Acessibilidade / Reportar erro

O crime de latrocínio em Goiânia: Interações e conflitos na cena do crime

The Crime of Latrocínio in the City of Goiânia: Interactions and Conflicts at the Crime Scene

RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender as principais interações e conflitos entre os atores e instituições do sistema de justiça criminal. Para tanto, toma como objeto de pesquisa as investigações pertinentes aos crimes de latrocínio do município de Goiânia no ano de 2017. Busca-se entender, por meio da análise dos inquéritos policiais e de entrevistas em profundidade, o modo como os profissionais que atuam nas diversas etapas do processo criminal concebem a investigação de latrocínios em Goiânia e como percebem sua própria atuação e a dos diferentes profissionais nesse processo.

Palavras-chave:
violência criminal; investigação policial; crimes; latrocínio; segurança pública

ABSTRACT

This paper aims to understand the main interactions and conflicts between actors and institutions in the criminal justice system. Therefore, The Crime of Latrocínio in the City of Goiânia: Interactions and Conflicts at the Crime Scene examines the investigations relevant to the crimes of robberies followed by murder in the city of Goiânia in 2017. The study aims to understand, through the analysis of police inquiries and in-depth interviews, how the professionals who work in the different stages of the criminal process conceive the investigation of robberies followed by murder in Goiânia and how they perceive their own performance and that of the different professionals in this process.

Keywords:
criminal violence; police investigation; crimes; robberies followed by murder; public safety

Introdução

No Brasil, a criminalidade violenta tem demonstrado uma magnitude e intensidade sem precedentes, expressa tanto nos indicadores do sistema de saúde quanto nos indicadores criminais. As taxas de mortes por causas violentas nos principais centros urbanos brasileiros apresentam uma tendência crescente desde a década de 1980 (ADORNO, 1998ADORNO, Sérgio. “Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade”. Tempo Social, São Paulo, vol. 10, n. 1, pp. 19-47, 1998.; ZALUAR, 1996ZALUAR, Alba. “A globalização do crime e os limites da explicação local”. In: VELHO, Gilberto; ALTIVO, Marcos (orgs). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FGV, 1996, pp. 48-68.; CALDEIRA, 2000CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000.; MISSE, 2006MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: Estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.). Não é por acaso, portanto, que o medo em relação ao crime se cristalizou como problema social em vários contextos, tornando-se pauta recorrente, tanto nos debates públicos como nas conversas rotineiras dos cidadãos. Para Adorno (1998), um elemento que muito contribui para o medo e o sentimento de insegurança diz respeito à desconfiança na capacidade do Estado de garantir a segurança da população, bem como de investigar e punir os crimes informados. Assim, além dos graves números da violência e da criminalidade, se lida com um sentimento igualmente preocupante, o da impunidade, que está se sedimentando cada vez mais na sociedade brasileira (CANO e DUARTE 2010CANO, Ignácio; DUARTE, Thais L. “A mensuração da impunidade no sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro”. Segurança, Justiça e Cidadania, vol. 2, n. 4, pp. 9-44, 2010.), seja pelo bombardeio midiático sobre o tema (MAREUSE 2007MAREUSE, Márcia A. G. A representação infantil da violência na mídia: Uma perspectiva para repensar a educação. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.) seja pela resposta ineficaz dos órgãos de segurança pública (PARANÁ 2012).

A realidade é que, no Brasil, em um crime no qual não tenha havido flagrante ou não haja um forte suspeito, dificilmente as autoridades responsáveis chegam à autoria. Se tão poucos crimes são solucionados e os culpados identificados e punidos pelo processo legal, abre-se espaço, em parte da sociedade, para a aceitação de ações ilegais e violentas contra suspeitos, o que promove graves fissuras no processo de consolidação de uma sociedade democrática. Nessa perspectiva, torna-se fundamental entender como o sistema de justiça identifica, processa e pune os indivíduos que cometeram delitos.

Segundo Vargas e Nascimento (2009VARGAS, Joana; NASCIMENTO, Luiz Felipe Z. “O inquérito policial no Brasil: Uma pesquisa empírica: o caso da investigação criminal de homicídios dolosos em Belo Horizonte”. In: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (org). Reflexões sobre a investigação brasileira através do inquérito policial. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2009.), o grande gargalo responsável pela baixa incriminação da Justiça está na fase policial. O volume de arquivamento de inquéritos é muito elevado em relação àqueles que resultam em denúncia do possível autor do crime, com a consequente instauração da ação penal perante o Poder Judiciário. Como prova disso, em alguns estados o Ministério Público (MP) denuncia menos de 15% das mortes violentas. Isso ocorre pela impossibilidade de identificar a autoria, pela falta de testemunhas e pela negligência ou incapacidade técnica de levantamento e processamento de vestígios como impressão digital, DNA ou fragmentos balísticos. Nos casos em que o autor é identificado, não há denúncia por conta da fragilidade das provas. Por fim, em virtude da demora excessiva na condução dos inquéritos policiais, o crime pode prescrever ou o suspeito pode morrer durante o processo (COSTA 2014COSTA, Arthur T. M. “Criação da base de indicadores de investigação de homicídios no Brasil”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 8, n. 2, pp. 164-172, 2014.).

Estudos no Canadá apontam que essa taxa de esclarecimento é crucial para acompanhar o desempenho das polícias pelos estados e cidades, pois permite a análise dos resultados das investigações de homicídio ao longo do tempo e de acordo com o local do crime e a delegacia responsável (MAHONY e TURNER 2012MAHONY, Tina; TURNER, John. “Police-reported clearance rates in Canada, 2010”. Juristat, Component of Statistics Canada catalogue n. 85-002-X, 7 jun. 2012.). Assim, com base no entendimento de que a investigação policial é de fundamental importância para que se chegue à autoria e punição dos crimes, o objetivo deste estudo consiste em compreender os principais entraves que se colocam ao processo de investigação. Parte-se do pressuposto de que os atores e as instituições de segurança pública e justiça criminal, com suas disputas e falta de padronização, contribuem para o baixo quadro de crimes esclarecidos e denunciados. Aqui, os dados coletados referem-se a Goiânia, capital de Goiás. Atualmente, ela figura como a décima maior cidade do Brasil. Segundo o Censo Demográfico de 2010 (IBGE 2011), sua população era de 1.302.001 habitantes. As estimativas, contudo, indicam uma população de 1.466.105 em 2017 e de 1.516.113 para 2019 (Idem, 2017, 2019).

As cenas dos crimes de latrocínio

A fase considerada neste trabalho, chamada de “cena do crime”, é responsável pelo levantamento dos indícios que levem à materialidade e à autoria do crime. Considera-se como cena do crime desde o momento da ocorrência e seu registro no sistema de segurança pública até o isolamento, a preservação e as investigações, tanto a preliminar do local como a de seguimento (posterior à investigação in loco). O Caderno temático de referência (CTR) produzido pelo Ministério da Justiça em 2014 tinha como objetivo orientar, padronizar e melhorar as investigações de crimes contra a vida no Brasil (BRASIL, 2014). O CTR divide a investigação em duas etapas: investigação preliminar e investigação de seguimento (Ibid., p. 27). A primeira abrange todos os procedimentos de investigação e coleta de vestígios realizados no primeiro momento em que a polícia recebe a informação da ocorrência de um homicídio até os trabalhos na cena do crime, imediatamente após a chegada dos primeiros agentes policiais. A segunda diz respeito à ampla gama de procedimentos investigativos e cartoriais realizados pela polícia desde o encerramento dos trabalhos preliminares até a conclusão do inquérito -resultando, preferencialmente, na completa elucidação do crime e de todas as circunstâncias que o cercam, com obtenção de autoria (quem cometeu o crime) e de materialidade (provas que demonstram a autoria). Neste artigo, a análise se concentrará nas cenas de crimes de latrocínio de Goiânia em 2017, totalizando 17 ocorrências.

A discussão sobre como é construída a dinâmica de registro, investigação, esclarecimento e denúncia dos crimes de latrocínio justifica-se pelo fato de eles serem, entre as diferentes modalidades de crimes violentos intencionais1 1 A categoria mortes violentas intencionais (MVI) corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora. Sendo assim, a categoria representa o total de vítimas de mortes violentas com intencionalidade definida. , os que produzem maior pânico e comoção social. Se a repercussão na mídia dos homícidios já não consegue alcançar os diversos setores da população em geral, os latrocínios, por sua vez, resultam em um contexto de forte pressão sobre governos e polícias. Deve-se destacar que essa modalidade criminal não apresenta percentuais estatísticos elevados entre o conjunto das mortes violentas intencionais. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP 2019), o Brasil registrou, em 2018, 57.358 mortes violentas intencionais; dessas, 48.962 são homicídios dolosos e 1.935 correspondem a latrocínios. Em Goiás, segundo dados do Observatório de Segurança Pública, os homicídios dolosos correspondem a 84,6% dos crimes violentos letais intencionais registrados em 2017, ao passo que o latrocínio é responsável por 3,8%. A capital, Goiânia, apresenta dados semelhantes. Contudo, os poucos eventos têm forte potencial de repercussão e, consequentemente, o medo de ser vítima de um roubo apresenta um impacto significativo no sentimento de insegurança dos cidadãos.

Essa divergência de posturas em relação aos dois tipos criminais parece repousar no fato de que o latrocínio é considerado um crime cujo autor não tem nenhuma relação com a vítima, isto é, em que não há motivação como no homicídio doloso (comumente justificado pelo envolvimento da vítima com o mundo do crime ou mesmo pela passionalidade). O que existe no latrocínio, de acordo com o jargão policial, é “roubo que não deu certo e alguém morreu”, ou seja, qualquer um poderia ser uma vítima. Trata-se, portanto, de um crime que não está restritro a alguns poucos espaços sociais e perfis sociodemográficos. Esses aspectos fazem com que, de acordo com o meio policial, o latrocínio se apresente com um dos crimes mais difíceis de serem investigados. A ausência de qualquer relação “vítima-autor” nos roubos seguidos de morte é um fator que dificulta o seu esclarecimento, o que torna o exame do local e o processamento dos vestígios capazes de identificar a autoria ainda mais importantes. É nesse sentido que compreender a dinâmica desses crimes e as relações institucionais e dos diferentes atores envolvidos é fundamental para entendermos onde estão os principais gargalos no processo de investigação e elucidação desses casos.

Para tanto, o estudo em questão pautou-se na busca de informações mediante o levantamento de todos os crimes de latrocínio na capital goiana. Isso foi feito por meio do banco de dados do Registro de Atendimento Integrado (RAI) da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO) e do Sistema de Procedimentos Policiais (SPP), que é o registro interno da Polícia Civil, no período de janeiro a dezembro de 2017. De posse do levantamento dos registros dos inquéritos e da sua localização, via delegacia de polícia, MP ou Poder Judiciário, para uma avaliação mais detalhada foram efetuadas a leitura minuciosa dos inquéritos e a coleta de informações sobre as vítimas, bem como foram levantados os meios empregados para o cometimento do crime e questões pertinentes ao processo de investigação. Foi necessária a leitura dos extensos 17 inquéritos, com laudos, depoimentos, despachos do Judiciário e do MP.

Além disso, analisou-se casos em que as interações entre os atores do sistema de justiça criminal goianiense prejudicaram as investigações e buscou-se verificar: se a estrutura e a prática organizacionais do sistema de justiça criminal afetam as investigações na cena do crime; se há interdependência entre os atores encarregados da persecução da pena; e, por fim, em que medida essa interdependência, com suas interações e conflitos, interfere na análise, na conclusão e na transformação do inquérito em ação penal. Por fim, buscou-se averiguar, por meio da realização de entrevistas semiestruturadas com um total de 34 profissionais2 2 Dois agentes de polícia, sete delegados de polícia, dois escrivães de polícia, dois gestores da SSP-GO, um médico legista, sete papiloscopistas, quatro peritos criminais, um policial militar, quatro juízes e quatro promotores de justiça. , como eles atuam nas diversas etapas do processo criminal, como concebem o sistema de investigação de crimes de latrocínio em Goiânia e como percebem a sua atuação e as dos demais atores participantes nesse processo.

Interações e disputas na cena do crime

O sistema de justiça criminal brasileiro é baseado em um modelo que obrigatoriamente estabelece uma interdependência entre os seus diferentes atores. Tal obrigatoriedade está definida nas orientações elaboradas pelo Ministério da Justiça para a realização de investigação de crime contra a vida - sempre se espelhando no Código Processual Penal (CPP).

Diante dessas orientações, é considerada uma investigação criminal adequada aquela norteada pelo CPP. Contudo, não existe um detalhamento pormenorizado das atividades quanto à função dos diferentes atores do sistema de justiça criminal. Usamos como parâmetro de “investigação adequada” protocolos do Ministério da Justiça, que, com base no CPP, elabora instruções sobre as formas de atuação dos profissionais no processo de investigação, vale dizer, aquela que passa pelo exame do local, na fase chamada de investigação preliminar, e desloca-se para a fase de seguimento, tendo como resultado final a produção do inquérito.

Tal resultado decorre da participação e interação dos diferentes atores que, nas suas distintas áreas de atuação e por meio do compartilhamento de informações e do levantamento de vestígios científicos, deverão buscar respostas para o que aconteceu. Superada esta etapa (perícia, exames médicos legais, papiloscopia, análise contextual, coleta de testemunhos, interligação de suspeições etc.), encaminham o processo ao MP e posteriormente ao Poder Judiciário. Logo, um processo investigativo bem-sucedido é produto, principalmente, da interação entre especialidades, pela divisão do trabalho na cena do crime, em uma relação de interdependência e complementariedade.

Todavia, ainda que desenhada institucionalmente para ser um processo de interação entre especialidades, a divisão do trabalho na cena do crime nem sempre ocorre como previsto. Tal aspecto se relevou preliminarmente nas primeiras incursões ao campo de pesquisa, onde foi possível observar que, apesar de toda a investigação criminal ser norteada pelo CPP, não existe um detalhamento pormenorizado das atividades quanto à função dos diferentes atores do sistema de justiça criminal. Uma vez que não há na SSP-GO um procedimento operacional padrão (POP) que estabeleça de forma detalhada como deve ocorrer a interação entre os profissionais de segurança pública no processo de investigação de crimes de latrocínio, conta-se apenas com o POP da Polícia Militar, que trata das orientações da corporação no isolamento e na preservação do local. Isso se coloca como um primeiro entrave à investigação e elucidação desses casos, já que a falta de padronização, não raras vezes, conduz a sérios prejuízos (perda de provas, por exemplo) no que tange ao levantamento da cena do crime.

O processo investigativo tem seu início no momento em que ocorre o crime de latrocínio e o seu consequente registro. Desde 2016, o registro de crimes em Goiás é realizado de forma eletrônica e integrado pelas diferentes instituições policiais. Antes, uma vez que instituições policiais diferentes atendiam ao mesmo crime e tinham registros distintos, que não se comunicavam, um mesmo crime poderia ser contabilizado várias vezes, e os números totais não eram confiavéis. Contudo, a implementação do RAI estabeleceu a obrigatoriedade apenas do registro inicial do fato, isto é, qualquer uma das instituições policiais (Polícia Militar, Bombeiro Militar e Polícia Civil) que for notificada para o atendimento de um local de morte poderá fazer o registro em um único sistema, o que não se verifica nas fases seguintes da invetigação, quando as informações levantadas e as perícias de local e dos cadáveres são registradas em sistemas próprios de cada corporação. Por conseguinte, as informações não são compartilhadas ao longo do processo.

Esse fracionamento de dados e o descompromisso das instituições de alimentar um único sistema de forma integrada impossibilitam o acesso transparente e seguro das informações em Goiânia, até mesmo no que diz respeito à identificação do tipo criminal. Logo, durante o processo de levantamento da pesquisa, verificou-se, por exemplo, que um crime inicialmente classificado como latrocínio pode, posteriormente na investigação, sofrer alteração para homicídio, sem que esse fato seja comunicado ou alterado no registro inicial, o que leva a distorções estatísticas quanto ao número de crimes por natureza. Esse tipo de incongruência foi verificado em dois casos, quando, ao se buscar o inquérito do caso tipificado no registro inicial como latrocínio, foi detectado que após investigações os casos foram definidos como homicídios. Contudo, não houve correção do dado.

As violações das cenas dos crimes

A falta de interações entre as instituições, a ausência de padronização de procedimentos e a desconexão se relevam também nas etapas seguintes ao registro inicial do crime e se constituem, na percepção dos entrevistados, como um dos principais obstáculos à investigação dos crimes. Sobre isso, veja-se a fala que segue:

- A relação dos diferentes atores na cena do crime para mim é o principal problema na investigação, [o] principal, disparado... Porque você envolve instituições diferentes, com visões diferentes, com interesses diferentes. [Mas] muitas vezes o interesse não é de atender o cidadão e de resolver o fato, e sim de ganhar mais importância, isso é um problema gravíssimo. Da maneira como trata o Código [Processual Penal], é simples: tenho uma polícia que chega rápido e que ela preserva, eu tenho outra polícia que chega e que vai direcionar como a investigação vai se iniciar. Então [para] a polícia científica, perito, [se diz] “olha seu trabalho é esse”. [Para o] papiloscopista [se diz] “vai ali e faz isso”, “fulano faz aquilo”. Então é simples né? Deveria ser, mas não é o que acontece. (Gestor 1 da Polícia Civil, masc., 42 anos)

O crime de latrocínio em Goiânia tem uma dinâmica própria. Em geral, logo após a ocorrência do crime o Comando de Operações da Polícia Militar (Copom) é comunicado e, por sua vez, aciona a viatura mais próxima, que se dirige ao local. Caso haja alguma vítima com vida, mobiliza o socorro por meio do Corpo de Bombeiros ou do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), que atesta no local se a vítima foi a óbito ou não. Caso esteja viva, ela será removida para o hospital. Havendo óbito no local, cabe à Polícia Militar preservar e isolar a área, até a chegada da Delegacia de Investigação de Homicídios (DIH) e da perícia. De acordo com os entrevistados da perícia, hoje em Goiânia dificilmente um local será violado pela Polícia Militar de forma não intencional por desconhecimento do procedimento adequado. Segue o que disse um dos entrevistados:

- A Polícia Militar cometia muitos equívocos, mas esses equívocos a gente via que não era por uma “maldade”, era por desconhecimento, e que no meu ponto de vista era culpa não da Polícia Militar, mas era responsabilidade da Polícia Civil/Técnica. Porque se eu detenho conhecimento, e esse conhecimento é do meu interesse porque ele vai afetar as investigações, é meu dever como Polícia Judiciária passar isso para a Polícia Militar. (Perito criminal 2, masc., 37 anos)

De outro lado, essas violações não intencionais persistem no que diz respeito ao atendimento prestado às vítimas pelos socorristas nos lociais de crimes. O Ministério da Saúde estabelece regras sobre o atendimento a vítimas: “Após ter movimentado o paciente e constatado óbito, jamais tentar retorná-la à posição inicial, mas apenas descrever na ficha a posição em que ela foi encontrada” (BRASIL, 2014, p. 254). Contudo, os profissionais da perícia declaram que há uma completa falta de cuidado com a preservação do local pelos socorristas ao realizarem o atendimento e constatarem o óbito. Observe-se esta fala:

- O pessoal do Samu, como não se vê parte desse sistema, não se importa, mesmo que ele faça o treinamento. E já fizemos esse treinamento com eles, não internalizam. Eles não se mobilizam, e continuam fazendo as mesmas coisas. Ou seja, os locais continuam sendo violados por socorristas do Samu. A gente chega, o PM [policial militar] fala que ele chegou, isolou, tentou preservar, mas assim que chegaram o médico e a equipe do Samu virou bagunça. (Perito criminal 2, masc., 37 anos)

Outro grave problema ocorre quando a vítima é socorrida e morre no hospital. Nesses casos, o exame pericial do local deveria ser realizado mesmo com a vítima retirada, mas a delegacia responsável pelo acionamento do exame de local, inúmeras vezes, não faz a solicitação da perícia. Sobre isso, vejam-se as falas que seguem:

- Muitas vezes não é chamado a perícia. Prejudica muito. Não é porque o local tenha uma alteração séria que ele ficou imprestável. Às vezes ainda tem elementos úteis para a investigação, cápsulas por exemplo. Um exemplo: no latrocínio, às vezes uma cápsula que tiver lá às vezes vai ser mais importante do que o próprio cadáver, porque a gente aqui no Brasil tende a focar muito no corpo, corpo humano e não, nem sempre. Tem outras coisas lá que são muito mais relevantes. (Perito criminal 2, masc., 37 anos)

- Só não há local de crime quando não há o local realmente. Quando há o corpo você sabe que há o vestígio e há perícia (...). Se levou o corpo do local, aquele local se desfez e a perícia fica prejudicada e eles não vão. Mas não que não vá a delegacia. A delegacia vai ao local de crime, essa primeira investigação é feita pela delegacia de homicídio (...). (Delegado de polícia 5, masc., 50 anos)

A não concretização do exame de local nessa situação, segundo os peritos criminais, deve-se ao não acionamento da perícia pela delegacia. Via de regra, o delegado considera o local como violado e, por sua conta e risco, dispensa o exame pericial. Os delegados confirmam abrir mão da perícia nessas circunstâncias, mas justificam que “desistiram” de chamar a perícia porque todas as vezes que solicitaram o exame de local os peritos alegavam que o local estava violado e se recusavam a realizar a perícia naquelas condições.

A não realização do exame de local é inadmissível, seja valendo-se da alegação de que a perícia não foi convocada pela delegacia quando há retirada do corpo seja porque foi declarado que, quando convocada, a perícia recusou-se a realizar o exame de local. Mesmo que o local esteja violado, “algumas vezes é possível coletar indícios no local onde ocorreu o crime” (MINGARDI, 2006MINGARDI, Guaracy. A investigação de homicídios: Construção de um modelo. Relatório de pesquisa, Perícia Oficial, São Paulo, abr. 2006. Disponível em: http://www.periciaoficial.al.gov.br/legislacao/artigos-pesquisas-cientificas-e-livros/invest_homic_guaracy.pdf
http://www.periciaoficial.al.gov.br/legi...
, p. 55), ou seja, algum vestígio útil pode ser coletado e aproveitado.

Se o isolamento e a preservação do local de crime melhoraram com a qualificação das forças policiais, de acordo com os profissionais da perícia entrevistados um obstáculo grave para o trabalho de esclarecimento da autoria e da dinâmica diz respeito à violação intencional. Segundo eles, isso está documentado em seus laudos de local e, portanto, é de conhecimento dos gestores, como se observa na fala a seguir:

- Nos meus laudos, essa observação é quase uma repressão: não foram encontrados estojos referentes às pistolas no local de crime, os estojos foram removidos. Eu não posso afirmar quem removeu. Mas admitimos que o local foi isolado imediatamente pelos policiais que estavam no local e somente policiais deveriam removê-los. Qual deles fez, ou quais? Não sei. Mas é um procedimento que se repete quase sempre. Rarissimamente se encontra estojos de pistolas de policiais nos confrontos. (...) E muitas vezes eu percebi em confrontos reais todos os outros vestígios mostravam, sem dúvida alguma, que houve a necessidade do confronto e que houve uma troca de tiros com trajetórias compatíveis com as posições dos autores, mas os estojos dos policiais não estão presentes. Se for um confronto evidentemente verdadeiro, por que a retirada dos estojos? [Em] um caso que eu trabalhei, a Corregedoria da Polícia Militar me questionou qual era a necessidade para investigação da retirada de estojos. Eu respondi: “Não há qualquer necessidade lógica para retirada dos estojos e a não apresentação deles”. (Perito criminal 2, masc., 37 anos)

De acordo com o discurso do perito criminal, é recorrente a retirada dos estojos em local de morte em decorrência de intervenção policial. Como referido, tal situação é denunciada em seus laudos e é de conhecimento do comando da corporação. Logo, o isolamento e a preservação inadequados do local de crime podem dificultar e até impedir o esclarecimento de um crime (COSTA, 2011COSTA, Arthur T. M. “É possível uma política criminal? A discricionariedade no sistema de justiça criminal do DF”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 97-114, 2011.), levando ao grande número de arquivamentos de inquéritos no Brasil por falta de identificação da autoria. Segundo o Instituto Sou da Paz (2017, p. 5), “dos 43.123 inquéritos monitorados pela meta 2 - da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública - e finalizados entre março de 2010 e abril de 2012, 78% foram arquivados por impossibilidade de se chegar aos autores”. Essas violações se caracterizam, portanto, com um dos principais conflitos observados no estudo em questão.

As disputas pelo protagonismo da cena de crime

A polícia brasileira tem um modelo de duas polícias, uma preventiva - Polícia Militar - e a outra investigativa - Polícia Civil. Na prática, porém, de acordo com o que levantamos na pesquisa, a linha que separa essas polícias e suas competências é tênue e em algum momento no processo de investigação suas atribuições acabam se cruzando, o que não raro é motivo de grandes conflitos. Consequentemente, onde deveria haver interdepêndencia de informações e ações, o que ocorre é a concorrência no processo de investigação de alguns eventos.

Nessa disputa pelo protagonismo na cena do crime, abre-se, não raras vezes, a possibilidade de contaminação da investigação por meio de ilegalidades, abusos e desrespeito aos direitos humanos. Além disso, ainda temos o não compartilhamento de informações entre as polícias, o que pode prejudicar ou impedir o esclarecimento de crimes. Veja-se o que fala um dos delegados:

- Acontece muito. Vou citar um caso aqui [que] foi tratado como latrocínio, depois a gente ficou sabendo que era homicídio, aqui no bairro Goiá. As pessoas estavam bebendo num bar e parece que [alguém] mexeu com a menina do rapaz e o rapaz atirou. A PM [Polícia Militar] fez uma correria, apresentou o rapaz no flagrante aqui e no outro dia o flagrante foi relaxado, foi feito e foi relaxado. O filho da vítima veio aqui chorar no outro dia. Eu falei: “Agora eu não posso fazer nada”. (...) O criminoso ficou de tornozeleira e no outro dia foi beber no mesmo bar [em] que ele matou o cidadão. Por quê? Porque o trabalho foi apressado em tese. Poderia ter trabalhado numa prisão com elementos mais fortes, mais palpáveis; apresentaram o rapaz horas e horas depois. Enfim, a questão do local é isso mesmo, às vezes eles pegam uma testemunha que eu poderia ouvir na hora e abstrair alguma coisa, fazer uma tentativa de uma prova técnica. Hoje nós temos condições necessárias disso. Eles pegam e saem andando com essa testemunha pelo local, e às vezes eu perco algum elemento. Outra coisa, as imagens, às vezes, é coletada pelo PM. Vai na casa, pega uma imagem que seria viável trabalhar, melhorar no software ou alguma coisa para a gente puxar uma placa, [mas] ele pega aquela imagem e às vezes coleta de qualquer forma. Eu não sei coletar imagem, eu mando alguém, alguém que entenda. [Se a] coleta [for feita] daquela forma errada, eu não tenho acesso mais [a ela]. Eu tenho que ficar atrás da instituição da PM: “Me dá aquela imagem”. Ou então, aí passa para um repórter e coloca na mídia e divulga aquela imagem. Daquele jeito, o cara some no mundo, para pegar só daqui seis meses. (Delegado de polícia 5, masc., 50 anos)

Os policiais civis entrevistados reconhecem que se instala “uma guerra” pelos elementos capazes de indicar a autoria do fato e que a Polícia Militar, ao chegar primeiro ao local, inicia a “investigação”, quando sua função se restringiria a executar a prisão em flagrante (caso fosse possível identificar o autor de imediato), fazer anotações sobre relatos de possíveis testemunhas e, finalmente, isolar e preservar o local. O desejo de realizar o flagrante antes da Polícia Civil, segundo os policiais civis entrevistados, faz com que a prisão ocorra com base em provas materiais frágeis e abordagens inadequadas, tanto das testemunhas quanto do suspeito do crime. Isso pode colocar em xeque a legalidade da prova testemunhal ou da confissão do crime pelo suspeito.

O efetivo dessas duas polícias poderia ser utilizado de maneira mais racional, mas, de acordo com Brasil e Abreu (2002BRASIL, Glaucíria M.; ABREU, Domingos. “Uma experiência de integração das Polícias Civil e Militar: os Distritos-Modelo em Fortaleza”. Sociologias, vol. 4, n. 8, pp. 318-355, 2002., p. 332), em “tese, para que a política de integração das duas polícias possa funcionar, é necessária uma colaboração entre as cúpulas”. Mas o que se vê na prática é o trabalho não orientado para a integração entre as duas instituições, e a competição ocorre por iniciativa ou reconhecimento das cúpulas.

A Polícia Civil e os conflitos internos

Os problemas na investigação não se restringem às polícias Militar e Civil. Existem óbices encontrados internamente em algumas instituições. Por exemplo, na Polícia Civil, as dificuldades dizem respeito à arquitetura das delegacias, formada por delegacias distritais e especializadas e, portanto, por equipes diferentes que atendem o local de latrocínio e fazem a investigação. Há uma falta de comunicação entre as delegacias e entre cartórios de uma mesma delegacia.

Os crimes de latrocínio são atendidos normalmente pela Delegacia de Investigação de Homícidios (DIH) e posteriormente investigados pela Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic) por meio do Grupo de Repressão ao Roubo (Garra). Essa arquitetura, porém, gera conflitos entre os policiais dos distritos e aqueles das delegacias especializadas. Os policiais lotados nas especializadas se veem, de modo geral, como grupos de elite, e consideram seus quadros policiais mais qualificados para as investigações do que os das delegacias não especializadas. Os policiais das delegacias não especializadas, por sua vez, são contrários a essa forma de especialização e ao isolamento das delegacias. Assim expõe um dos delegados entrevistados:

- Quando eu falo de latrocínio vem a Deic para investigar o latrocínio. Na Deic temos poucos delegados que atendem Goiânia e o interior do estado que não conhecem nada da região, que não conversam com o delegado da região. Porque menosprezam o delegado, ainda tem isso. (Delegado de polícia 6, masc., 52 anos)

Os policiais das delegacias não especializadas apontam que quando há um crime de responsabilidade das delegacias especializadas e estas vão até o bairro para iniciar a investigação, não há nenhuma interação com a equipe local que está no bairro ou na cidade e conhece os moradores e suas dinâmicas. Desperdiçam-se, muitas vezes, informações importantes que poderiam auxiliar no esclarecimento do crime. Isso está evidente na fala que segue:

- Como no latrocínio não existe a relação entre vítima e autor, aí [o] que acontece? Esse caso de latrocínio às vezes fica 20, 30, às vezes 60 dias dentro da delegacia de homicídios, aí a equipe fala: “Não, não é homicídio”. E aí ela manda pra Deic investigar, 30, 60 dias depois. Então perde-se muita informação com isso e muito tempo. Muito burocrático, tem conflito de atribuição, quando os dois grupos não estão na mesma delegacia. (Delegado de polícia 3, masc., 37 anos)

A ausência de comunicação entre as diferentes delegacias e até mesmo entre os diferentes cartórios de uma mesma delegacia pode produzir investigações isoladas e desqualificadas. As delegacias constituem-se, portanto, em pequenas unidades administrativas isoladas com vida própria, cada uma cuidando dos seus inquéritos em total distanciamento das possibilidades de integração e sinergia na corporação e fora dela.

O distanciamento entre a perícia e as delegacias

Uma boa interação entre a perícia e a investigação cartorária é fundamental para nortear ambos os trabalhos. Contudo, durante a pesquisa observamos uma comunicação falha, pois a investigação de um mesmo crime realizada pela área pericial e pela área cartorária caminhava em separado. Normalmente essas equipes se encontram no local do crime e há uma rápida troca de informações à medida que a investigação segue. O diálogo, via de regra, somente ocorre quando há entrega do laudo para a delegacia e sempre surgem dúvidas. Mas toda a comunicação se perde no processo. Muitas vezes uma informação levantada pela perícia aparentemente sem significado, juntamente com o testemunho de uma pessoa, torna tal vestígio ou objeto ressignificado na cena do crime.

Não há feedback para reavaliar os vestígios por intermédio dos testemunhos nem mesmo a análise das evidências para verificar se são capazes ou não de refutá-los. Ora, se alguém prestou um testemunho e as provas são incompatíveis, seria muito interessante para o delegado obter essa informação logo de início, em vez de aguardar o laudo para somente então poder questionar a testemunha ou o suspeito acerca da incoerência entre o depoimento e os vestígios materiais. Note-se, por exemplo, a fala que segue:

- Aí eu passo o laudo quando eu termino para o delegado. Aí de posse do laudo, em alguns casos o delegado me liga para tirar as dúvidas, dúvidas essas que já poderiam ter sido sanadas antes numa troca de informações prévias. (Perito criminal 1, masc., 44 anos)

O perito criminal, na análise da cena do crime, pode levantar elementos importantes para a investigação inicial da delegacia, como, por exemplo, a possibilidade de identificação do tipo de munição usada no homicídio ou se foi utilizado mais de um tipo de arma. Essas informações imediatas possibilitam presumir que tipo de arma a delegacia vai procurar, ou se houve a participação de dois autores ou mais. Todos esses achados podem acelerar a investigação a fim de localizar o autor ou os responsáveis. Mas há pouca disposição de compartilhamento de informações entre os profissionais da perícia e a delegacia, como é apontado pelos próprios peritos criminais, segundo se observa nesta fala:

- O delegado pergunta para o perito lá no local tentando essa integração: “Perito, que calibre é esse aí?”. E ele fala: “Espera o laudo doutor!”. Isso para mim é uma conduta horrível, sendo que, lógico, nem tudo eu vou saber no local, tem coisas que eu vou ter que realmente olhar, mas tem informação que eu já sei de plano. Por exemplo, quando é cápsula, está escrita na cápsula. É só ler. Aí o cara lê lá que é “.40,9 mm”, mas não fala. (Perito criminal 2, masc., 37 anos)

De acordo com os peritos criminais, há uma compreensão, entre a maioria dos seus colegas, de que a autonomia técnico-científica do seu trabalho os exime de uma aproximação maior com o delegado de polícia. Uma aproximação maior é vista comumente como uma subordinação hierárquica ao delegado. Muitos peritos criminais não se sentem parte da investigação e não se veem obrigados a colaborar para que o delegado tenha a informação o quanto antes como contribuição para a investigação. O compromisso principal do laudo pericial, de acordo com o pensamento de muitos peritos, é orientar o Poder Judiciário no julgamento de um fato.

O isolamento do trabalho que comumente ocorre entre essas duas investigações, periciais e cartorárias, traz outro problema: o descompasso entre as prioridades das duas. Como na perícia há um volume muito grande de exames a serem realizados e laudos a serem confeccionados, e nas delegacias há um número considerável de inquéritos a serem investigados, compartilhar informações poderia otimizar o trabalho das duas investigações. Ou seja, uma investigação que estivesse com a sua conclusão adiantada poderia ter prioridade no seu respectivo laudo. Isso evitaria que um inquérito ficasse pronto e o seu laudo não, ou até mesmo que em uma investigação que não tivesse urgência do laudo este fosse finalizado sem nenhuma prioridade. Além do descompasso entre as prioridades, a falta de diálogo prolonga a desinformação dos delegados quanto aos pedidos de exames periciais. Sobre isso, destaca-se uma fala de um perito criminal entrevistado:

- Uma coisa... Um exame que é realmente ultrapassado que pode se relacionar à autoria do crime, exame residuográfico, coleta de vestígios, disparo de arma de fogo. Nós fazemos por método fisioquímico, que apresenta falso positivo e falso negativo. Se der negativo não quer dizer que você [não] atirou e se der positivo não quer dizer que você atirou. (...) Então discutir quem efetuou o disparo a partir dos exames feitos hoje no Instituto é algo completamente obsoleto. Desde o Congresso de Balísticas e de 15 anos atrás já se discute que não deveria mais fazer. (...) Mas muitos delegados solicitam esse exame. A administração acredita que nós deveríamos ser obrigados a fazê-los. Mas são exames que não apresentam autoria ou participação de forma alguma na dinâmica. (Perito criminal 2, masc., 37 anos)

Se um exame pericial não é considerado confiável ou de utilidade pelos profissionais responsáveis pela perícia para estabelecer a dinâmica do crime e a identidade do autor, ou orientar de alguma forma a investigação, é um contrassenso a insistência da investigação cartorária em solicitá-lo diante da grande demanda de trabalho e da escassez de insumos. Os profissionais responsáveis pela perícia de local ou laboratorial são os especialistas com habilitação para orientar o delegado de polícia acerca de quais exames são mais adequados para a requisição de determinado crime. Caso essa expertise não seja valorizada, perde-se tempo e recursos financeiros com a produção de um laudo sem serventia.

Portanto, a falta de comunicação entre a delegacia e a perícia, o sentimento de não pertencimento ao processo de investigação policial dos profissionais da perícia, o desconhecimento ou o não reconhecimento por parte dos delegados e agentes responsáveis pelas investigações de tecnologias e exames disponíveis capazes de produzir informações importantes, a ausência de protocolos que definam ações mínimas entre essas duas investigações, tudo isso produz um distanciamento entre a investigação pericial e a cartorária. Tal distanciamento prejudica substancialmente o esclarecimento dos crimes em Goiás e na capital Goiânia porque diminui as possibilidades de sucesso de uma investigação sobre crimes e de um julgamento justo.

As disputas pelos vestígios da cena do crime e seus impactos

O estudo sobre as disputas e interações nos crimes de latrocínio em Goiânia em 2017 foi importante para lançarmos luz sobre os principais gargalos que impedem a efetiva atuação da perícia em Goiás como ferramenta para o esclarecimento de crimes. Essa situação é omitida, mascarada e não enfrentada pelas instituições de segurança pública, além de ser completamente desconhecida da população em geral.

Com a Constituição de 1988, tem surgido no Brasil, principalmente graças a movimentos sociais progressistas em função da sua luta pelos direitos humanos no sistema de justiça criminal, um forte discurso de reconhecimento do valor da perícia para a investigação criminal brasileira. Esses movimentos apontam para o fortalecimento da prova material científica como um termômetro capaz de avaliar o grau de comprometimento do Estado brasileiro com uma investigação criminal qualificada, confiável e com garantia aos direitos humanos. Nessa perspectiva de segurança pública cidadã, a cena do crime refere-se a um ambiente que nos ajuda a compreender o crime ou onde podemos buscar vestígios que nos permitam elucidá-lo (MILESKI 2016MILESKI, Thayse C. Aplicação de corantes benzazólicos fluorescentes por ESIPT para a revelação de manchas de sangue em cenas de crime e a síntese do luminol. Dissertação (Mestrado em Química) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.).

Com base nesse mesmo entendimento, todos os profissionais entrevistados foram categóricos em afirmar que a prova técnica produzida mediante o exame de local é fundamental tanto para o direcionamento da investigação quanto para a produção da prova científica, mesmo nos casos em que há confissão do suspeito. Acompanhe-se esta fala de um dos entrevistados:

- É essencial. A perícia é uma prova técnica não repetida. Tirando algumas, eu não tenho como repetir aquela perícia. Independente[mente] de você marcar uma reconstituição, é primordial. (...) com uma captação papiloscópica eu posso elucidar um crime, colocar a pessoa no local. (Delegado de polícia 5, masc., 50 anos)

Quando perguntamos aos policiais como veem a perícia e sua colaboração e, mais, qual a importância para o processo de esclarecimentos dos crimes investigados, a grande maioria respondeu que os laudos de local, além de serem concluídos com um atraso muito grande, apresentam apenas a dinâmica e a materialidade do crime. Portanto, as falas demonstram relativo desestímulo aos trabalhos dos peritos.

- Eu, da Polícia Técnico-Científica na prática, eu tive mais de três anos nos crimes de latrocínio. De todos os inquéritos que a gente concluiu e mandou para o Judiciário, provavelmente uns dois foi com o laudo pericial dentro. (...) E dos laudos que vieram, foram uns dois que até hoje eu tive oportunidade de ver, eles em nada acrescentaram, nada. (Escrivão de polícia 2, masc., 34 anos)

- Para você ter a noção, há um índice relativamente alto. O processo chega à fase de instrução, você conclui a instrução, orquestra seu julgamento, quando você abre vista ao Ministério Público e para a defesa falar sobre 402 do Código do Processo Penal, que é pedir diligências complementares, pra determinados delitos específicos para os quais se exige a perícia, aí você procura, cadê o laudo específico, laudo definitivo. (...) O que ocorre? Você procura o laudo. Não está. (Juiz 1, masc., 60 anos)

As afirmações dos entrevistados a respeito dos atrasos de envio dos laudos de local para a delegacia foram corroboradas por um levantamento realizado por esta pesquisa. Quanto aos prazos, dos seis inquéritos com autoria desconhecida, apenas três continham laudo de local, com atraso entre a ocorrência da morte e a juntada do laudo ao inquérito de seis meses a um ano. Dos outros dez inquéritos com autoria conhecida, três não apresentavam laudos anexados e sete sim, porém com uma média de sete meses de atraso. Dessa forma, os laudos periciais de local em muitos dos inquéritos não estão presentes e, naqueles em que estão anexados, a regra é o atraso médio de sete meses a contar da data da morte, atraso que deveria ser a exceção, segundo o parágrafo único do art. 160 do CPP: “O laudo pericial será elaborado no prazo máximo de dez dias, podendo este prazo ser prorrogado, em casos excepcionais, a requerimento dos peritos” (BRASIL 2003, 45).

O inquérito muitas vezes é concluído e enviado ao MP, que, por sua vez, oferece a denúncia sem o laudo de perícia do local do crime. Esse laudo é incorporado ao processo muitas vezes já na fase do julgamento. Para compreender esse processo, questionamos aos entrevistados: os caminhos de uma investigação, a conclusão de um inquérito, sua denúncia e julgamento não poderiam ser diferentes com a presença dos elementos encontrados no local de crime e expressos em informações no laudo para subsidiar todo esse processo? Segue uma das respostas:

- O laudo pericial que consta de todos os inquéritos avaliados são os laudos cadavéricos, produzidos pelo médico-legista, onde é determinada a morte e os meios que provocaram essa morte. Ele está presente em todos os inquéritos porque esse laudo tem a função de comprovar que houve a morte, ou seja, é o registro da materialidade da morte. É um entrave muito grande, dependendo do tipo de crime, um entrave muito grande. (...) Eles vinham, faziam aqui um levantamento, caiu aqui mancha de sangue aqui, pá, pá, pá. Conclusão: o local de morte violenta. Ah, mas isso até meu filho de dois anos avisa que foi. (Delegado de polícia 1, masc., 48 anos)

De acordo com o entrevistado, responsável pela investigação de homicídios, a produção da prova em grande parte dos casos comprova o óbvio: houve uma morte, onde e quando ocorreu, se foi suicídio, homicídio ou acidente. O exame pericial cadavérico consegue normalmente cumprir apenas uma das suas funções periciais, que é comprovar a materialidade do crime. Mas quase nunca consegue dar elementos que levem à autoria do crime. E, se a prova técnica pode eliminar a produção da prova ilícita produzida por meio da violência física e psicológica, quando ela não funciona dá margem para a justificativa dos arbítrios cometidos pelos órgãos policiais para a obtenção de informações que devem à identificação da autoria do crime.

Nos casos pesquisados, verifica-se que o esclarecimento dos crimes de latrocínio em Goiânia em 2017 ficou concentrado apenas nos casos de flagrante delito e nas investigações da Polícia Civil e da Polícia Militar. Nenhum caso foi resolvido com base em vestígios determinantes como impressão digital, DNA e balística. Mas poder-se-ia chegar à autoria por intermédio desses vestígios? Por que isso não acontece? Falta de tecnologia? Carência de profissionais? Conflito profissional?

Respondendo ao primeiro pressuposto sobre a possibilidade de esclarecimento do crime por meio dos vestígios determinantes, é possível concluir que a autoria delitiva poderia ser determinada em um caso de crime contra a vida. Isso pode ser feito valendo-se dos vestígios de DNA, de balística ou de impressão digital, se o local fosse examinado de forma cuidadosa e com a participação multidisciplinar dos especialistas das diferentes áreas.

Outro argumento muito utilizado para o fraco desempenho dos vestígios determinantes no esclarecimento dos crimes contra a vida é a carência de tecnologia disponível para os profissionais. Essa justificativa não pode ser aplicada em Goiás, uma vez que o estado, de acordo com os profissionais da perícia entrevistados, possui um dos melhores aparatos tecnológicos do Brasil na área pericial, ou seja, comparador balístico, laboratório de DNA com equipamentos de última geração e o Sistema Automatizado de Identificação de Impressões Digitais (Afis)3 3 Trata-se de um sistema que executa confrontos de impressões digitais de forma automatizada, permitindo operações de verificação ou identificação de impressões digitais cadastradas nesse ambiente. . Contudo, mesmo com tecnologia de ponta, a perícia tem oferecido resultados pouco significativos para a determinação da autoria. Acompanhe-se a fala de um gestor:

- Para mim é essencial. Essa questão do latrocínio é interessante, porque, como você falou, é difícil demais de identificar, né, porque você pega uma pessoa que não tinha uma relação difícil com ninguém, não era uma pessoa que estava na zona de risco, então é muito difícil. A perícia é essencial nesse sentido, a questão da balística, por exemplo. Aí você tem outros problemas que deveriam ser resolvidos, como o cadastro nacional de armas. (Gestor da PC 1, masc., 42 anos)

De acordo com o entrevistado, as particularidades do latrocínio - ausência de motivação pessoal, ausência de comportamento de risco por parte da vítima, como envolvimento com atividades ilícitas que justificassem o crime e possibilitassem a identificação do autor a partir da rede de relacionamentos da vítima - fazem com que a perícia seja ainda mais importante para o esclarecimento do crime. Contudo, se, por um lado, o gestor da Polícia Civil aponta a importância dos vestígios determinantes, por outro, indica as limitações do uso da tecnologia e dos bancos de dados, principalmente o balístico, para o esclarecimento dos crimes.

Nos inquéritos avaliados, o vestígio balístico foi o mais utilizado, proveniente basicamente dos corpos das vítimas. As armas de fogo são responsáveis por 85% das mortes. Mesmo assim, a função do exame de balística nos inquéritos de latrocínio em Goiânia em 2017 foi de confirmação. Ou seja, em dois casos de latrocínio, após a prisão do suspeito com a arma, foi possível comparar o projétil encontrado no cadáver com a arma do suspeito e confirmou-se que o disparo que matou o indivíduo era proveniente da arma apreendida com o suspeito.

Os resultados referentes aos vestígios balísticos demonstram que a balística é uma importante ferramenta para identificar de qual arma saiu o disparo. Todavia, ela foi eficiente somente nos casos em que houve apreensão da arma com o suspeito. Ou seja, apresentou limitações quanto à identificação de vestígio balístico sem a presença da arma suspeita e, em consequência, a identificação do portador da arma, uma vez que não existe um banco de dados balístico nacional, e o banco de dados de Goiás tem padrões reduzidos. O DNA, conforme demonstram as informações da pesquisa, é o segundo exame de vestígio encontrado no local de crime mais solicitado nos crimes de latrocínio, levantados na pesquisa. Veja-se o que diz um dos entrevistados:

- Outra questão que me vem à cabeça agora é [a] questão das perícias pelo método de DNA no sistema da chamada biologia molecular, né. A biologia molecular avançou demais, né, porque no passado tínhamos laudos periciais que eram feitos e às vezes só fazia o fator Rh, só pra gente detectar a inclusão ou exclusão né, ou constatação... Muito pouco. Hoje não. (Juiz 2, masc., 66 anos)

Segundo a fala do juiz, passou-se da possibilidade de apenas incluir ou excluir um suspeito em uma perícia onde havia sangue, com base no exame de fator Rh4 4 Rh é o antígeno presente no sangue de determinadas pessoas que indica que a classificação será Rh+. Os indivíduos que não têm naturalmente o tal antígeno recebem a classificação Rh-. https://www.todabiologia.com/genetica/fator_rh.htm , para a moderna tecnologia da biologia molecular. Esse vestígio encontrado no local de crime e capaz de identificar o autor diz respeito a amostras biológicas como sangue, cabelo, fluido etc. Esse material coletado no local pode ser processado em laboratório e, por meio do DNA, é realizado um perfil genético que pode ser pesquisado no banco de dados da instituição ou comparado com o de um suspeito apresentado pela polícia. Nos inquéritos avaliados pela pesquisa, em quatro exames de DNA requeridos, nenhum laudo constou do inquérito - sendo assim, nenhum foi capaz de identificar a autoria do crime.

Nos inquéritos avaliados, os vestígios de impressão digital foram os menos utilizados na tentativa de descobrir a autoria do crime de latrocínio; somente em três perícias foram levantados vestígios papiloscópicos e, mesmo assim, nenhum constava dos inquéritos. Os dados encontrados nos inquéritos de latrocínio sobre a utilização das impressões digitais são graves e precisam ser esclarecidos. Goiás tem à disposição um banco de dados estadual de 45 milhões de impressões digitais e outro sistema da Polícia Federal com 200 milhões de impressões digitais, perfazendo 245 milhões de possibilidade de pesquisa, comparação e identificação do autor de um crime. E essa identificação é possível com um fragmento de impressão digital encontrado no local de crime ou em objetos relacionados, sem nenhum provável suspeito.

No que diz respeito aos vestígios capazes de identificar autoria, a papiloscopia apresenta-se como setor com maior possibilidade de resultados, em virtude de seu volumoso banco de dados padrão estadual e federal para pesquisa. A subutilização da papiloscopia como possibilidade de identificação do autor de crime de latrocínio é comprovada pelo reduzido registro de coleta desse tipo de vestígio no inquérito e pela ausência do papiloscopista nos levantamentos dos vestígios do local de crime.

Conclusão

De acordo com as entrevistas e os achados sobre a utilização de vestígios determinantes, é possível responder aos questionamentos inicialmente elencados. O primeiro era: a autoria de um delito poderia ser esclarecida por meio desses vestígios? A resposta é sim, existe a possibilidade técnica. O segundo questionamento era: se existe a possibilidade, por que ela é pouco utilizada ou tem resultados insignificantes? Isso não se deve à ausência de tecnologia nem à carência de profissionais, uma vez que Goiânia conta com um número razoável de peritos criminais e papiloscopistas e com tecnologias modernas. Isso posto, foi aferido na pesquisa que é o conflito entre os papiloscopistas e os peritos criminais um dos principais problemas para a utilização da impressão, um dos vestígios mais fáceis de serem encontrados e processados no local de crime, bem como o único, até o momento, com viabilidade de pesquisa em um banco de dados de massa.

A disputa pelos vestígios determinantes da cena do crime, que, de acordo com todos os protocolos orientadores nacionais, deveria ser um trabalho multidisciplinar, com a participação de papiloscopistas e peritos criminais (e que em Goiás, na prática, não ocorre), é descrita por muitos profissionais da área como causa da baixa qualidade e quantidade de vestígios nos locais do crime. O corporativismo, a competição, a defesa dos interesses de grupos ávidos por poder e prestígio, embora existam em todas as profissões, complicam o trabalho dos profissionais da perícia, porque é o laudo deles que poderá definir o esclarecimento de um crime ou o seu julgamento: “O juiz fundamenta sua decisão na resposta do perito sobre determinada questão, confiando o juiz nos fundamentos apontados por este, contando com sua lealdade e acreditando que naquela questão foram aplicadas leis científicas” (SILVA e SANCHEZ, 2010SILVA, Alexandre A. G.; SANCHEZ, Pedro L. P. “A perícia como garantidora dos direitos humanos no século XIX”. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, n. 16, pp. 1-14, 2010., p. 8). Portanto, acredita-se que, em laudos de local de crime, em busca de determinar a dinâmica do crime, a causa da morte e a autoria, serão utilizadas todas as ferramentas disponíveis e possíveis para o esclarecimento.

Após avaliarmos os conflitos e as interações entre profissionais da perícia nos processos de investigação e o modo como essas relações podem resultar na qualidade dos inquéritos e, por sua vez, no esclarecimento de crimes, procuramos observar como o MP e o Poder Judiciário se posicionam diante de tais conflitos. A avaliação do entendimento dessas instituições é importante, pois todo o processo de investigação realizado pelas polícias e que resulta no inquérito policial é encaminhado ao MP, que tem a função de avaliar as investigações, observando se os indícios foram suficientemente investigados para a construção da materialidade e da autoria do delito. Após a validação desse processo, o MP oferece a denúncia ao Poder Judiciário que, por meio da apresentação das provas e da participação da defesa e da acusação, fará o julgamento e definirá a penalidade ao autor.

O que foi possível constatar na pesquisa é que tanto o Poder Judiciário quanto o MP desconhecem ou entendem como questões periféricas e corporativas os problemas de conflitos entre os profissionais responsáveis pela cena de crime e sua investigação. Além disso, desconhecem as principais ferramentas tecnológicas disponíveis para a perícia goiana como o Afis, comparados balísticos e o laboratório de DNA. Veja-se o que trazem algumas falas:

- Nós observamos [que] o Poder Judiciário tem pouquíssima percepção de como a perícia trabalha e as dificuldades. Eles não têm. Inclusive, recentemente a gente [estava] conversando com um juiz, ele ficou surpreso que nós escrevemos os nossos próprios laudos. Ele imaginava que havia digitador dos laudos e a gente rascunhava, algo assim. (Perito criminal 1, masc., 44 anos)

- É na fase pré-processual que é a fase que determina mais de 90% do julgamento, porque as provas coletadas em sede de investigação que são as provas usadas para julgamento. (Delegado de polícia 6, masc., 52 anos)

Portanto, se no inquérito cabe ao promotor de justiça validar essa investigação e se ela é fundamental para o juiz julgar, quando eles desconhecem as condições e as ferramentas ou quando minimizam as disputas entre os profissionais que produzem essas informações, como o MP terá condições de realizar um controle externo, avaliando se uma investigação pode ser considerada completa ou não? Por fim, como um juiz pode realizar um julgamento baseado em informações produzidas no inquérito se ele desconhecer todas as variáveis que podem alterar o resultado final da investigação, como a não utilização de vestígios determinantes em uma situação em que poderiam ser utilizados ou a manipulação indevida do local de crime?

Diante do exposto, é notório que a prova científica é significativamente afetada pela disputa na cena do crime. O conflito entre os vários agentes, como, por exemplo, entre peritos criminais e papiloscopistas, prejudica e muitas vezes impede a coleta da impressão digital, um importante vestígio determinante capaz de identificar o suspeito e contribuir para o esclarecimento do crime.

Valendo-se da investigação proposta, conclui-se que a ausência de interação e as disputas entre as diferentes instituições ou entre os cargos de uma mesma instituição podem acarretar prejuízos em todas as fases do processamento da cena do crime. Tais prejuízos começam no registro do crime, que, quando mal alimentado, dificulta o conhecimento da vitimologia nos crimes de latrocínio, não sendo possível saber, principalmente, cor da pele, profissão e local de residência da vítima, o tipo de arma que provocou a morte e o objeto envolvido no roubo. Provocam-se danos nas investigações preliminares, tanto no tocante à preservação do local de crime quanto ao compartilhamento de informações entre a Polícia Militar e a Polícia Civil no processo de investigação. Na investigação de seguimento, a falta de integração e cooperação entre as delegacias especializadas e as distritais e ainda entre os delegados de polícia e os peritos criminais promove o desperdício de informações norteadoras, tanto para a investigação cartorial quanto para a pericial.

Tudo isso propicia um cenário de baixa elucidação e punição de crimes, impactando profundamente no sentimento de insegurança e impunidade dos cidadãos. Entendemos que a dinâmica do sistema de justiça e particularmente das forças policiais necessita ser explicitada e discutida de forma consistente, transparente e exaustiva entre seus pares e a sociedade. É nesse sentido que este estudo busca lançar um pouco de luz sobre os obstáculos, conflitos e disputas que envolvem os processos de investigação de crimes.

Referências

  • ADORNO, Sérgio. “Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade”. Tempo Social, São Paulo, vol. 10, n. 1, pp. 19-47, 1998.
  • BRASIL. Protocolos de intervenção para o Samu 192: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Brasília, DF: Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, 2014.
  • BRASIL. Código de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
  • BRASIL, Glaucíria M.; ABREU, Domingos. “Uma experiência de integração das Polícias Civil e Militar: os Distritos-Modelo em Fortaleza”. Sociologias, vol. 4, n. 8, pp. 318-355, 2002.
  • CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000.
  • CANO, Ignácio; DUARTE, Thais L. “A mensuração da impunidade no sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro”. Segurança, Justiça e Cidadania, vol. 2, n. 4, pp. 9-44, 2010.
  • COSTA, Arthur T. M. “Criação da base de indicadores de investigação de homicídios no Brasil”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 8, n. 2, pp. 164-172, 2014.
  • COSTA, Arthur T. M. “É possível uma política criminal? A discricionariedade no sistema de justiça criminal do DF”. Sociedade e Estado, vol. 26, n. 1, pp. 97-114, 2011.
  • FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2019.
  • IBGE. Censo Demográfico 2010: Características da população e dos domicílios - Resultados do Universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.
  • IBGE. Estimativas da População Residente no Brasil e Unidades da Federação com Data de Referência em 1º. de julho de 2017. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/ IBGE, 2017.
  • IBGE. Estimativas da População Residente no Brasil e Unidades da Federação com Data de Referência em 1º. de julho de 2019. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/IBGE, 2019.
  • INSTITUTO SOU DA PAZ. Onde mora a impunidade? Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios. Instituto Sou da Paz, dez. 2017. Disponível em: http://soudapaz.org/wp-content/uploads/2019/11/Instituto-Sou-da-Paz_Onde_Mora_a_Impunidade.pdf
    » http://soudapaz.org/wp-content/uploads/2019/11/Instituto-Sou-da-Paz_Onde_Mora_a_Impunidade.pdf
  • MAHONY, Tina; TURNER, John. “Police-reported clearance rates in Canada, 2010”. Juristat, Component of Statistics Canada catalogue n. 85-002-X, 7 jun. 2012.
  • MAREUSE, Márcia A. G. A representação infantil da violência na mídia: Uma perspectiva para repensar a educação. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
  • MILESKI, Thayse C. Aplicação de corantes benzazólicos fluorescentes por ESIPT para a revelação de manchas de sangue em cenas de crime e a síntese do luminol. Dissertação (Mestrado em Química) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
  • MINGARDI, Guaracy. A investigação de homicídios: Construção de um modelo. Relatório de pesquisa, Perícia Oficial, São Paulo, abr. 2006. Disponível em: http://www.periciaoficial.al.gov.br/legislacao/artigos-pesquisas-cientificas-e-livros/invest_homic_guaracy.pdf
    » http://www.periciaoficial.al.gov.br/legislacao/artigos-pesquisas-cientificas-e-livros/invest_homic_guaracy.pdf
  • MORAES, Ademárcio. Investigação criminal de homicídios. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2014.
  • MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: Estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
  • PARANÁ. Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos. Curitiba: Secretaria de Direitos Humanos, 2012. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para- todos/pdf/ParecerhomologadoDiretrizesNacionaisEDH.pdf
    » http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para- todos/pdf/ParecerhomologadoDiretrizesNacionaisEDH.pdf
  • PMGO. Procedimento Operacional Padrão. Polícia Militar De Goiás (PMGO): Goiânia, 2014.
  • SILVA, Alexandre A. G.; SANCHEZ, Pedro L. P. “A perícia como garantidora dos direitos humanos no século XIX”. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, n. 16, pp. 1-14, 2010.
  • VARGAS, Joana; NASCIMENTO, Luiz Felipe Z. “O inquérito policial no Brasil: Uma pesquisa empírica: o caso da investigação criminal de homicídios dolosos em Belo Horizonte”. In: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (org). Reflexões sobre a investigação brasileira através do inquérito policial. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2009.
  • ZALUAR, Alba. “A globalização do crime e os limites da explicação local”. In: VELHO, Gilberto; ALTIVO, Marcos (orgs). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FGV, 1996, pp. 48-68.
  • 1
    A categoria mortes violentas intencionais (MVI) corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora. Sendo assim, a categoria representa o total de vítimas de mortes violentas com intencionalidade definida.
  • 2
    Dois agentes de polícia, sete delegados de polícia, dois escrivães de polícia, dois gestores da SSP-GO, um médico legista, sete papiloscopistas, quatro peritos criminais, um policial militar, quatro juízes e quatro promotores de justiça.
  • 3
    Trata-se de um sistema que executa confrontos de impressões digitais de forma automatizada, permitindo operações de verificação ou identificação de impressões digitais cadastradas nesse ambiente.
  • 4
    Rh é o antígeno presente no sangue de determinadas pessoas que indica que a classificação será Rh+. Os indivíduos que não têm naturalmente o tal antígeno recebem a classificação Rh-. https://www.todabiologia.com/genetica/fator_rh.htm

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2020
  • Aceito
    18 Ago 2020
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, 1, Sala 109, Cep: 20051-070, Rio de Janeiro - RJ / Brasil , (+55) (21) 3559.1926 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: coordenacao.dilemas@gmail.com