Acessibilidade / Reportar erro

A estratégia reflexiva no protocrioulo do Golfo da Guiné

The Reflexive Strategy in the Proto-creole of the Gulf of Guinea

RESUMO

Este estudo propõe uma reconstrução da partícula reflexiva (REFLEX) no protocrioulo do Golfo da Guiné (PGG), com base em dados de suas quatro línguas-filhas, o santome (ST), o angolar (AN), o lung’Ie (LI) e o fa d’Ambô (FA). Assim, foram comparados os mecanismos reflexivos das línguas-filhas, identificados os traços convergentes e divergentes e, em seguida, realizada a reconstrução de REFLEX do PGG, fundamentada na aplicação do método comparativo da linguística histórica. A reconstrução *ôg͡bê > ubwê (ST), ig͡bê (LI), ôngê (AN) e ôgê (FA) mostrou-se relevante na medida em que se comprova a descendência direta das quatro línguas-filhas. Ademais, a reconstrução de partículas gramaticais como REFLEX corrobora o fato de que os traços oriundos das línguas do Delta do Níger não se circunscrevem à fonologia, mas estão presentes em diferentes camadas da protolíngua. Dessa forma, a partir dos dados da reconstrução gramatical, a protoforma *ôg͡bê pode se referir à particula reflexiva, bem como ao item lexical ‘corpo’.

Palavras-chave:
partícula reflexiva; protocrioulo; Golfo da Guiné

ABSTRACT

This study seeks to reconstruct the form of the reflective particle in the Protocreole of the Gulf of Guinea (PGG) based on data from its daughter languages Santome (ST), Angolar (AN), Lung’Ie (LI), and Fa d’Ambô (FA). Thus, the reflexive mechanisms of the daughter languages were compared by identifying convergent and divergent features. Then, the reconstruction of the reflexive particle of the PGG was based on the application of the comparative method of historical linguistics. The reconstructed form *ôg͡bê > ubwê (ST), ig͡bê (LI), ôngê (AN), ôgê (FA) is an evidence for the relationship between the four daughter languages. Furthermore, the reconstruction of categories such as reflexive particles corroborates the fact that features from languages of the Niger Delta are not limited to phonology but are present in different layers of the proto-language. Therefore, the protoform *ôg͡bê function as a reflexive particle and can refer to lexical item ‘body’ too.

Keywords:
reflexive particle; proto-creole; Gulf of Guinea

1. Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar uma proposta de reconstrução da partícula reflexiva (REFLEX) no Protocrioulo do Golfo da Guiné (PGG), língua ancestral do santome (ST), do angolar (AN), do lung’Ie (LI) e do fa d’Ambô (FA). Mostraremos a história da transformação de um item lexical, cuja protoforma no PGG era *ôg͡bê, para um item gramatical. Inicialmente, tal item se referia ao ‘corpo humano’, tendo sido ressignificado como partícula reflexiva. Dessa forma, este trabalho é uma investigação sobre a história do léxico do PGG e suas alterações nas línguas-filhas, sob a perspectiva da reconstrução linguística.

O PGG emergiu na Ilha de São Tomé, na República Democrática de São Tomé e Príncipe, entre o final do século XV e o começo do XVI, do contato entre colonos portugueses (lusofalantes) e escravizados africanos (provenientes de diversos grupos linguísticos) transplantados do continente. Estima-se que as primeiras levas de cativos que chegavam a São Tomé eram, sobretudo, provenientes do Reino do Benim. Por efeito das relações comerciais e diplomáticas portuguesas com o mencionado Reino, principalmente no período entre 1493-1515, houve um maior resgate de contingente escravizado na região do Delta do Níger, onde se falavam línguas do grupo edóide4 4 O grupo edóide, atualmente, refere-se às línguas bini, degema, emai, engenni, etsako, ghothuo, isoko e urhobo (Dryer & Haspelmath, 2013). Neste trabalho, refere-se ao grupo de línguas edóides como grupo edóide ou simplesmente edo. , entre outras (Garfield, 1992Garfield, R. (1992). A history of São Tomé island, 1470-1655: The key to Guinea. Mellen Research University Press. ; Ladhams, 2007Ladhams, J. (2007). Agglutination and the African Contribution to the Portuguese-based Creoles. https://www.google.it/url sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi6zKmvtPHPAhWDxxQKHaPoA1YQFgggMAA&url=http%3A%2F.
https://www.google.it/url sa=t&rct=j&q=&...
). Desse modo, a partir do encontro dos elementos linguísticos da região do Delta do Níger e portugueses, uma nova língua emergiu e posteriormente se especiou (Araujo et al., 2020Araujo, G. A. d., Bandeira, M., & Agostinho, A. L. (2020). Vowel Harmony in the Proto-Creole of the Gulf of Guinea. Entrepalavras, 10(1), 36-58. https://doi.org/http://dx.doi.org/10.22168/2237-6321-11747.
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.221...
; Bandeira, 2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ; Bandeira et al., 2021Bandeira, M., Araujo, G. A. d., & Finbow, T. (2021). The Gulf of Guinea Proto-Creole and its Daughter Languages: from Liquid Consonants to Complex Onsets and Vowel Lengthening. Journal of Language Contact, 14(3). ). Em alguns anos, a variedade falada pelos indivíduos da capital e de seu entorno, ao lado de novas levas de trabalhadores escravos africanos, deu origem ao ST. Posteriormente, na fase da expansão da economia exportadora do açúcar, houve uma mudança da rota de captura dos cativos. A partir de 1520, São Tomé passa a receber um grande contingente de escravizados do Congo e de Angola. À vista disso, na fase mencionada, avalia-se que a retenção de cativos tenha ocorrido, predominantemente, em zonas em que eram faladas línguas da família bantu, mais precisamente variedades do quicongo e do quimbundo (Ferraz, 1979Ferraz, L. I. (1979). The Creole of São Tomé. Witwatersrand University Press. ; Garfield, 1992Garfield, R. (1992). A history of São Tomé island, 1470-1655: The key to Guinea. Mellen Research University Press. ; Ladhams, 2007Ladhams, J. (2007). Agglutination and the African Contribution to the Portuguese-based Creoles. https://www.google.it/url sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi6zKmvtPHPAhWDxxQKHaPoA1YQFgggMAA&url=http%3A%2F.
https://www.google.it/url sa=t&rct=j&q=&...
). Escravos que escapavam das terríveis condições de vida da cidade e dos engenhos de açúcar formaram quilombos. O isolamento e o aporte de escravos falantes de línguas do grupo bantu, contribuíram para a constituição de um novo grupo étnico nesses quilombos, os angolares, com sua língua (Seibert, 2004Seibert, G. (2004). Os angolares da Ilha de São Tomé: Náufragos, Autóctones ou Quilombolas? Dossiê História Atlântica, 12, 43-64. ). Outros grupos, levados às ilhas de Ano Bom e do Príncipe, com o decorrer dos anos, por conseguinte, consolidaram duas novas línguas: o FA (em Ano Bom) e o LI (em Príncipe). Considerando esse cenário de surgimento do protocrioulo e de sua posterior ramificação em quatro línguas-filhas, Bandeira (2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ) propôs uma reconstrução fonológica e lexical do PGG, a partir de um conjunto de 536 cognatos do ST, do LI, do AN e do FA.

Para fins de discussão, este artigo está assim organizado: após a introdução, apresentamos os materiais e métodos da pesquisa. A análise dos dados é objeto da seção seguinte. Por fim, são apresentadas as considerações finais do estudo.

2. Materias e métodos

Uma reconstrução linguística se define pela criação de formas linguísticas hipotéticas a partir de formas existentes de uma ou mais línguas geneticamente relacionadas com base nos fundamentos do método histórico-comparativo. Quanto à natureza dessa linha de investigação, formas reconstruídas são, em princípio hipotéticas, resultado das tentativas de relacionar formas linguísticas atestadas umas às outras (Campbell, 2004Campbell, L. (2004). Historical linguistics: an introduction. Edinburgh University Press. ; Crowley, 1997Crowley, T. (1997). An introduction to historical linguistics. Oxford University Press. ; Fox, 1995Fox, A. (1995). Linguistic reconstruction: an introduction to theory and method. Oxford University Press. ; Hock, 1991Hock, H. H. (1991). Initial strengthening. In W. U. Dressler, H. C. Luschützky, O. E. Pfeiffer, & J. R. Rennison (Eds.), Phonologica 1988: Proceedings of the 6th International Phonology Meeting. Cambridge University Press. ; Kaufman, 1990Kaufman, T. (1990). Language history in South America: what we know and how to know more. In D. Payne (Ed.), Amazonian Linguistics (pp. 13-31). University of Texas Press. ; Thomason & Kaufman, 1988Thomason, S. G., & Kaufman, T. (1988). Language Contact, Creolization, and Genetic Linguistics. University of California Press. https://doi.org/https://doi.org/10.1525/9780520912793.
https://doi.org/https://doi.org/10.1525/...
). Nesse sentido, de acordo com o método histórico-comparativo, a relação genética pode ser demonstrada a partir dos seguintes procedimentos (Thomason & Kaufman, 1988Thomason, S. G., & Kaufman, T. (1988). Language Contact, Creolization, and Genetic Linguistics. University of California Press. https://doi.org/https://doi.org/10.1525/9780520912793.
https://doi.org/https://doi.org/10.1525/...
, p. 202):

(1) i. estabelecimento de correspondências fonológicas de cognatos;

ii. reconstrução do sistema fonológico;

iii. estabelecimento de correspondências gramaticais;

iv. reconstrução de aspectos gramaticais.

Com a realização dos procedimentos (1.i-ii) em Bandeira (2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ), restam ainda as tarefas postuladas em (1.iii-iv) a serem cumpridas. Nessa perspectiva, a reconstrução de aspectos morfossintáticos do PGG se trata de um passo essencial de investigação, tendo em vista o debate que subsiste em relação à ramificação da família dessa protolíngua.

Adicionalmente, Bandeira (2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ) afirma, a partir da fonologia reconstruída e dos processos fonológicos observados, que não apenas o ST, mas também o LI, o AN e o FA são descendentes diretos do PGG. Corraborando Ferraz (1979Ferraz, L. I. (1979). The Creole of São Tomé. Witwatersrand University Press. ) que defende que as línguas-filhas contemporâneas são descendentes do protocrioulo, ao passo que Hagemeijer (2011Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
) e Cosme (2014Cosme, A. T. (2014). As Relações Filogenéticas entre os Crioulos do Golfo da Guiné Universidade de Lisboa]. Lisboa. http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18351/1/ulfl175416_tm.pdf.
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451...
) advogam que o ‘santome é a continuação do protocrioulo no tempo e no espaço e que as restantes línguas terão ramificado a partir dele’. Portanto, ao reconstruir aspectos gramaticais da referida protolíngua com base no cotejo de suas quatro línguas-filhas, torna-se possível avaliar quais são os cenários de especiação que os aspectos morfossintáticos do PGG evidenciam, o que pode levar a semelhanças ou a divergências com relação ao que apontou o quadro fonológico reconstruído. Desta forma, defendemos que o sistema consonantal do protocrioulo do Golfo da Guiné era composto por dezoito consoantes (*p *b *t *d *k *g *g͡b *f *v *s *z *m *n *ɲ *l *r *w *j), revisto5 5 O avanço da análise que partiu, inicialmente, da reconstrução da fonologia do PGG de Bandeira (2017) e chega à reconstrução morfossintática de aspectos como o reflexivo, nos permite revisitar o quadro fonológico reconstruído. Nesse sentido, evidências gramaticais, para além da fonológica, apontam que a consoante velo-labial ou labio-velar /gb/ era um protofonema. a partir de Bandeira (2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ) e o sistema vocálico do PGG, por sua vez, era composto por sete vogais orais (*i, *e, *ɛ, *a, *o, *ɔ, *u).

A partir da análise das mudanças morfológicas regulares observadas na comparação dos dados das quatro línguas, espera-se compreender mais sobre aspectos gramaticais do protocrioulo e os processos evolutivos a que o ST, o AN, o FA e o LI foram submetidos. Além disso, os protomorfemas reconstruídos também servirão de base para a comparação entre a protolíngua e as demais línguas de contato de base lexical portuguesa em conjunto com as línguas apontadas como do substrato, principalmente as línguas do grupo edo. Este trabalho também poderá contribuir como subsídios para tentativas semelhantes nas outras línguas crioulas atlânticas de base portuguesa e nos demais crioulos atlânticos, em geral.

Diante disso, o estudo tem como objetivo propor uma reconstrução da partícula reflexiva do protocrioulo do Golfo da Guiné, ao comparar aspectos fonológicos e morfossintáticos das quatro línguas-filhas do PGG e identificar traços convergentes e divergentes relacionados à partícula. Nesse sentido, antes de realizar a análise e a reconstrução desta partícula gramatical, é oportuno expor os materiais e métodos utilizados pela pesquisa.

Para a investigação, o corpus analisado apresenta cognatos a fim de discriminar o máximo de correspondências morfossintáticas entre essas línguas, bem como identificar as alterações irregulares previstas pelos modelos de mudança linguística. A reconstrução das partículas gramaticais foi fundamentada na aplicação do método comparativo (Campbell, 2004Campbell, L. (2004). Historical linguistics: an introduction. Edinburgh University Press. ; Crowley, 1997Crowley, T. (1997). An introduction to historical linguistics. Oxford University Press. ; Fox, 1995Fox, A. (1995). Linguistic reconstruction: an introduction to theory and method. Oxford University Press. ; Harrison, 2003Harrison, S. P. (2003). On the limits of the comparative method. In B. Joseph, & R. Janda (Eds.), The Handbook of Historical Linguistics (pp. 213-243). Blackwell Publishing. https://doi.org/https://doi.org/10.1002/9781405166201.ch2.
https://doi.org/https://doi.org/10.1002/...
; Hock, 1991Hock, H. H. (1991). Initial strengthening. In W. U. Dressler, H. C. Luschützky, O. E. Pfeiffer, & J. R. Rennison (Eds.), Phonologica 1988: Proceedings of the 6th International Phonology Meeting. Cambridge University Press. ; Rankin, 2003Rankin, R. L. (2003). The comparative method. In B. Joseph, & R. Janda (Eds.), The Handbook of Historical Linguistics (pp. 183-212). Blackwell Publishing. https://doi.org/ https://doi.org/10.1002/9780470756393.ch1.
https://doi.org/ https://doi.org/10.1002...
; Thomason & Kaufman, 1988Thomason, S. G., & Kaufman, T. (1988). Language Contact, Creolization, and Genetic Linguistics. University of California Press. https://doi.org/https://doi.org/10.1525/9780520912793.
https://doi.org/https://doi.org/10.1525/...
).

Quanto à escolha dos itens que constituíram o corpus, foram usados os critérios de integridade e minimalidade. Segundo esses dois critérios, formas que têm a mesma expressão e o mesmo conteúdo semântico em todas as suas ocorrências constituem manifestação de um mesmo item. Adicionalmente, formas de mesmo teor semântico, mas manifestações fonéticas distintas constituem um único morfema só se a diferença fosse condicionada pelo contexto. E, por fim, formas, que têm a mesma expressão, mas conteúdo semântico diferente em algumas de suas ocorrências, foram consideradas manifestações morfêmicas distintas (Campbell, 2004Campbell, L. (2004). Historical linguistics: an introduction. Edinburgh University Press. ).

Ademais, nesse estudo, foram estabelecidos conjuntos de correspondências para identificar formas cognatas. Dessa maneira, realizamos procedimentos que eliminassem formas não cognatas da análise. Como critérios de exclusão, foram desconsiderados do estudo: a) itens com mudança de significado, uma vez que a equivalência semântica entre os itens comparados pode ser ameaçada com a alteração de uma acepção; b) itens nativizados via empréstimo, haja vista que as similaridades semântica e fonológica do item se devem a outras razões que não à herança linguística comum; c) itens análogos, pois a analogia pode fazer com que uma forma regular seja substituída por uma remodelada em outras formas, geralmente dentro do mesmo paradigma gramatical, interferindo assim na regularidade da mudança de som; d) itens resultados de processos de invenção lexical universal, como a onomatopeia, em que palavras de som similar são encontradas amplamente em línguas não relacionadas geneticamente, o que indica que a similaridade da forma não se deve às possíveis relações genéticas (Fox, 1995Fox, A. (1995). Linguistic reconstruction: an introduction to theory and method. Oxford University Press. ).

A despeito de posições contrárias à reconstrução sintática, há um corpo de estudos que defende, com embasamento empírico, a possibilidade de reconstruir a sintaxe de uma língua (Campbell, 2003Campbell, L. (2003). Beyond the Comparative Method? Historical linguistics 2001. Melbourne. ; Campbell & Harris, 2002Campbell, L., & Harris, A. C. (2002). Syntactic Reconstruction and Demythologizing ‘Myth and the Prehistory of Grammars’. Journal of Linguistics, 38, 599-618. ). Harris & Campbell (1992Harris, A. C., & Campbell, L. (1992). Historical syntax in cross-linguistic perspective. Cambridge University Press. https://doi.org/https://doi.org/10.1017/CBO9780511620553.
https://doi.org/https://doi.org/10.1017/...
) advogam que a reconstrução sintática é possível a partir dos seguintes pontos: (i) deve-se estabelecer conjuntos de correspondências na sintaxe, e não somente na fonologia; (ii) deve-se estar atento aos traços areais, às situações de contato e aos processos de analogia; (iii) deve-se dar atenção aos arcaísmos/relíquias, pois representam as camadas anteriores; e (iv) é preciso considerar a direcionalidade da mudança gramatical, como, por exemplo, o fato de que casos partitivos tendem a ter se desenvolvido do caso genitivo ou do caso locativo/ablativo, e não vice-versa. Barddal (2015Barddal, J. (2015). Syntax and Syntactic Reconstruction. In C. Bowern, & B. Evans (Eds.), The Routledge Handbook of Historical Linguistics (pp. 343-373). Routledge. ) acrescenta, por sua vez, dois pontos: (v) a reconstrução se baseia tanto na forma quanto na função, logo é possível reconstruir no nível da sentença; (vi) a sintaxe pode ser muito conservadora, tendo em vista casos documentados de estruturas sintáticas que têm sido preservadas por séculos (Barddal & Eythórsson, 2003Barddal, J., & Eythórsson, T. (2003). Icelandic vs. German: Oblique Subjects, Agreement and Expletives. Chicago Linguistic Society, 39, 755-773. ; Janda & Joseph, 2003Janda, R., & Joseph, B. (2003). Introduction: On Language, Change, and Language Change. In R. Janda, & B. Joseph (Eds.), The Handbook of Historical Linguistics. Blackwell. ).

Nos exemplos do conjunto de cognatos no Quadro 1, as partículas gramaticais de cada língua são equivalentes entre si em forma e significado, com a exceção do AN em [‘kõtu ma] ‘porque’. Nesse caso o item é riscado com um traço por cima da transcrição fonética a fim de indicar sua exclusão da análise, visto que não se trata de um cognato.

Quadro 1
Exemplos de itens equivalentes (cognatos)

Assumindo a aplicabilidade do método comparativo à reconstrução de aspectos morfossintáticos, seguimos, por conseguinte, alguns procedimentos metodológicos (Barddal, 2015Barddal, J. (2015). Syntax and Syntactic Reconstruction. In C. Bowern, & B. Evans (Eds.), The Routledge Handbook of Historical Linguistics (pp. 343-373). Routledge. ). O primeiro foi o de identificar cognatos em estrutura argumental. Após identificar as partículas morfossintáticas, foi possível chegar ao conjunto de correspondências lexicais. Por fim, um procedimento importante na reconstrução morfossintática foi o estabelecimento de conjuntos de correspondência quanto à estrutura argumental (ver Seção 3).

Tendo apresentado, brevemente, os materiais e métodos utilizadas para a formação do corpus, na seção seguinte, trataremos das partículas reflexivas das línguas-filhas do PGG, objeto de reconstrução nesse estudo.

3. Partículas reflexivas

Para a reconstrução da protoforma relativa à categoria de reflexivo, foi preciso considerar alguns aspectos já apontados por Bandeira (2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ). No Quadro 2, estão apresentadas as semelhanças lexicais entre os itens de etimologia edo, sobretudo com o LI (Agheyisi, 1986Agheyisi, R. (1986). An Edo-English Dictionary. Ethiope Publishing Corporation. ; Agostinho & Araujo, 2021Agostinho, A. L., & Araujo, G. A. d. (2021). Lung’Ie, lunge no. FFLCH/Humanitas. ; Bandeira, 2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ; Maurer, 2009Maurer, P. (2009). Principense - Grammar, texts, and vocabulary of the Afro-Portuguese creole of the island of Príncipe. Battlebridge. ). O LI é a única língua a apresentar a consoante velo-labial /g͡b/. A presença da consoante, exclusiva ao LI, se dá em razão das características da língua de substrato das quatro línguas-filhas, sobretudo do grupo linguístico com o qual o LI apresenta mais semelhanças tipológicas.

Quadro 2
A consoante /g͡b/ em comparação com os itens de etimologia edo - adaptado de Hagemeijer (2011Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
, p. 117)

As velo-labiais, como /g͡b/ e /k͡p/, são fonemas tipologicamente marcados e constituiriam um traço areal do cinturão Macro-Sudão - região que abrange clusters nigerianos, relacionados às línguas do grupo edo (Clements & Rialland, 2008Clements, G. N., & Rialland, A. (2008). Africa as a phonological area. In H. Bernd, & D. Nurse (Eds.), A linguistic geography of Africa (pp. 36-85). Cambridge University Press. ; Güldemann, 2008Güldemann, T. (2008). The macro-Sudan belt: Towards identifying a linguistic area in northern sub-Saharan African. In B. Heine & D. Nurse (Eds.), A linguistic geography of Africa (pp. 151-185). Cambridge University Press. ). O motivo pelo qual apenas o LI manteve as velo-labiais reside no fato de que esse crioulo representa, de acordo com Hagemeijer (2011Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
), uma das primeiras línguas a ser ramificadas do PGG, remontando ao período pré-bantu em São Tomé. Nesse sentido, há dois caminhos possíveis e não excludentes para explicar a maior presença de traços edóides no LI: (i) assumir que o impacto bantu foi mais restrito à Ilha de São Tomé e, por isso, o LI, na Ilha do Príncipe, apresentou as melhores condições para preservar características linguísticas da camada mais antiga de origem do Delta do Níger, referentes às línguas do grupo edo (ver Hagemeijer, 2011Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
); ou (ii) supor que houve um maior fluxo de falantes do Delta do Níger em direção ao Príncipe do que para São Tomé. Para mais, ainda no tocante ao espectro de interferências promovidas pelo contato, Perini-Santos (2015Perini-Santos, P. (2015). Questionando a regularidade da formação das preposições: comentário sobre acidentes e contatos linguísticos. Papia, 25, 27-37. ) afirma que o latim, mesmo sendo anterior às línguas neolatinas, conviveu durante anos com suas línguas-filhas. Desse modo, considerando a perspectiva de Perini-Santos (2015Perini-Santos, P. (2015). Questionando a regularidade da formação das preposições: comentário sobre acidentes e contatos linguísticos. Papia, 25, 27-37. ), é preciso se ter em mente que o contato entre línguas-mãe e filhas e suas interferências, assim tanto no caso do latim como no caso do PGG, extrapolam uma relação de herança e de parentesco genético. Logo, é imprescindível que a análise não se restrinja apenas ao momento de formação e ramificação do PGG, pois todas as línguas que estiveram em contato e coabitaram com a protolíngua e línguas-filhas, como as línguas edoídes e bantu, influenciaram-se mutuamente ao longo de muito tempo ainda que o contato tenha sido finalizado (Freitas, 2017Freitas, S. (2017). Contribuições linguísticas cabo-verdiana e sefardita na formação do papiamentu (Vol. 1). Lincom. ; Perini-Santos, 2015Perini-Santos, P. (2015). Questionando a regularidade da formação das preposições: comentário sobre acidentes e contatos linguísticos. Papia, 25, 27-37. ).

Assim, corroborando Hagemeijer (2011Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
), defendemos, portanto, que o *g͡b já se encontrava no quadro fonológico do PGG. Possivelmente, o maior e mais duradouro input edo no LI fez o fonema velo-labial sonoro ser confirmado pelas gerações de falantes seguintes, ao passo que, nas demais línguas, a ausência dessa confirmação fez a mudança se materializar. A influência inicial se fez presente em momentos posteriores, uma vez que o contato linguístico entre diferentes línguas continuou por muito tempo e se desfez de maneira gradual na região do Golfo da Guiné.

Ainda sobre influências linguísticas, para fazer considerações acerca de interferências sobre traços linguísticos em línguas crioulas, Parkvall (2012Parkvall, M. (2012). Da África para o Atlântico. Editora da Unicamp. ) defende ser necessário que os estudos partam não só da língua lexificadora e do substrato, como também das propriedades gerais dos crioulos e das descobertas da tipologia linguística e da linguística histórica. Assim, no contexto dos crioulos autóctones do Golfo da Guiné em que a estratégia reflexiva com ‘corpo’ não pode ser explicada como um traço universal ou um caso de desenvolvimento independente - tendo em vista que ocorre nas quatro línguas-irmãs -, resta apenas confirmar se tal traço é uma herança deixada pela língua lexificadora ou pelo substrato. Dito isso, as evidências linguísticas já mencionadas seriam suficientes para sustentar a estratégia de reflexivização do PGG e línguas-filhas como uma interferência de substrato? Para responder à pergunta, é necessário anteriormente rever alguns pontos. Em primeiro lugar, tem-se o próprio fato de o reflexivo *ôg͡bê ser constituído, dentre outros segmentos, por uma consoante coarticulada /g͡b/: “Ausentes por completo nas cinco línguas lexificadoras, as oclusivas coarticuladas são não apenas exóticas do ponto de vista europeu, mas ainda altamente marcadas translinguisticamente” (Parkvall, 2012Parkvall, M. (2012). Da África para o Atlântico. Editora da Unicamp. , p. 85, grifo nosso). Nesse sentido, a presença do segmento coarticulado, nas palavras de Parkvall (2012Parkvall, M. (2012). Da África para o Atlântico. Editora da Unicamp. , p. 85), “dificilmente pode ser explicada sem recorrer a argumentos substratistas”. A estratégia de reflexivização reconstruída no PGG seria, por conseguinte, um traço resultante de transferência via substrato, posto que está presente no grupo edoide (/eg͡be/ ‘corpo, REFLEX’) e está completamente ausente na língua lexificadora, o português. Tal ausência é dupla, pois o português não possui nem a estratégia reflexiva em si que usa um item relativo a ‘corpo’, muito menos a consoante coarticulada encontrada em LI, língua-filha, reconstruída no PGG. A semelhança entre os cognatos no Quadro 2 evidencia que o ST, o FA e o AN interpretaram a velo-labial como oclusiva simples, apagando alguns de seus traços. Somado a isso, em LI, única língua do cluster a apresentar a consoante, o grupo de palavras com a consoante complexa se reduziu a menos de uma dezena. Desse modo, esses étimos e sua consoante velo-labial sonora possivelmente circulavam no ambiente do protocrioulo conforme as evidências apontam (Bandeira, 2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ).

Após o estabelecimento de correspondências morfossintáticas sistemáticas, constatou-se que as quatro línguas-filhas apresentam como partículas reflexivas itens referentes ao item lexical para ‘corpo’ (ver Quadro 3). Esse recurso morfológico é considerado comum no que tange às línguas de contato (Muysken & Smith, 1994Muysken, P., & Smith, N. (1994). The study of pidgin and creole languages. In J. Arends, P. Muysken, & N. Smith (Eds.), Pidgins and Creoles: an introduction. John Benjamins Publishing Company. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/cll.15.05muy.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
), tendo em vista que a literatura demonstra que os crioulos atlânticos tendem a empregar construções reflexivas que envolvem o item lexical ‘corpo’ ou item relacionado a uma parte da anatomia humana (Carvalho, 1984Carvalho, J. H. d. (1984). Estudos Linguísticos. Coimbra Editora. ; Lefebvre, 1999Lefebvre, C. (1999). Creole genesis and the acquisition of grammar. Cambridge University Press. https://doi.org/ https://doi.org/10.1017/CBO9780511519826.
https://doi.org/10.1017/CBO9780511519826...
; Thomas, 1869Thomas, J. J. (1869). Theory and practice of Creole grammar. The Chronicle publishing office. ; Van Name, 1869-1870Van Name, A. (1869-1870). Contributions to creole grammar. Transactions of the American Philological Association 1, 123-167. ). Tal mecanismo morfossintático apresenta paralelos em línguas africanas ocidentais -tais como o edo, o bassa-nge nupe, o ebira, o wano, o efique, o ibo, o urobo, o iorubá (grupo delto-benuico), o balanta, o fula, o mankanya, o wolof (grupo atlântico), o twi, o ewe, o fon (grupo kwa), o hauçá, o margi (grupo afro-asiático), dentre outras. Chaudenson (1979Chaudenson, R. (1979). Les créoles français. Natha. ) afirma, contudo, que a reflexivização dos crioulos atlânticos teria uma origem francesa, alegando, para tanto, o uso em registros modernos de reflexivos como corps no sudoeste da França. Entretanto, Parkvall (2012Parkvall, M. (2012). Da África para o Atlântico. Editora da Unicamp. ) apresenta quatro razões que sustentam o fenômeno menos como resultado de uma herança europeia, como acredita Chaudenson, e mais como uma transferência via substrato africano, a saber: i) a construção com corps era marginal no francês europeu nos séculos XVII e XVIII (além disso, nenhuma variedade ultramarina do francês manteve ou desenvolveu reflexivos com ‘corpo’ ou nome relacionado às suas partes); ii) a reflexivização envolvendo ‘corpo’ não foi registrada nas outras línguas lexificadoras e variedades do francês não conseguiriam explicar essa estratégia em crioulos de base lexical inglesa, portuguesa ou espanhola; iii) diversos substratos oeste-africanos têm padrões de reflexivização relevantes, como o edo; iv) a quase inexistência de casos de crioulos sem substratos africanos que empregam ‘corpo’ou um nome referente à anatomia humana em construções reflexivas apontam para o importante papel das línguas africanas quanto a esse aspecto.

Quadro 3
Reflexivos/partes do corpo

Ainda que ubwê, ôngê, ôgê e ig͡bê, todos reflexivos, possuam a mesma origem que itens referentes a ‘corpo’ (categorias nominais), a categoria nominal exerce uma função distinta da partícula reflexiva. Tal diferença pode ser observada nos exemplos em (2) e (3), nos quais o item nominal referente ao ‘corpo’ se comporta como um elemento lexical sem função gramatical:

(2) Ê rendê igbê.

3sg forçar corpo

‘Ele/ela forçou o corpo.’

LI (Agostinho & Araujo, 2021Agostinho, A. L., & Araujo, G. A. d. (2021). Lung’Ie, lunge no. FFLCH/Humanitas. )

(3) Ubwê mu sa dizandadu.

Corpo poss-1pl estar dolorido

‘Meu corpo está dolorido.’

ST (Agostinho & Araujo, 2021Agostinho, A. L., & Araujo, G. A. d. (2021). Lung’Ie, lunge no. FFLCH/Humanitas. ; Hagemeijer et al., 2014Hagemeijer, T., Amaro, H., Généreux, M., Hendrickx, I., Mendes, A., & Tiny, A. (2014). Santome corpus. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. )

A estratégia reflexiva pode ser relacionada sintática e semanticamente ao substrato de línguas edóides que também fazem uso do recurso e utilizam o item correspondente a ‘corpo’ tal como o fazem o ST, o LI, o AN e o FA, isto é, como partícula reflexiva, como se pode constatar em (4):

(4) a. Ò gbé-ègbé èré ruá.

3sg matar-reflex 3sg part

‘Ele/ela cometeu suicídio.’

b. Ò mú-ègbé gbè òkútá.

3sg carregar-reflex prep pedra

‘Ele/ela colidiu com uma pedra.’

Edo (Hagemeijer & Ogie, 2011Hagemeijer, T., & Ogie, O. (2011). Èdó influence on Santome. In C. Lefebvre (Ed.), Creoles, their Substrates, and Language Typology (pp. 37-60). John Benjamins Publishing Company. , p. 41)

Do ponto de vista tipológico, em FA, a partícula reflexiva é utilizada em posição pós-verbal e antecedendo o possessivo:

(5) Todo sél umanu tê livilitayi d’ôguê súa.

det ser humano ter liberdade prep-reflex poss-3sg

‘Todo ser humano é livre de si mesmo.’

FA (Segorbe, 2007Segorbe, A. (2007). Gramática descriptiva del fa d’ambô. CEIBA Ediciones. , p. 544)

De modo análogo, nos exemplos em (6), em ST, a partícula reflexiva ubwê se realiza após o verbo, mas antes do possessivo:

(6) a. Ê xka ngana ubwê dê.

3sg tam enganar reflex poss-3pl

‘Ele/ela se engana.’

b. Non ka da ubwê non ũa nomi.

1pl tam dar reflex poss-1pl det nome

‘Nós nos damos um nome.’

ST (Hagemeijer et al., 2014Hagemeijer, T., Amaro, H., Généreux, M., Hendrickx, I., Mendes, A., & Tiny, A. (2014). Santome corpus. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. )

Em AN, (7), o item ôngê realiza-se depois do verbo, seguido pelo possessivo. A mesma configuração é encontrada em LI, exemplo (8), em que o item reflexivo, igbê, localiza-se depois do verbo, antecedendo o possessivo.

(7) Ê foka ôngê rê.

3sg enforcar reflex poss-3sg

‘Ele/ela se enforcou.’

AN (Maurer, 1995Maurer, P. (1995). L’Angolar: Un créole afroportugais parlé à São Tomé; Notes de grammaire, textes, vocabulaires. Helmut Buske Verlag. , p. 145)

(8) Ê kôndê igbê sê.

3sg esconder reflex poss-3sg

‘Ele/ela se escondeu.’

LI (Maurer, 2009Maurer, P. (2009). Principense - Grammar, texts, and vocabulary of the Afro-Portuguese creole of the island of Príncipe. Battlebridge. , p. 152)

Embora presente nas quatro línguas-filhas, atualmente a utilização da partícula REFLEX não é a única estratégia para indicar o referido aspecto. Outra estratégia reflexiva comum é a omissão do objeto direto de um verbo transitivo como em (9b) ou a supressão do REFLEX + poss, como em (10b):

(9) a. Ê lava pêxi.

3sg lavar peixe

‘Ele/ela lavou o peixe.’

b. Ê lava _____.

3sg lavar [reflex]

‘Ele/ela se lavou.’

LI (Maurer, 2009Maurer, P. (2009). Principense - Grammar, texts, and vocabulary of the Afro-Portuguese creole of the island of Príncipe. Battlebridge. , p. 152)

(10) a. Ê foga ôngê rê.

3sg afogar reflex poss-3sg

‘Ele/ela se afogou.’

(AN, Maurer, 1995Maurer, P. (1995). L’Angolar: Un créole afroportugais parlé à São Tomé; Notes de grammaire, textes, vocabulaires. Helmut Buske Verlag. , p. 145)

b. Ê foga _____.

3sg afogar [reflex]

‘Ele/ela se afogou.’

AN (anotações de trabalho de campo)

De acordo com Agostinho (2016Agostinho, A. L. (2016). Fonologia do Lung’Ie. LINCOM GmbH. ), verbos que não requerem objeto direto apresentam diferentes formas de indicar o aspecto reflexivo em LI. Uma forma citada pela autora seria a realização da partícula igbê ‘corpo’ ou da palavra kabese ‘cabeça’, com o reforço de expressões formadas pela sequência pronome pessoal seguido por mesu ‘mesmo’, a exemplo de (11):

(11) a. Atxi mesu fii kabese tê ki ufaka a?

2sg mesmo ferir cabeça 2sg-poss prep faca int

‘Você mesmo se feriu com a faca?’

b. Ami mesu fii ig͡ me

1sg mesmo ferir corpo poss-1sg

‘Eu mesmo me feri’.

LI (Agostinho & Araujo, 2021Agostinho, A. L., & Araujo, G. A. d. (2021). Lung’Ie, lunge no. FFLCH/Humanitas. , p. 164)

Outra possibilidade seria o uso do item kabese ‘cabeça’ no lugar de ig͡ como em (12):

(12) Ê mata kabese sê.

3sg matar cabeça poss-3sg

‘Ele se matou.’

LI (Maurer, 2009Maurer, P. (2009). Principense - Grammar, texts, and vocabulary of the Afro-Portuguese creole of the island of Príncipe. Battlebridge. , p. 152)

Ao compararmos as quatro línguas-filhas e suas estratégias reflexivas, foi possível depreender uma correspondência regular e sistemática, a partir da qual se conclui, primeiramente, que o PGG apresentava a categoria de reflexivo *'og͡be configurada da mesma maneira como se apresenta nas suas línguas-filhas: pós-verbal e antecendendo um possessivo.

Quadro 4
Reconstrução da categoria REFLEX na estrutura argumental

Considerando o fato de que as quatro línguas apresentam a mesma configuração para a indicação da categoria reflexiva semelhante às línguas do grupo edo, é provável que o protocrioulo tenha apresentado a forma relativa a corpo com a consoante velo-labial, porém foi alterada por forças internas a cada língua ramificada, exceto no LI que, por ter um afluxo edóide por mais tempo, manteve elementos como a velo-labial /g͡b/. O fonema, ao ser considerado para reconstrução, tem reflexos idênticos somente na língua da Ilha do Príncipe. Os dados e as comparações permitem, até o momento, a reconstrução da categoria de reflexivo na estrutura argumental apresentada no Quadro 4.

Ademais, a reconstrução gramatical do REFLEX, *ôg͡bê poss, e consequentemente da consoante velo-labial sonora *g͡b traz um novo indício de que não é possível atribuir ao ST o papel de único descendente direto do PGG, como defendem Hagemeijer (2011Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag.
https://doi.org/https://doi.org/10.1075/...
) e Cosme (2014Cosme, A. T. (2014). As Relações Filogenéticas entre os Crioulos do Golfo da Guiné Universidade de Lisboa]. Lisboa. http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18351/1/ulfl175416_tm.pdf.
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451...
). Nesse sentido, se tomamos o ST como descendente direto exclusivo do protocrioulo, assumiríamos, para além de uma entrada posterior da oclusiva no quadro fonológico do LI (ubwê ST > ig͡bê LI), uma substituição anti-intuitiva e não natural conforme as leis de mudança em AN e em FA, de /bw/ por /g/ (ubwê ST > ôngê AN; ôgê FA) (Bandeira, 2017Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom. ).

4. Considerações finais

Neste estudo, buscamos realizar a reconstrução da partícula reflexiva. Assim, na introdução, foram demonstrados aspectos gerais concernentes ao protocrioulo e suas línguas-filhas como um breve panorama sócio-histórico. Na seção 2, por seu turno, foram demonstrados os instrumentos metodológicos utilizados para análise, assim como as fontes empregadas para a coleta e formação do corpus, como observação de aspectos morfossintáticos das línguas-filhas do PGG no que diz respeito aos pontos em que as mesmas são semelhantes entre si e também distintas. Com a observação desses aspectos, realizou-se o estabelecimento de protomorfemas relativos às partículas reflexivas.

Partindo da posição de que categorias gramaticais como preposição, artigos e pronomes pessoais tendem a não ser resultados de empréstimo, mas herdados diacronicamente (Viaro, 2011Viaro, M. E. (2011). Etimologia. Contexto. ), a reconstrução de partículas morfossintáticas do protocrioulo, a exemplo da categoria REFLEX, mostrou-se relevante na medida em que evidenciou a descendência direta das quatro línguas autóctones, sem a pressuposta exclusividade do ST. A reconstrução de aspectos fonológicos e morfossintáticos do PGG não indicou que o ST deva ser considerado a ‘continuação no tempo’ de sua língua-mãe, como alguns estudos defendem (ver Cosme, 2014Cosme, A. T. (2014). As Relações Filogenéticas entre os Crioulos do Golfo da Guiné Universidade de Lisboa]. Lisboa. http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18351/1/ulfl175416_tm.pdf.
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451...
). Caso contrário, seria custoso propor mudanças que fundamentassem a evolução de ubwê (ST) para ig͡ (LI), ôngê (AN), e ôgê (FA). Desse modo, o caminho menos oneroso em termos de leis de mudança é assumir o PGG como ancestral comum das quatro línguas autóctones do Golfo da Guiné, e não apenas de uma - *ôg͡bê > ubwê (ST), ig͡ (LI), ôngê (AN); ôgê (FA). Tal reconstrução gramatical também permitiu o aperfeiçoamento da reconstrução fonológica do PGG, pois obtivemos indicações de que a consoante velo-labial *g͡b pertencia ao quadro consonantal do protocrioulo. Para mais, tanto a reconstrução da consoante velo-labial como a morfossintática de categorias como REFLEX corroboram o fato de que os traços edoídes não se circunscrevem à fonologia, mas estão difundidos em diferentes camadas da protolíngua.

Abreviaturas

AN: angolar, DET: determinante, FA: fa d’Ambô, INT: partícula interrogativa, LI: lung’Ie, PART: partícula, PGG: protocrioulo do Golfo da Guiné, PL: plural, POSS: possessivo, PREP: preposição, REFLEX: partícula reflexiva, SG: singular, TAM: tempo, aspecto, modo.

Agradecimentos

Manuele Bandeira agradece à FAPESP (processo 13/08100-4), ao CNPq pela bolsa de pós-doutoramento (processo 150051/2018-2), e à Universidade de Macau pela hospedagem acadêmica e pelo apoio financeiro. Gabriel Antunes de Araujo agradece à Universidade de São Paulo, ao CNPq (bolsa 310463/2016-5) e à Universidade de Macau (SRG-2019-00153-FAH) pelo suporte financeiro e acadêmico. Por fim, ambos os autores agradecem aos editores e a dois pareceristas por suas sugestões e comentários que ajudaram a melhorar a forma final deste artigo.

Referências

  • Agheyisi, R. (1986). An Edo-English Dictionary. Ethiope Publishing Corporation.
  • Agostinho, A. L. (2016). Fonologia do Lung’Ie. LINCOM GmbH.
  • Agostinho, A. L., & Araujo, G. A. d. (2021). Lung’Ie, lunge no. FFLCH/Humanitas.
  • Araujo, G. A. d., Bandeira, M., & Agostinho, A. L. (2020). Vowel Harmony in the Proto-Creole of the Gulf of Guinea. Entrepalavras, 10(1), 36-58. https://doi.org/http://dx.doi.org/10.22168/2237-6321-11747
    » https://doi.org/http://dx.doi.org/10.22168/2237-6321-11747
  • Bandeira, M. (2017). Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Lincom.
  • Bandeira, M., Araujo, G. A. d., & Finbow, T. (2021). The Gulf of Guinea Proto-Creole and its Daughter Languages: from Liquid Consonants to Complex Onsets and Vowel Lengthening. Journal of Language Contact, 14(3).
  • Barddal, J. (2015). Syntax and Syntactic Reconstruction. In C. Bowern, & B. Evans (Eds.), The Routledge Handbook of Historical Linguistics (pp. 343-373). Routledge.
  • Barddal, J., & Eythórsson, T. (2003). Icelandic vs. German: Oblique Subjects, Agreement and Expletives. Chicago Linguistic Society, 39, 755-773.
  • Campbell, L. (2003). Beyond the Comparative Method? Historical linguistics 2001. Melbourne.
  • Campbell, L. (2004). Historical linguistics: an introduction. Edinburgh University Press.
  • Campbell, L., & Harris, A. C. (2002). Syntactic Reconstruction and Demythologizing ‘Myth and the Prehistory of Grammars’. Journal of Linguistics, 38, 599-618.
  • Carvalho, J. H. d. (1984). Estudos Linguísticos. Coimbra Editora.
  • Chaudenson, R. (1979). Les créoles français. Natha.
  • Clements, G. N., & Rialland, A. (2008). Africa as a phonological area. In H. Bernd, & D. Nurse (Eds.), A linguistic geography of Africa (pp. 36-85). Cambridge University Press.
  • Cosme, A. T. (2014). As Relações Filogenéticas entre os Crioulos do Golfo da Guiné Universidade de Lisboa]. Lisboa. http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18351/1/ulfl175416_tm.pdf
    » http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18351/1/ulfl175416_tm.pdf
  • Crowley, T. (1997). An introduction to historical linguistics. Oxford University Press.
  • Ferraz, L. I. (1979). The Creole of São Tomé. Witwatersrand University Press.
  • Fox, A. (1995). Linguistic reconstruction: an introduction to theory and method. Oxford University Press.
  • Freitas, S. (2017). Contribuições linguísticas cabo-verdiana e sefardita na formação do papiamentu (Vol. 1). Lincom.
  • Garfield, R. (1992). A history of São Tomé island, 1470-1655: The key to Guinea. Mellen Research University Press.
  • Güldemann, T. (2008). The macro-Sudan belt: Towards identifying a linguistic area in northern sub-Saharan African. In B. Heine & D. Nurse (Eds.), A linguistic geography of Africa (pp. 151-185). Cambridge University Press.
  • Hagemeijer, T. (2011). The Gulf of Guinea Creoles: Genetic and typological relations. Journal of Pidgin and Creole Languages, 26, 111-154. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1075/jpcl.26.1.05hag
  • Hagemeijer, T., Amaro, H., Généreux, M., Hendrickx, I., Mendes, A., & Tiny, A. (2014). Santome corpus. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.
  • Hagemeijer, T., & Ogie, O. (2011). Èdó influence on Santome. In C. Lefebvre (Ed.), Creoles, their Substrates, and Language Typology (pp. 37-60). John Benjamins Publishing Company.
  • Harris, A. C., & Campbell, L. (1992). Historical syntax in cross-linguistic perspective. Cambridge University Press. https://doi.org/https://doi.org/10.1017/CBO9780511620553
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1017/CBO9780511620553
  • Harrison, S. P. (2003). On the limits of the comparative method. In B. Joseph, & R. Janda (Eds.), The Handbook of Historical Linguistics (pp. 213-243). Blackwell Publishing. https://doi.org/https://doi.org/10.1002/9781405166201.ch2
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1002/9781405166201.ch2
  • Hock, H. H. (1991). Initial strengthening. In W. U. Dressler, H. C. Luschützky, O. E. Pfeiffer, & J. R. Rennison (Eds.), Phonologica 1988: Proceedings of the 6th International Phonology Meeting. Cambridge University Press.
  • Janda, R., & Joseph, B. (2003). Introduction: On Language, Change, and Language Change. In R. Janda, & B. Joseph (Eds.), The Handbook of Historical Linguistics. Blackwell.
  • Kaufman, T. (1990). Language history in South America: what we know and how to know more. In D. Payne (Ed.), Amazonian Linguistics (pp. 13-31). University of Texas Press.
  • Ladhams, J. (2007). Agglutination and the African Contribution to the Portuguese-based Creoles. https://www.google.it/url sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi6zKmvtPHPAhWDxxQKHaPoA1YQFgggMAA&url=http%3A%2F
    » https://www.google.it/url sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi6zKmvtPHPAhWDxxQKHaPoA1YQFgggMAA&url=http%3A%2F
  • Lefebvre, C. (1999). Creole genesis and the acquisition of grammar. Cambridge University Press. https://doi.org/ https://doi.org/10.1017/CBO9780511519826
    » https://doi.org/10.1017/CBO9780511519826
  • Maurer, P. (1995). L’Angolar: Un créole afroportugais parlé à São Tomé; Notes de grammaire, textes, vocabulaires. Helmut Buske Verlag.
  • Maurer, P. (2009). Principense - Grammar, texts, and vocabulary of the Afro-Portuguese creole of the island of Príncipe. Battlebridge.
  • Muysken, P., & Smith, N. (1994). The study of pidgin and creole languages. In J. Arends, P. Muysken, & N. Smith (Eds.), Pidgins and Creoles: an introduction. John Benjamins Publishing Company. https://doi.org/https://doi.org/10.1075/cll.15.05muy
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1075/cll.15.05muy
  • Parkvall, M. (2012). Da África para o Atlântico. Editora da Unicamp.
  • Perini-Santos, P. (2015). Questionando a regularidade da formação das preposições: comentário sobre acidentes e contatos linguísticos. Papia, 25, 27-37.
  • Rankin, R. L. (2003). The comparative method. In B. Joseph, & R. Janda (Eds.), The Handbook of Historical Linguistics (pp. 183-212). Blackwell Publishing. https://doi.org/ https://doi.org/10.1002/9780470756393.ch1
    » https://doi.org/ https://doi.org/10.1002/9780470756393.ch1
  • Segorbe, A. (2007). Gramática descriptiva del fa d’ambô. CEIBA Ediciones.
  • Seibert, G. (2004). Os angolares da Ilha de São Tomé: Náufragos, Autóctones ou Quilombolas? Dossiê História Atlântica, 12, 43-64.
  • Thomas, J. J. (1869). Theory and practice of Creole grammar. The Chronicle publishing office.
  • Thomason, S. G., & Kaufman, T. (1988). Language Contact, Creolization, and Genetic Linguistics. University of California Press. https://doi.org/https://doi.org/10.1525/9780520912793
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1525/9780520912793
  • Van Name, A. (1869-1870). Contributions to creole grammar. Transactions of the American Philological Association 1, 123-167.
  • Viaro, M. E. (2011). Etimologia. Contexto.
  • 4
    O grupo edóide, atualmente, refere-se às línguas bini, degema, emai, engenni, etsako, ghothuo, isoko e urhobo (Dryer & Haspelmath, 2013). Neste trabalho, refere-se ao grupo de línguas edóides como grupo edóide ou simplesmente edo.
  • 5
    O avanço da análise que partiu, inicialmente, da reconstrução da fonologia do PGG de Bandeira (2017) e chega à reconstrução morfossintática de aspectos como o reflexivo, nos permite revisitar o quadro fonológico reconstruído. Nesse sentido, evidências gramaticais, para além da fonológica, apontam que a consoante velo-labial ou labio-velar /gb/ era um protofonema.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br