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As múltiplas faces da milícia Liga da Justiça: Reorientação moral e deslocamento político na Zona Oeste do Rio de Janeiro* * O presente trabalho foi apresentado, em 2022, no 46º Encontro Anual da Anpocs, e contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo 140414/2021-5.

The multiple faces of the Liga da Justiça militia: Moral reorientation and political displacement in the West Zone of Rio de Janeiro

Resumos

O atual cenário da criminalidade carioca evidencia uma reconfiguração das linhas de forças, produzindo um encadeamento no qual diversos grupos criminais interagem entre si e com as forças da ordem (harmônica ou desarmonicamente) em busca de controle territorial e recursos econômicos. Tráfico de drogas extorquindo moradores, milícia vendendo drogas ilícitas e acordos de cooperação mútua entre ambos revelam que as fronteiras que operavam a distinção dessas duas organizações têm se ressignificado, produzindo situações e agenciamentos complexos. Esta pesquisa busca, a partir de uma abordagem metodológica que combina análise de discurso midiático e documental com entrevistas e conversas com moradores, compreender como as práticas da milícia Liga da Justiça se modificaram ao longo do tempo e quais os contextos e as consequências dessas mudanças para os moradores da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Palavras-chave:
Milícia; Liga da Justiça; violência; Zona Oeste; Rio de Janeiro


The current scenario of criminality in Rio de Janeiro evidences a reconfiguration of the lines of forces, producing a chain in which several criminal groups interact with each other and with the forces of (harmonious or disharmonious) order in search of territorial control and economic resources. Drug trafficking extorting residents, militia selling illicit drugs, and mutual cooperation agreements between both, show that the borders that operated the distinction between them reveal that the boundaries that operated the distinction between these two organizations have been resignified, producing complex situations and assemblages. This research seeks, from a methodological approach that combines analysis of media and documentary discourse with interviews and conversations with residents, to understand how the practices of the Liga da Justiça militia have changed over time and what are the contexts and consequences of these changes for residents of the West Zone of Rio de Janeiro.

Keywords:
Militia; Liga da Justiça; violence; West Zone; Rio de Janeiro


Introdução

Os grupos milicianos surgiram no final da década de 1990 como uma espécie de solução comunitária para o problema da violência que assolava os cariocas naquele período. Sendo uma descendência direta de grupos de extermínio e da “polícia mineira”, associações de policiais passaram a gerir a ordem em seus próprios locais de moradia, financiados pelo comércio local e pelos próprios moradores. Seu modo de atuação foi definido a partir da oposição ao universo das quadrilhas do tráfico de drogas e por meio de projeto moral claramente instituído (ALVES, 2003ALVES, José Cláudio. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias, RJ: Associação de Professores e Pesquisadores de História, CAPPH-CLIO, 2003.; DA MOTTA, 2020DA MOTTA, Jonathan. A experiência do Jardim Batan: Regime de incerteza no pós-pacificação. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020.; MESQUITA, 2008MESQUITA, Wânia. “Tranquilidade sob a ordem violenta: O controle da ‘mineira’ em uma favela carioca”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org.). Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. pp. 227-248.; MISSE, 2011MISSE, Michel. “Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: Diferenças e afinidades”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, vol. 19, n. 40, pp. 13-25, 2011.; POPE, 2023POPE, Nicholas. “Surviving and Dying through the Urban Frontier: Everyday Life, Social Brokerage and Living with Militias in Rio de Janeiro’s West Zone”. Urban Studies, Thousand Oaks, CA, vol. 60, n. 2, p. 343-359, 2023. DOI: 10.1177/00420980221093181.
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; ROCHA; DA MOTTA, 2020ROCHA, Lia de Mattos; DA MOTTA, Jonathan. “Entre luzes e sombras: O Rio de Janeiro dos megaeventos e a militarização da vida na cidade”. Interseções, Rio de Janeiro, vol. 22, n. 2, 2020.; SILVA, 2017SILVA, Marcella de Araujo. Houses, “Tranquility and Progress in an Área de Milícia”. Vibrant, Brasília, DF, vol. 14, n. 3, e143132, 2017.; ZALUAR; CONCEIÇÃO, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel. “Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro”. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 21, n. 2, pp. 89-101, jul./dez. 2007.).

Com o passar do tempo esses grupos se associaram à política, elegendo representantes parlamentares para atuarem como braço institucional dos interesses milicianos (ALVES, 2003ALVES, José Cláudio. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias, RJ: Associação de Professores e Pesquisadores de História, CAPPH-CLIO, 2003.). Nesse momento, formou-se redes de influência e cooperação com as polícias, os políticos, os líderes comunitários e os funcionários do Estado, garantindo acessos a recursos, diminuindo conflitos e limitando o combate pelas autoridades estatais (ARIAS, 2013ARIAS, Enrique Desmond. “The Impacts of Differential Armed Dominance of Politics in Rio de Janeiro, Brazil”. Studies in Comparative International Development, Berlin, vol. 48, n. 3, pp. 263-284, 2013.; ARIAS; BARNES, 2017ARIAS, Enrique Desmond; BARNES, Nicholas. “Crime and Plural Orders in Rio de Janeiro, Brazil”. Current Sociology, Thousand Oaks, CA, vol. 65, n. 3, pp. 448-465, 2017.; MANSO, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.; MENDONÇA, 2014MENDONÇA, Tássia. Batan: Tráfico, milícia e “pacificação” na Zona Oeste do Rio de Janeiro. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.). É por meio desses agenciamentos que os grupos milicianos conseguem minimizar o sentimento de “cerco” (MACHADO DA SILVA; LEITE, 2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; LEITE, Márcia. “Violência, crime e política: O que os favelados dizem quando falam desses temas?” In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org.). Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. pp. 47-76.), garantir a livre circulação de pessoas e mercadorias em seus territórios e assegurar a “tranquilidade” - elemento central da aceitação das milícias (BURGOS, 2008BURGOS, Marcelo. “Cidadania, favela e milícia: as lições de Rio das Pedras”. Blog do Omar, Brasil, 26 jun. 2008. Disponível em: https://doomar.blogspot.com/2008/06/cidadania-favela-e-milcia-as-lies-de.html. Acesso em: 20 nov. 2023.
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; MESQUITA, 2008MESQUITA, Wânia. “Tranquilidade sob a ordem violenta: O controle da ‘mineira’ em uma favela carioca”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio (org.). Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. pp. 227-248.; SILVA, 2017SILVA, Marcella de Araujo. Houses, “Tranquility and Progress in an Área de Milícia”. Vibrant, Brasília, DF, vol. 14, n. 3, e143132, 2017.).

Contudo, presencia-se recentemente a associação de grupos milicianos com traficantes, em que há extorsão de moradores por parte do tráfico de drogas, venda de drogas ilícitas por parte da milícia e divisão de receitas entre ambos. “Narcomilícia” (WERNECK, 2019WERNECK, Antônio; DE SOUSA; Rafael Nascimento. “Narcomilícias: Traficantes e milicianos se unem em 180 áreas do Rio, segundo investigação”. O Globo, Rio de Janeiro, 10 out. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/narcomilicias-traficantes-milicianos-se-unem-em-180-areas-do-rio-segundo-investigacao-24007664. Acesso em: 27 dez. 2022.
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) tem sido a categoria mobilizada pelos meios de comunicação e por membros do poder judiciário para classificar esse tipo de relação que tem chamado atenção das autoridades estatais e da opinião pública fluminense. Porém, essa conceituação é extremamente problemática porque ela unifica uma série de práticas, linguagens e situações em uma cristalização generalizante, perdendo de vista as complexidades desses agenciamentos. É mais interessante entender que a fronteira moral que existia entre tráfico e milícia se modifica cada vez mais, o que não significa que eles se tornaram a mesma coisa (ARIAS, 2013ARIAS, Enrique Desmond. “The Impacts of Differential Armed Dominance of Politics in Rio de Janeiro, Brazil”. Studies in Comparative International Development, Berlin, vol. 48, n. 3, pp. 263-284, 2013.; DUARTE, 2019DUARTE, Thais. “Facções criminais e milícias: Aproximações e distanciamentos propostos pela literatura”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB), São Paulo, n. 90, pp. 1-16, 2019.).

O objetivo desse trabalho é prospectar sobre as mudanças, as continuidades e os deslocamentos ocorridos nas práticas da maior milícia do Rio de Janeiro (LEMOS, 2022LEMOS, Marcela. “Como [a] Liga da Justiça se transformou no Bonde do Zinho, maior milícia do RJ”. UOL, São Paulo, 26 ago. 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/08/26/como-liga-da-justica-se-transformou-no-bonde-do-zinho-maior-milicia-no-rj.htm. Acesso em: 27 ago. 2023.
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) - a Liga da Justiça - e as consequências para os moradores. A partir de uma abordagem metodológica que combina análise de discurso midiático e documental com entrevistas e conversas com moradores, pretendo compreender como as práticas da Liga da Justiça se modificaram ao longo do tempo e quais os contextos envoltos nessas mudanças.

Para a realização desta investigação sócio-histórica, utilizei como material de análise: a) entrevista semiestruturada com um morador do bairro Campo Grande, da cidade do Rio de Janeiro; b) conversa informal com um interlocutor que conviveu com um líder miliciano; c) partes do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das milícias; d) e dez notícias publicadas on-line. A partir da combinação desses vários fragmentos narrativos de diferentes naturezas, constitui um quadro geral das mudanças ocorridas na Liga da Justiça.

Na primeira parte do trabalho, reconstruo as narrativas do surgimento, ascensão econômica e conflitos que impulsionaram a Liga da Justiça. Na segunda parte, debato sobre as controvérsias existentes do deslocamento territorial e político e das mudanças de atuação e mentalidade do grupo. Por fim, apresento as consequências dessas transformações na vida dos moradores do bairro Campo Grande. Dessa forma, mostro como os grupos milicianos são diversos entre si, produzindo distintas formas de atuação e agenciamentos ao longo do tempo. Além disso, almejo contribuir para a compreensão das práticas in situ da milícia que ainda carece de estudos etnográficos.

Formação e evolução da milícia em Campo Grande

Campo Grande é o bairro mais populoso do Rio de Janeiro, detentor de uma população de cerca de 328.370 habitantes e mais de 120.049 domicílios, segundo o Censo de 2010. Localizado na Zona Oeste da cidade, o bairro é heterogêneo e plural, dividido em diversas subáreas que experimentam contextos, histórias e situações distintas. Seu passado remonta ao mundo rural, nacionalmente conhecido pela produção de cana-de-açúcar e de laranja, até sua urbanização na década de 1960, quando se tornou uma região industrial. Ademais, Campo Grande se notabilizou por abrigar diversos funcionários públicos, especialmente das forças auxiliares do Estado, como policiais, bombeiros e afins.

Scott, um jovem adulto, negro retinto e morador da região central de Campo Grande, viveu e testemunhou o surgimento e as mudanças do regime territorial de sua vizinhança. Antes da consolidação dos milicianos, a região passou por disputas entre grupos de policiais pelo controle territorial e econômico. Em função de seu aspecto militarizado e pela demanda por segurança que assolaram o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, Campo Grande tinha a característica de ter um ou mais policiais fazendo a segurança em determinadas regiões do bairro.

Vou te falar que é muito assim, porque são pessoas que cresceram ali quem assume essa parte. Voltando um pouco lá, em 2004, 2005, eu sempre falava isso em todas as escolas que eu estudava, que quando saiu o Tropa de elite, eu falava: “Cara, eu vivi tudo isso aí na minha rua”. Várias cenas do Tropa de elite 2 aconteceram ali onde eu moro: assassinato de motorista de van, assassinato em bar, miliciano que virava vereador e na semana seguinte ele morria, policial do BOPE que era conhecido nosso, era assassinado. A gente brincava muito na rua e quando começou esses assassinatos passavam conhecidos nossos e falavam: “Dezenove horas e ninguém na rua, porque vai acontecer alguma coisa”. […] Aí era mais ou menos isso, quem eles escolhiam que era para matar eles matavam e depois voltava ao normal. Então, era diferente dos comandos, porque, na época, eles trocavam porque um ia matando o outro. Um ascendia e via que aquilo ali era uma fonte de renda, daqui a pouco vinha o outro e era meio que “terra de Marlboro”, meio Texas, que o mais valentão mandava e, até alguém assumir e controlar, demorou tipo uns três, quatro anos. Eu posso dizer que, naquela época, eram forças policiais que viraram milicianos. Eram todos eles, até alguns que também foram assassinados depois (informação verbal).1 1 Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

Entre o início e meados dos anos 2000, a região central de Campo Grande era controlada por moradores locais que tinham alguma vinculação com as forças de segurança e faziam a gestão da ordem local. Essas atividades também geravam oportunidades de explorações econômicas, o que provocou a incidência de rivalidades internas e conflitos sangrentos, que Scott classifica como “terra de Marlboro, meio Texas”. Esse tipo de controle territorial pode ser entendido como uma espécie de protomilícia policial, um tipo de organização pessoalizada, estruturada em grupos de poucas pessoas, composta quase que exclusivamente por policiais e ex-policiais, com pouca capacidade de articulação política (comunitária e institucional), e com o objetivo de gerir a ordem, as moralidades locais e explorar exclusivamente a taxa de segurança. A questão securitária era o principal pilar organizacional desses grupos de policiais.

O mais conhecido grupo, nessa parte da cidade, foi a dupla de irmãos e policiais civis, Jerominho e Natalino Guimarães. Ambos foram responsáveis por remodelar o modus operandi da protomilícia, unificando esses policiais dispersos e imbricando o universo da política institucional, da segurança e da diversificação econômica em um grupo organizado chamado de Liga da Justiça. Após saírem da cadeia, a dupla explicou suas atividades à época:

Com a chegada do tráfico aqui na Zona Oeste, lá por 1996, houve uma violência tremenda. E, nas comunidades carentes daqui, moram vários policiais e agentes penitenciários. A população com medo e os policiais das comunidades se uniram e criaram [as milícias]. Expulsaram os vagabundos do local para ter condições de sobreviver. Isso que se chamava de milícia antigamente. Surgiu como defesa dos próprios moradores por falta de poder público (ALESSI, 2019ALESSI, Gil. “Os fundadores da milícia Liga da Justiça querem reerguer seu império político (e cuidar dos netos)”. El País, Rio de Janeiro, 8 maio 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/05/politica/1557066247_273526.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

Os irmãos, ainda que negassem sua participação na criação da Liga da Justiça, produziram uma narrativa mítica do início desse ordenamento territorial. Segundo eles, o grupo surgiu com uma espécie de autodefesa comunitária dos próprios moradores (moradores militarizados em algum grau) com o objetivo de “expulsar os vagabundos” e garantir “condições de sobrevivência”. Nessa perspectiva, as dimensões política e moral são evocadas, sobretudo quando os irmãos justificam as ações do grupo por “falta de poder público”. A lógica acionada pelos irmãos é que o grupo só existiu para resolver os problemas de insegurança local oriundos da falta de política pública de segurança.

Contudo, a CPI - instaurada em 2008 sob a presidência do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) -, a partir de uma série de depoimentos, atribuía outro significado ao grupo. Segundo o depoimento do delegado Marcus Neves, a Liga da Justiça ficou mais estruturada quando seus líderes ocuparam cargos no poder Legislativo municipal e estadual. Jerônimo Guimarães se elegeu vereador pela primeira vez em 2000, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com 20.560 votos; e, em 2004, reelegeu-se com 33.373 votos. Já Natalino Guimarães se elegeu deputado estadual pelo Democratas (DEM), em 2006, com 49.405 votos. Ambas as candidaturas apresentaram indícios de fraudes eleitorais, segundo o relatório da CPI. Ainda segundo o depoente:

Há oito anos, esses grupos de milicianos tinham um objetivo “legítimo” de expulsar traficantes de determinadas localidades. O objetivo era promover autodefesa, ou seja, policiais que residiam em áreas carentes começaram a se organizar e entendiam que agiam legitimamente ao retirarem dessas comunidades criminosos que atuavam, principalmente, em tráfico de drogas. Quando falamos em tráfico de drogas temos que considerar crimes que são associados ao tráfico de drogas, como homicídios, roubo de veículos; e esses policiais se organizam com a ideia de reprimir esses grupos. Só que entenderam que, para promover essa organização, era preciso dar uma estrutura empresarial a essa organização, eles precisavam de recursos financeiros e começaram a explorar determinadas atividades, entre elas, o transporte alternativo, que é a principal fonte de recursos financeiros dos milicianos (RIO DE JANEIRO, 2008RIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação de milícias no âmbito do estado do Rio de Janeiro: Comissão Parlamentar de Inquérito (Resolução nº 433/2008). Rio de Janeiro: Alerj, 2008. Disponível em: https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2018/12/relatorio_milicia.pdf. Acesso em: 20 nov. 2023.
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, pp. 40-41).

A fala do delegado demonstra a interessante modulação do julgamento moral a respeito da Liga da Justiça. Para ele, os objetivos iniciais desse grupo eram “legítimos”, mesmo que representassem um tipo de controle territorial fora dos marcos normativos da lei. Reprimir e expulsar o tráfico de drogas, embora de forma ilegal, era considerado “legítimo” para os moradores daquela localidade, uma vez que o medo da força do tráfico era maior que o medo da força da milícia (POPE, 2023POPE, Nicholas. “Surviving and Dying through the Urban Frontier: Everyday Life, Social Brokerage and Living with Militias in Rio de Janeiro’s West Zone”. Urban Studies, Thousand Oaks, CA, vol. 60, n. 2, p. 343-359, 2023. DOI: 10.1177/00420980221093181.
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; SILVA, 2017SILVA, Marcella de Araujo. Houses, “Tranquility and Progress in an Área de Milícia”. Vibrant, Brasília, DF, vol. 14, n. 3, e143132, 2017.). Desse modo, o problema do grupo, para o depoente, foi que, para fazer a manutenção dessa autoridade, era necessário uma “estrutura empresarial” e algum meio de recurso financeiro. É nesse momento que a milícia passa de “solução” para “problema” na perspectiva desse agente da ordem pública.

Outro elemento fundamental na fala do delegado é a relação da Liga da Justiça com o transporte alternativo, elemento que representou uma mudança fundamental na estrutura financeira e organizacional da milícia. Na mesma CPI, o promotor do Ministério Público (MP), Jorge Magno, também atribuiu o aumento das milícias à exploração do transporte alternativo:

A notícia desses grupos paramilitares, vulgarmente denominados de milicianos, começou a surgir depois que o transporte alternativo se instaurou, cresceu e começou a ser uma fonte de lucro muito grande. Porque, antes, na Zona Oeste, mais especificamente em Campo Grande, eu tinha muitos seguranças particulares, grupos que faziam segurança particular, máquinas caça-níqueis, ou seja, infelizmente, tudo que o Rio de Janeiro já vem tendo há muito tempo. Com o surgimento do transporte alternativo e o volume, a quantia arrecadada era muito grande, praticamente sem nenhum tipo de imposto a ser recolhido, esses grupos começaram a se organizar e começaram então a transferir a sua área de atuação também para o transporte alternativo. O que gerou, em razão do volume arrecadado, um poderio muito grande e brigas, porque, onde há muito dinheiro envolvido, começa a gerar brigas (RIO DE JANEIRO, 2008RIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação de milícias no âmbito do estado do Rio de Janeiro: Comissão Parlamentar de Inquérito (Resolução nº 433/2008). Rio de Janeiro: Alerj, 2008. Disponível em: https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2018/12/relatorio_milicia.pdf. Acesso em: 20 nov. 2023.
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, p. 41).

Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. elucida que uma das estratégias da Liga da Justiça era dominar o mercado de transporte alternativo. O grupo tomava cooperativas vans na Zona Oeste por meio da imposição da força e da violência, provocando mortes de quem se recusasse a entregar as empresas. O relatório da CPI das Milícias elucida que, a partir de meados da década de 1990, houve omissão do poder público a respeito do transporte coletivo. Impulsionada pela crise econômica, pela privatização de estatais e pela demissão em massa de trabalhadores, esse setor informal se tornou uma possibilidade de geração de renda em um contexto de austeridade. Tanto o tráfico de drogas quanto a milícia se aproveitaram dessa conjuntura para expandir seus lucros e monopolizar os serviços que, em 2008, contavam com pouquíssima fiscalização.

Essa usurpação de cooperativa de transporte alternativo foi uma das estratégias de expansão, tanto financeira quanto territorial, da Liga da Justiça em meados dos anos 2000. Contudo, algumas dessas empresas tinham relações espúrias com policiais (RAMALHO, 2010bRAMALHO, Sérgio. “MP denuncia Chico Bala por roubo e tentativa de homicídio”. Extra, Rio de Janeiro, 10 dez. 2010b. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/mp-denuncia-chico-bala-por-roubo-tentativa-de-homicidio-333215.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). O policial Francisco César Silva Oliveira, conhecido como Chico Bala, era lotado no batalhão de Santa Cruz e tinha relações com o transporte de vans na Zona Oeste. Ao ser expropriado pela Liga da Justiça, Chico Bala utilizou seu conhecimento e sua posição institucional para denunciar as atividades do grupo. Inclusive, foi ele quem “cumpriu o mandado de prisão contra o [Ricardo] Batman”, braço direito de Jerominho e Natalino Guimarães. A partir daí começou a rivalidade entre os dois, Chico Bala e Ricardo Batman, acentuada a partir da tentativa de homicídio do policial em 2007, que vitimou sua esposa e seu enteado, como consta na reportagem supracitada (RAMALHO, 2010bRAMALHO, Sérgio. “MP denuncia Chico Bala por roubo e tentativa de homicídio”. Extra, Rio de Janeiro, 10 dez. 2010b. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/mp-denuncia-chico-bala-por-roubo-tentativa-de-homicidio-333215.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

A partir desse momento, o desafeto da Liga da Justiça se aliou a outras pessoas, formando o Comando Chico Bala, um grupo de milicianos dissidentes que buscavam controlar a Zona Oeste, extorquindo comerciantes locais (RAMALHO, 2010aRAMALHO, Sérgio. “Milícia comandada pelo ex-PM Chico Bala cobra até pela venda de água na Zona Oeste”. Extra, Rio de Janeiro, 10 nov. 2010a. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/milicia-comandada-pelo-ex-pm-chico-bala-cobra-ate-pela-venda-de-agua-na-zona-oeste-28210.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://extra.globo.com/noticias/rio/mil...
). Nesse mesmo período, os líderes da Liga da Justiça começaram a ser presos: Jerominho foi preso em 2007 (BOECKEL; COELHO, 2021BOECKEL, Cristina; COELHO, Henrique. “Ecko é o 6º chefe da maior milícia do RJ preso ou morto; quadrilha aterroriza o Grande Rio há mais de 15 anos”. g1, Rio de Janeiro, 12 jun. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/12/milicia-de-ecko.ghtml. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
) e Natalino preso em 2008 (HAIDAR, 2008HAIDAR, Daniel. “Polícia prende deputado Natalino após tiroteio com milícia”. g1, Rio de Janeiro, 22 jul. 2008. Disponível em: https://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL687447-5606,00-POLICIA+PRENDE+DEPUTADO+NATALINO+APOS+TIROTEIO+COM+MILICIA.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL...
), levando à ascensão de Ricardo Batman e Toni Ângelo como líderes da organização. Batman foi um dos responsáveis pela expansão dos negócios da milícia, especialmente no ramo do transporte alternativo. O miliciano com nome de super-herói foi preso em 2008, mas conseguiu fugir da cadeia. Porém, enquanto esteve preso, viu seu rival tomar seus negócios, conforme ligação grampeada de Batman para uma cooperativa de transporte alternativo:

Ricardo Batman: Bom dia, seu Paulo. Por favor, o De Lima tá aí?

Paulo: Aqui não tá, não. Quem é que tá falando?

Ricardo Batman: É o Batman.

Paulo: Tá de brincadeira comigo, né?

Ricardo Batman: Não, não tô de brincadeira, não, seu Paulo. Só tô ligando porque sei que o senhor é uma pessoa do bem. Então, o De Lima, já liguei duas vezes para o celular dele e ele não tá me atendendo. O senhor avisa a ele que a partir de segunda-feira eu vou acabar com essa linha aí. Vocês estão cobrando uma porrada de linha que não é de vocês. […] Vou cair pra dentro dessa cooperativa e vou acabar. Quem “tiver” trabalhando aí vai pagar as consequências também. Eles têm que devolver o que é meu. Não vou medir consequência, não. E o senhor é trabalhador. Se eu fosse o senhor, até pulava fora, hein?!

Paulo: Tá certo.

Ricardo Batman: Pode ter certeza, eu vou acabar com essa cooperativa. Porque o que vocês estão fazendo comigo é sacanagem, entendeu? Tá comprando um barulho de Chico Bala… Minha guerra é com Chico Bala, não é nem com ele [De Lima], nem com o pai dele [Delson]. Pô, neguinho fica dando tiro aqui nos meus moleques que tão trabalhando. Infelizmente, tô num prejuízo do c… e vou correr atrás, certo?

Paulo: Peraí, ô Ricardo. Fala aqui com o Agno também.

Ricardo Batman: Tranquilo? É o Ricardo quem tá falando.

Agno: Ô, Ricardo.

Ricardo Batman: A partir dessa semana eu vou cair pra dentro dessa linha aí, parceiro. Não vou medir consequência. Fui preso, vieram aqui em Campo Grande, tomaram tudo que é meu, entendeu? Junto com aquele safado, aquele Gaguinho e aquele Escangalhado… Agora eu quero o que é meu de volta. Entendeu?

Agno: Entendi.

Ricardo Batman: Eu não queria fazer isso. Só que eu tô sendo obrigado a fazer a mesma coisa que eles estão fazendo.

Agno: Tô entendendo.

Ricardo Batman: Se eu fosse vocês, até pulava fora dessa porra, porque eu vou botar esse bagulho pra pegar fogo, mano.

Agno: Tá o.k. […] Obrigado pelo…

Ricardo Batman: Você me desculpa aí… Infelizmente, é uma guerra e eu não vou ficar deixando entrar dinheiro pra eles e eles comprando arma pra fortalecer os caras pra vir me dar tiro. Falou, irmão? (ESCUTAS…, 2010“ESCUTAS revelam que ‘Batman’ fazia ameaças de guerras”. Terra, Rio de Janeiro, 22 mar. 2010. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/policia/escutas-revelam-que-batman-fazia-ameacas-de-guerras,978aac68281da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.terra.com.br/noticias/brasil...
)

A conversa grampeada pelas autoridades mostra o repertório dúbio acionado pelo líder da Liga da Justiça. Ele coage a vítima afirmando que não vai medir consequências para retomar aquilo que seria dele por “direito”, inclusive afirmando que fecharia a cooperativa e que atacaria quem lá estivesse trabalhando. Mas, por outro lado, fez questão, a todo momento, de distinguir o alvo de sua revolta e as pessoas que não tinham relação com aquele conflito. Inclusive, no final da ligação, ele pede desculpas pelas ameaças que ele havia feito. Dessa forma, é possível perceber que Ricardo Batman aciona palavras que demonstram sua força e sua capacidade intimidatória, mas também mostra que sua intenção não era apenas se vingar e barbarizar tudo e todos próximo ao seu desafeto.

É possível notar a evocação de uma espécie de “ética da guerra justa”, por meio da qual se buscava penalizar apenas quem fazia parte da guerra, alertando os demais para sair do campo de batalha. Isso mostra como era a mentalidade da Liga da Justiça naquele momento. Ainda que o grupo fosse extremamente violento e intimidatório, havia a preocupação, pelo menos da alta hierarquia da organização, em agir de forma a não perder sua base social com os moradores.

Após ter uma parte de seus negócios usurpado, Ricardo Batman inicia a guerra pelo controle de áreas da Zona Oeste. Seu nome passa a estampar os jornais Brasil afora, dando visibilidade a Liga da Justiça, o transformando no principal nome da milícia após a prisão dos irmãos Jerominho e Natalino Guimarães. Após essas disputas, o grupo consegue retomar suas atividades econômicas, em especial entre Campo Grande e Santa Cruz; enquanto Chico Bala passa a controlar uma pequena região periférica de Campo Grande.

Nesse período, além da Liga da Justiça ter se expandido para outros territórios, como Santa Cruz, eles também se expandiram internamente. O grupo teve importância nas áreas centrais de Campo Grande; inclusive acabando com a rivalidade que existia entre os policiais locais. A grande diferença da Liga da Justiça para a protomilícia de policiais é que a primeira era composta por um grupo maior, tinha objetivos econômicos mais diversos do que apenas a taxa de segurança - como o controle dos transportes alternativos - e tinha na política institucional um dos mais importantes pilares. É a partir dos agenciamentos políticos que esses grupos criminais se tornam milícia, como bem frisou Alves (2003)ALVES, José Cláudio. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias, RJ: Associação de Professores e Pesquisadores de História, CAPPH-CLIO, 2003.. A Liga da Justiça usou seu controle territorial para eleger deputados e vereadores, algo que a protomilícia não visava.

Em 2009, Ricardo Batman é novamente preso e Toni Ângelo ascende como novo líder da organização. Nesse momento, a CPI havia prendido os principais líderes da Liga da Justiça, e a ideia de milícia passava por um rebaixamento moral após a tortura à equipe do jornal O Dia na favela do Batan. Cano e Duarte (2012)CANO, Ignacio; DUARTE, Thais. “No sapatinho”: A evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012. apontam que, para a perpetuação das atividades milicianas, é necessário modificar de modo radical algumas práticas antes estabelecidas. O domínio territorial, mesmo que menos ostensivo que no passado, manteve-se, assim como algum tipo de coação aos moradores e a motivação pelo lucro individual. Por outro lado, o discurso de legitimação e a posição de chefia de agentes públicos se modificou. Assim, a Liga da Justiça passou a agir “no sapatinho” [com prudência], optando pela discrição e com menos ostensividade, embora letal e perigosa. Essa estratégia se deu para dificultar a criminalização da organização, que, à época, estava sob a repressão dos agentes estatais.

A gestão de Toni Ângelo foi marcada estrategicamente por essa discrição, mas tal característica evidenciava uma mudança fundamental na atuação do grupo. Antes da CPI, a Liga da Justiça se notabilizou pelo controle moral das regiões em seus domínios e pela retórica da manutenção da ordem. As taxas de seguranças eram cobradas sob a justificativa de auxiliar na manutenção dessa iniciativa securitária. Logo, ainda que a dimensão política e econômica caminhassem juntas, na prática, a primeira justificava a segunda por meio da retórica. Com a prisão dos líderes e a necessidade de se ajustar ao contexto pós CPI, a milícia de Campo Grande, sob o comando de Toni Ângelo, optou por “afrouxar” [reduzir] a ostensividade e sofisticar suas atividades econômicas. Embora menos visível que antes, a milícia continuou eficiente no controle moral do território, coibindo e punindo usuários de drogas e traficantes.

Em geral, identificam-se quatro momentos dos regimes territoriais na região de Campo Grande. Primeiro, a protomilícia de policiais, a qual visava evitar que grupos de traficantes invadissem o território, era economicamente estruturada apenas por taxas de segurança e tinham boa relação com os moradores - apesar das rivalidades internas assustarem a vizinhança. Segundo, a Liga da Justiça sob a gestão dos irmãos Jerominho e Natalino Guimarães, que objetivava combater o tráfico e seus aspectos morais, impondo um tipo de segurança privada ilegal. Sua renda era advinda de taxa de proteção, em particular dos comerciantes da região. Do ponto de vista político, a Liga da Justiça tinha envolvimento com a política parlamentar e seus líderes foram eleitos com ampla votação, ainda que suspeitos de fraude. A relação da organização com os moradores transitava entre o harmônico e o conflituoso: quem não se adequasse ao padrão moral definido pela milícia, sofria consequências severas; quem não transcrevesse as regras, não tinham problemas.

Quando os irmãos Guimarães foram presos e Ricardo Batman assumiu a liderança da quadrilha, mesmo que por pouco tempo, boa parte da estrutura anterior se manteve e novas práticas foram adicionadas. A expansão territorial e o monopólio do transporte irregular fez com que a milícia aumentasse sua renda; em contrapartida, aumentou também a rivalidade com outros grupos ilícitos de agentes militarizados, gerando conflitos pelos bairros da Zona Oeste. Com a CPI da Milícia, a Liga da Justiça foi uma das organizações mais penalizadas e tiveram seus líderes e aliados presos. Nesse momento, a estratégia do grupo administrado pelo policial Toni Ângelo foi diminuir a presença ostensiva nos territórios e manter a discrição das atividades econômicas para não chamar atenção das autoridades.

Segundo o relatório da CPI das Milícias, de 2008, a Liga da Justiça atuava em diversas regiões de Campo Grande e bairros vizinhos. Embora sua atuação fosse heterogênea em cada território, em geral eles chegaram à conclusão de que cerca de 132 pessoas tinham envolvimento com o grupo, que atuava a mais de doze anos. Seus recursos econômicos eram oriundos de exploração irregular de taxa de segurança aos moradores e ao comércio; sinal de TV a cabo, internet, gás, cesta básica, proteção a máquinas caça-níquel e transporte alternativo. A TV a cabo custava 35 reais, as vans tinham que pagar um valor diário, que variava de quinze a 35 reais, para rodarem pelo bairro. Ainda era cobrado entre sessenta e setenta reais para “legalizar” imóveis e uma taxa de 30% do valor para a venda.

Deslocamento político e reorientação moral: A expansão e a descaracterização da Liga da Justiça

Toni Ângelo foi preso em 2013 e, a partir daí, começaram os problemas de sucessão na Liga da Justiça, acarretando uma crise com violentas disputas na organização. Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. explica que, quando Ricardo Batman e Toni Ângelo foram presos, o comando da milícia passou para seus homens de confiança, mas eles se desentenderam e houve um racha no grupo. O miliciano conhecido como Dentuço, aliado de Batman, foi assassinado por Carlinhos Três Pontes, preferido por Toni Ângelo, passando assim a liderar a milícia.

Três Pontes era um líder diferente dos anteriores, mesmo sendo homem de confiança de Toni Ângelo, nunca havia sido institucionalizado por nenhuma força auxiliar militarizada. Inclusive, segundo rumores, ele fora traficante de drogas do Comando Vermelho (CV) cooptado pela milícia. Esse personagem foi fundamental para expandir a milícia para outras áreas além da Zona Oeste, especialmente para a Baixada Fluminense. Ao assumir o maior posto de comando da organização, Carlinhos Três Pontes soube expandir seu controle territorial para Nova Iguaçu e até mesmo Maricá, explorando desde a venda de gás até a extração ilegal de areia (BENEDITO, 2017BENEDITO, Luana. “Miliciano Carlinhos Três Pontes é morto durante operação da Polícia Civil”. O Dia, Rio de Janeiro, 21 abr. 2017. Disponível em: https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-04-21/suspeito-de-chefiar-milicia-e-morto-durante-operacao-da-policia-civil.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/20...
).

Há duas características fundamentais da gestão de Carlinhos Três Pontes que o distingue das anteriores: a) a expansão do poder miliciano para outras áreas além da Zona Oeste; b) a diversificação financeira do grupo, desenvolvendo outras atividades, como extração ilegal de areia. Além disso, sua proximidade com o tráfico de drogas foi fundamental para atenuar os conflitos e prosseguir com a política de expansão territorial e econômica.

Segundo Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020., Três Pontes tinha amizade com uma liderança da facção Terceiro Comando Puro (TCP), o Arafat do complexo da Pedreira, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Eles passaram a formar uma sociedade em que “cargas roubadas pelo tráfico podiam ser guardadas e vendidas nas áreas de milícias. Vans milicianas eram autorizadas a circular no território do tráfico, que também passou a aceitar a venda do gás e do gatonet [recepção ilegal do sinal de TV a cabo]” (MANSO, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020., p. 164). Esse modelo de negócio se expandiu para bairros da Baixada Fluminense e se tornou uma marca dessa nova fase da milícia.

É necessário fazer uma ressalva a respeito da informação que Bruno Paes Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. traz em sua pesquisa sobre o bandido Arafat da Pedreira. Até 2017, esse criminoso era integrante da facção Amigo dos Amigos (ADA), quando houve uma grande debandada para o TCP. Essa relação se deu, a princípio, com o ADA só depois da crise dessa facção, quando a milícia passou a se relacionar com o TCP (DA MOTTA, 2020DA MOTTA, Jonathan. A experiência do Jardim Batan: Regime de incerteza no pós-pacificação. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020.). Em reportagem publicada na Veja, a relação entre Três Pontes e Arafat é exemplifica:

Há mais de um ano a Polícia Civil havia detectado o estreito relacionamento deste grupo com a facção Amigos dos Amigos (ADA). O elo entre essas duas pontas do crime vinha sendo feito por Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes. […] O principal aliado de Três Pontes nessa empreitada conjunta entre milícia e tráfico era seu grande amigo Carlos José da Silva Fernandes, o Arafat, uma das principais lideranças da ADA, que comandava favelas em Japeri e na Pavuna (LEITÃO, 2017LEITÃO, Leslie. “Polícia mata o homem que uniu milícia e tráfico no Rio”. Veja, São Paulo, 21 abr. 2017. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/policia-mata-o-homem-que-uniu-milicia-e-trafico-no-rio#google_vignette. Acesso em: 27 dez.2022.
https://veja.abril.com.br/brasil/policia...
).

Carlinhos Três Pontes radicalizou as mudanças que já estavam em curso na Liga da Justiça. Se no passado o grupo conseguiu alinhar projeto moral com exploração econômica - fazendo da moral uma justificativa para o econômico -, com a CPI das Milícias, o lado político da quadrilha teve que ser atenuado por causa dos riscos de repressão. Com Carlinhos Três Pontes, o controle moral dos territórios deixa de ser uma prioridade. A milícia não queria mais livrar a área do tráfico, mas fazer acordo e lucrar junto com o tráfico. “O preconceito contra a venda de drogas ficou no passado, afinal, Carlinhos Três Pontes tinha ingressado nas milícias pelo tráfico. As afinidades entre traficantes e milicianos eram bem maiores do que suas diferenças” (MANSO, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020., p. 165). A reportagem da Veja explica que,

com o apoio logístico de Carlinhos Três Pontes, a quadrilha do ADA se preparava para invadir, no fim daquela semana, a Favela da Carobinha, em Campo Grande, para expulsar um grupo de milicianos com quem Três Pontes vinha tendo problemas de relacionamento. “Ali eles montariam as bocas de fumo. E era o passo que a milícia estava dando já partindo para a venda de drogas”, explica o delegado Maurício Mendonça, lembrando que a Liga da Justiça já vem praticando roubos a caminhões de cargas na cidade (LEITÃO, 2017LEITÃO, Leslie. “Polícia mata o homem que uniu milícia e tráfico no Rio”. Veja, São Paulo, 21 abr. 2017. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/policia-mata-o-homem-que-uniu-milicia-e-trafico-no-rio#google_vignette. Acesso em: 27 dez.2022.
https://veja.abril.com.br/brasil/policia...
).

Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. compreende que essa relação de Três Pontes com traficantes é antiga, já que ele mesmo, segundo o autor, havia começado como traficante na favela Três Pontes, em Paciência, Zona Oeste do Rio de Janeiro, antes de se tornar “pé inchado” [miliciano que não tem origem nas forças policiais ou auxiliares]. Contudo, um interlocutor próximo, conhecido a partir de agora como Tonhão, relatou-me uma versão distinta dessa relação de Carlinhos Três Pontes com traficantes. Tonhão conhecia pessoalmente a família desse miliciano, tendo acesso, e até mesmo “testemunhado”, uma série de acontecimentos e situações que complexificam ainda mais esse criminoso e revelando as mudanças da organização (DAS, 2011DAS, Veena. “O ato de testemunhar: Violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 37, pp. 9-41, 2011.).

O interlocutor explica que a favela Três Pontes, localizada entre os bairros de Paciência e Santa Cruz, era controlada pelo tráfico de drogas sob a bandeira do Terceiro Comando (TC) - que depois se tornou Terceiro Comando Puro (TCP) - e tinha como principal rival a favela de Antares em Santa Cruz, controlada pelo Comando Vermelho (CV). No final dos anos 1990 e início dos 2000, o pai de Carlinhos Três Pontes, conhecido como Seu Braga, era o líder comunitário e presidente da associação de moradores dessa favela. Mesmo morando em uma área dominada pelo tráfico, Seu Braga andava com uma arma de fogo calibre .38 na cintura e nunca fora importunado por nenhum traficante. Nessa época havia um programa da prefeitura que, segundo Tonhão, era ligado ao político Cesar Maia, chamado Guardiões do Rio. Carlinhos atuava como eletricista comunitário nesse programa, ajudando a colocar, trocar e consertar a iluminação pública de seu bairro.

Seu Braga tinha quatro filhos: o mais velho (que Tonhão não se recordava o nome); Carlinhos Três Pontes, um que depois passou a ser conhecido como Ecko; e o mais novo, que depois ficou conhecido como Zinho. O filho mais velho de Seu Braga era casado com uma mulher e morava na favela de Três Pontes. Um dia, durante uma briga, ele agrediu a esposa, atitude entendida pelo tráfico local como “vacilação” [erro] da parte dele. Depois disso ele foi expulso da favela. Mesmo Seu Braga sendo muito respeitado e influente, não pode fazer nada, uma vez que seu filho estava “no erro”. Esse filho mais velho decidiu se mudar para a favela de Antares (inimiga de Três Pontes). Tonhão explica que esse filho não tinha nenhum vínculo com o tráfico de drogas, mas “gostava de fumar e cheirar”. Ele ficou alguns meses morando naquela favela, esperando a “poeira abaixar” [a situação normalizar], até que, depois de um tempo, voltou para sua favela originária, achando que estaria tudo bem e que os bandidos teriam esquecido do ocorrido.

Ao retornar para sua antiga casa, o filho mais velho foi assassinado com a alegação de que sua estadia na favela do Antares era um sinal de que ele era “X9” [traidor], podendo assim delatar os criminosos para os inimigos. A família ficou abalada e enfurecida com a atitude dos traficantes, especialmente porque seu pai era conhecido por todos, assim como seus filhos. Seu Braga, ao tirar satisfação com os traficantes, se exaltou e também foi jurado de morte pelos criminosos. Em meio a essa situação, para evitar que outro membro da família morresse, Carlinhos saiu de sua favela e foi até Campo Grande, que à época era o quartel-general da Liga da Justiça, e pediu ajuda para o líder da organização, Ricardo Batman. O interlocutor não detalhou como Carlinhos conheceu Batman, apenas explicou que a família conhecia muitos policiais na Zona Oeste em função de seu envolvimento com trabalho comunitário.

Carlinhos então propôs que a Liga da Justiça tomasse a comunidade do tráfico. Ele deu a localização dos armamentos, das drogas e dos pontos estratégicos dos traficantes. Poucos dias depois, enquanto acontecia uma festa organizada pelo tráfico no interior da favela, um grupo de milicianos invadiu e matou todos os traficantes de lá. Além disso, o grupo ainda expulsou e tomou a residência de familiares de traficantes para que eles não tivessem informações e não pudessem voltar mais. Segundo o interlocutor, a Liga da Justiça passou a controlar aquela região e, no início, Carlinhos não integrou o grupo. Só quando Ricardo Batman foi preso e Toni Ângelo ascendeu a líder da organização que Carlinhos se tornou responsável pela região, passando a ser conhecido como Carlinhos Três Pontes. Tonhão explica que a própria Liga da Justiça emprestou armamentos e homens para que Carlinhos pudesse controlar a comunidade. Seu histórico de trabalho comunitário foi determinante para sua promoção como miliciano, uma vez que toda sua família era querida e respeitada na comunidade, e o extermínio do tráfico local fez com que ele tivesse ainda mais base social para justificar suas ações.

Em seu território, Carlinhos modificou alguns princípios que norteavam a mentalidade da Liga da Justiça, sobretudo a venda de drogas e os elementos simbólicos identificados com o tráfico de entorpecentes. Tonhão conta que, uma vez conversando com Carlinhos Três Pontes, ele explicou que, por mais que ele tivesse acabado com o tráfico, certos hábitos precisavam ser mantidos. Segundo ele: “Você tira o tráfico da favela, mas não consegue tirar a favela do favelado. Se ele não dançar funk aqui, não fumar, não der um teco aqui, ele vai fazer isso em outro lugar”. O interlocutor explicou que Carlinhos Três Pontes passou a realizar bailes funks e restabeleceu a venda de drogas não porque ele concordava com aquilo do ponto de vista moral, mas para evitar que os moradores ficassem indo para outras favelas, inimigas, e fossem cooptados, atrapalhando assim os negócios da quadrilha.

Essa foi uma mudança fundamental na Liga da Justiça, requalificando suas práticas nos anos seguintes, especialmente quando Carlinhos se tornou chefe da organização. Após a experiência da favela Três Pontes, o grupo pode expandir suas atividades e seus negócios em comunidades nas quais o tráfico de drogas era consolidado. Essa mudança de atuação da milícia, por um lado, rebaixou ainda mais as concepções morais que no passado orientaram o grupo, sobretudo na opinião pública. A aproximação com os elementos simbólicos do tráfico de drogas fez com que a concepção de “mal menor”, comparada ao tráfico, não fizesse mais sentido. Mas, por outro lado, teve dois bônus fundamentais: a) gerou oportunidade de expansão territorial da milícia, uma vez que, ao invadir o território do tráfico, ela não mudaria tão fortemente a realidade das pessoas, mas só o grupo que manda; e b) geraria aumento significativo de receita, pois, agora, as atividades econômicas não seriam apenas de transportes irregulares, monopólio de serviços, TV a cabo e internet, mas também comércio de drogas ilícitas.

A partir de então, a base social da Liga da Justiça não estava mais focada na salvaguarda moral de uma população identificada com valores tradicionais (RIBEIRO; SOARES; KRENZINGER, 2022RIBEIRO, Eduardo; SOARES, Luiz Eduardo; KRENZINGER, Miriam. “Tipos de governança criminal: Estudo comparativo a partir dos casos da Maré”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 15, pp. 559-588, 2022.), mas na manutenção da estrutura do tráfico, como venda de drogas, bailes funks, entre outras atividades antes abominadas pelos grupos milicianos. Esse deslocamento moral fez com que, aos poucos, a milícia fosse “entrando” no universo do tráfico, em vez de reprimi-lo. Em 2017, Carlinhos Três Pontes foi morto em uma operação da polícia na residência de sua namorada. Após sua morte, seu irmão, Wellington da Silva Braga, o Ecko, passou a liderar o grupo, tendo a tarefa de continuar expandindo a milícia, junto com seu outro irmão, Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho.

Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. elucida que a estratégia de Ecko para expandir o domínio de seu grupo foi formar uma parceria com pequenas organizações de milicianos. Ele oferecia apoio, segurança armada e contatos políticos para essas milícias, tornando-os uma “franquia” da Liga da Justiça. Essas pequenas milícias compartilhavam parte do seu lucro com a organização. A parceria tinha caráter horizontal, isto é, cada milícia tinha autonomia para decidir as regras locais e apenas as decisões mais relevantes, como assassinatos e novas cobranças de taxas, eram acordadas com os outros milicianos. “Em outras palavras, a firma funcionava como uma milícia guarda-chuva, cobrando taxas de proteção dos pequenos milicianos” (MANSO, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020., p. 164).

Se Carlinhos Três Pontes foi fundamental para que a milícia entrasse no mundo do tráfico de drogas, reformando-o, com Ecko, as relações entre tráfico de drogas e milícia se requalificaram, produzindo novos agenciamentos e modificando em definitivo a ideia de milícia. Inclusive, o líder mudou o nome da organização de Liga da Justiça para Bonde do Ecko. Dessa forma, a organização buscava construir alianças com vários grupos armados, seja tráfico ou milícia, evitando rivalidades e conflitos, uma espécie de “operação consorciada”, nos termos de Carvalho, Rocha e Da Motta (2023)CARVALHO, Monique; ROCHA, Lia de Mattos; DA MOTTA, Jonathan. Milícias, facções e precariedade: Um estudo comparativo sobre as condições de vida nos territórios periféricos do Rio de Janeiro diante do controle de grupos armados. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2023. E-book.. Caso não conseguisse costurar a parceria, a cooptação era um instrumento comumente usado para seduzir outros grupos armados, já que a quadrilha possuía muitos territórios e muitas fontes de renda. O caso ocorrido em favelas de Santa Cruz (dominadas pelo CV) é sintomático dessa estratégia:

Uma traição pode estar por trás da guerra entre traficantes e milicianos que há quase uma semana vem aterrorizando moradores da comunidade do Rola, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio [de Janeiro]. Informações da polícia apontam que o pivô dos confrontos é um criminoso conhecido como Sonic, ainda não identificado formalmente, até então responsável por controlar a venda de drogas na região em nome do Comando Vermelho (CV). O suspeito teria trocado a facção pelo grupo paramilitar chefiado por Wellington da Silva Braga, o Ecko, e comandado as ofensivas da milícia para assumir o controle do Complexo do Rodo, que abrange as favelas conhecidas como Rola 1 e Rola 2. A mudança de lado, segundo os relatos colhidos por policiais, foi intermediada pelo próprio Ecko e ocorreu há cerca de dez dias. Ao trocar de quadrilha, Sonic teria fugido dos antigos comparsas levando armas, incluindo fuzis, e até dinheiro vivo. Ainda de acordo com essas informações, ele passou a se esconder, acompanhado de paramilitares nas comunidades vizinhas Cesarão e do Aço (MARINATTO, 2018MARINATTO, Luã. “Traição de bandido que trocou tráfico por milícia pode ter motivado guerra no Rola”. Extra, Rio de Janeiro, 1 ago. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/traicao-de-bandido-que-trocou-trafico-por-milicia-pode-ter-motivado-guerra-no-rola-22938330.html. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://extra.globo.com/casos-de-policia...
).

O próprio Ecko foi o intermediário na cooptação do traficante do CV para a milícia. Essa lógica de associação foi fundamental para dar continuidade à expansão do grupo, seja do ponto de vista territorial ou financeiro. O tráfico se aliar à milícia não era um mau negócio, uma vez que a rivalidade entre eles poderia resultar em “perda da lucratividade da venda de drogas”, como sinalizou Hirata e Grillo (2019HIRATA, Daniel; GRILLO, Carolina. Cidade e conflito: Roubos, proteção patrimonial e letalidade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2019., p. 27), oriunda da redução do consumo pela população, agravada pela crise financeira que passou o estado do Rio de Janeiro.

Cada vez mais a milícia controlada por Ecko era composta por ex-traficantes em vez de policiais e ex-policiais, descaracterizando a antigo grupo e sendo nomeada de “nova milícia”, um tipo de milícia “degenerada” e que não se parecia com os antigos milicianos. Ainda que essa nova milícia se pareça com o tráfico de drogas do ponto de vista das práticas produzidas, isso não significa que elas se tornaram a mesma coisa.

Enrique Desmond Arias (2013)ARIAS, Enrique Desmond. “The Impacts of Differential Armed Dominance of Politics in Rio de Janeiro, Brazil”. Studies in Comparative International Development, Berlin, vol. 48, n. 3, pp. 263-284, 2013., em sua pesquisa comparativa entre Rocinha e Rio das Pedras, mostrou que mesmo que ocorram semelhanças nas práticas territoriais e financeiras. Todavia, o tráfico de drogas e a milícia experimentam distintas relações com o Estado e a política. As áreas dominadas pelo tráfico de drogas, por causa das relações sempre pontuais e precárias com os segmentos do Estado, são mais violentas e conflitivas. Enquanto as áreas de milícias, por ter relações mais fortes com essa instituição, são mais seguras e tranquilas, comparativamente. As relações políticas também são distintas: com o tráfico, a relação é pontual e específica, enquanto com a milícia as relações são mais profundas.

No final de 2020, Ecko e um dos seus braços direitos, Tandera, romperam relações (LEMOS, 2021LEMOS, Marcela. “Tandera e Zinho, irmão de Ecko: Quem são os milicianos em guerra no Rio”. UOL, São Paulo, 19 set. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/09/19/tandera-e-zinho-quem-sao-os-milicianos-por-tras-da-guerra-por-territorios.htm. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ul...
), criando rivalidade e mal-estar na organização. Com esse racha, Ecko ficou com o controle da Zona Oeste e de grande parte da Baixada Fluminense, e Tandera ficou com as regiões de Itaguaí, Seropédica e uma parte de Nova Iguaçu. Em 2021, Ecko é morto em um cerco policial realizado na comunidade Três Pontes. Zinho, irmão mais novo de Carlinhos e Ecko, ascende como novo líder da milícia. Em setembro do mesmo ano as rivalidades aumentaram com a morte de dois comparsas de Tandera. A partir daí, este ordenou que as vans da região de Zinho fossem incendiadas e os confrontos por território começaram a se acentuar na Zona Oeste e na Baixada Fluminense.

O desmembramento da milícia e as consequências para os moradores

Apesar de Campo Grande ser uma região atrelada ao surgimento da milícia, estar geograficamente próxima do conflito e ser de grande valor político e estratégico, ela ainda não sentiu as consequências das disputas da milícia. O bairro tem conseguido ficar apartado das disputas por territórios, mesmo que, possivelmente, por pouco tempo. Scott explica os motivos desse afastamento do conflito.

Eu acho que até atualmente não tem muito essa mistura como em outras áreas. O pessoal do tráfico que migra ou eles ainda continuam, porque, lá onde eu moro, principalmente, tem uma rua lá que é toda de policial. Beirando a [nome da rua] e em outras ruas ali, também naquele meio ali, tem vários policiais assim, que moram. Uns são envolvidos, outros conhecem, mas é aquela coisa né, está junto. Hoje em dia está mudando. Hoje em dia está mudando, porque tem essa outra parte da milícia que é o pessoal de Santa Cruz, de Cosmo. Do Tandera e do Zinho, que era do Bonde do Ecko, que se envolveram e trouxeram parte do tráfico que era de Santa Cruz, do Rola e afins para dentro da milícia. Então, é um choque entre o novo, a nova milícia, uma nova configuração de milícia e os tradicionais, né. Na minha concepção, na minha ideia, quando o Natalino e o Jerominho [Guimarães], que foram soltos há uns dois, três anos atrás, eu achei que, tipo assim, “porra, vai rolar aquela coisa sangrenta de novo”. Só que meio que rolou que eles voltaram a ocupar as partes deles, o que já era deles continuou deles, e o que a outra milícia tomou eles deixaram rolar, não se envolveram. Ela se desmembrou (informação verbal).2 2 Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

O interlocutor afirma que houve um desmembramento da milícia. A partir do momento em que uma parte do grupo passou a cooptar e aceitar traficantes na organização, uma outra parte se opôs. A divisão dos territórios ocorreu, até o momento, sem conflitos, as áreas conquistadas pela “nova” milícia continuaram com os mesmos chefes de antes; e os irmãos Guimarães continuaram com os territórios que já dominavam. Assim, formou-se na concepção dos moradores de Campo Grande, uma escala de valoração moral da milícia em que a nova milícia era criticada por sua relação com o tráfico de drogas ou com ex-traficantes, enquanto a milícia “tradicional” era positivada por sua virtuosidade e eficiência na gestão da ordem local, lógica similar a ocorrida na favela do Batan (DA MOTTA, 2020DA MOTTA, Jonathan. A experiência do Jardim Batan: Regime de incerteza no pós-pacificação. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020.).

O interlocutor ainda explicou que, mesmo quando os irmãos Guimarães foram presos, as pessoas que controlavam a região central do bairro se mantiveram leais aos líderes. Essas pessoas perpetuaram a mesma estrutura organizativa de antes, o que fez com que a área não tivesse tido mudanças tão significativas, como outras partes da Zona Oeste.

Porque o Natalino e o Jerominho [Guimarães], eles moravam do outro lado de Campo Grande. Então, essa área ainda continua sendo o reduto deles, que é uma galera que é um pouco fiel a eles se manteve. Eles continuam nessa estrutura de comércio de van. Agora de comércio, mas eram pequenos comércios, um armarinho ali, um bar aqui, aí bota uma máquina caça níquel e aí era uma cobrança de segurança por semana. A van eles cobram por semana. Nesse bar que a gente sempre ia, a gente via o cara que passava de motinha lá na sexta-feira para pegar o “arregozinho” [propina] dele e depois metia o pé, mas todos os dias a gente via ele passando lá, apitando o negocinho dele, parava no bar, pegava uma Coca-Cola e continuava. Para a população isso se torna uma segurança, que você vê: “Ah! Eu posso andar, posso ficar sentado no portão de madrugada, tarde da noite que não vai ter assalto”. Se tiver alguma briga eles sempre interviam, eles sempre vão resolver o problema. Às vezes, era briga de vizinhos ou de marido e mulher que, se alguém pegasse o telefone e falasse com eles, eles iam lá e o assunto acabava. Ou o cara entrava na porrada ou eles davam o jeito de “tu que é a errada?” ou “você toma jeito ou a gente vai te mandar meter o pé”. Aí era aquela coisa, ou vocês resolvem os problemas de vocês e não perturbam a vizinhança, ou a gente vai ter que assumir aí e não vai ser vara da justiça. A justiça que a gente faz é outra. […] Ah, eles pegam bandido, o fulano de tal que assaltou lojinha tal e está perturbando a paz da região, em tese, então os caras pegam, dão um corretivo, acabou! Botou de exemplo e ninguém mais vai se meter ali (informação verbal).3 3 Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

O caráter de regulação local também permaneceu razoavelmente intocável nessa região da cidade. Esse grupo de milicianos “tradicionais” tem ido na contramão da “nova” milícia, buscando sempre aperfeiçoar sua gestão da ordem e mediar os conflitos internos. Essa atitude faz com que a sensação de segurança na localidade fosse bem maior do que em outras áreas de milícia. A concepção de justiça da quadrilha, ainda que seja desigual, autoritária e tirânica. Todavia, ela representa uma atuação efetiva do controle social dos moradores. Esse controle micropolítico exercido pelos milicianos é um dos elementos fundamentais de sua aceitação comunitária. Em casos em que a milícia deixa de atuar de modo enfático no território, abre-se margem para o surgimento ou restabelecimento do tráfico de drogas (DA MOTTA, 2020DA MOTTA, Jonathan. A experiência do Jardim Batan: Regime de incerteza no pós-pacificação. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020., 2023DA MOTTA, Jonathan. “A atuação do tráfico de drogas no pós-pacificação: Notas etnográficas de uma favela do Rio de Janeiro”. Revista Campo Minado, Niterói, RJ, vol. 3, n. 4, 2023.).

A sensação de segurança é um elemento fundamental para as pessoas da cidade do Rio de Janeiro. Morar em uma área segura é o sonho de boa parte dos cidadãos fluminenses, independentemente de suas convicções políticas, religiosas e morais. A eficiência na gestão da ordem e a produção de tranquilidade fazem com que diversas pessoas busquem morar ou continuar morando em áreas de Campo Grande.

Em qualquer lugar que eu vou eu fico sempre alerta, sempre observo e fico preocupado com horário, com o ônibus que vai sair tal hora. Então poucos lugares assim eu me sinto bem do que lá. Eu sempre falo isso com [nome da namorada] nesses assunto sobre a gente casar e onde nós vamos morar; e eu sempre falo, se for para sair de Campo Grande tem que sair para um lugar top, porque aqui eu conheço tudo, todo mundo me conhece, sei o que eu posso fazer, sei que posso ouvir música alta a hora que eu quiser, que não seja de funk de putaria de facção, conheço todo mundo, conheço vizinho, posso fechar a rua para fazer um churrasco que os vizinhos vão ficar de boa. […] Nas ruas e tal, tem sempre alguém [segurança]. Eu sempre falo, eu saía de bares, às vezes, de madrugada e não tinha condução. Eu ia a pé, às vezes, para a casa do calçadão. Para a minha casa é vinte minutos andando, bêbado então você vai voando, né. Você nem sente. E, aí, às vezes, eu voltava para a casa, bêbado, com dinheiro no bolso, celular, e não acontecia nada, e até hoje não acontece, porque, querendo ou não, meio parte, a gente ainda tem esse imaginário, que é uma região rural, onde todo mundo se conhece, ninguém vai fazer nada, até Uber mesmo, quando eu pego Uber, eles falam: “Ah!, eu gosto de pegar corrida para Campo Grande porque Campo Grande é tranquilo” (informação verbal).4 4 Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

Scott, mesmo sendo um jovem adulto vinculado ao movimento social do campo progressista, não pensa em sair de seu bairro. Mesmo que ele seja crítico às atividades da milícia e compreenda que o domínio miliciano é ilegítimo e autoritário. Do ponto de vista pragmático, o bairro se configura como uma tranquila opção de moradia, fazendo sentido sair de lá apenas para “um lugar top”, um lugar igualmente seguro. Dessa forma, a grande contradição das áreas de domínio miliciano, sobretudo da milícia “tradicional”, é que, independentemente de toda tirania e da produção de precariedades (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) exercida por eles, morar nessas áreas compensa em função da tranquilidade e da segurança que proporciona.

Do ponto de vista econômico, a milícia se sofisticou ao longo do tempo, desenvolvendo novas modalidades de exploração e taxação aos moradores. Se por um lado essa mudança de mentalidade gerou um aumento significativo de receitas, por outro, tem desagradado muitos moradores dessas áreas. O testemunho de Scott captura esse processo de mudança de mentalidade.

Por exemplo, teve um vizinho lá que, na época, botou aquelas internets via rádio, e pô, aí ele cobrava da gente ali trinta reais, na época. Ele teve que parar com isso porque foi ameaçado e ele não era policial, não era envolvido, era da área da tecnologia mesmo, e aí ele teve que parar com isso, vendeu os equipamentos dele. Porque era aquilo, não faz parte do nosso esquema, a área não é coberta pela gente, a gente não pode ganhar nenhum tipo de vantagem em cima, então não pode ter concorrência. É muito disso assim, de arrumar um esquema de que eles vão ganhar grana em cima disso. Por exemplo, se você é um pequeno comerciante e não está ganhando muito lucro em cima disso, eles te deixam tranquilo, deixa correr tranquilo. Agora, se você está ganhando dinheiro e eles enxergam isso, e aí que é um problema para eles. É mais a questão do lucro pelo lucro (informação verbal).5 5 Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

A milícia se tornou uma cadeia de relação que busca incessantemente o “lucro pelo lucro”. O monopólio sobre certos serviços tem se notabilizado como uma das mais importantes práticas financeiras dos grupos milicianos. Eles regulam quem pode ou não oferecer determinados serviços para as áreas sob seu controle. Atualmente, outra prática tem desagradado os moradores: a taxação a pequenos comerciantes informais e de atividades culturais/políticas. Scott explica as regras desse “jogo” econômico regulado pelos milicianos:

Vocês podem fazer o que quiserem lá no Centro [do Rio de Janeiro] que ninguém vai perturbar vocês. Agora, você fazer uma roda de capoeira no centro de Campo Grande, você tem que pedir autorização. Você quer fazer algum ato no centro de Campo Grande, você tem que pedir autorização. E não é autorização para a prefeitura. Pode até pedir para a subprefeitura, mas eles vão falar “fala com fulano”, e aí você tem que perder oitenta, cem reais. Isso para fazer qualquer tipo de atividade, por exemplo, um ato de Primeiro de Maio [Dia do Trabalhador], do Oito de Março [Dia Internacional da Mulher], era o diálogo com a galera que é dona, eles são donos. Você não bota ou não contrata uma loja que não seja deles. E aí isso fica invisibilizado. Eu trabalho com saboaria natural, e aí a gente vai em roda de samba e tal, e para botar uma banquinha no centro de Campo Grande é oitenta reais, semanais (informação verbal).6 6 Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

Esse tipo de taxação faz com que muitos microempreendedores e muitas lideranças comunitárias evitem trabalhar e se reunir em Campo Grande. Apesar de ser uma área bastante populosa, com trânsito amplo de pessoas, o centro comercial não se torna um lugar estratégico, nem para lideranças políticas ou para pequenos comerciantes em função das extorsões que lá ocorrem com frequência. Essa prática da milícia está no bojo das mudanças de atuação e na diversificação financeira do grupo.

Essa sofisticação na forma de atuação econômica pode ser nomeada como “empreendedorismo parasitário” (CARVALHO; ROCHA; DA MOTTA, 2023CARVALHO, Monique; ROCHA, Lia de Mattos; DA MOTTA, Jonathan. Milícias, facções e precariedade: Um estudo comparativo sobre as condições de vida nos territórios periféricos do Rio de Janeiro diante do controle de grupos armados. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2023. E-book.). O empreendedorismo está diretamente relacionado à inovação, uma espécie de capacidade racional e criativa de produzir novos arranjos econômicos e lucros. Assim, essas ações da milícia se configuram como uma espécie de empreendedorismo baseado em um tipo de lógica econômica que se impõem por meio da força e da capacidade de mobilização da violência. Essa imposição é de natureza parasitária porque se aproveita de iniciativas e inovações de outras pessoas ou grupos obtendo lucro em cima dessas práticas. Uma vez que a milícia se coloca no lugar de autoridade normativa do local, ela impõe de forma autoritária uma espécie de “imposto” em cima de empreendimentos e ações políticas e culturais.

É importante salientar que esse fenômeno não é exclusivo da Liga da Justiça, nem dos grupos milicianos. Como afirmam Carvalho, Rocha e Da Motta (2023)CARVALHO, Monique; ROCHA, Lia de Mattos; DA MOTTA, Jonathan. Milícias, facções e precariedade: Um estudo comparativo sobre as condições de vida nos territórios periféricos do Rio de Janeiro diante do controle de grupos armados. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2023. E-book., o empreendedorismo parasitário é uma tecnologia de governo compartilhada por todos os grupos armados do Rio de Janeiro, seja as facções do tráfico de drogas ou os grupos milicianos. Em pesquisa anterior (DA MOTTA, 2020DA MOTTA, Jonathan. A experiência do Jardim Batan: Regime de incerteza no pós-pacificação. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2020.), observei essa dinâmica de superexploração econômica na favela do Jardim Batan, que, à época, era controlada por uma facção do tráfico de drogas em parceria com um grupo miliciano. Dessa forma, o empreendedorismo parasitário não é uma atividade restrita a um tipo de organização criminosa, mas algo disseminado na atuação criminal dos grupos armados em favelas e periferias fluminenses.

Na pesquisa, identifiquei um duplo mecanismo de atuação desse empreendedorismo parasitário. Primeiro, a partir da coação de pessoas e grupos que não fazem parte da milícia ou que não têm relações comerciais com ela. Determinados serviços em territórios milicianos são autoritariamente regulados, limitando a competição e garantindo o monopólio. Segundo, a capacidade de lucrar sobre empreendimentos econômicos, políticos e culturais de terceiros. Esse duplo controle econômico explica sua farta oferta de receitas, mas também evidencia o descontentamento de muitos moradores com essas práticas. Em contextos de crise econômica, aumento dos preços e desemprego em massa, esses descontentamentos são mais sentidos pelos moradores dessas regiões.

Embora a maior parte do bairro de Campo Grande abrigue uma quadrilha identificada como “milícia tradicional”, certas práticas das “novas” milícias foram adicionadas à prática operacional do grupo. Contudo, apesar de realizarem ações consideradas da “nova” milícia, sobretudo do ponto de vista financeiro, quando se trata da questão política e da gestão da ordem, percebe-se que pouca coisa foi alterada. O caráter mediador da milícia “tradicional” continua sendo um dos mais importantes pilares de aceitação social e de sua eficiência coletiva (ARIAS; BARNES, 2017ARIAS, Enrique Desmond; BARNES, Nicholas. “Crime and Plural Orders in Rio de Janeiro, Brazil”. Current Sociology, Thousand Oaks, CA, vol. 65, n. 3, pp. 448-465, 2017.).

Considerações finais

Esta pesquisa mostrou as mudanças e continuidades das práticas e mentalidades da milícia na Zona Oeste e seus desdobramentos para a região de Campo Grande. Observou-se que, no início, o regime territorial que se instalou nessa parte da cidade era uma espécie de protomilícia policial, pessoalizada e pequena, que cobrava taxa de segurança do comércio e que tinha por objetivo a segurança. Com o passar do tempo, surgiu a Liga da Justiça, grupo controlado por policiais, que consolidou o controle territorial, aliou a dimensão securitária com a política institucional e diversificou os recursos do grupo, sobretudo controlando o transporte alternativo. A partir do momento em que quadros civis chegaram aos postos de liderança da organização e requalificaram a lógica do grupo, “entrando” no universo do tráfico de drogas e seus elementos simbólicos, houve um desmembramento em “novas” milícias e milícias “tradicionais”.

No bairro de Campo Grande, apesar das mudanças contextuais dos últimos anos, a milícia conseguiu se manter “tradicional”, fazendo a gestão da ordem moral no território e produzir um estado permanente de tranquilidade muito valorizado pelos moradores da região. Por outro lado, sofisticaram suas práticas econômicas por meio de um empreendedorismo parasitário que monopoliza certos serviços e lucra em cima de iniciativas de comerciantes, empreendedores e lideranças comunitárias. Logo, se do ponto de vista político a milícia continua sendo bem-vista, a dimensão econômica concentra a maior parte das críticas por parte da população local.

Notas

  • *
    O presente trabalho foi apresentado, em 2022, no 46º Encontro Anual da Anpocs, e contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo 140414/2021-5.
  • 1
    Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.
  • 2
    Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.
  • 3
    Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.
  • 4
    Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.
  • 5
    Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.
  • 6
    Depoimento de Scott, em Rio de Janeiro, em 2022.

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Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2022
  • Aceito
    29 Ago 2023
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