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De traficante a pastor: Uma análise da conversão religiosa de traficantes do Bairro da Penha em Vitória (ES)

From Drug Dealer to Pastor: An Analysis of the Religious Conversion of Drug Dealers in Bairro da Penha in Vitória (ES)

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar a conversão religiosa de traficantes residentes no Bairro da Penha, em Vitória (ES). A partir de entrevistas biográficas, as narrativas de vida de três pastores da Igreja Operando Deus, que tiveram carreira anterior no tráfico e depois na igreja, servirão à reflexão sobre um caminho que tem sido cada vez mais comum nas periferias brasileiras, em que os mundos do crime e da religião se relacionam das mais variadas formas. Neste artigo, essa relação será analisada como uma transição entre duas carreiras que conformam diferentes circulações de dádivas nos universos do crime e da religião.

Palavras-chave:
conversão religiosa; traficantes; evangélicos; Bairro da Penha; dádiva

ABSTRACT

From Drug Dealer to Pastor: An Analysis of the Religious Conversion of Drug Dealers in Bairro da Penha in Vitória (ES) aims to analyze the religious conversion of drug dealers residing in Bairro da Penha, in Vitória, Espírito Santo. Based on biographical interviews, the life narratives of three pastors of the Operando Deus church, who had a previous career in trafficking and later in the church, will serve to reflect on a path that has been increasingly common in the Brazilian peripheries, where worlds of crime and religion are related in the most varied ways. In this article, this relationship is analyzed as a transition between two careers that make up different circulations of gifts in the universes of crime and religion.

Keywords:
religious conversion; drug dealers; evangelicals; Bairro da Penha; gift

Introdução

O presente artigo tem o objetivo de analisar a transformação de pessoas que viveram uma carreira no tráfico de drogas e passaram, posteriormente, a uma carreira na igreja. Serão analisadas as trajetórias de pessoas residentes no Bairro da Penha, em Vitória, Espírito Santo, considerado um dos mais violentos bairros da capital capixaba. Buscamos analisar suas transformações a partir da conversão religiosa ao evangelismo pentecostal, mais especificamente na Igreja Operando Deus, uma referência no bairro na transformação de vida de traficantes e outros tipos de criminosos.

A partir de entrevistas semiestruturadas, narrativas de vida e trabalho de campo - observações de cultos na Igreja Operando Deus -, objetivamos entender a trajetória dos sujeitos na carreira criminal no Bairro da Penha, seu processo de conversão religiosa e como, a partir deste, o sujeito que viveu a realidade do crime tem sua vida, sua conduta e seus princípios transformados em sua nova carreira na vida religiosa. A análise buscará suporte especialmente na trajetória de três pastores ex-traficantes, entrevistados e observados em ação ao longo da pesquisa.

Para explicar o efeito da religião evangélica pentecostal na transformação de vida dos ex-criminosos, mobilizamos a teoria sobre a dádiva, de Marcel Mauss (1986MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1986.), contemporaneamente reavivada pelo chamado Movimento Anti-Utilitarista em Ciências Sociais (M.A.U.S.S., na sigla em francês). Entendemos que as dádivas do “perdão dos pecados”, da “salvação” e do “novo nascimento”, entre outras ofertadas pela religião e recebidas pelos convertidos, são centrais nessa mudança. Elas geram obrigações ao convertido em sua nova carreira, na qual se torna responsável por fazer a dádiva circular, passando-a adiante.

Tendo em mente tais objetivos, o artigo contará com a seguinte organização: primeiramente, fará algumas considerações de ordem mais geral sobre religião e criminalidade nas periferias, para então iniciar a contextualização do nosso estudo de caso pela apresentação do Bairro da Penha, onde se localiza a Igreja Operando Deus. Em seguida, serão feitas algumas considerações teóricas e metodológicas sobre a investigação de carreiras por meio das histórias de vida dos pastores pesquisados, imiscuindo-se, a seguir, em suas narrativas sobre suas carreiras no crime1 1 Neste ponto, é importante frisar que, ao falarmos de crime, acompanhamos Carolina Grillo (2013), que anuncia a categoria crime como “não apenas uma infração penal, mas (...) uma substanciação do contexto em que se inscrevem uma série de práticas ilegais e trajetórias pessoais” (p. 1). Na linguagem nativa, a autora continua, “o crime denota tanto um universo de ação e significação - o mundo do crime - bem como um estilo de vida - a vida no crime - e nesse interstício, ele pode ser representado como um tipo de caminho marcado pelo engajamento em ações incrimináveis e traçado sob uma margem de contingências que lhe é peculiar” (Ibid., p. 1). , suas conversões religiosas e a formação de suas novas identidades como “crentes”2 2 Quando falamos sobre a identidade de “crente”, são necessários esclarecimentos, haja vista se tratar de termo por vezes carregado de preconceitos. Assim como no que diz respeito à categoria “bandido”, classificar a nova carreira e identidade dos entrevistados como de “crentes” faz jus à própria categoria nativa que mobilizam para realizar essa identificação. Por exemplo, em uma das entrevistas, o pastor Washinton afirmou: “Passou sete dias depois, fugi do hospital e voltei pra casa. Falei: “Meu Deus, eu sou um crente. Agora o que eu tenho que fazer? O Diabo quer me levar pro tráfico de novo, mas eu não posso”. . Por fim, discutiremos como dádivas que circulam nos universos criminal e religioso nos ajudam a compreender a estruturação das carreiras dos entrevistados, prosseguindo em seguida às considerações finais do artigo.

O Bairro da Penha e a criminalidade

Tanto a religião como a criminalidade são temas tradicionais da sociologia, presentes em suas reflexões desde a obra de seus fundadores, Marx, Weber e Durkheim. A relação entre esses dois mundos também tem destaque em diversos estudos da sociologia e antropologia contemporâneas. No caso brasileiro, é estudada especialmente a relação entre condutas tidas como desviantes, com destaque para o tráfico de drogas nas periferias dos grandes conglomerados urbanos e religiões evangélicas pentecostais e neopentecostais.

É certo que se torna difícil delimitar com precisão a categoria “evangélico”, já que engloba um número importante de igrejas com grande diversidade organizacional, teológica e litúrgica. Na verdade, o termo é usado ora englobando o conjunto das igrejas protestantes, as chamadas congregações “históricas” assim como as igrejas pentecostais, ora referindo-se apenas às diversas modalidades do pentecostalismo, “clássico”, “neoclássico” ou “neopentecostal”.3 3 As ondas de expansão do pentecostalismo no Brasil têm início com a chegada da Assembleia de Deus, passando por uma segunda onda em que aportam no país outras igrejas vinculadas ao pentecostalismo clássico, culminando, na década de 1970, no surgimento das variantes tidas como neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Este último grupo se destaca pelo uso de meios de comunicação de massa como canal de evangelização (por exemplo, Rede Record) e por promover “uma valorização da autoestima de seus fiéis, de forma que abandonaram a clássica concepção pedagógica do sofrimento e da dor e concentraram suas forças nas ‘lutas’ contra satanás e seus demônios, a fim de alcançarem, além da salvação da alma, libertação da opressão demoníaca, saúde para o corpo e (...) prosperidade financeira” (GARCIA, 2017, p. 117). Apesar da inevitável tensão entre igrejas pentecostais e neopentecostais, devido a suas teologias potencialmente conflitantes, não deixa de haver importantes trocas, influências recíprocas e compartilhamento de espaços nesse universo, e mesmo entre pentecostais, religiões protestantes tradicionais e catolicismo. Assim, “evangélico” torna-se antes uma categoria “nativa”, um rótulo identitário por meio do qual, no grupo disperso, se demarcam fronteiras, incluindo-se ou não determinados segmentos no interior do grupo de acordo com aquele que dele se utiliza, no constante processo pelo qual se desconstroem e se refazem identidades. Entretanto, malgrado essas indefinições no discurso “nativo”, sem dúvida, no processo de construção contrastiva e relacional da identidade, visto de fora, “evangélico” remete a um conjunto de características que traçam um perfil relativamente bem definido de um grupo que engloba um número cada vez mais significativo de pessoas (MONTES, 2012MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: Entre o público e o privado na religiosidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p. 30).

Os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)4 4 Disponível (on-line) em: https://censo2010.ibge.gov.br/ relacionados à religião no Brasil mostraram que a religião cristã evangélica é a que mais cresce em todo o país. Em 2010, os evangélicos brasileiros atingiram a marca de 42,3 milhões de fiéis, representando 22,2% da população nacional, com um crescimento de 61,75% desde 2000. Estima-se que a cada ano sejam abertos no Brasil 14 mil novos templos evangélicos (BETO apudGARCIA, 2017GARCIA, Célio de Pádua. (Neo)pentecostalismos e sociedade: Impactos e/ou cumplicidades. São Paulo: Fonte, 2017., p. 17) e que a maioria dos novos convertidos sejam predominantemente de classe baixa, devido à expansão evangélica maciça nas periferias brasileiras (ABI-EÇAB, 2011ABI-EÇAB, Alice. “Religião e violência na periferia de São Paulo”. Revista Anagrama, vol. 5, pp. 7610-7052, 2011.). Não é de se surpreender que, em razão disso, nos últimos anos, as pesquisas nas áreas das ciências sociais envolvendo a relação entre pobreza e criminalidade e as denominações da religião cristã evangélica, sobretudo as pentecostais e neopentecostais, têm sido cada vez mais constantes.

A aproximação de traficantes de drogas das redes e igrejas evangélicas em favelas sinaliza mudanças na presença e no modo de atuação de evangélicos nas cidades. A partir da década de 1980 e, principalmente, de 1990, é possível observar um significativo investimento de evangélicos pentecostais na aproximação do universo criminal e de segmentos estigmatizados para o exercício de proselitismo religioso com vistas à conversão massiva. Assim, tornaram-se numerosos na evangelização de criminosos em espaços de privação da liberdade, assim como de profissionais do sexo, travestis, homossexuais etc. (...) Com a conversão de traficantes de drogas nas favelas e com a aproximação e aceitação deles nos templos, em cultos e demais atividades religiosas, os evangélicos observaram uma importante forma de promoção de seus trabalhos missionários (reforçando o personalismo de algumas lideranças) e como meio fundamental de se colocarem de modo privilegiado em disputas por cargos políticos na favela e fora dela (VITAL DA CUNHA, 2014VITAL DA CUNHA, Christina. “Religião e criminalidade: traficantes e evangélicos entre os anos 1980 e 2000 nas favelas cariocas”. Religião e Sociedade, vol. 34, n. 1, pp. 61-93, 2014., p. 86).

Vital da Cunha (Ibid.) tem como substrato empírico de suas observações o Rio de Janeiro, mas a realidade capixaba não é muito diferente no que diz respeito ao tema da pesquisa. Tal como na realidade carioca, na Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV) também observamos a forte atuação de igrejas evangélicas nas periferias, com forte interesse na arregimentação de fiéis oriundos de carreiras desviantes como o tráfico de drogas, cuja organização se assemelha bastante à organização do tráfico na capital do estado vizinho, conforme podemos observar ao contrastar o depoimento dos entrevistados com trabalhos que tratam do tema no Rio5 5 Amílcar Cardoso Vilaça de Freitas (2016, p. 140) chega à mesma conclusão a respeito de tais semelhanças, entendendo como diferença mais marcante entre as duas realidades a ausência de organização do tráfico capixaba em torno de grandes facções, diferentemente do que ocorre no Rio de Janeiro. .

Outros estudos sobre a realidade carioca também nos ajudam a pensar a situação de Vitória e, mais especificamente do Bairro da Penha. Conforme a apresentação da realidade do bairro que veremos a seguir, trata-se de uma região em que se nota uma “acumulação social da violência”, em termos muito semelhantes aos que Michel Misse (2008MISSE, Michel. “Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, vol. 8, n. 3, pp. 371-385, 2008.) definiu para a realidade do Rio de Janeiro.

A relação entre violência e o Bairro da Penha, localizado na Região 4 de Vitória (Região Administrativa de Maruípe), existe desde sua ocupação inicial, que data de meados da década de 1950. Mesmo se tratando de um bairro localizado em frente ao 1º Batalhão da Polícia Militar (PM) do Espírito Santo - o maior aparelho da PM no estado -, a criminalidade não só no bairro, mas na região do chamado Complexo da Penha - que envolve ainda os bairros Bonfim, São Benedito, Alto Itararé e Estrela -, se perpetuou ao longo dos anos, a partir da manutenção de bocas de fumo famosas em Vitória, em pontos cujo controle do tráfico é exercido por grupos rivais, sobretudo no Bairro da Penha e no São Benedito, sendo o conflito entre esses grupos a principal causa do assassinato de homens cada vez mais jovens, entre 15 e 29 anos.

A denominação Complexo da Penha, inclusive, tem uma origem curiosa: tornou-se popular no meio policial e, posteriormente, no meio jornalístico capixaba, após a invasão do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas forças policiais e pelo Exército, no final de 2010. O episódio foi televisionado em tempo real em todos os principais noticiários, tornando-se assunto principal entre os brasileiros durante semanas. O Complexo do Alemão é formado pelo Morro do Alemão, sua principal comunidade, e outros 14 morros e favelas que com ele fazem divisa. Assim é também o Complexo da Penha, em Vitória, formado pelos bairros da Penha, São Benedito, Bonfim, Alto Itararé e Estrela, localizados em um mesmo maciço rochoso, limítrofes e de recorrentes ocorrências policiais. O nome foi dado primeiramente pelos agentes da polícia capixaba e depois reproduzido nos noticiários dos principais veículos de comunicação do estado, devido à forte relação desses bairros com a criminalidade, sobretudo graças à constante guerra entre grupos rivais pelo domínio do tráfico de drogas na região6 6 Os dados históricos e demográficos apresentados nesta sessão são da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV). Disponíveis (on-line) em: http://legado.vitoria.es.gov.br/regionais/dados_regiao/regiao_4/regiao4d.asp .

A área onde se localiza o Bairro da Penha - nome fundamentado no fato de que muitos moradores no início da ocupação eram devotos de Nossa Senhora da Penha - pertencia à Fazenda Maruípe e foi doada ao Município de Vitória. A ocupação inicial se deu nos anos 1950, por meio de invasões orientadas pelo sargento Carioca, considerado um xerife pelos moradores, devido à sua postura autoritária. Era ele quem demarcava e indicava os lotes a serem ocupados, orientando os assentamentos. Na mesma época, e da mesma maneira, o sargento foi responsável pelas ocupações que dariam origem aos outros bairros do Complexo da Penha, anteriormente áreas de lavoura de culturas como café, cana-de-açúcar, milho, arroz e outros.

O perfil inicial da comunidade era de muita pobreza. As casas eram de estuque ou de madeira, cobertas por folhas de coqueiro ou palha e, aos poucos, foram sendo construídos barracos de madeira, localizados na parte alta do morro, e casas de alvenaria, na parte baixa. Apesar da urbanização das últimas duas décadas, o bairro continua com o perfil socioeconômico semelhante ao que se via no início de sua ocupação. Hoje, é um dos mais povoados do município de Vitória (201 habitantes por hectare), e a população é estimada em cerca de 10 mil habitantes, sendo aproximadamente um terço formado de jovens entre 15 e 24 anos de idade, com maior quantidade de mulheres. Mais de 60% dos moradores são pardos e cerca de 10% da população é preta, de acordo com dados do Censo 2010 do IBGE7 7 Disponível (on-line) em: https://censo2010.ibge.gov.br/ .

Estatísticas do Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP) (2016) mostram que a maioria dos brasileiros vítimas de homicídio ou presos nas cadeias e unidades de internação socioeducativas no Brasil tem entre 15 e 29 anos de idade, é pobre, negra ou parda, mora em bairros de periferia e tem apenas o ensino fundamental completo - perfil que coincide com a disposição sociodemográfica do Bairro da Penha e adjacências. Essa coincidência de perfis prossegue com o bairro tendo destaque na editoria policial dos noticiários televisivos. O estigma de bairro violento é endossado inclusive pela ferramenta de pesquisa da Google: ao digitar “Bairro da Penha em Vitória”, a primeira página de resultados apresenta somente notícias relacionadas à violência e ao tráfico e, quando se opta pela aba de imagens, as situações que aparecem incluem moradores carregando mortos, pessoas presas na delegacia, armas apreendidas e batidas policiais.

O processo de constituição da paisagem urbana do Bairro da Penha, com seus indicadores sociais, formação marcada por autoritarismo, imigração e exclusão social e presença constante no jornalismo policial contemporâneo, reproduz a história de muitas periferias cariocas em que se observou, também desde a década de 1950, o processo de acumulação social da violência, descrito por Misse (2008MISSE, Michel. “Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, vol. 8, n. 3, pp. 371-385, 2008.) como uma “síndrome” que envolve uma “circularidade causal acumulativa” de fatores. Um deles é o que o autor denomina “sujeição criminal”, uma espécie de internalização subjetiva do estigma social de criminoso que acomete muitos dos jovens que crescem nesses ambientes forjados pela proximidade com o “mundo do crime”. Esse é o caso dos entrevistados neste trabalho, que representam de forma exemplar o percurso descrito por Misse, inclusive com a culminação na conversão religiosa como principal “saída” para a carreira criminosa.

Como é muito comum no Brasil que a lei não seja seguida em certos e variados casos, e como seus contextos produzem às vezes formas que padronizam práticas extralegais relativamente legítimas, não faz sentido encerrar a construção social do crime apenas no processo de criminalização, aceitando seus termos codificados pelo direito positivo vigente. É preciso ir além e reconhecer as formas concretas pelas quais as práticas e suas representações sociais combinam, em cada caso, processos de acusação e justificação, criminação e des-criminação, incriminação e discriminação que, fora ou dentro do Estado, mantêm-se relativamente autônomos frente à lei codificada e em permanente tensão com ela. (...) No Brasil, a prevalência extralegal desse processo é generalizada. Não se trata de uma exceção, mas de uma regra. Para distinguir esse processo social de um processo de incriminação racional-legal, chamo-o de “sujeição criminal”. Nele, primeiramente, busca-se o sujeito de um crime que ainda não aconteceu. Se o crime já aconteceu e se esse sujeito já foi incriminado antes, por outro crime, ele se torna um “sujeito propenso ao crime”, um suspeito potencial. Se suas características sociais podem ser generalizadas a outros sujeitos como ele, cria-se um “tipo social” estigmatizado. Mas a sujeição criminal é mais que o estigma, pois não se refere apenas aos rótulos, à identidade social desacreditada, à incorporação de papéis e de carreiras pelo criminoso (como na “criminalização secundária” de Lemert). Ela realiza a fusão plena do evento com seu autor, ainda que esse evento seja apenas potencial e que efetivamente não tenha se realizado. É todo um processo de subjetivação que segue seu curso nessa internalização do crime no sujeito que o suporta e que o carregará como a um “espírito” que lhe tomou o corpo e a alma. Não é à toa que, no Brasil, a chamada “ressocialização” de sujeitos criminais se faça predominantemente via conversão religiosa (Ibid., pp. 379-380).

A estrutura familiar, sobretudo com os responsáveis envolvidos em problemas de violência e/ou vício em drogas, foi um fator recorrente encontrado nas narrativas dos sujeitos entrevistados para a entrada na carreira criminosa. Também foi possível observar nas entrevistas que o tráfico se mostrou o meio mais rápido de se alcançar a independência financeira, de poder adquirir os produtos da moda, usados pelos traficantes mais velhos e divulgados por meio de exaustivas campanhas publicitárias nos meios de comunicação, fazendo despertar desejos que demorariam mais para serem satisfeitos pelos meios legais. Inseridos nesse contexto de uma “sociabilidade violenta”, nos termos de Luiz Antonio Machado da Silva (2004MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, vol. 19, n. 1, pp. 53-84, 2004.), os entrevistados, ainda adolescentes, ingressaram no “mundo do crime” e construíram nele uma carreira que só teve fim com a conversão religiosa na Igreja Operando Deus. É essa carreira que conheceremos melhor nos tópicos seguintes, aprofundando-nos em suas narrativas de vida.

Antes disso, contudo, cabem algumas considerações sobre a metodologia e o objeto analítico do estudo, que têm lugar na próxima seção.

Algumas observações teórico-metodológicas

Foram entrevistados para a presente pesquisa os pastores da Igreja Operando Deus Daniel Rocha, Washington Santos e Wadlei Polese8 8 Com a autorização dos entrevistados, os nomes reais foram mantidos, tendo em vista que a própria história retratada já os identificaria perante o público local. . Suas histórias coincidem com a de muitos brasileiros que atravessaram uma vida pregressa no mundo do crime, adentrando posteriormente em uma realidade marcada pela vida na igreja. Suas trajetórias de vida, assim, nos ajudam a compreender um fenômeno social mais amplo, que consiste em uma das principais formas de interseção entre religião e criminalidade: a conversão dos chamados “ex-bandidos” (TEIXEIRA, 2009TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. A construção social do “ex-bandido”: Um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.).

Para os pentecostais, embora o “bandido” seja considerado alguém “usado” pelo Demônio, esta não é uma exclusividade sua. Qualquer pessoa pode ser “usada” pelo Diabo. Da mesma forma, por influência do mal, as pessoas se divorciam, tornam-se alcoólatras, dependentes químicos, etc. A perspectiva pentecostal sobre o criminoso não necessariamente o essencializa como alguém intrinsecamente “maligno”: o indivíduo não é o Diabo, mas é usado por ele. Porém, há sempre a possibilidade de “passar para o lado do Senhor”. Os traficantes de drogas são alvos constantes do proselitismo pentecostal. Para os pentecostais, há sempre a possibilidade de mudança para o “bandido”, uma vez que ele “aceite Jesus em sua vida” (Ibid., p. 62).

A descrição de Teixeira enfatiza a chamada “guerra espiritual”, característica principalmente das igrejas neopentecostais, que ganha destaque sobretudo em seus rituais de exorcismo e encontra terreno fértil de desenvolvimento no cenário bélico mundano dos conflitos decorrentes do tráfico de drogas, que, assim, ganham explicação reflexa na guerra que ocorre no plano espiritual (VITAL DA CUNHA, 2014VITAL DA CUNHA, Christina. “Religião e criminalidade: traficantes e evangélicos entre os anos 1980 e 2000 nas favelas cariocas”. Religião e Sociedade, vol. 34, n. 1, pp. 61-93, 2014.). Conforme destaca Cecília Loreto Mariz (1999MARIZ, Cecília Loreto. “A teologia da batalha espiritual: Uma revisão da bibliografia”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, n. 47, pp. 33-48, 1999., p. 34), no entanto, apesar de a literatura sobre guerra espiritual no Brasil se concentrar na análise das igrejas neopentecostais, o fenômeno é geral no universo evangélico brasileiro e está também presente no catolicismo, especialmente entre os grupos carismáticos9 9 Um outro aspecto importante da chamada “guerra espiritual”, como ela toma parte na teologia pentecostal e neopentecostal no Brasil, diz respeito a um “ecumenismo negativo”, em que o panteão afro-ameríndio é associado às figuras demoníacas presentes no lado maligno dessa guerra (MONTES, 2012, p. 73). Esse aspecto é especialmente dramático e central na expansão das igrejas evangélicas nas periferias urbanas brasileiras, pois se inscreve em uma real disputa de território, em que religiões de matriz africana perdem espaço conforme igrejas evangélicas avançam, inclusive mediante suas relações com tráfico de drogas. Todavia, não obstante a importância de tal temática e a necessidade de circunscrever uma observação a este respeito, não temos a intenção de desenvolver uma reflexão mais sistemática sobre o problema no presente artigo. . Assim, uma perspectiva semelhante a respeito da relação entre o “bandido”, a influência demoníaca em sua atuação criminosa e a possibilidade de sua salvação pela obra de Deus aparece na atuação da Igreja Operando Deus, uma igreja pentecostal de tipo assembleana10 10 Assembliana diz respeito a pertencer ao conjunto de igrejas Assembleias de Deus. .

Para este estudo, procederemos à análise das narrativas de vida11 11 A narrativa de vida resulta de uma forma particular de entrevista, a “entrevista narrativa”, durante a qual um pesquisador pede ao sujeito que lhe conte toda ou uma parte de sua experiência vivida (BERTAUX, 2010, p. 15). dos entrevistados, visando cumprir um dos objetivos da metodologia: “compreender a interação entre mudança social, vidas e ação de indivíduos e grupos” (GILL e GOODSON, 2015GILL, Scherto; GOODSON, Ivor. “Métodos de história de vida e narrativa”. In: SOMEKH, Brideget; LEWYN, Cathy (orgs). Teoria e métodos de pesquisa social. Petrópolis: Vozes, 2015, pp. 215-224., pp. 215-216) por meio de “uma compilação de experiência vivida de indivíduos ou grupos no passado ou no presente que é analisada por pesquisadores, que depois situam os relatos da narrativa dentro dos contextos sociais, políticos, econômicos e históricos onde essas experiências tiveram lugar” (Idem).

Contudo, deve-se ter em mente que o “objetivo da análise narrativa é mostrar como as pessoas compreendem a sua experiência vivida e como a narração desta experiência lhes dá condições de interpretar o mundo social e sua atuação dentro dele”, de forma que “não se trata de revelar a ‘verdade’ dos fatos” (Ibid., p. 219) - o que sequer seria um objetivo epistemologicamente válido em uma pesquisa científica -, mas sim utilizar a descrição, por parte dos entrevistados, de uma série de experiências que se tornam substrato para a análise de um fenômeno social de interesse dos pesquisadores. Além disso, é importante salientar que essas descrições são social e biograficamente situadas, isto é, as entrevistas narrativas têm como uma de suas características a “fixação de relevância”. Isso significa que “o contador de história narra aqueles aspectos do acontecimento que lhe são relevantes, de acordo com sua perspectiva de mundo” (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin. “Entrevista narrativa”. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 90-113., p. 95).

A tradição hermenêutica de investigação nas ciências sociais chama atenção para como procedimentos como o descrito acima produzem “autointerpretações contextualizadas”, derivadas da estratégia de pesquisa “de interpretar as autointerpretações dos atores sociais em contextos históricos” (GLYNOS e HOWARTH, 2007GLYNOS, Jason; HOWARTH, David. Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory. Londres: Routledge, 2007., p. 50). Jason Glynos e David Howarth (Ibid.) destacam como essa perspectiva permite às ciências sociais superarem perspectivas positivistas pautadas pela lógica das leis de causalidade, mal importadas das ciências naturais. Cobram, porém, a necessidade de se superar essa mera contextualização em direção à possibilidade de avaliação crítica dessas autointerpretações. Ou seja, não obstante os preciosos dados que podem ser extraídos dessas autointerpretações contextualizadas, essa contextualização, em que se encontram as perspectivas tanto do observador como do observado, por mais que possa envolver uma “caridade na interpretação” da fala do grupo estudado (WINCH apud GLYNOS e HOWARTH, 2007, p. 59), deve também abrir espaço à crítica da unilateralidade dessas perspectivas.

Glynos e Howarth (2007GLYNOS, Jason; HOWARTH, David. Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory. Londres: Routledge, 2007.) tentam fazer isso utilizando um expediente que Marianne Jørgensen e Louise Phillips (2002JØRGENSEN, Marianne; PHILLIPS, Louise. Discourse Analysis as Theory and Method. Londres: Sage, 2002., p. 189) chamam de “redescrição analítica”, que seria a “tradução” das narrativas dos investigados nos termos do referencial teórico utilizado. Fazem isso com base nas obras de autores como Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Jacques Lacan e Slavoj Žižek, produzindo um ferramental analítico que busca encontrar em operação, nas realidades sociais que analisam, as lógicas social, política e fantasmática.

Neste artigo, conforme ficará mais claro adiante, optamos por uma tradução de nosso material empírico nos termos da teoria da dádiva. Não obstante, aos interessados em uma “explanação crítica”, tal qual os termos que dão título ao trabalho de Glynos e Howarth (2007GLYNOS, Jason; HOWARTH, David. Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory. Londres: Routledge, 2007.), salientamos que é possível fazer uma leitura dos dados aqui apresentadas sob a lógica fantasmática que subjaz a tais discursos. De acordo com os autores, a lógica fantasmática, isto é, calcada na fantasia, pode ser percebida nas inconsistências observáveis no discurso público, derivadas de fantasias que se mantêm no âmbito privado e são capazes de “amarrar” perspectivas aparentemente desconexas no íntimo da subjetividade dos autores das autointerpretações estudadas (GLYNOS e HOWARTH, 2007GLYNOS, Jason; HOWARTH, David. Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory. Londres: Routledge, 2007., p. 147-148). Nos casos aqui analisados, essa fantasia pode ser observada nas oscilações discursivas sobre a relação entre os mundos do crime e da igreja, que ora aparecem radicalmente separados, ora em relação constante.

Com essas observações prévias, queremos destacar que, não obstante as possibilidades que as entrevistas abrem para a compreensão de um fenômeno mais amplo, que diz respeito à conversão religiosa de traficantes, nossa análise será guiada por um interesse de pesquisa específico e pela vivência dos três entrevistados - e as peculiaridades com que vivenciaram suas conversões.

Uma das peculiaridades dessas conversões é elas serem, por assim dizer, “casos de sucesso”. Primeiramente, porque os entrevistados podem contar suas experiências em um momento de estabilização na carreira religiosa, posterior à carreira no crime, sendo que há muitos casos em que perdura a oscilação entre esses dois mundos, nas chamadas “recaídas” dos fiéis. Diogo Silva Corrêa (2015CORRÊA, Diogo Silva. Anjos de fuzil: Uma etnografia das relações entre igreja e tráfico na Cidade de Deus. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.) faz uma excelente descrição de um desses casos de oscilação no quinto capítulo de sua tese. Em segundo lugar, porque eles conseguiram se estabelecer em posições centrais do campo religioso (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 27-98.) como pastores de igrejas estabelecidas. Isso nem sempre ocorre, haja vista os casos dos convertidos que se tornam “pregadores itinerantes” ou mesmo “pregadores mendicantes”, conforme mostra o estudo de Mariana M. P. Côrtes (2012CÔRTES, Mariana. Diabo e fluoxetina: Formas de gestão da diferença. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.).

Outra peculiaridade é que tanto as próprias narrativas como os interesses de nossa pesquisa se concentram na dimensão de ruptura entre as duas carreiras, sendo que os pontos de continuidade entre os dois mundos também poderiam ser escolhidos. Afinal, como demonstra muito bem, mais uma vez, a tese de Corrêa (2015CORRÊA, Diogo Silva. Anjos de fuzil: Uma etnografia das relações entre igreja e tráfico na Cidade de Deus. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.), desta vez no seu quarto capítulo, é impossível negligenciar a forma como a carreira anterior no crime é mobilizada na carreira na igreja, com a referência das alcunhas “ex-alguma coisa”. É necessário, inclusive, destaca o autor, reconhecer uma hierarquia entre diferentes “ex-alguma coisa”, como, por exemplo, o ex-traficante gozando de maior status e prestígio dentro da igreja do que o ex-viciado ou o ex-homossexual. Isso destaca o quanto certos atributos sociais, como virilidade, capacidade empreendedora e de liderança etc., são valorizados em ambas as carreiras e mesmo auxiliam a transição entre elas, mostrando que a ruptura pode ser muito menos radical do que a descrição da mesma pelos próprios envolvidos leva a crer12 12 Corrêa (2015) salienta, inclusive, como algumas carreiras desviantes anteriores à conversão são interditadas de serem mobilizadas pelo convertido, inexistindo, por exemplo, evangélicos ex-“X9s” ou ex-estupradores. .

Essas observações servem bem para nos mostrar o que há de fantasmático na crença de separação radical das vidas no crime e na igreja. Nossa análise será centrada no modo como a dádiva serve como essa espécie de “cola” que liga as interações em dado espaço social. Contudo, olhando o mesmo fenômeno sob outro prisma, não se pode deixar de notar que a conversão e as circulações de dádivas, criações de laços de solidariedade, estabelecimento de hierarquias etc., seja na empresa do tráfico seja na igreja, são trespassadas por fantasias que, sob um ponto de vista lacaniano, preenchem as falhas inerentes à constituição da subjetividade e oferecem “o suporte que dá consistência ao que chamamos de ‘realidade’” (ŽIŽEK apudGLYNOS e HOWARTH, 2007GLYNOS, Jason; HOWARTH, David. Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory. Londres: Routledge, 2007., p. 146-147).

A carreira do traficante no Bairro da Penha

Feitas essas considerações, podemos nos concentrar no que os entrevistados têm em comum com tantos outros brasileiros ao terem crescido no Bairro da Penha, periferia de um grande centro urbano, e terem tido trajetórias anteriores na vida do crime e agora na vida religiosa. Utilizamos o termo carreira (DARMON, 2008DARMON, Muriel. “La notion de carrière, un instrument interactionniste d’objectivation”. Politix, vol. 2, n. 82, pp. 149-168, 2008.) para definir essas duas vidas, objetivando tratá-las como dois tempos sociais distintos, que envolveram diferentes tipos de comprometimentos e investimentos para o crescimento e a consolidação da área de influência dos empreendimentos em que os sujeitos pesquisados estavam envolvidos. Tais empreendimentos seriam as empresas do tráfico e a da fé, definindo respectivamente a identidade do “bandido” e a do “crente”. Mesmo tendo em conta a fantasia que permeia essa distinção de tempos sociais, é fundamental que se leve essa distinção a sério, sob o risco de deixarem de fazer sentido tanto as autointerpretações dos sujeitos pesquisados como o próprio contexto social em que elas se dão. Afinal, ainda que se preste a ferramental de análise crítica das autointerpretações dos sujeitos estudados, a fantasia não é uma mentira ou simples autoengano, sendo fundamental na construção das subjetividades e no direcionamento do engajamento dos sujeitos com os fenômenos do mundo, motivando-os à ruptura ou à manutenção das coisas como estão.

Voltando ao termo carreira, trata-se de conceito importado do campo do trabalho e das profissões para permitir a análise sociológica de outros domínios, às vezes muito distantes. Seu empréstimo baseou-se em e alimentou um aspecto fundamental do paradigma interacionista: a ideia e a prática científica de estudar da mesma forma, usando os mesmos conceitos, o “normal” e o “desviante”, atividades valorizadas e atividades desaprovadas por determinado grupo social. Nos estudos sobre criminalidade e comportamentos desviantes, a noção de carreira foi mobilizada para escapar a teorias etiológicas e destacar não a causa da criminalidade, mas a etiquetação do criminoso.

Howard Becker (2008BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.), por exemplo, fala dos diferentes compromissos feitos nas carreiras ditas normais e desviantes. Ambas seguem uma lógica semelhante, na qual esses compromissos, cada um à sua maneira, aprofundam a inserção social e o sucesso dos envolvidos nas carreiras que estão seguindo, enquanto os afastam de outras possibilidades que vão lhes sendo gradativamente bloqueadas.

Muriel Darmon (2008DARMON, Muriel. “La notion de carrière, un instrument interactionniste d’objectivation”. Politix, vol. 2, n. 82, pp. 149-168, 2008.), ao analisar a carreira anoréxica, a divide em quatro fases: 1) start, 2) manter compromisso, 3) manter engajamento e 4) ter cuidado. Podemos fazer um paralelo com as fases da carreira criminosa no tráfico de drogas. A fase start, ou da entrada no tráfico, se dá em função de fatores motivadores/causais, como a desestrutura familiar, a falta/desejo de dinheiro e/ou a necessidade de alimentar o vício em drogas. Para se manter no tráfico, é preciso “manter o compromisso” (fase 2), adaptando-se e obedecendo às leis do tráfico e ao modus operandi da “firma”. A fase 3, que se caracterizaria pela manutenção do engajamento, é uma fase de continuidade, em que o processo de autotransformação no bandido vai se aprofundando, já que conforme cresce seu “conceito”, ele sobe na hierarquia da empresa do tráfico e, por consequência, adquire mais dinheiro - seu objetivo ao entrar na carreira. Na fase 4 da carreira anoréxica analisada por Darmon, após atingir o corpo desejado a pessoa deve tomar os cuidados pós-resultados, contando com a instituição médica para eventuais necessidades, de modo a manter o corpo e evitar problemas de saúde. Já no mundo do tráfico, quanto maior for a hierarquia, mais prestígio e dinheiro se conquista, mas também aumentam a responsabilidade sobre as drogas comercializadas e a gravidade das consequências legais de portar a quantidade e o tipo de droga (ser preso e passar longos anos na cadeia e, em alguns casos, perigo de morte). O “ter cuidado”, nesse sentido, envolveria ter: um bom “exército” de subordinados, com bom conceito; boas relações políticas dentro do bairro - de forma que não seja “caguetado” por moradores e/ou inimigos; e agir da maneira mais discreta possível. Tudo isso para conseguir viver a carreira ilícita sem ser preso ou morto13 13 Alguns termos que aparecem aqui, como conceito, firma etc. terão seu significado mais bem explicados no decorrer do texto. .

O desenvolvimento da carreira no tráfico descrito acima pode ser observado nas narrativas dos nossos entrevistados, por meio das quais também aproveitamos para esclarecer algumas categorias nativas citadas previamente.

Conforme vimos, todos os atores ouvidos neste trabalho tiveram uma origem semelhante. Além de morarem no mesmo bairro, onde o tráfico de drogas tem uma influência grande no cotidiano da comunidade, são filhos de famílias pobres, consideradas desestruturadas, com pais ausentes, violentos, alcoólatras, dependentes químicos, presidiários etc. Além disso, procuraram o tráfico como a forma mais rápida e palpável de ganhar dinheiro e/ou sustentar o vício em drogas.

- Quando fiz meus 13, 14 anos, meu pai se separou da minha mãe. Meu pai (...) me humilhava, me batia. (...) Meu pai saiu da minha casa. E aí [eu] não tinha como trabalhar: [eu] era novo, não tinha emprego [para] pessoa da minha idade. E aí eu nunca fui de pedir dinheiro a ninguém, sempre gostei de se virar e, como não tinha emprego, eu subi lá pra cima pro tráfico de droga. (...) Meu irmão, assaltante; minha irmã, lésbica; eu, traficante. Você vê que família. Meu pai e minha mãe, separados. (Pastor Daniel, 2018)

- [Minha família era] totalmente desagregada. Eu, até os quatro anos de idade, morei com a minha mãe. Com seis meses na barriga da minha mãe, meu pai largou [a família]. Me deixou, abandonou minha família. Eu sou filho mais velho de cinco irmãos por parte de mãe e seis por parte de pai. Meu pai... cada um filho é de uma mulher diferente. E eu sou o mais velho, sou o primogênito. E minha família... eu nunca tive auxílio do meu pai, ele nunca me deu nada, nunca me ajudou. E com quatro anos eu fui entregue aos meus avós. (Pastor Wadlei, 2019)

- Na minha infância eu não tive muitos privilégios, muitas regalias. Meu pai e mãe não tinham muitas condições. Uma criação difícil, passando por necessidade, angústia. Não tínhamos às vezes alimento, pão para comer (...). Passei por muito sofrimento, com meus pais brigando por causa do alcoolismo. E uma coisa que criança tem é sentimento e memória para guardar as coisas. Fui crescendo, vendo tudo aquilo acontecendo. (...) Um dia vi meu pai sendo preso, e era muito apegado com ele. Mesmo estando na porta de bar, queria estar com ele. E via a angústia tomando conta do meu coração. (...) Com seis anos, eu não morava mais com a minha mãe. A minha mãe me entregou à minha avó. Minha avó começou a cuidar de mim com seis anos de idade. (Pastor Washington, 2017)

Em todos os casos, antes de começarem na empresa do tráfico os entrevistados eram seus clientes, e suas drogas de consumo variavam. Pastor Daniel se considerava dependente de maconha; pastor Wadlei chegou ao crack; pastor Washington, à cocaína. A maioria iniciou a experiência no tráfico na adolescência. Pastor Wadlei saiu do bairro aos quatro anos de idade e voltou aos 17, quando começou a fumar maconha, andar com os traficantes e “endolar” a maconha14 14 “Endolar” é o processo de colocar o pedaço de maconha em saquinhos para a venda. , apesar de nessa época ainda não fazer parte da “firma”15 15 Grillo (2013), em seu trabalho sobre tráfico e roubo nas favelas cariocas, explica que as dinâmicas do tráfico são geridas localmente e que a organização dessas atividades comerciais é chamada de “firma”, em alusão ao seu aspecto empresarial. A firma simula o modelo organizacional de uma empresa capitalista, tomando de empréstimo a coordenação burocrática da hierarquia patrão/funcionários (termos como patrão, gerente, funcionário, plantão, equipe, carga, responsabilidade, anotações, contas e pagamento). Os cargos são basicamente os mesmos na hierarquia do tráfico carioca em relação ao do Bairro da Penha: “chefe do tráfico”, “gerente geral” (que supervisiona toda a droga que entra no morro e presta contas ao patrão), “subgerentes” ou “gerentes” (responsáveis pelas bocas/áreas, cargas e/ou preços), os “vapores” (responsáveis pela venda direta) e “fogueteiros” ou “escoltas”. Conforme salientado anteriormente, nesse caso, a descrição da realidade carioca serve bem ao caso capixaba no Bairro da Penha, como se pode observar nos depoimentos dos entrevistados. .

Pastor Daniel descreve que começou na carreira do tráfico como “escolta” - por vezes denominado também como “fogueteiro” -, função responsável por vigiar e avisar sobre a possível chegada da polícia através de radiocomunicadores, fogos ou outro tipo de sinal. Por essa função também passou o pastor Wadlei, quando iniciou um comprometimento com a vida do crime. Já o pastor Washington começou em uma função que ele denomina como “mandado”, cujo papel é levar e trazer recados ao traficante responsável pelo morro. Antes de traficar, alguns deles tiveram envolvimento com roubos e furtos.

- Fiquei uns oito meses ali na escolta. Escolta é aquele camarada que vigia, que fica vigiando. E quando a polícia vem, tem que avisar antes. Então fiquei ali mais ou menos uns oito meses. Fui indo, fiquei... Só que trabalhava de uma maneira diferenciada, porque eu trabalhava pelo dinheiro, não trabalhava pela droga. (...) Eu ganhava o equivalente a um dia de pedreiro: eu ganhava R$50 na época. Isso era muito dinheiro. (...) Na época só gostava de usar maconha. E a maconha me deixava um pouco lento. Então no começo não usava [no trabalho]. Depois comecei a usar. (...) Já usei maconha, crack, cocaína, haxixe e outras. (...) Já [fui dependente] e muito! Da maconha, não da cocaína e nem do crack, porque eram as drogas que sugavam o dinheiro dos caras tudo. (Pastor Daniel, 2018)

- Com 16 anos comecei a olhar a criminalidade de outra forma, porque o que seus olhos veem começa na sua mente e vai para o seu coração. Comecei a ver no morro os traficantes traficando, comecei a ver no morro a vida do traficante de luxúria, de marca, se vestir bem. Era até mesmo ostentar o que ganhava. E na minha juventude eu via aquilo. E, enquanto eu não podia ter uma bermuda de marca, uma camisa de marca, o traficante podia. Comecei a ver o traficante andando de cordão, andando por cima, e eu comecei a ver: como pode, eles têm tudo e eu não tenho nada! (...) Eu comecei a cometer pequenos furtos, a roubar, a assaltar, a entrar na vida do crime. Com 16 anos eu já estava portando uma arma, assaltando, entrando dentro de supermercado, botando todo mundo no chão, entrando (...) dentro das empresas e botando todo mundo dentro do banheiro e cometendo meu primeiro delito. E ali me deram uma oferta. O Diabo me ofertou o tráfico de drogas. E eu comecei a fazer favor. Porque, quando você entra na vida do crime, a primeira coisa que você tem que fazer é “mandado” dos outros. É como se fosse o aviãozinho16 16 O “aviãozinho” diz respeito à função da pessoa que leva a droga a um comprador e volta com o dinheiro para o traficante responsável pela droga. A diferença entre o “aviãozinho” e o “mandado”, citado pelo pastor Washington, é que este último, em vez de levar drogas, leva somente a informação e realiza determinados favores para o traficante. : você vai lá e dá o recado; você vai lá e leva; você vai lá e vai levar o recado ao traficante. (...) Eu comecei a esconder drogas, a guardar as armas. Ali eu estava apenas começando. (Pastor Washington, 2017)

Para crescer na carreira do tráfico é preciso ganhar o que na linguagem do Bairro da Penha é chamado de “conceito”, popularmente o que chamamos de “moral”. De acordo com a tese de Grillo (2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 59), os cariocas chamam isso de “consideração”, que ela define como “uma espécie de prestígio, calculado pela estima alheia e, principalmente, a estima por parte dos traficantes mais poderosos e influentes”. Essa estima é o que credenciou o pastor Washington, então conhecido como Brown no mundo do crime, a crescer na hierarquia e chegar a ser gerente geral do morro. Um fato interessante é que todos os entrevistados reconheciam o conceito que o pastor Washington tinha no morro, e essa fama se dava não só pelo alto cargo que chegou a ocupar na hierarquia do tráfico, mas pela sua “periculosidade”: o quanto era desejado pela polícia e a disposição que tinha para realizar roubos e outros delitos, como homicídio.

- E quando você ganha moral no crime, você ganha conceito. Eles começam a te olhar de uma forma diferente: “o menino tem conceito”, “o menino é gente boa”, “vamos promover ele”. Você sabia que lá no tráfico as pessoas também é promovida? (...) Comecei então a traficar, comecei a ir para a boca de fumo e a traficar. Comecei a vender a cocaína, a vender a maconha, a pedra, a traficar. E a cada dia que eu traficava, mais eu gostava, porque o dinheiro vinha fácil. (...) O Diabo colocou na minha mente pra se tornar um assassino, pra se tornar um sequestrador, pra se tornar até mesmo um psicopata. (...) Porque um abismo chama o outro. E agora já não traficava mais, já gerenciava o tráfico. Aquele menino já gerenciava. Eu não ficava mais sentado no beco vendendo drogas. Agora eu tinha muitas vezes que andar pelo menos uma vez no morro para saber como estava as vendas. Era o gerente da droga. Comecei a comandar, a dar ordens, a impor. (...) E aí eu tinha que dar a última palavra. E aí... uma pessoa lá de Cariacica17 17 Cariacica é um município vizinho da capital Vitória, pertencente à RMGV. que deveria acertar contas... ligavam pra mim: “E aí? O que você acha? Você que dá a última palavra”. (...) E o tráfico só foi trazendo glórias, só honra. (Pastor Washington, 2017)

Segundo Carolina Grillo, a “consideração” aumenta quanto mais procurado e odiado (pela polícia, por membros de facções rivais, por membros da sociedade civil) o criminoso é, quanto maior é seu valor como troféu de caça. Esse fato também é verdadeiro para o “conceito” no Bairro da Penha. O pastor Daniel, ao falar da conversão de um traficante no morro, aponta a perda que ela representa para o tráfico, dependendo do conceito do convertido: “Dependendo do peso que esse cara for - peso de homicídio, de loucura -, vai se perder um soldado bom, alguém de respeito”.

Não obstante a perda, no entanto, há quem encerre a carreira no tráfico. Os caminhos mais comuns para esse encerramento estão na morte ou no renascimento como nova criatura, conforme são chamados, em categoria nativa, os convertidos. É essa mudança de carreira pela conversão religiosa que analisaremos no tópico a seguir.

Fim da carreira no tráfico: se não morto, convertido

A fala dos pastores é unânime: o fim da carreira no tráfico que vislumbramos na seção anterior se dá com a morte - usufruindo ou não de uma posição de destaque na hierarquia - ou a conversão, que, de acordo com os relatos, acontece com a filiação à religião evangélica pentecostal.

- Seus amigos do tráfico, do crime, onde eles estão hoje? (Entrevistador)

- Na presença de Deus e alguns mortos. A maioria tá morto. (Pastor Wadlei)

- Não tem nenhum que saiu e tá [em outra situação]... (Entrevistador)

- Não. O último foi morto agora há pouco tempo. A maioria tá morto. (Pastor Wadlei)

- A minoria tá na presença de Deus... (Entrevistador)

- A minoria tá na presença de Deus. E outros estão presos. Porque fora isso, é prisão. (...) Mas quando sair já tem a sentença dele decretada de morte, se não for pra presença de Deus. (Pastor Wadlei)

A prisão é um caminho praticamente inevitável. Os pastores Wadlei e Washington tiveram várias passagens pela cadeia e lá tiveram contato com a fé evangélica pentecostal. Grupos externos de evangelismo “plantaram” igrejas dentro do presídio - evangelizaram presos que passaram a se reunir em culto a Jesus Cristo - e, a partir do processo do discipulado com os presos, ordenaram obreiros que foram subindo na hierarquia até alguns se tornarem diáconos, presbíteros e pastores, tendo uma igreja autônoma dentro da prisão.

Para a maioria, a conversão foi um processo lento, e as recaídas aconteceram até que eles se considerassem, de fato, convertidos. Darmon (2011DARMON, Muriel. “Sociologie de la conversion. Socialisation et transformations individuelles”. In: BURTON-JEANGROS, Claudine; MAEDER, Christoph (orgs). Identité et transformation des modes de vie - Identität und Wandel der Lebensformen. Zurique: Seismo, 2011, pp. 64-84.) explica a conversão como uma “obra de si”, uma transformação da pessoa exercida sucessivamente pelo próprio indivíduo e pela instituição em questão - no caso, a Igreja -, uma transformação radical do self (da identidade e do estilo de vida) que requer esforços e técnicas específicas e continuadas.

Segundo Bourdieu (apudDarmon, 2011DARMON, Muriel. “Sociologie de la conversion. Socialisation et transformations individuelles”. In: BURTON-JEANGROS, Claudine; MAEDER, Christoph (orgs). Identité et transformation des modes de vie - Identität und Wandel der Lebensformen. Zurique: Seismo, 2011, pp. 64-84.), a socialização familiar primária, explicada na sua teoria do habitus, gera produtos particularmente estáveis e resistentes à mudança, evocando a inércia das disposições adquiridas, o que explica o árduo empreendimento que é a conversão religiosa de um traficante. Essa seria, segundo os termos de Bourdieu, uma “conversão radical”. Esta se caracterizaria pela substituição de um habitus por outro, o que é designado pelo termo grego metanoia, que também aparece em várias passagens bíblicas com o significado de mudança na forma de pensar e de agir, em obediência a um novo estilo de vida baseado nas escrituras judaico-cristãs (GARCIA, 2016GARCIA, Ricardo. “O evangelho da metanoia”. Corrigindo o Foco, 2016. Disponível em: https://wilsonsandoval.com/2016/05/27/o-evangelho-da-metanoia/
https://wilsonsandoval.com/2016/05/27/o-...
)18 18 Em seção anterior, no entanto, já salientamos como mesmo nessa “conversão radical” pode-se observar aspectos de continuidade que, todavia, não serão objeto de análise neste artigo. .

O primeiro passo do processo de conversão é o que, na linguagem nativa, os entrevistados apontam como “aceitar Jesus”. Durante os cultos na Igreja Operando Deus, a parte do apelo (“Alguém quer aceitar Jesus como seu senhor e salvador?”) vinha usualmente na parte final do sermão, seguindo o padrão tradicional. Entretanto, em muitos dos casos, “aceita-se Jesus” mais de uma vez, o que é sinal, para os pastores, de que a conversão (no sentido da metanoia) não aconteceu. Para os pastores Wadlei e Daniel, a “decisão por Jesus” aconteceu algumas vezes até que o que eles consideram a “conversão genuína” viesse. Apesar de, entre o aceitar Jesus e a conversão, terem relatado “experiências com Jesus”, o estilo de vida do “bandido” e/ou do “drogado”, que viveram durante a carreira no tráfico e durante boa parte da vida, veio à tona algumas vezes, provocando recaídas.

- Fui pra cadeia dos condenados. Fiquei lá, aceitei Jesus, e Deus começou a trabalhar na minha vida ali. Comecei a aprender a Palavra, comecei a ler. (...) Minha ocasião foi que os meninos que estavam na cela onde eu estava, eles sempre faziam culto. Estavam sempre fazendo culto. E um dia eu peguei e participei do culto. Aí senti uma energia muito forte. E quando dei por mim já estava ajoelhado e pedindo esse Jesus. Falei: “Eu quero aceitar esse Jesus”. Daí comecei a conhecer a Palavra lá dentro, comecei a ler, e Deus começou a mostrar o sobrenatural dele lá dentro pra mim. Eu, sem entender o que era. (...) Eu fui orar pela vida de um vaso19 19 O termo “vaso” é uma expressão evangélica, oriunda do pentecostalismo, que se refere a um membro de igreja comum ou o que não ocupa uma alta posição hierárquica. - um rapaz - e eu olhava e via ele e uma porta branca em volta dele. E eu orava e via assim. Deus me mostrava. Nunca tinha experimentado a experiência de cristão assim tão forte. E eu vi... Eu falava assim: “Rapaz, o Espírito Santo de Deus me mostra uma porta do seu lado, e é provisão de Deus”. Depois que eu falei aquilo, eu fiquei pensando: “Rapaz, o que eu falei? O que é isso? Que doideira...”. Aí se fechou. Acabou o culto umas 8 horas, e quando deu por volta de umas 22h30 da noite, o sino toca do autofalante que... Quando vai falar alguma coisa, faz: “Blim-blom”. Aí o agente fala. O agente falou e chamou o nome do rapaz. Esse rapaz que eu tinha falado. Era a saída dele. Deus já estava me mostrando o sobrenatural: ele estava sendo liberto naquele dia. Aí ele veio e falou: “Pastor, Deus é contigo, o meu alvará cantou. Continua buscando a Deus”. (...) Só que aí [depois] eu já tinha se afastado. Estava triste, porque a opressão lá dentro é ruim demais. Logo no início eu fiquei sem visita, fiquei quatro meses sem visita, porque toda vez que acontecia um problema dentro da cela eles cortava, sancionavam a visita daquelas pessoas dentro da cela. Aí fiquei triste com aquilo e acabei se afastando. (...) Ainda continuei um pouco nas drogas. (Pastor Wadlei, 2019)

- Ele começou a contar a minha vida todinha. Eu levantei a mão e ele disse: “É você mesmo”. E ali me quebrantei, levantei minha mão, aceitei Jesus. Tinha uns 18 anos de idade. Quando fui ver, já estava lá na frente chorando. Espírito Santo de Deus me tocou. Eu não chorava por nada, e ali começou. (...) Mas a perca é maior do que o ganho, muito maior. [A perda] de todas as pessoas, não só do traficante. É maior. Eu, no meu primeiro ano de conversão, eu me afastei quatro vezes. Que é difícil, amigo. Não é fácil não... (Pastor Daniel, 2018)

Para os pastores, a conversão genuína só acontece quando há mudança persistente de comportamento. E, para que se chegue à mudança de comportamento, a presença da instituição é preponderante e a assiduidade nas atividades da igreja, as disciplinas espirituais (jejum, oração, leitura das escrituras e meditação), o estudo bíblico e, principalmente, a “obediência” são fundamentais. Darmon (2011DARMON, Muriel. “Sociologie de la conversion. Socialisation et transformations individuelles”. In: BURTON-JEANGROS, Claudine; MAEDER, Christoph (orgs). Identité et transformation des modes de vie - Identität und Wandel der Lebensformen. Zurique: Seismo, 2011, pp. 64-84.) explica que a conversão compreende uma duração, com etapas que marcam e organizam a transformação de identidade, e que essas etapas são acompanhadas de momentos críticos decisivos para a consciência do processo que os engloba, “confirmando” os produtos da ressocialização e permitindo a manutenção da conversão. Por isso, todo “novo decidido”20 20 Conforme visto, os entrevistados diferenciam os momentos de “aceitação de Jesus” e o momento posterior da “conversão genuína”. Daí não se referirem aqui a “novos convertidos”, mas a “novos decididos”, que decidiram aceitar Jesus, mas que não necessariamente já são “convertidos”, algo que só se poderá observar posteriormente, em seus comportamentos. é aconselhado a participar de uma série de cursos, seminários e palestras oferecidos pela Igreja Operando Deus, incorporando-se à rotina da congregação com atividades praticamente durante toda semana, integrando as “células”, onde é acompanhado ou liderado por um membro. Nesse novo ciclo social, passa a ser tutorado, ensinado e influenciado nos novos hábitos religiosos.

- E me converti depois de muitos anos e fui passando em todos os treinamentos possíveis, [em] um processo de libertação muito lento, pelas dificuldades que tinha, até chegar à minha conversão. Aí eu me empenhei ao extremo, em tudo o que era preciso fazer, e fui me aprofundando na Palavra, me aprofundando na obediência e, através disso, Deus foi me dando dons, e esses dons foram se aperfeiçoando, e tudo [em] que fui botando a mão foi crescendo, crescendo, crescendo, até chegar o jeito que estou hoje. (Pastor Daniel, 2018)

- O primeiro [seminário] que você passa, na sua conversão, é o Encontro Face a Face com Deus. Nesse encontro, você tem um tempo com Deus. Deus, ele fala poderosamente com você. E depois tem o Seminário de Iniquidade, [que] fala sobre iniquidade, o pecado que você acha que não é pecado. (...) Tem o Seminário de Honra, que te ensina a honrar pai e mãe, honrar seu líder. (...) Tem o Seminário de Cura Interior. Tem pessoas que têm o coração preso, não perdoa as pessoas, falam do amor de Cristo, mas não perdoa. E Deus tem feito o sobrenatural na minha vida através desses seminários. (Pastor Wadlei, 2019)

O pastor Wadlei acrescenta que a chamada “conversão genuína” acontece quando os outros enxergam a mudança no convertido, e não quando ele mesmo fala que mudou. Portanto, não se dá como uma reivindicação de identidade, como um discurso da modificação de si mesmo, não se tratando assim, de um trabalho biográfico. As pessoas mais próximas do convertido, sobretudo sua família e familiares, precisam atestar essa mudança. Ele explica que a conversão é um processo diário. De acordo com Darmon (Ibid.), é a força das disposições incorporadas e o poder das práticas de forma contínua que possibilitam o empreendimento da conversão. Segundo o pastor Wadlei, isso seria o “andar na Palavra de Deus”:

- O sinal da conversão é as pessoas verem em você a mudança, não você mesmo ver. Porque às vezes você fala assim: eu estou mudado. (...) As pessoas que têm que ver em você. A conversão, ela vem dentro da sua casa, de seus filhos testemunharem quem você é, a sua esposa falar quem você é. Porque quem vai falar quem você é realmente é quem acompanha você. Porque a Bíblia diz que o coração do homem é enganoso. Então a gente precisa se converter a cada dia. Cada dia tenho algo dentro de mim que tem que ser transformado. Aí que a gente vê a conversão nossa. (...) Por exemplo, eu era uma pessoa que gostava muito do dinheiro. Muito mesmo, muito, muito. Hoje em dia, nós precisamos do dinheiro, mas se você hoje me oferecer algo eu vou analisar: qual é a procedência disso? Você me chega com um celular desse aqui [mostra o meu celular]. Um celular desse aqui vale R$2.000. Aí você me vende ele por R$100. Eu nem ia querer saber a procedência desse celular. Eu já comprava na sua mão. E depois a procedência dele é ilícita. Então eu ia ganhar dinheiro em cima dele, R$1.900 em cima dele. Então isso já é uma conversão. (...) Porque antes você tinha um pensamento e hoje você já tem outro. Você não age da mesma forma. A conversão é o contrário daquilo que você era. Você converteu o seu pensamento, o seu jeito de ser. (...) Então a conversão, ela vem aí. E pelo ouvir a Palavra de Deus também né, varão21 21 A palavra “varão”, entre evangélicos, designa um homem que é forjado na fé cristã (no caso da mulher, “varoa”). Aparece muito nas versões mais clássicas da Bíblia traduzida para o português. Também é mais utilizada pelos pentecostais. . Porque você tem que sempre andar na Palavra de Deus. (Pastor Wadlei, 2019)

O pastor Daniel também põe em destaque, para a percepção de uma “conversão mesmo”, o endosso dos familiares e pessoas próximas e o aspecto de continuidade e constância que atesta o “andar na Palavra de Deus”, conforme se observa no uso do gerúndio no nome da própria igreja.

- Como você sabe que é conversão mesmo? (Entrevistador)

- Ele não fica firme. Ele volta a praticar as coisas que ele praticava antes. (Pastor Daniel)

- Existe alguma marca que o senhor associe à conversão desse criminoso, que quando ele mostra você fala que ele é “nova criatura”, de fato convertido? (Entrevistador)

- Mudança de comportamento, dedicação ao Evangelho. Não é uma atitude que faz com que o cara mude. É algo contínuo. Igual o nome aqui da igreja. Não é “Deus Operou” ou “Deus vai Operar”, é “Operando”, é contínuo. É ele continuando ali que vai demonstrar que ele se converteu. (...) São os frutos dentro da casa dele, com a família, com a esposa, com os filhos, comportamento, a maneira de falar, a maneira de lidar... É um bom pagador, paga as dívidas dele, trabalha, tem responsabilidade, não dá mal testemunho, consegue manter isso. E não só fazer isso por um tempo. Aí ele se converteu. A pessoa quando aceita Jesus ela não se converte. Ela se decide. Então ele não é chamado de “novo convertido”. É chamado de “novo decidido”. Porque a conversão é um processo. (Pastor Daniel)

A essa nova carreira advinda da conversão cabe uma nova identidade, para si e para os outros. Não mais a identidade de “bandido”, mas a de “crente”. É à constituição dessa nova identidade que nos dedicaremos no próximo tópico.

A nova identidade de crente

Segundo Anselm Strauss (1999STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras: A busca de identidade. São Paulo: Edusp, 1999.), a identidade está associada a avaliações decisivas feitas de nós por nós mesmos e pelos outros. Fica claro que a conversão, o processo de mudança da carreira do bandido para a carreira do crente, a mudança de identidade, o fato de, em expressão nativa, tornar-se “nova criatura”, nesse caso, não ocorre se não houver a decisão do próprio ator de submeter-se a outras pessoas - o pastor e demais membros -, à estrutura (igreja) e às regras (disciplinas espirituais), de modo a ser afetado continuamente a partir desses sujeitos e objetos.

O nome tem uma grande importância nessa mudança de identidade: o antigo Brown, gerente geral do tráfico do Bairro da Penha, agora é o pastor Washington. Da mesma forma são o pastor Wadlei e o pastor Daniel, anteriormente conhecidos por seus nomes ou apelidos na rua. Essa é a nova forma, o novo status com que são vistos agora, por eles mesmos e pela igreja, e, posteriormente, fora da estrutura, com o reconhecimento da família, dos vizinhos e dos próprios traficantes, mesmo os que viveram a carreira do tráfico junto com eles.

A linguagem também mudou. Tanto o modo de falar, as expressões, quanto o modo de se vestir e tratar os outros são agora pessoas diferentes. Expressões e jargões típicos do meio evangélico são usados constantemente: “varão”, “vaso”, “oh, glória”, “eita, glória”, “glória a Deus”, “tribulação”, “provação”, “irmão”, “querido”, “amado”, “senhor”, “promessa”, “revelação”, “Satanás”, “Diabo”, “jejum”, “oração”, “preço”, “propósito”, “humilhação”, “testemunho”, “consagração”, “almas”, “fazer a obra”, etc. Usar roupa social, terno e gravata, andar arrumado, cheiroso, com barba e o cabelo aparados - exceto em épocas de “propósitos de humilhação” -, e com uma Bíblia, seja nas mãos ou debaixo do braço, são parte da identidade dos membros que ocupam cargos na Igreja Operando Deus.

A partir de uma nova visão de mundo, as situações são classificadas de uma nova forma. Os momentos de dificuldades agora são classificados como “provas”, que servem para reforçar o caráter e a identidade, tornando-os mais fortes, mais firmes e estabelecidos na fé. Os momentos de dedicação às disciplinas espirituais são chamados de “consagração”. A realização do trabalho agora é “fazer a obra”. Deus “fala” com o crente de diversas formas: por meio da própria Bíblia Sagrada, de situações, visões e sonhos (revelações), da Igreja (pastores e outros irmãos), da oração. O inimigo agora não é mais aquela pessoa contra a qual existem disputas ou desavenças, mas Satanás, que veio “para matar, roubar e destruir” e usa a vida de outras pessoas para fazer o mal, ludibriando-as, já que é o “pai da mentira”. Para que um determinado objetivo difícil seja alcançado, são feitos “propósitos”. Mesmo o trato com o dinheiro e a “prosperidade” agora têm um novo sentido: parte do dinheiro é destinado a “primícias, dízimos e ofertas” para a “obra de Deus”, e “prosperar” significa ter para se sustentar e para ajudar os outros.

Os comportamentos da vida pregressa no crime ou mesmo aqueles advindos de outras socializações, contraditórios com a vida do crente e as doutrinas da Igreja Operando Deus, sempre são confrontados, sobretudo nos momentos de provas. A “base de resistência” do crente, fundamental para enfrentar as provas e ser “aprovado”, está fundamentada nos ensinamentos bíblicos e na presença na própria Igreja Operando Deus, que oferece diversas atividades em seu ambiente, justamente para que o crente possa passar a maior quantidade de tempo possível “na presença de Deus”. As concepções de realizações e valores passam a ser limitados aos daquele grupo social, cujas vivências e trocas de experiências ajudam o “crente em prova” a chegar a uma solução/decisão que supere o dilema vivido. O fato de passar a maior parte do tempo envolvido nas atividades eclesiais só reforça sua nova identidade e consolida a nova visão de mundo. Ademais, é nas provas que a identidade do crente é forjada. Em sua obra, Strauss (1999STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras: A busca de identidade. São Paulo: Edusp, 1999.) cita Kenneth Burke, que afirma ser nas zonas de ambiguidade - que, no caso do crente, seriam os momentos de provas - que ocorrem as transformações.

Os importantes testemunhos22 22 Ultrapassaria os limites deste artigo nos dedicarmos mais aos testemunhos e à sua importância na ligação entre os mundos do tráfico e da Igreja. Quanto ao tema, ver os trabalhos de Mariana Côrtes (2012), Carly Machado (2014) e César Teixeira (2016). do ex-traficante são rememorações de atos passados, agora a partir da nova terminologia pentecostal. Eles são frutos de atos da vida pregressa no tráfico vistos com as lentes e as perspectivas pentecostais. Reavaliam seus atos de transgressão e suas consequências como “desobediência a Deus”, “permissão de Deus”, “agir de Deus”, “castigo de Deus”, “providência divina”, “plano de Deus” para que ele chegasse à posição de evangelista, diácono, presbítero ou pastor. Os testemunhos, relacionados à carreira no crime ou já na carreira de crente, são esse processo de rememoração no qual estão implícitos seletividade e reconstrução do acontecimento real, enfatizando certos aspectos e negligenciando outros, o que explica a suposta extravagância de alguns deles.

Uma das características da identidade dos crentes também descrita no testemunho do pastor Washington é a ênfase na “guerra espiritual”23 23 Ver início da segunda seção. Mais uma vez, a batalha espiritual tem centralidade especialmente nas igrejas neopentecostais, mas é fundamental também em outras agremiações pentecostais ou mesmo outras denominações protestantes e até católicas. Nesse caso, tem destaque aqui sua importância dentro de uma igreja pentecostal assembliana, como na Igreja Operando Deus. , na luta do bem contra o mal, cuja perspectiva passa a fazer parte da vida como um todo: o eterno duelo entre Deus e o Diabo, o sagrado e o profano.

- Ali era uma prisão de segurança máxima. Era como se fosse um caixote, uma Arca de Noé. Era tudo quadrado, tudo escuro, tudo tampado. Lá estava eu. Tinha um jovem que eu amava muito, tinha cuidado dele, tratado dele na igreja [da prisão]. E ali a cadeia estava em rebelião, um motim. E as pessoas que estão marcadas para morrer eram as primeiras que pegavam. Pegaram umas dez pessoas para matar. Eu estava há três dias no óleo, pagando o preço24 24 A expressão “estar no óleo” significa que o crente estava revestido do poder do Espírito Santo, após se consagrar em jejum e oração. “Pagar o preço”, nesse caso, diz respeito a sacrifícios, como ficar em jejum, sacrificar a carne, passar fome, no intuito de vivificar o espírito, estando mais próximo de Deus para o cumprimento de propósitos. , e dizia para Deus: “Muda. Eu não aceito essas pessoas morrerem”. No quinto dia começaram a matar, começaram a arrancar cabeça e jogar a cabeça. Arrancavam os dedos e jogavam os dedos, o pé. Eu falei: “Deus, me dá autoridade para entrar lá no meio da reunião do demônio”. E aí o Espírito Santo falou bem assim: “Pega essa calça e pega a Bíblia. Leva a calça e leva a Bíblia. Porque você entrou numa missão agora”. Nós fizemos um grupo de evangelismo e missão e subimos. Subimos no pavilhão do presídio. Aquela reunião de um monte de homem, tudo com faca, com pedaço de ferro na mão, tudo endemoniado, você via o demônio. Tudo ensanguentado. E três pessoas marcadas pra morrer sentado. Uma coisa que nunca vi na vida: eu vi uma pessoa sentada, com uma cabeça cortada na mão. E o outro falando assim: “A próxima cabeça vai ser a sua”. Outro em pé fala assim pra mim: “Quem deixou este homem subir aqui?”. “Não era para os irmãos, para a Igreja chegar aqui”. Eu falava assim: “Deus mandou eu vir aqui e falou: ai de vocês se tocar neste aqui”. Aquele jovem olhou assim pra mim. Nós pegamos a Bíblia, colocamos na mão dele, pegamos a calça e falamos assim: “Agora, a partir de hoje, você aceita Jesus porque Deus te escolheu!”. Ele chorando falou: “Eu vou morrer”. Eu falei: “Você não vai morrer”. A reunião mudou o quadro: enquanto cem estava do lado de lá a favor de Deus, cem estava contra. Havia aquela luta, um lado falava: “Ele vai morrer”; o outro: “Não vai”. Ele falou: “Pastor, pode descer. Se Deus falou que tem grande obra na vida dele, vamos ver se Deus vai dar o livramento”. Descemos e começamos a orar. Fizemos um culto debaixo da chuva, de joelho, dizendo: “Deus, salva aquela alma. Salva aquela alma!”. Quando deu uma hora da manhã, eles desceram com aquele homem e falaram assim: “Esse aqui não vai morrer não”. Aquele jovem passou no vale da sombra da morte e Deus não deixou ele morrer. (Pastor Washington, 2017)

Conforme salienta Montes (2012MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: Entre o público e o privado na religiosidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p. 70), “entre a prosperidade da que o fiel já tem direito desde a sua conversão e sua vida presente interpõem-se as forças do Mal, (...) e é para combatê-las que o fiel trava incessantemente, em todas as frentes, a incansável ‘guerra espiritual’”. “A participação na liturgia dos cultos de sua Igreja”, ela completa, “é o modo como o fiel trava esses infindáveis combates” (Idem).

Conforme se pode notar nos relatos apresentados até aqui, os ex-traficantes gastaram muito tempo e energia em disciplinas como jejum, oração, estudo e leitura da “Palavra”, além de terem participado de diversos cursos, seminários e encontros promovidos pela Igreja Operando Deus até que chegassem ao patamar atual da carreira de crente. E continuam participando intensamente das atividades, já que essa é a proposta da igreja para todos os membros. Aqueles de posição hierárquica maior, que detêm responsabilidades maiores, ainda têm o fardo de terem que ser exemplo para os outros.

Na teoria, a carreira do crente se estende daqui para a eternidade: o “salvo” será crente até a sua morte, e o seu caráter, sua identidade, nunca estará acabado aqui neste plano. Na Igreja Operando Deus, esse desenvolvimento da identidade do crente pode significar cargos de liderança ou mesmo uma grande influência entre os irmãos, mesmo que em um cargo não tão notório. Nesse ponto, não há como não notar, em meio a disparidades radicais, semelhanças nas trajetórias que compõem a carreira do traficante e do crente ex-traficante. Um depoimento do próprio pastor Daniel sobre sua vida no tráfico deixa isso transparecer.

- E tráfico de droga é aquilo, quanto mais coisas erradas você vai fazendo, desde que se atue na lei do tráfico. Igual existe a lei de Deus, você quer crescer, você obedece a Palavra, a lei do tráfico, você quer crescer, obedece às leis do tráfico. Ali foi indo, o trabalho crescendo, desenvolvendo ali dentro, ganhando respeito, moral, fazendo tudo certinho, executando o que tinha que executar. E ali a gente foi desenvolvendo, criando um nome na favela. (...) Eu já cheguei a gerenciar uma droga, num prazo bem curto de tempo. Aquilo é exercer um papel de gerente do tráfico de drogas, num prazo muito curto de tempo. Já fiz isso. (Pastor Daniel, 2018)

Portanto, assim como, na vida criminosa, o “conceito” permitia a ascensão do novo traficante nas hierarquias do tráfico, a dedicação à causa religiosa permite a ascensão do novo convertido na Igreja. No tópico seguinte, tentaremos mostrar como essas duas trajetórias, no crime e na Igreja, podem então ser explicadas por uma lógica comum, traduzida pela ideia da dádiva, ou dom, e sua lei da tripla obrigação: dar, receber e retribuir (MAUSS, 1986MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1986.).

Essa perspectiva não é inédita. Grillo (2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.), já citada, faz uso de expediente semelhante na análise do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, referenciando trabalho anterior, realizado sob a mesma inspiração, por Alba Zaluar:

Zaluar (2004), por exemplo, chama a atenção para a maneira como os chefes do tráfico se fortalecem como “patrões” por meio da distribuição de dádivas (...) O que permite a produção, reprodução e replicação de relações sociais sob os moldes da firma e da facção não é apenas a instrumentalização da violência e a circulação de capital e mercadorias, mas também a composição de alianças políticas seladas pela troca de dádivas de diversas naturezas. A formação de alianças sob os moldes “tradicionais” da “patronagem” brasileira contribui para estabelecer a paz mínima necessária ao desenvolvimento deste comércio (Ibid., p. 68).

De modo semelhante, iremos contrapor e relacionar o funcionamento do tráfico e da Igreja Operando Deus do Bairro da Penha como sistemas de circulação de dádivas capazes articular dívidas, lealdades, afetos, hierarquias, favores etc.

A dádiva no tráfico e entre os fiéis

Ao analisar a dádiva ou dom, Maussafirma que se trata de uma obrigação, um dever e uma estrutura que organiza seus elementos, um todo que inclui tanto os homens como as coisas. Nessa estrutura, Mauss leva em conta a existência do interesse e a relação por desprendimento. Ele considera a dimensão simbólica da dádiva um fato central para a construção do vínculo social, que excede a dimensão utilitária e funcional do bem, criando verdadeira aliança entre doador e receptor. Em sua compreensão, a dinâmica da sociedade é simbólica e ambivalente, formatada como um círculo de doações, recebimentos e devoluções de bens/símbolos entre os homens.

É por meio da distribuição de dádivas, segundo seus interesses, que os chefes do tráfico tornam empregados e vizinhos dependentes das suas benesses. O dom é o contraponto da violência. Por meio dessa troca de dádivas - dar, receber, retribuir - é que se criam as alianças, fundando relações de reciprocidade e poder fundamentais para a configuração das dinâmicas do tráfico. Conforme salienta Grillo (2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., pp. 68-69), “a economia da força e o mercado de drogas articulam-se a uma ‘economia e moral do dom’, de maneira a constituir e perpetuar uma determinada formação político-econômica”.

Apesar de aparentemente livre e gratuito, o dom é coercitivo e interessado. Quem o recebe deve retribuí-lo com um “contradom”, já que, a partir da doação, se estabelece uma dívida a ser quitada. No interior da firma, no tráfico, as trocas promovem contratos políticos que viabilizam a produção e a reprodução da formação hierárquica, gerando alianças e dominação. Os donos do morro (patrões) nomeiam um responsável, normalmente o gerente geral, para controlar o funcionamento das bocas de fumo de determinada área e assumir o poder sobre a resolução das disputas locais. O patrão adianta as mercadorias para o gerente geral e o processo continua hierarquia abaixo até os vapores, que distribuem as drogas na “pista”25 25 “Na pista” é uma expressão usada para diferenciar o tráfico feito “no morro” daquele feito “na pista” ou “no asfalto”, que seria a venda de drogas feita para um público de classe social diferente da dos traficantes, localizado fora dos locais onde o tráfico concentra as bocas e de onde costuma haver conflito armado entre facções rivais. . O movimento de retorno do pagamento (em movimento de retorno hierarquia acima) é baseado na noção de “dívida” e o não pagamento pode custar a vida do devedor. O sistema de consignação é articulado em uma hierarquia mortal entre credor e devedor.

Por isso, a firma é vista como um sistema de distribuição de propriedades e responsabilidades (bocas, cargas) ou, na corruptela nativa, “responsas”, que pertencem ao dono do morro e são administradas pelos gerentes. O ato de distribuir entre os bandidos essas propriedades e responsabilidades consiste em uma dádiva, dada mediante a consideração ou o conceito que os bandidos adquirem nos níveis mais abaixo da hierarquia. Ao distribuir essa dádiva, o patrão abre mão de uma parte considerável do seu lucro, mas ganha a fidelidade de seu funcionário. Fortalece, assim, seus laços de reciprocidade com bandidos influentes na comunidade onde quer manter a legitimidade do seu poder, mas, ao mesmo tempo, demarca sua distância e superioridade. Todo bandido que entra para o tráfico tem o sonho de ser reconhecido pelo seu empenho, de ser considerado e, consequentemente, presenteado com um bom cargo na hierarquia, uma boa responsa.

Se a organização do tráfico de drogas é articulada socialmente a partir da distribuição de um regime de dádivas (responsas) advindas da consideração ou conceito dos bandidos, a Igreja Operando Deus tem um mecanismo parecido. No tráfico, a dádiva é a responsa (cargos e cargas) dada pelos donos do morro e recebida pelos gerentes gerais (que vendem a mercadoria e dela tiram o seu salário), que depois retribuem ao patrão com os lucros da venda das drogas. Na Igreja Operando Deus, as dádivas seriam as próprias “almas”, cujo cuidado é a “incumbência de confiança” determinada pelo pastor ao fiel ocupante de cargo hierárquico inferior.

O chefe do tráfico dá a mercadoria (dádiva) relativa ao cargo, que é recebida pelo gerente, que a vende (“dá”), recebe seu salário e retribui ao patrão com os lucros. De modo semelhante, o pastor dá a incumbência de confiança sobre a alma (dádiva) relativa ao cargo do presbítero, por exemplo, que exerce a assessoria do pastoreio das almas da igreja em retribuição aos ensinamentos e cuidados do pastor com sua vida e à confiança depositada pelo pastor no cuidado com as demais “ovelhas”. O atributo análogo ao conceito na igreja seria a fidelidade com o pastor e a comunidade (conjunto das almas) na realização do bom serviço. Quanto mais considerado ou conceituado for o traficante, maior a chance de subir na hierarquia e ganhar mais dinheiro e mais poder; quanto mais fiel for o crente, maiores são as chances de ele ser ordenado a cargos maiores, cuidar de mais almas e ganhar mais prestígio no meio eclesial.

- A Bíblia diz que quanto mais você busca, mais poder você adquire. Entendeu? Mais envolvimento, o amor pelas almas. Você saber compreender e amar as pessoas e se preocupar com as pessoas. Porque um pastor é isso: se preocupa com as ovelhas. A Bíblia diz que o pastor dá a sua vida pelas ovelhas. (...) O sacerdote é um homem que tá cuidando de você, tá orando por você, tá pagando um preço por você, tá jejuando. (...) Tava orando hoje de manhã cedo na igreja lá em Flexal, Cariacica. Aí a irmã foi e falou assim: “Tem que ir lá na casa do meu irmão e fazer oração, porque ele tá doente. Tá acometido por uma enfermidade nas vistas; tá quase ficando cego”. Aí eu saí e fui lá. E precisando trabalhar, mas mesmo assim, deixo muitas vezes de fazer uma venda para poder cuidar de uma alma. (Pastor Wadlei, 2019)

A hipótese deste trabalho é a de que, de forma um pouco diferente do que ocorre no tráfico, além da dádiva horizontal, apresentada até agora, entre os fiéis em nível de relativa igualdade, apesar da hierarquia dentro da igreja, há também na comunidade eclesial uma dádiva vertical, concedida diretamente por Deus, que é a salvação, uma dádiva abstrata que possibilita a transformação da identidade do “bandido” em “crente”. É essa dádiva da salvação que faz o ex-criminoso sair em busca de outros criminosos nas bocas de fumo, arriscando sua própria vida, por acreditar na possibilidade de salvação e transformação dessas pessoas.

Ademais, a salvação se encaixa em todos os requisitos do que seria a dádiva de Mauss. Ela é um bem simbólico circulante que leva em conta tanto a existência do interesse quanto as ações por desprendimento e altruísmo, construindo vínculos sociais com a tripla obrigação de dar, receber e retribuir. Tais vínculos constituem verdadeiras alianças entre doador e receptor, formatando um círculo de doações, recebimentos e devoluções entre os homens.

- Eu era uma pessoa que deveria estar morto. No inferno. Tudo o que a gente faz, a gente colhe. Eu já fiz muitas coisas ruins. Então eu não merecia nem viver. E Deus, Ele entrou na minha história, rasgou o escrito de dívida e me deu uma oportunidade. Então é como se fosse um hospital onde Deus opera na vida das pessoas. Ele arranca o coração de pedra e transforma em coração de carne. Pega um camarada igual eu, sem sentimento, sem coração, que se tornou um criminoso, pessoa ruim, que era capaz de fazer qualquer coisa que imaginasse, e arrancou aquele coração ruim, que não tinha vida, que não dormia direito, disposto a matar, e transformou meu coração. (...) Eu não aceito dar menos pra Deus do que eu dei pro Diabo. Se eu era capaz de fazer o tanto de doidera que eu já fiz na minha vida por Satanás e pelo dinheiro [ele mostra uma cicatriz em forma de cifrão que tem na mão, provavelmente feita com uma faca], por que pra Deus eu vou fazer menos? Eu não aceito isso. (Pastor Daniel, 2018)

Levar a salvação adiante, portanto, é uma obrigação do crente que foi salvo. A salvação é uma dádiva dada do alto, por Deus, por intermédio da agência da salvação, que é a Igreja. O crente a recebe e tem, agora, a obrigação de passá-la adiante. Esse movimento pode acontecer simultaneamente de forma interesseira e altruísta. O ato de passar a salvação adiante é, ao mesmo o tempo, um ato de dar ao próximo essa dádiva e um de retribuir a dádiva recebida a Deus e à sua igreja. Ao realizar a pregação da salvação, o crente estará obedecendo a ambos, contribuindo para o crescimento e a expansão do empreendimento religioso no qual está envolvido.

Conforme salientado em momentos anteriores, é impossível negar a possibilidade de circulação de dádivas entre os dois mundos aqui analisados. Por exemplo, traficantes podem ser úteis prestando favores a igrejas na disputa por território diante de outras religiões. É o que ocorre com religiões de matriz africana, cada vez mais escanteadas nos territórios, perdendo espaço para igrejas neopentecostais. Mesmo assim, as afinidades internas aos empreendimentos do tráfico e da Igreja esbarram nas lógicas distintas em que operam tais empreendimentos, e o recebimento de dádivas de reponsas e cargos de gerente serão de pouco valor na igreja, da mesma forma com que dádivas de salvação e indicações como diáconos terão pouco valor no tráfico, o que reforça a autopercepção de metanoia entre os envolvidos no processo de conversão religiosa.

Cumpre ressaltar ainda que, conforme destacado nos parágrafos anteriores, há uma assimetria na circulação de dádivas nesses dois mundos, que aparece na presença da dádiva vertical, concedida por Deus, na circulação de dons dentro da igreja e da comunidade religiosa como um todo. A capacidade de reiniciar a circulação de dádivas por meio dessa espécie de rasgo vertical em suas circulações horizontais, inclusive, pode ajudar a explicar por que, aparentemente, a circulação de dádivas na igreja tem uma maior capacidade de desligar os sujeitos da circulação de dádivas do tráfico do que outras possibilidades que poderiam se apresentar como alternativas, como a constituição de família, inserção no mercado de trabalho legal ou políticas públicas destinadas à reinserção social de criminosos.

Ainda que essa seja uma hipótese que demandaria a análise de uma série de outros fatores26 26 Por exemplo, a comunidade religiosa pode se mostrar mais estável ou constituir identidades sociais mais fortes que as outras por algum outro motivo que não exatamente a presença de uma dádiva vertical envolvendo Deus. antes de demonstrar alguma consistência, não deixa de se mostrar interessante para pensarmos por que o caminho da conversão tem aparecido com tanto destaque como alternativa ao tráfico na narrativa dos entrevistados diante de suas experiências pessoais nos dois mundos, do crime e da igreja, e nos estudos acadêmicos sobre a criminalidade urbana, conforme mostra citação de Misse (2008MISSE, Michel. “Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, vol. 8, n. 3, pp. 371-385, 2008.) na primeira sessão deste trabalho.

Considerações finais

No presente artigo, utilizamos a noção de carreira para analisar os períodos de vida de três entrevistados no tráfico de drogas e, posteriormente, como pastores na Igreja Operando Deus do Bairro da Penha, em Vitória, Espírito Santo. Encontramos, na comparação entre os dois mundos, particularidades, mas também equivalências. Uma das semelhanças são os diversos níveis hierárquicos presentes nas duas carreiras e o capital simbólico27 27 Fazemos uso aqui do conceito de Bourdieu (2001), que designa uma espécie de prestígio social que indivíduos acumulam e em que investem para galgar posições dentro de um campo social específico que valoriza aquelas características convertidas nesse capital. Por exemplo, no microcosmo social do campo religioso, um acúmulo desse capital simbólico por meio de conhecimento religioso, serviços prestados à Igreja e outros permite ao religioso acesso a posições melhores no campo, passando de diácono a pastor, de padre a bispo etc. que influencia a progressão dos agentes dentro dessas hierarquias: no tráfico, conceito ou consideração; na igreja, fidelidade.

Além disso, a noção de carreira auxiliou a esclarecer as transformações de identidade de traficante a crente. Uma das mais marcantes é a mudança de nome: nesse segundo momento, o nome próprio é antecedido por um título (por exemplo, pastor Daniel Rocha, diácono Kleiton Quirino, evangelista André)28 28 Exemplos de outros membros da Igreja Operando Deus, além dos pastores entrevistados. . Outra mudança se dá na linguagem, incluindo as expressões, os jargões, estilo de se vestir, se cuidar, se comportar e até as manias do mundo religioso em seu repertório expressivo. Finalmente, há uma transformação no estilo de vida e nas interações com os elementos do mundo.

A noção de conversão trazida por Darmon (2011DARMON, Muriel. “Sociologie de la conversion. Socialisation et transformations individuelles”. In: BURTON-JEANGROS, Claudine; MAEDER, Christoph (orgs). Identité et transformation des modes de vie - Identität und Wandel der Lebensformen. Zurique: Seismo, 2011, pp. 64-84.), como uma obra de si - uma transformação da pessoa exercida sucessivamente pelo próprio indivíduo e pela instituição em questão que requer esforços e técnicas específicas -, ajudou a visualizar esse conceito, oriundo do campo da religiosidade, operando nas mais diferentes “carreiras” às quais é exigida adaptação. Ajudou, inclusive, a analisar a conversão para a carreira de crente de forma mais cuidadosa, enxergando nas “provas” momentos necessários relacionados ao processo de conversão, momentos em que a “aprovação” trazia firmeza à nova identidade, consolidando a trajetória na nova carreira.

Em ambos os casos, no tráfico e na Igreja, ficou claro o modo como as empresas (a do crime e a da fé), suas estruturas físicas e hierárquicas e suas funções, têm condição de existência na circulação das dádivas das “responsas” e da “salvação” respectivamente. Essas dádivas são responsáveis também pela perpetuação e pelo crescimento dos seus respectivos empreendimentos.

A salvação produz a circulação de diversos outros tipos de dádivas, como ajudas, favores, serviços e presentes, que podem ser retribuídos horizontalmente, com contradons semelhantes, ou mesmo verticalmente, por meio de bênçãos de diversos tipos, inclusive materiais, concedidas diretamente por Deus. Assim, os laços religiosos estabelecidos entre os fiéis favorecem a circulação de benefícios materiais, afetivos e cívicos. Esses laços de solidariedade e confiança propostos no seio da congregação tornam as igrejas evangélicas um local seguro em meio ao caos das comunidades.

Num espaço social como o das favelas, no qual a insegurança é tão presente no cotidiano, onde o sentimento de desrespeito e de baixa confiança em si mesmo e nas instituições é muito intenso, a rede dos evangélicos e dos laços de afeto e confiança gerados (e/ou fortalecidos) a partir de tal pertencimento religioso têm uma dimensão fundamental na rotina, não só dos que se filiam a esta religião e participam de suas atividades litúrgicas, mas também para os que vivem próximos a esta realidade e percebem neste meio uma possibilidade buscar “acolhimento” em momentos de necessidade. É como se a percepção da existência de um lugar ou grupo no qual é possível obter proteção material, emocional e espiritual já fizesse o indivíduo dispor de alguma sensação de segurança (VITAL DA CUNHA, 2009VITAL DA CUNHA, Christina. “Da macumba às campanhas de cura e libertação: A fé dos traficantes de drogas em favelas do Rio de Janeiro”. Revista Tomo, Dossiê Sociologia da Religião, n. 12, pp. 230-265, 2009., p. 236).

Por tudo isso, acreditamos que a análise das narrativas de vida dos pastores elencados no presente estudo, quando colocadas em perspectiva diante das condições materiais de desenvolvimento do Bairro da Penha e analisadas com as categorias sociológicas que mobilizamos ao longo do trabalho, podem nos ajudar a compreender essa dinâmica de transição entre o mundo do crime e o mundo da religião em regiões empobrecidas dos centros urbanos brasileiros. Assim, o estudo sobre a Igreja Operando Deus se junta aos diversos outros trabalhos que vêm sendo produzidos pelas ciências sociais brasileiras sobre a relação entre religião e criminalidade nas periferias urbanas. Contribui, desse modo, para a composição de um quadro analítico capaz de lançar luz sobre questões ao mesmo tempo bastante tradicionais - que tocam temas de interesse da sociologia desde sua fundação - e profundamente contemporâneas - que se concentram nos movimentos sincrônicos de uma sociedade brasileira em transformação, com altas taxas de criminalidade e expansão da influência política e social das igrejas evangélicas.

Referências

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  • GARCIA, Ricardo. “O evangelho da metanoia”. Corrigindo o Foco, 2016. Disponível em: https://wilsonsandoval.com/2016/05/27/o-evangelho-da-metanoia/
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  • GARCIA, Célio de Pádua. (Neo)pentecostalismos e sociedade: Impactos e/ou cumplicidades. São Paulo: Fonte, 2017.
  • GILL, Scherto; GOODSON, Ivor. “Métodos de história de vida e narrativa”. In: SOMEKH, Brideget; LEWYN, Cathy (orgs). Teoria e métodos de pesquisa social. Petrópolis: Vozes, 2015, pp. 215-224.
  • GLYNOS, Jason; HOWARTH, David. Logics of Critical Explanation in Social and Political Theory. Londres: Routledge, 2007.
  • GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
  • JØRGENSEN, Marianne; PHILLIPS, Louise. Discourse Analysis as Theory and Method. Londres: Sage, 2002.
  • JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin. “Entrevista narrativa”. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 90-113.
  • MACHADO, Carly. “Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: Testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias”. Horizontes Antropológicos, n. 42, pp. 153-180, 2014.
  • MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Sociabilidade violenta: Por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano”. Sociedade e Estado, vol. 19, n. 1, pp. 53-84, 2004.
  • MARIZ, Cecília Loreto. “A teologia da batalha espiritual: Uma revisão da bibliografia”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, n. 47, pp. 33-48, 1999.
  • MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1986.
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  • TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. “O testemunho e a produção de valor moral: Observações etnográficas sobre um centro de recuperação evangélico”. Religião e Sociedade, vol. 36, n. 2, pp. 107-134, 2016.
  • VITAL DA CUNHA, Christina. “Da macumba às campanhas de cura e libertação: A fé dos traficantes de drogas em favelas do Rio de Janeiro”. Revista Tomo, Dossiê Sociologia da Religião, n. 12, pp. 230-265, 2009.
  • VITAL DA CUNHA, Christina. “Religião e criminalidade: traficantes e evangélicos entre os anos 1980 e 2000 nas favelas cariocas”. Religião e Sociedade, vol. 34, n. 1, pp. 61-93, 2014.
  • 1
    Neste ponto, é importante frisar que, ao falarmos de crime, acompanhamos Carolina Grillo (2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.), que anuncia a categoria crime como “não apenas uma infração penal, mas (...) uma substanciação do contexto em que se inscrevem uma série de práticas ilegais e trajetórias pessoais” (p. 1). Na linguagem nativa, a autora continua, “o crime denota tanto um universo de ação e significação - o mundo do crime - bem como um estilo de vida - a vida no crime - e nesse interstício, ele pode ser representado como um tipo de caminho marcado pelo engajamento em ações incrimináveis e traçado sob uma margem de contingências que lhe é peculiar” (Ibid., p. 1).
  • 2
    Quando falamos sobre a identidade de “crente”, são necessários esclarecimentos, haja vista se tratar de termo por vezes carregado de preconceitos. Assim como no que diz respeito à categoria “bandido”, classificar a nova carreira e identidade dos entrevistados como de “crentes” faz jus à própria categoria nativa que mobilizam para realizar essa identificação. Por exemplo, em uma das entrevistas, o pastor Washinton afirmou: “Passou sete dias depois, fugi do hospital e voltei pra casa. Falei: “Meu Deus, eu sou um crente. Agora o que eu tenho que fazer? O Diabo quer me levar pro tráfico de novo, mas eu não posso”.
  • 3
    As ondas de expansão do pentecostalismo no Brasil têm início com a chegada da Assembleia de Deus, passando por uma segunda onda em que aportam no país outras igrejas vinculadas ao pentecostalismo clássico, culminando, na década de 1970, no surgimento das variantes tidas como neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Este último grupo se destaca pelo uso de meios de comunicação de massa como canal de evangelização (por exemplo, Rede Record) e por promover “uma valorização da autoestima de seus fiéis, de forma que abandonaram a clássica concepção pedagógica do sofrimento e da dor e concentraram suas forças nas ‘lutas’ contra satanás e seus demônios, a fim de alcançarem, além da salvação da alma, libertação da opressão demoníaca, saúde para o corpo e (...) prosperidade financeira” (GARCIA, 2017GARCIA, Célio de Pádua. (Neo)pentecostalismos e sociedade: Impactos e/ou cumplicidades. São Paulo: Fonte, 2017., p. 117). Apesar da inevitável tensão entre igrejas pentecostais e neopentecostais, devido a suas teologias potencialmente conflitantes, não deixa de haver importantes trocas, influências recíprocas e compartilhamento de espaços nesse universo, e mesmo entre pentecostais, religiões protestantes tradicionais e catolicismo.
  • 4
    Disponível (on-line) em: https://censo2010.ibge.gov.br/
  • 5
    Amílcar Cardoso Vilaça de Freitas (2016FREITAS, Amílcar Vilaça de. E isso é bandido? Engajamentos à vida do crime na Região Metropolitana da Grande Vitória. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 140) chega à mesma conclusão a respeito de tais semelhanças, entendendo como diferença mais marcante entre as duas realidades a ausência de organização do tráfico capixaba em torno de grandes facções, diferentemente do que ocorre no Rio de Janeiro.
  • 6
    Os dados históricos e demográficos apresentados nesta sessão são da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV). Disponíveis (on-line) em: http://legado.vitoria.es.gov.br/regionais/dados_regiao/regiao_4/regiao4d.asp
  • 7
    Disponível (on-line) em: https://censo2010.ibge.gov.br/
  • 8
    Com a autorização dos entrevistados, os nomes reais foram mantidos, tendo em vista que a própria história retratada já os identificaria perante o público local.
  • 9
    Um outro aspecto importante da chamada “guerra espiritual”, como ela toma parte na teologia pentecostal e neopentecostal no Brasil, diz respeito a um “ecumenismo negativo”, em que o panteão afro-ameríndio é associado às figuras demoníacas presentes no lado maligno dessa guerra (MONTES, 2012MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: Entre o público e o privado na religiosidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p. 73). Esse aspecto é especialmente dramático e central na expansão das igrejas evangélicas nas periferias urbanas brasileiras, pois se inscreve em uma real disputa de território, em que religiões de matriz africana perdem espaço conforme igrejas evangélicas avançam, inclusive mediante suas relações com tráfico de drogas. Todavia, não obstante a importância de tal temática e a necessidade de circunscrever uma observação a este respeito, não temos a intenção de desenvolver uma reflexão mais sistemática sobre o problema no presente artigo.
  • 10
    Assembliana diz respeito a pertencer ao conjunto de igrejas Assembleias de Deus.
  • 11
    A narrativa de vida resulta de uma forma particular de entrevista, a “entrevista narrativa”, durante a qual um pesquisador pede ao sujeito que lhe conte toda ou uma parte de sua experiência vivida (BERTAUX, 2010BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: A pesquisa e seus métodos. Natal/São Paulo: EDUFRN/Paulus, 2010., p. 15).
  • 12
    Corrêa (2015CORRÊA, Diogo Silva. Anjos de fuzil: Uma etnografia das relações entre igreja e tráfico na Cidade de Deus. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.) salienta, inclusive, como algumas carreiras desviantes anteriores à conversão são interditadas de serem mobilizadas pelo convertido, inexistindo, por exemplo, evangélicos ex-“X9s” ou ex-estupradores.
  • 13
    Alguns termos que aparecem aqui, como conceito, firma etc. terão seu significado mais bem explicados no decorrer do texto.
  • 14
    “Endolar” é o processo de colocar o pedaço de maconha em saquinhos para a venda.
  • 15
    Grillo (2013GRILLO, Carolina. Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.), em seu trabalho sobre tráfico e roubo nas favelas cariocas, explica que as dinâmicas do tráfico são geridas localmente e que a organização dessas atividades comerciais é chamada de “firma”, em alusão ao seu aspecto empresarial. A firma simula o modelo organizacional de uma empresa capitalista, tomando de empréstimo a coordenação burocrática da hierarquia patrão/funcionários (termos como patrão, gerente, funcionário, plantão, equipe, carga, responsabilidade, anotações, contas e pagamento). Os cargos são basicamente os mesmos na hierarquia do tráfico carioca em relação ao do Bairro da Penha: “chefe do tráfico”, “gerente geral” (que supervisiona toda a droga que entra no morro e presta contas ao patrão), “subgerentes” ou “gerentes” (responsáveis pelas bocas/áreas, cargas e/ou preços), os “vapores” (responsáveis pela venda direta) e “fogueteiros” ou “escoltas”. Conforme salientado anteriormente, nesse caso, a descrição da realidade carioca serve bem ao caso capixaba no Bairro da Penha, como se pode observar nos depoimentos dos entrevistados.
  • 16
    O “aviãozinho” diz respeito à função da pessoa que leva a droga a um comprador e volta com o dinheiro para o traficante responsável pela droga. A diferença entre o “aviãozinho” e o “mandado”, citado pelo pastor Washington, é que este último, em vez de levar drogas, leva somente a informação e realiza determinados favores para o traficante.
  • 17
    Cariacica é um município vizinho da capital Vitória, pertencente à RMGV.
  • 18
    Em seção anterior, no entanto, já salientamos como mesmo nessa “conversão radical” pode-se observar aspectos de continuidade que, todavia, não serão objeto de análise neste artigo.
  • 19
    O termo “vaso” é uma expressão evangélica, oriunda do pentecostalismo, que se refere a um membro de igreja comum ou o que não ocupa uma alta posição hierárquica.
  • 20
    Conforme visto, os entrevistados diferenciam os momentos de “aceitação de Jesus” e o momento posterior da “conversão genuína”. Daí não se referirem aqui a “novos convertidos”, mas a “novos decididos”, que decidiram aceitar Jesus, mas que não necessariamente já são “convertidos”, algo que só se poderá observar posteriormente, em seus comportamentos.
  • 21
    A palavra “varão”, entre evangélicos, designa um homem que é forjado na fé cristã (no caso da mulher, “varoa”). Aparece muito nas versões mais clássicas da Bíblia traduzida para o português. Também é mais utilizada pelos pentecostais.
  • 22
    Ultrapassaria os limites deste artigo nos dedicarmos mais aos testemunhos e à sua importância na ligação entre os mundos do tráfico e da Igreja. Quanto ao tema, ver os trabalhos de Mariana Côrtes (2012CÔRTES, Mariana. Diabo e fluoxetina: Formas de gestão da diferença. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.), Carly Machado (2014MACHADO, Carly. “Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: Testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias”. Horizontes Antropológicos, n. 42, pp. 153-180, 2014.) e César Teixeira (2016TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. “O testemunho e a produção de valor moral: Observações etnográficas sobre um centro de recuperação evangélico”. Religião e Sociedade, vol. 36, n. 2, pp. 107-134, 2016.).
  • 23
    Ver início da segunda seção. Mais uma vez, a batalha espiritual tem centralidade especialmente nas igrejas neopentecostais, mas é fundamental também em outras agremiações pentecostais ou mesmo outras denominações protestantes e até católicas. Nesse caso, tem destaque aqui sua importância dentro de uma igreja pentecostal assembliana, como na Igreja Operando Deus.
  • 24
    A expressão “estar no óleo” significa que o crente estava revestido do poder do Espírito Santo, após se consagrar em jejum e oração. “Pagar o preço”, nesse caso, diz respeito a sacrifícios, como ficar em jejum, sacrificar a carne, passar fome, no intuito de vivificar o espírito, estando mais próximo de Deus para o cumprimento de propósitos.
  • 25
    “Na pista” é uma expressão usada para diferenciar o tráfico feito “no morro” daquele feito “na pista” ou “no asfalto”, que seria a venda de drogas feita para um público de classe social diferente da dos traficantes, localizado fora dos locais onde o tráfico concentra as bocas e de onde costuma haver conflito armado entre facções rivais.
  • 26
    Por exemplo, a comunidade religiosa pode se mostrar mais estável ou constituir identidades sociais mais fortes que as outras por algum outro motivo que não exatamente a presença de uma dádiva vertical envolvendo Deus.
  • 27
    Fazemos uso aqui do conceito de Bourdieu (2001BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 27-98.), que designa uma espécie de prestígio social que indivíduos acumulam e em que investem para galgar posições dentro de um campo social específico que valoriza aquelas características convertidas nesse capital. Por exemplo, no microcosmo social do campo religioso, um acúmulo desse capital simbólico por meio de conhecimento religioso, serviços prestados à Igreja e outros permite ao religioso acesso a posições melhores no campo, passando de diácono a pastor, de padre a bispo etc.
  • 28
    Exemplos de outros membros da Igreja Operando Deus, além dos pastores entrevistados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2020
  • Aceito
    16 Set 2021
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