrigações decorrentes de demandas internacionais ensejadas pela prática de abusos de poder pelo Estado durante o regime ditatorial -, Bolsonaro promoveu a alteração das composições, regras e estruturas desses órgãos, bem como cortes de verbas, tudo com vistas ao congelamento e retrocesso daquelas iniciativas (BENETTI et al., 2020BENETTI, Pedro; CATEB, Caio; FRANCO, Paula; OSMO, Carla. “As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: Entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, vol. 11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/muralinternacional/article/view/48060/35880. Acesso: 12 ago. 2022.
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).

Esse processo de debilitação das políticas de verdade e justiça não foi inaugurado no governo bolsonarista, uma vez que a intervenção em órgãos e comissões foi encetada pelo Golpe Parlamentar de 2016, quando foi alçado à Presidência o vice-presidente de Dilma Rousseff, Michel Temer, filiado ao (Partido do) Movimento Democrático Brasileiro ([P]MDB)4 4 O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi fundado, em 1965, como partido de oposição ao partido do Regime Militar, o Aliança Renovadora Nacional (ARENA), após a edição do Ato Institucional nº 2 (AI-2), que extinguiu os partidos políticos existentes no país e estabeleceu o bipartidarismo. O MDB nasceu como uma legenda moderada, de oposição “consentida” à Ditadura. e político ativo desde o período militar (BENETTI et al., 2020BENETTI, Pedro; CATEB, Caio; FRANCO, Paula; OSMO, Carla. “As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: Entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, vol. 11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/muralinternacional/article/view/48060/35880. Acesso: 12 ago. 2022.
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).

Essa busca tardia pela instituição de políticas de justiça transicional, seus parcos resultados em termos de reparações, responsabilizações e constituição de uma consciência coletiva, bem como sua fragilidade diante das pressões conservadoras, se devem ao modo pelo qual o Brasil se “libertou” das garras do regime de exceção.

Legados autoritários de uma transição negociada

Após um longo período sob a sombra de um regime ditatorial, o Brasil enfrentou uma dura e árdua transição de poderes, passando a ser uma nação, em tese, democrática, com o propósito de ser um país evoluído no que concerne aos direitos sociais e humanos.

O processo de abertura política5 5 Segundo Bolívar Lamounier (1985), a abertura, “distensão”, não foi determinada, em seu início, por pressões organizadas da sociedade civil ou de uma facção militar rebelde. Ao contrário, seu núcleo era constituído pela própria cúpula governamental. Em virtude da contundência dos resultados eleitorais de 1974, que sinalizaram o desejo de mudança que vinha se formando no seio da sociedade e fortaleceram a oposição, reforçou-se a disposição do governo Geisel de implantar um projeto de liberalização controlada, que encontrava resistência nos setores mais intransigentes daquele regime. se iniciou na segunda metade da década de 1970, durante o governo de Ernesto Geisel, mas foi caracterizado por avanços e recuos, sendo tutelado tanto pelos militares quanto pelos setores que sustentavam o Regime. Essa transição foi permeada por incertezas em relação ao futuro e pelo medo de um novo golpe, o que deixou marcas duradouras e que ainda repercutem atualmente e afetam os limites dos processos de transição política no Brasil.

Com efeito, o modo como se dão os processos de transição que introduzem uma quebra com o antigo regime, se avançam dentro do quadro legal-institucional existente ou a partir de acordos entre as elites dirigentes (pró e contra o regime), acabam por influenciar os desenvolvimentos políticos posteriores de um país (QUINALHA, 2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013.).

Acerca das marcas na democracia advindas do processo de transição, destaca Quinalha (2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013., p. 71):

É evidente que o modo de transição deixa marcas importantes no funcionamento da democracia recém-estabilizada. Ainda que não seja o único fator ou mesmo o mais relevante para explicar as características do governo que sucede a transição, é inegável que, em alguma medida, que só poderá ser estimada empiricamente, contribui de maneira direta tanto para as potencialidades quanto para as deficiências que marcarão o regime democrático recém-instituído.

Ao analisar os estudos que procuram apurar como as diferentes transições influenciam os desenvolvimentos políticos posteriores, Quinalha (2013)QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013. apresenta as classificações quanto aos modos de transição criadas por Samuel Huntington e Juan Linz,6 6 As classificações dos dois autores se equivalem, divergindo apenas em sua nomenclatura para cada modo de transição. respectivamente: a) transformação/reforma: elites no poder lideram a criação da nova democracia; b) substituição/ruptura: regime autoritário colapsa ou é derrubado, processo feito por grupos de oposição; e c) “transtituição”/“ruptforma”:7 7 Versões em português para os termos originais ipsis litteris, conforme apresentado por Renan Honório Quinalha (2013). ação conjunta de grupos de oposição e governo marcada pela negociação. O processo de transição no Brasil pode ser classificado de forma híbrida dentro desta tipologia.

Com efeito, podemos identificar dois momentos no processo de transição. Um primeiro momento, desenvolvido a partir do governo de Geisel, num movimento de abertura gradual do regime, o qual ocorreu por necessidade, porém, de forma vertical, a partir de uma proposta de anistia que não foi totalmente negociada; e um segundo momento, por ocasião do movimento por eleições diretas e do processo constituinte, no qual essa transição passa a ser pactuada pelas elites.

O desgaste do regime de exceção instaurado após o Golpe de 1964 pelas pressões advindas de boa parte da sociedade civil, que passaram a ser cada vez mais fortes, fez com que os militares reconhecessem a insustentabilidade do regime e a necessidade de prepararem o terreno para a sua saída dele, entregando o poder sem futuras represálias (MISSIATO, 2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173.).

A partir da implantação de um projeto de distensão “lenta, gradual e segura” do regime idealizado pela elite militar dirigente, e atenuadas as pressões internas da “linha dura” - a ala militar contrária a transição -, os militares passaram a negociar uma transição pactuada com a oposição “consentida”, atuante na esfera político-institucional (MISSIATO, 2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173.).

O marco determinante para o processo de transição brasileira se deu em 1979, com a entrada em vigor a Lei Federal nº 6.683, promulgada pelo presidente João Figueiredo, lei que anistiou os crimes de natureza política cometidos durante o período da Ditadura entre 1961 e 1979 (TELES, 2015TELES, Edson. Democracia e estado de exceção: Transição e memória política no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Editora Unifesp, 2015.).

Promulgada em 28 de agosto de 1979, a Lei de Anistia apresentou-se como medida de encerramento das penas aos acusados de “subversão”, além de proporcionar a volta de presos exilados, retirar das prisões indivíduos que foram detidos como “inimigos do Estado”, libertar os militares de possíveis crimes cometidos, entre eles, a tortura, e restaurar os direitos políticos e sociais (MISSIATO, 2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173., p. 160).

A engenharia política daquele período de incertezas e instabilidade criou a possibilidade jurídica da Lei da Anistia beneficiar tanto os opositores do regime autoritário quanto aos agentes da Ditadura, como expresso no artigo 1º da lei:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, [que] cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares (BRASIL, 1979BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1979]. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm#:~:text=LEI%20No%206.683%2C%20DE%2028%20DE%20AGOSTO%20DE%201979.&text=Concede%20anistia%20e%20d%C3%A1%20outras,Art.. Acesso em: 10 set. 2022.
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)

A Lei da Anistia não foi contestada “abertamente”8 8 Entendemos que a Lei da Anistia não foi contestada “abertamente” durante sua criação no sentido de que, quando ela foi elaborada e aprovada, em 1979, as discussões e debates sobre seu conteúdo ocorreram nos bastidores das negociações políticas, e não de forma aberta e pública. A lei foi parte de um acordo de transição política que visava a reconciliação e a reintegração de exilados e presos políticos. Embora houvera críticas à lei, principalmente por organizações de direitos humanos, elas não foram suficientes para alterar de modo significativo seu conteúdo à época. No entanto, ao longo dos anos, houve um aumento na contestação da Lei da Anistia, com movimentos e ações judiciais buscando responsabilizar a Ditadura por violações de direitos humanos (ALVES, 2019). - apesar de não ter decorrido de um processo de consenso - no período de sua promulgação, haja vista a Ditadura não ter se extinguido com sua criação, sendo mantida a opressão sobre os opositores do regime por parte dos militares.

Deve-se ter em consideração que, em transições negociadas, “os pactos são inteiramente contingentes, dependentes das correlações políticas de força” (QUINALHA, 2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013., p. 76).

Nesse sentido, a Lei de Anistia se apresentou no processo de transição como meio possível de abertura para a democracia e uma forma para que políticos perseguidos voltassem a participar da vida política do país. Em contrapartida, a lei foi aplicada para proteger os militares e a polícia de processos.

Com efeito, em contextos de transição classificados como de “transtituição”/“ruptforma”, como o caso brasileiro, os pactos por vezes podem ser compulsórios. Ou seja, certos atores são forçados a se submeter aos termos de transição (QUINALHA, 2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013.).

Quanto à disparidade de forças na pactuação do processo transicional, é importante colacionar oportunas observações de Quinalha (2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013., pp. 79-89):

Não se pode perder de vista que o clima de insegurança quanto ao futuro e o medo quanto a um novo golpe, sempre presente nas transições, impedem que a negociação ocorra em seu formato ideal, com igualdade de posições e forças de barganha equivalentes. […] Essa ameaça latente, mas sempre presente, desempenha uma função fundamental e bastante eficaz no jogo político. Primeiro, porque o risco de contragolpe fica sempre pendente como advertência para todos. Em segundo lugar, pois esse mesmo risco permanece como instrumento de pressão dos brandos para moderar a velocidade do processo.

Uma década após a criação da Lei de Anistia, uma assembleia constitucional foi chamada para elaborar uma nova Constituição, que substituiria a de 1967, outorgada com o intuito de fortalecer a Ditadura Civil-Militar. Ocorre que a Constituição de 1988 terminou por não modificar a Lei da Anistia, ato que causou fortes críticas dos movimentos de esquerda ao não compreender por que aquela assembleia não buscou a adoção de um modelo de revisão dos crimes cometidos pelo Regime Militar e a consequente punição para aqueles que os praticaram.

Essa postura passiva diante da impunidade advinda da Lei de Anistia denota a força das marcas deixadas por um processo de transição pactuado na nova democracia. O medo e a ameaça de um retrocesso democrático presentes no processo de transição perduram ao longo do tempo por meio da manutenção do poder de atores políticos e instituições identificadas com o antigo regime, impactando diametralmente no novo governo.

[A] situação dramática parece agravar-se diante dos limites que caracterizam as transições negociadas, tendo em vista as consequências legadas por esse tipo de abertura controlada dos regimes autoritários para as incipientes democracias. Nesse padrão transicional, o novo governo é maculado pelas sequelas da excessiva dose de continuísmo e de conservadorismo herdados do regime anterior, pois as efetivas reformas vão-se adiando, indefinidamente, para um momento propício, futuro e incerto (QUINALHA, 2013QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013., p. 90, grifo nosso).

Carlos Artur Gallo (2018)GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018. desenvolveu estudo correlacionando os limites das políticas de memória em função dos legados autoritários decorrentes dos processos transicionais. Para o autor, os legados autoritários herdados da transição pactuada são responsáveis pelas dificuldades impostas ao estabelecimento de uma justiça transicional efetiva.

Acerca do que sejam esses legados autoritários, conceitua Leonardo Morlino (2013MORLINO, Leonardo. “Legados autoritários, política do passado e qualidade da democracia na Europa do Sul. In: PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.). O passado que não passa: A sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. pp. 261-294., pp. 262-263):

Abarcam todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas e também normas, procedimentos e instituições, tanto introduzidos como vigorosa e visivelmente fortalecidos pelo regime autoritário imediatamente anterior. Os legados autoritários influenciam um grande leque de instituições políticas, econômicas e sociais e são frequentemente mais visíveis no funcionamento e comportamento das forças de segurança.

Segundo Gallo (2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018., pp. 39-40), cinco são os principais legados autoritários elencados como responsáveis pelo comprometimento de iniciativas que tencionem estabelecer a justiça transicional no Brasil: a existência e a permanência das leis de impunidade, o sigilo documental, as prerrogativas militares, os resquícios culturais do autoritarismo e os legados do autoritarismo no campo jurídico. Acrescentaríamos dois elementos presentes no processo específico brasileiro: o hiato entre o momento em que os fatos repressivos ocorreram e a criação de mecanismos para que essas atrocidades se tornassem públicas, e, de outra banda, a pouca divulgação desses instrumentos de justiça, verdade e memória e de suas conclusões na sociedade.

Nos próximos tópicos, cada um desses legados será abordado, não de forma estrita, mas de forma crítica, destacando também outros fatores que contribuíram para o insucesso das políticas transicionais, relacionando esses legados com a ineficácia e os retrocessos observados nas iniciativas que visam implantar a justiça transicional no Brasil.

Manutenção das prerrogativas militares e da influência de grupos corresponsáveis pela Ditadura Civil-Militar na democracia

As manobras arquitetadas e habilmente instrumentalizadas durante a transição permitiram que a tutela militar se perpetuasse no primeiro governo civil pós-Regime Militar, a presidência de José Sarney. Tendo por ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, alto representante dos interesses do antigo regime, ele se encarregou pessoalmente da pressão para que se abrigassem as propostas militares na Constituição de 1988, entre elas, a manutenção do regime presidencialista contra a proposta do parlamentarismo (MISSIATO, 2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173.).

A presença militar, no que tange à interferência na política do país, permaneceu após a Ditadura Civil-Militar também através do lobby via assessorias (comissões parlamentares): continuação dos assuntos ligados à defesa e segurança do país nas mãos dos militares; preservação da imagem para si de “guardiões da República brasileira”; manutenção de privilégios de carreira; combate à reforma de ampliação da Lei de Anistia; e luta contra a anistia de militares expulsos da corporação por se rebelarem contra o regime ditatorial, pois temiam que a volta desses militares aos quartéis ameaçasse os valores altamente arraigados dentro das forças militares, entre eles, a disciplina e a hierarquia.

Na Constituição de 1988, as FFAA, por meio de seu lobby, desde a Comissão Afonso Arinos, mantiveram o poder político de atuação dentro do território nacional contra “possíveis inimigos internos” para garantir a lei e a ordem. Nesse sentido, são oportunas e esclarecedoras as palavras de Victor Augusto Ramos Missiato (2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173., p 166):

Os militares prepararam-se para deixar o poder e voltar aos quartéis com uma bagagem considerável de autonomia sobre a defesa nacional e a sobrevivência de valores atribuídos à antiga doutrina de segurança nacional, que garantiu [a eles] a possibilidade de atuarem na defesa interna do país.

Com efeito, a manutenção das prerrogativas militares fez com que nossa democracia nunca chegasse a um status de emancipação dos grilhões da força militar, estando o interesse civil sempre à mercê do alvitre das FFAA.

As bases autoritárias que se perpetuaram pós-Ditadura impediram um total controle civil sobre a defesa nas redemocratizações, tendo um impacto devastador para o estabelecimento das Forças Armadas vinculadas a uma cultura política democrática (MISSIATO, 2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173., p. 172).

Gallo (2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018., p. 44), ao discutir a manutenção das prerrogativas militares como legado da transição pactuada, bem observa que,

quanto maior o número de prerrogativas militares convivendo com sistemas políticos democráticos, maior a possibilidade de que, na iminência de uma crise, setores conservadores ensejem a intervenção direta de setores militares dispostos a fazerem uso dessas prerrogativas.

Soma-se à manutenção das prerrogativas dos militares a sua imensa autonomia diante dos poderes civis, a exemplo do que ocorre na formação militar. De fato, não existe subordinação do poder militar ao poder legal civil. Apesar da necessidade de haver certa medida de autonomia das FFAA diante do poder civil, dentro dos princípios constitucionais, ela não pode ser irrestrita, devendo ser modulada visando a estabilidade democrática.

Atualmente, após a recente experiência política de um governo ultraconservador, caracterizado pela presença militar e seus constantes ataques às instituições democráticas e à própria democracia, culminando em uma tentativa de golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023, paira sobre nós uma ameaça inédita de intervenção. Essa ameaça surge como resultado dos esforços dos militares para garantir e expandir seu poder no cenário político. Desde o fim do Regime Militar, jamais se testemunhou tantos militares ocupando cargos no Poder Executivo e interferindo tão diretamente nas questões políticas do país.

É importante consignar, porém, que não só a manutenção do poder dos militares no jogo político trouxe essa condição de instabilidade democrática. Em verdade, a manutenção da influência de grupos políticos e econômicos, corresponsáveis pelo regime de exceção dentro da democracia foi e tem sido determinante para os embaraços e percalços pelos quais as políticas de verdade, memória e justiça têm passado.

Com efeito, o protagonismo político dos militares nas decisões nacionais contribuiu para fragilizar o processo democrático brasileiro, tendo em vista que o controle civil não se impôs como deveria, confiando seu papel estratégico para a formulação de uma nova constituição, novamente, ao estamento militar. Não obstante, essa conservação das prerrogativas autoritárias em um governo democrático não ocorreu só por meio do lobby militar. Assim como a tomada do poder em 1964 foi feita através de um golpe civil-militar, sua transição à democracia foi pactuada entre militares e civis. O que esteve em jogo naquele processo foi a preservação dos interesses políticos e econômicos de civis entrelaçados ao sistema político e às FFAA (MISSIATO, 2019MISSIATO, Victor Augusto Ramos. “Tortuosas transições: A preservação de autonomias militares no Brasil e no Chile”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 157-173.).

Logo, o Golpe de 1964 não se deu apenas pelas mãos armadas de militares, mas também pelo interesse do grande capital, preocupado com seus lucros, de políticos conservadores, dispostos a verem seus interesses em marcha contra a vontade popular, e da grande mídia, ávida por manter seu oligopólio. A sustentação dessa ameaça à democracia é nutrida e propelida por esses grupos, como garantia da manutenção de seus interesses.

No que concerne à responsabilidade da grande mídia quanto aos percalços e retrocessos enfrentados pelas políticas de justiça transicional no Brasil, disciplina Gallo (2019, p. 5): “A imprensa é parte fundamental de cada momento da história recente. No mínimo, informa, transmite valores e opiniões. Não foi diferente no caso do Golpe de 1964, nem no decorrer dos debates sobre anistia e as possíveis revisões da lei”.

A grande mídia, enquanto ator político dotado de intenções, busca interferir e obter resultados diante das disputas que passa a integrar. Assim como apoiou o Golpe, a Ditadura, sua anistia e seu projeto de abertura, da mesma feita, nas disputas de memórias que trazem à tona os conflitos oriundos do regime de exceção, teve e tem papel determinante para a construção no Brasil de uma memória hegemônica sobre uma ditadura liberal-conservadora (TEÓFILO, 2019TEÓFILO, João. “Lembrar ou esquecer? Punir ou perdoar?: As disputas por anistia no Brasil durante a Ditadura Militar e a atuação da imprensa”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). Anistia: Quarenta anos, uma luta, múltiplos significados. Rio de Janeiro: Gramma, 2019. pp. 79-111.).

Sigilo documental

As iniciativas públicas quanto à abertura de documentos sigilosos do período ditatorial representaram um avanço para o estabelecimento da memória e verdade no Brasil. No entanto, as forças contrárias a este tipo de iniciativa sempre estiveram atuando nos bastidores políticos, buscando invalidar e neutralizar tais ações. Nessa arena de disputas de força, o caminho percorrido pelas políticas de verdade perpetradas pelo Estado sempre esteve pautado, limitando-se seu alcance.

Uma das limitações impostas pela resistência orquestrada às questões de memória e verdade quanto à Ditadura Militar foi a abertura tardia dos documentos sigilosos daqueles anos, essenciais para o estabelecimento da justiça para com os perseguidos pelo regime.

Se a recente ditadura brasileira deixou-nos, como sombrio legado, o maior acervo documental entre suas congêneres no Cone Sul, é verdade também que a abertura e divulgação desses documentos deram-se de maneira relativamente tardia, principalmente a partir da entrada em vigor, em 2012, da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) (STAMPA; RODRIGUES, 2016STAMPA, Inez; RODRIGUES, Vicente (org.). Ditadura e transição democrática no Brasil: O Golpe de Estado de 1964 e a (re)construção da democracia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016., p. 9).

Mesmo após a promulgação e vigência da Lei de Acesso à Informação, o que se observou foi o alcance limitado da novel legislação. Essa modulação de seus efeitos se agravou nos últimos governos.

Apesar da mudança garantida com a vigência do novo texto da Lei de Acesso à Informação (e, em parte, também dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade), muitos documentos do período seguem inacessíveis, impossibilitando que, da aplicação da nova regra, ocorra a democratização da informação pretendida. Ademais, é preciso notar que, na prática, a política de sigilo constituiu um legado que, por quase trinta anos, produziu efeitos tanto individualmente como quando conjugada à interpretação da anistia (GALLO, 2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018., p. 42).

Além das limitações de alcance e morosidade impostas pelo ativismo dos atores remanescentes do período de exceção às políticas de verdade e memória, e dada a relevância da CA para o acesso à informação, impende colacionar também os “possíveis fatores que tenham feito com que o projeto da Comissão de Anistia de promover um senso comum democrático tenha sido extremamente limitado” (ALVES, 2019ALVES, Glenda Gathe. “Os sentidos da anistia brasileira e a virada hermenêutica da Comissão de Anistia”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). Anistia: Quarenta anos, uma luta, múltiplos significados. Rio de Janeiro: Gramma, 2019. pp. 283-311., p. 304), pois esses também contribuíram para o alcance da verdade e memória.

Glenda Gathe Alves, a partir da abordagem do trabalho de Alessandra Camargo, atribui as limitações da CA na construção de um senso comum democrático por parte da população à ausência de responsabilização dos agentes da repressão, Segundo ela,

[a] ausência de responsabilização nominal e individual dos agentes da repressão teria feito com que a sociedade não tivesse um conhecimento aprofundado das responsabilidades individuais e dos mecanismos que teriam permitido que esses crimes de Estado fossem praticados. Não tendo acesso denso a isso, a sociedade brasileira teria debilitado a sua capacidade de produzir compreensão da gravidade desses crimes. Falava-se sobre as violações, mas seus agentes eram desencarnados; denunciava-se a perseguição política, mas a população desconhecia os instrumentos que a tornavam possível e que fizeram boa parte da população brasileira apoiá-la (ALVES, 2019ALVES, Glenda Gathe. “Os sentidos da anistia brasileira e a virada hermenêutica da Comissão de Anistia”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). Anistia: Quarenta anos, uma luta, múltiplos significados. Rio de Janeiro: Gramma, 2019. pp. 283-311., p. 305).

Oportuna a observação por parte da autora de que a CA teve como público prioritário grupos setorizados, o que de forma contumaz acabou por prejudicar o intuito de alcance amplo e democrático de suas conclusões:

Apesar da aproximação entre a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (CAMJ) e a sociedade civil a fim de promover valores de respeito à democracia e aos direitos humanos, o que se identifica é que boa parte dos seus projetos tinham como público principal os universitários e movimentos sociais. Era, portanto, um grupo que, de certa forma, já tinha contato com estes debates e valores e que não eram os principais defensores, ou promotores, da violência de Estado (ALVES, 2019ALVES, Glenda Gathe. “Os sentidos da anistia brasileira e a virada hermenêutica da Comissão de Anistia”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). Anistia: Quarenta anos, uma luta, múltiplos significados. Rio de Janeiro: Gramma, 2019. pp. 283-311., p. 307).

De fato, ao alcançar em particular aqueles grupos que já tinham senso crítico acerca das atrocidades do Regime, e estando longe da grande massa à margem da realidade do “período de chumbo” pelo qual o Brasil passou, o processo de instituição de uma consciência social coletiva restou prejudicado.

Legados do autoritarismo no campo jurídico

O papel da justiça no processo de estabelecimento da justiça transicional é basilar. Nem sempre a culpabilização do indivíduo é possível, mas a responsabilização por parte do Estado é condição sine qua non.

A responsabilização do Estado pelos crimes cometidos em períodos autoritários como as ditaduras de segurança nacional no Cone Sul, ainda que nem sempre tenha sido combinada com a identificação dos culpados e o esclarecimento das reais circunstâncias das violações ocorridas, cumpre um papel simbólico. A sentença proferida nesses casos visa impedir que cesse pelo menos a continuidade (nociva) da negação dos fatos mais elementares, como a própria existência do crime (GALLO; GUGLIANO, 2019GALLO, Carlos Artur; GUGLIANO, Alfredo Alejandro. “A justiça do presente [diante dos] crimes do passado: Uma análise das experiências argentina e brasileira”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 175-199., p. 176).

Ocorre que o processo por busca de responsabilização do Regime Militar sempre foi repleto de obstáculos, fruto da ingerência sobre a justiça e do ativismo judicial simpático aos integrantes daquela ditadura e influenciado por grupos que a defendiam. Nesse sentido, é oportuno o apontamento de Gallo: “Quanto maior o impacto da Ditadura no campo do direito, maiores as dificuldades, com o retorno à democracia, de que a legalidade autoritária existente durante o período autoritário seja desarticulada” (GALLO, 2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018., p. 51).

Insta salientar característica sui generis do processo ditatorial no Brasil, quando comparado aos regimes de exceção nas demais nações latino-americanas no mesmo período, como Chile e Argentina. Naqueles países, instituíram-se verdadeiras “justiças paralelas”, o que em certa medida evidenciava o seu caráter precário e ilegal. Já no Brasil, o Poder Judiciário foi cooptado pelo regime, com raras exceções nos casos de magistrados, desembargadores e ministros que se opuseram e foram afastados de seus cargos. Essa característica peculiar foi determinante para as iniciativas de memória, verdade e justiça de transição experienciadas no país.

Se observarmos o histórico da luta por justiça nesse âmbito quanto às práticas criminosas da repressão militar durante o Regime, verificamos como o aparelhamento legado pela Ditadura Civil-Militar na justiça brasileira impactou nas tutelas providas quanto ao tema, em termos de morosidade e insegurança jurídica.

Os familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil já buscavam a justiça desde o período do Regime até meados dos anos 1990, mas foram pouco exitosos devido à dificuldade de acesso a registros, à barreira interpretativa imposta pela Lei de Anistia e à morosidade da justiça.

Em síntese, foram três as vias de busca de reparação no âmbito jurisdicional para as atrocidades do período militar: julgamento de ações civis, questionamento da validade da Lei de Anistia e processos na justiça penal (GALLO; GUGLIANO, 2019GALLO, Carlos Artur; GUGLIANO, Alfredo Alejandro. “A justiça do presente [diante dos] crimes do passado: Uma análise das experiências argentina e brasileira”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 175-199.).

Ocorre que as decisões judiciais que visavam à realização do direito à memória e à verdade por vias alternativas sempre foram ambíguas, imputando ora responsabilizações aos agentes da repressão, ora a seus opositores, muitas vezes suplantando a própria Lei de Anistia com essa finalidade. Essas atuações do Judiciário careciam de padronização, estando lastreadas muito mais pelas aspirações ideológicas de cada julgador.

Exemplo emblemático da “via crucis” em que se constituiu a luta por justiça quanto ao regime de exceção neste âmbito é o caso da Guerrilha do Araguaia. Após anos e inúmeros insucessos na busca de justiça por parte dos familiares das vítimas da repressão no âmbito doméstico, em 2010, repercutiu em uma responsabilização internacional por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro a investigar, processar e punir criminalmente os agentes estatais envolvidos nas graves violações de direitos humanos na repressão àquele grupo, bem como a localizar os restos mortais dos desaparecidos e a elucidação das circunstâncias das mortes.

No âmbito das ações criminais, destaca-se a atuação do Ministério Público Federal (MPF), que passou a representar vítimas e parentes de vítimas em ações buscando a responsabilização penal dos agentes do regime de exceção perpetradores de crimes contra opositores. Essas iniciativas do MPF acabaram por esbarrar em sua maioria com posicionamentos emitidos pelo Judiciário brasileiro, com predominância de decisões contrárias, sem análise de mérito, baseadas no argumento de que a interpretação da Lei de Anistia fora referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) (GALLO; GUGLIANO, 2019GALLO, Carlos Artur; GUGLIANO, Alfredo Alejandro. “A justiça do presente [diante dos] crimes do passado: Uma análise das experiências argentina e brasileira”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 175-199.).

Quanto à postura de juízes que levam adiante práticas autoritárias ao não enfrentar resquícios das ofensas aos direitos humanos praticadas durante a Ditadura Civil-Militar, a análise jurídica de Emanuel de Melo Ferreira (2022)FERREIRA, Emanuel de Melo. “A prova dos legados da ditadura militar: O rigor da Justiça Federal a partir das premissas democráticas de Frederick Schauer”. Revista Acadêmica, Fortaleza, ano 14, nº 2, ago./dez. 2022. Disponível em: https://revistaacademica.mpce.mp.br/revista/article/view/252/188. Acesso em: 12 fev. 23.
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aponta três condutas adotadas pelos magistrados nesses processos: busca pela deslegitimação das provas presentes nos autos; indução do leitor ao erro a partir da argumentação e da forma como apresenta certas expressões, destacadas para apresentar um cenário, no qual, na verdade, não corresponde à realidade dos fatos; ter como incontroversos determinados fatos sem que haja, no entanto, qualquer indicação de fonte apta a comprovar a argumentação empírica delineada.

A Lei de Anistia se consubstanciou como escudo para a responsabilização criminal dos agentes da repressão no âmbito jurídico. Sob a égide da legalidade, a justiça brasileira se manteve inerte quanto às atrocidades do regime de exceção. A exemplo do Poder Legislativo, o Judiciário optou por não enfrentar o problema decorrente da Lei de Anistia, desconsiderando o contexto de hipossuficiência da oposição por ocasião da promulgação da aludida lei. Ao contrário da maioria dos países do Cone Sul assolados por regimes militares, que relativizaram suas leis de anistia diante da realidade de insegurança decorrente do período de transição, no Brasil, a justiça se manteve inerte e condescendente com a impunidade que exsurgiu dessa lei.

Como corolário dessa postura do Judiciário, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153/STF/2008, promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e julgada em 2010, considerou improcedente a arguição de não recebimento do §1º do artigo 1º da Lei de Anistia pela Constituição de 1988.

Artigo 1º - É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, [que] cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares (vetado).

§1º- Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (BRASIL, 1979BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1979]. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm#:~:text=LEI%20No%206.683%2C%20DE%2028%20DE%20AGOSTO%20DE%201979.&text=Concede%20anistia%20e%20d%C3%A1%20outras,Art.. Acesso em: 10 set. 2022.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
, grifos nossos).

O STF alegou a necessidade de concessões mútuas como base para a tomada de decisão. Ao negar o pedido de esclarecimento do Conselho Federal da OAB, o tribunal fundamentou-se na ideia de que o contexto da transição democrática exigia concessões tanto por parte do regime autoritário quanto de seus opositores. Essa abordagem sugere que a impunidade dos agentes da repressão poderia ser compreendida como um “preço da transição”, e se baseia na interpretação de que a reciprocidade da anistia estava presumivelmente garantida, apesar das imprecisões do texto da lei.

Todas essas manifestações denotam a postura refratária do Poder Judiciário quanto às questões de justiça que dizem respeito aos abusos do Estado no período do Regime Militar, denotando o legado da Ditadura nesse poder. Esse aparelhamento foi engendrado no Judiciário já durante a Ditadura, visando a manutenção e o fortalecimento do regime, perpetrando-se mesmo durante o estabelecimento do novo governo e se constituindo em uma realidade até os dias de hoje, com maior ou menor expressão em função do governo que se estabelece no país.

Não obstante, é importante ressaltar que, além dessa interferência no Judiciário, existem outros legados decorrentes tanto do Regime Militar quanto do processo de transição que também devem ser considerados.

Embora a identificação de um resquício da Ditadura [no] Judiciário ajude a entender o que gera parte dos limites da judicialização da memória da repressão no país, parece evidente, contudo, que um legado no campo jurídico não se sustenta isoladamente. Esse legado específico, portanto, estaria fazendo parte de um contexto sociopolítico marcado por outros legados cuja existência se relaciona não só com o modo como o período de exceção se desenvolveu, mas também com a forma como se chegou ao final da Ditadura e o retorno à democracia. […] O processo transicional que deu fim à Ditadura no Brasil foi bastante negociado, tendo sido iniciado por integrantes dos próprios setores que haviam tomado o poder com o Golpe de 1964. […] Embora tenham saído do poder, os militares garantiram para si prerrogativas políticas consideráveis naquele contexto, mantendo-se como atores políticos relevantes no cenário político, tendo ainda garantido, com uma controvertida Lei de Anistia datada de 1979, a sua impunidade pelos crimes cometidos pelo aparato repressivo (GALLO; GUGLIANO, 2019GALLO, Carlos Artur; GUGLIANO, Alfredo Alejandro. “A justiça do presente [diante dos] crimes do passado: Uma análise das experiências argentina e brasileira”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). No rastro das transições: Perspectivas sobre memória, verdade e justiça no Cone Sul e no sul da Europa. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2019. pp. 175-199., p. 194).

Com efeito, as dificuldades em lidar adequadamente com as demandas por memória, verdade e justiça no Brasil podem ser explicadas pela combinação de um legado duradouro no sistema jurídico com uma série de legados institucionais e culturais do autoritarismo no país. Esses legados persistiram devido ao fato de que o processo de transição para a democracia foi altamente negociado, o que impediu uma ruptura efetiva entre o regime autoritário, que estava terminando, e a nova democracia, que estava começando. Isso resultou em poucos incentivos para o estabelecimento de práticas culturais, sociais e políticas comprometidas com os direitos humanos durante o contexto da redemocratização.

O papel do Judiciário é fundamental no processo de estabelecimento da justiça transicional. No entanto, no Brasil, enfrentamos dificuldades em atender, de maneira satisfatória, às demandas por memória, verdade e justiça devido a muitos fatores. Um deles é o legado duradouro no campo jurídico, que se entrelaça com os legados institucionais e culturais do autoritarismo no país.

Esse legado jurídico foi engendrado durante a própria Ditadura com o objetivo de manter e fortalecer o regime. Essa influência perdurou mesmo durante o estabelecimento da democracia e continua a ser uma realidade até hoje, variando em sua expressão de acordo com o governo que estiver no poder.

Resquícios culturais do autoritarismo

A “cultura do medo” oriunda da doutrina de segurança nacional promovida pela Ditadura Militar e consolidada pela invasão do público no privado é apontada por Alain Rouquié e Enrique Serra Padrós (GALLO, 2018GALLO, Carlos Artur. Um acerto de contas com o passado: Crimes da Ditadura, “leis de impunidade” e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina. Curitiba: Appris, 2018., p. 48) como o principal resquício cultural do autoritarismo, tendo impactado em curto, médio e longo prazo na cultura política dos cidadãos que viveram sob ditaduras.

Essa cultura do medo justificou, e ainda justifica, o uso desmedido da força para a proteção do patrimônio daqueles que podem pagar por essa proteção. Sob essa égide, o estado de exceção instaurado pós-Golpe de 1964 promoveu barbáries para combater a “ameaça comunista” à propriedade privada. Não a de todos, como fez pressupor, mas daqueles poderosos capazes de sustentar o regime em troca da manutenção de seus interesses.

Cultura de insegurança que faz prevalecer uma noção de que, na defesa das pessoas com poder econômico para comprar essa proteção, vale praticamente tudo. Até mesmo cometer tortura […], o que significa violar direitos humanos ratificados por tratados internacionais (OBERTO; SIMÕES, 2012OBERTO, Bolívar Abascal, SIMÕES, Sabrina. “Em busca de tempos mais humanos”. In: RECH, Nathalia (coord.). Comissão da Verdade: um movimento para calar o silêncio. Porto Alegre: Famecos; PUCRS, 2012. pp. 55-60., p. 56).

Essa concepção é legada até hoje e tem papel preponderante para a aceitação de práticas violentas pelo Estado por parte considerável da população.

De acordo com o jornalista e sociólogo Marcos Rolim, professor da cátedra de Direitos Humanos do [Centro Universitário Metodista] IPA, reiteradas pesquisas na área atestam que persiste uma parcela considerável da população nacional, de aproximadamente um terço, que renuncia à ideia dos direitos humanos. São indivíduos que aprovam a tortura como método para obtenção de informações, que apoiam a violência policial e a máxima de que “bandido bom é bandido morto” (OBERTO; SIMÕES, 2012OBERTO, Bolívar Abascal, SIMÕES, Sabrina. “Em busca de tempos mais humanos”. In: RECH, Nathalia (coord.). Comissão da Verdade: um movimento para calar o silêncio. Porto Alegre: Famecos; PUCRS, 2012. pp. 55-60., p. 55).

Inegáveis as repercussões desse tipo de pensamento sobre as iniciativas que reconhecem as atrocidades promovidas pela repressão durante a Ditadura, constituindo-se em um grande óbice para o sucesso dos projetos que pretendem estabelecer uma justiça transicional profícua.

Em verdade, trata-se de uma tradição antidemocrática que perpassa grande parte da biografia do Brasil. Uma cultura de violência decorrente da relação contraditória entre a sociedade e o Estado, na qual a polícia existe para proteger o Estado e não a sociedade. Nessa dinâmica, para os menos favorecidos, resta o medo, enquanto os abastados buscam a proximidade dos poderosos para obter uma proteção do Estado que deveria ser para todos (OBERTO; SIMÕES, 2012OBERTO, Bolívar Abascal, SIMÕES, Sabrina. “Em busca de tempos mais humanos”. In: RECH, Nathalia (coord.). Comissão da Verdade: um movimento para calar o silêncio. Porto Alegre: Famecos; PUCRS, 2012. pp. 55-60.).

Resta claro que a justificação do uso da violência abusiva é um traço cultural brasileiro e que remonta à sua criação, estando imiscuída em sua própria história. A Ditadura Militar não inovou nesse sentido, mas deu amplitude despudorada a essa cultura durante seu regime. Nas palavras de Pereira (2010PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o Estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010., p. 28): “No Brasil, existe um vínculo, embora tênue e muitas vezes indireto, entre a violência passada e a violência presente”.

Essa cultura de violência segue como marca de nosso país. A violência policial que se difunde nas periferias e que é legitimada e muitas vezes celebrada por parte da população evidencia isso.

A “cultura do medo”, enquanto legado histórico além das marcas das ditaduras militares, deve ser enfrentada e subvertida por meio do único meio eficaz para tal: a educação. Só assim será possível se estabelecer uma justiça transicional capaz de edificar uma consciência coletiva que evite episódios históricos, como a Ditadura de 1964, se repitam. Importante consignar que “não é possível pensar a violência da Ditadura sem assumirmos o compromisso de responder aos atos de violência e tortura dos dias atuais” (TELES, 2015TELES, Edson. Democracia e estado de exceção: Transição e memória política no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Editora Unifesp, 2015., p. 203).

Considerações finais

Inúmeros paradoxos permeiam a democracia e o processo de justiça transicional no Brasil. Eles evidenciam a manutenção dos fortes interesses que figuraram nos cenários políticos brasileiros durante o Regime Militar e que ainda hoje se mantêm, ditando, mesmo que de forma velada, o alcance das políticas de verdade e justiça. No Brasil, a justiça transicional herdou as mazelas de uma autoanistia ilegítima do processo de democratização negociada.

O presente estudo denotou, a partir da análise das obras de diversos autores que se debruçaram sobre as temáticas da transição democrática e da justiça transicional no Brasil, essa herança autoritária que obstaculizou o processo de edificação de uma política pública capaz de trazer consciência coletiva quanto às agressões aos direitos humanos perpetradas pelo regime cívico-militar instaurado no Brasil após o Golpe de 1964.

Abordaram-se os principais legados do período de exceção apontados pela bibliografia como responsáveis pelos entraves ao desenvolvimento da justiça transicional no Brasil e a consequente ascensão do ultraconservadorismo ao comando do país. Em comum, a evidência da manutenção dos interesses daqueles grupos ligados ao regime ditatorial, não apenas militares e policiais, mas também aqueles que se serviram da Ditadura para a promoção de seus interesses: empresários, magistrados, grande mídia, políticos etc.

Nesse sentido, não há que se falar em legados da Ditadura vinculados ao estafe militar unicamente, pois, como já asseverado alhures, o próprio Golpe de 1964 só foi possível graças aos interesses civis que lhe ensejaram e sustentaram. Negar essa multiplicidade de atores que atuam nos bastidores do poder para a manutenção da impunidade quanto aos abusos do Estado durante a Ditadura Militar importa em não reconhecer que hodiernamente essas mesmas forças mantêm vivas as ameaças de uma ruptura democrática caso seus interesses sejam colocados em xeque pelo sistema democrático.

Denota-se assim a pertinência de estudos, a exemplo da análise aqui proposta, que busquem evidenciar esses processos e seus atores, de maneira que se edifique uma consciência coletiva e social lastreada em bases sólidas capazes de se sobrepor à ameaça de uma falaciosa contranarrativa histórica propagada por movimentos de ultradireita que buscam relativizar as atrocidades perpetradas pelo regime de exceção instituído no Brasil pós-1964. Impende destacar que os limites e obstáculos enfrentados pelas políticas públicas voltadas à justiça transicional no Brasil, como visto, não podem ser associados apenas aos legados do Regime. Com efeito, fatores socioculturais históricos intrínsecos ao povo brasileiro, como a cultura da violência abordada neste estudo, são determinantes para o surgimento e legitimação de novos regimes de exceção no país.

Por fim, conclui-se que o processo de justiça de transição brasileira, ainda que permeado pela forte presença dos interesses de grupos poderosos, dispostos a obstaculizar seu avanço, pode ser viável, desde que conduzido por meio de articulações políticas sérias e comprometidas com a ideia de efetivamente realizar uma justiça de transição comprometida com as políticas internacionais relativas aos direitos humanos.

Notas

  • 1
    As comissões da verdade são órgãos instituídos em países que atravessaram períodos de instabilidade política, com a suspensão dos direitos individuais e das normas democráticas, como no caso de ditaduras. Tendo a primeira delas surgido em Uganda a fim de apurar as violações dos direitos humanos ocorridas durante o governo autoritário do general Idi Amin Dada, as comissões da verdade foram relevantes na apuração dos crimes perpetrados pelas ditaduras latino-americanas, como a uruguaia, a chilena, a paraguaia, a argentina e a brasileira. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída pela Lei nº 12.528/2011 e apurou as violações aos direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, detendo-se sobretudo nos 21 anos da Ditadura de 1964. A criação da CNV inspirou a formação de órgãos municipais e estaduais semelhantes, além de entidades não governamentais, como os sindicatos (BRASIL, 2022BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços. “Comissões da Verdade”. Gov.br, Brasília, DF, 20 abr. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade. Acesso em: 22 out. 2022.
    https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-...
    ). Por seu turno, as Caravanas da Anistia, ou Caravanas da Verdade, realizam ações itinerantes. Trata-se de projeto educacional em direitos humanos desenvolvido a partir de 2008 pelo Ministério da Justiça. A Comissão de Anistia (CA) realiza sessões de apreciação pública dos pedidos de anistia que recebe em todo o território nacional, tornando o passado recente acessível a todos (COELHO; ROTTA, 2012COELHO, Maria José; ROTTA, Vera. Caravanas da anistia: O Brasil pede perdão. Brasília, DF: Ministério da Justiça; Florianópolis: Comunicação, Estudos e Consultoria, 2012.).
  • 2
    O autoritarismo é muitas vezes confundido com o totalitarismo. Não obstante, possuem esses conceitos têm diferenças relevantes. No autoritarismo, há um controle centralizado e restrição da liberdade, mas ainda existem espaços sociais relativamente autônomos, enquanto no totalitarismo o Estado busca um controle total sobre todos os aspectos da vida, eliminando a esfera pública e a liberdade individual. No totalitarismo, há uma busca por conformidade ideológica e a supressão de qualquer forma de oposição (ARENDT, 2007ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.).
  • 3
    Segundo Inez Stampa e Vicente Rodrigues (2016, p. 8), “há uma geração, principalmente nascida após a década de 1990, que, de forma geral, tem poucas informações sobre o regime de exceção, e outra que passou pelo período de ditadura e, também de forma geral, olha para nossa democracia como um processo em construção.
  • 4
    O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi fundado, em 1965, como partido de oposição ao partido do Regime Militar, o Aliança Renovadora Nacional (ARENA), após a edição do Ato Institucional nº 2 (AI-2), que extinguiu os partidos políticos existentes no país e estabeleceu o bipartidarismo. O MDB nasceu como uma legenda moderada, de oposição “consentida” à Ditadura.
  • 5
    Segundo Bolívar Lamounier (1985)LAMOUNIER, Bolívar. “Apontamentos sobre a questão democrática brasileira”. In: ROUQUIÉ, Alain; LAMOUNIER, Bolívar; SCHVARZER, Jorge (org.). Como renascem as democracias. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp. 104-140., a abertura, “distensão”, não foi determinada, em seu início, por pressões organizadas da sociedade civil ou de uma facção militar rebelde. Ao contrário, seu núcleo era constituído pela própria cúpula governamental. Em virtude da contundência dos resultados eleitorais de 1974, que sinalizaram o desejo de mudança que vinha se formando no seio da sociedade e fortaleceram a oposição, reforçou-se a disposição do governo Geisel de implantar um projeto de liberalização controlada, que encontrava resistência nos setores mais intransigentes daquele regime.
  • 6
    As classificações dos dois autores se equivalem, divergindo apenas em sua nomenclatura para cada modo de transição.
  • 7
    Versões em português para os termos originais ipsis litteris, conforme apresentado por Renan Honório Quinalha (2013)QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013..
  • 8
    Entendemos que a Lei da Anistia não foi contestada “abertamente” durante sua criação no sentido de que, quando ela foi elaborada e aprovada, em 1979, as discussões e debates sobre seu conteúdo ocorreram nos bastidores das negociações políticas, e não de forma aberta e pública. A lei foi parte de um acordo de transição política que visava a reconciliação e a reintegração de exilados e presos políticos. Embora houvera críticas à lei, principalmente por organizações de direitos humanos, elas não foram suficientes para alterar de modo significativo seu conteúdo à época. No entanto, ao longo dos anos, houve um aumento na contestação da Lei da Anistia, com movimentos e ações judiciais buscando responsabilizar a Ditadura por violações de direitos humanos (ALVES, 2019ALVES, Glenda Gathe. “Os sentidos da anistia brasileira e a virada hermenêutica da Comissão de Anistia”. In: GALLO, Carlos Artur (org.). Anistia: Quarenta anos, uma luta, múltiplos significados. Rio de Janeiro: Gramma, 2019. pp. 283-311.).

Referências

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  • BRASIL. Lei nº 12.597, de 18 de novembro de 2011 Regula o acesso à informação prevista no inciso XXXIII do artigo 5º, no inciso II do §3º do artigo 37 e no §2º do artigo 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2011]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2011/lei/l12527.htm#:~:text=de%20direitos%20fundamentais.-,Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico.,22. Acesso em: 12 out. 2022.
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  • BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços. “Comissões da Verdade”. Gov.br, Brasília, DF, 20 abr. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade Acesso em: 22 out. 2022.
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Editado por

Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
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