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Boa noite, Malévola: o adormecer forçado e o despertar mutilado

Goodnight, Maleficent: forced to sleep and mutilated awakening

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a representação da violência sexual com foco na personagem Malévola, no live action homônimo produzido pela Disney (2014). A filosofia bakhtiniana da linguagem fundamenta a reflexão, com foco nas concepções de diálogo, sujeito, ideologia e enunciado. A partir da constituição material do filme (formada pelo verbal, pelo vocal e pelo visual de maneira integrada), considera-se as ideologias expressas na arquitetônica enunciativa, constituída pelo projeto de dizer do autor-criador, que semiotiza, com dado acabamento, a voz social patriarcal, via construção de uma relação machista, re-velada por um ato de violência sexual contra a mulher. Este artigo se pauta no método dialético-dialógico para a análise da obra fílmica, realizada em cotejo com A bela adormecida (Grimm, 1812), A bela adormecida no bosque (Perrault, 1697) e Sol, Lua e Talia (Basile, 1634). A reflexão sobre como o enunciado estético parte do solo social e se volta a ele, de maneira responsiva e ética, justifica o estudo empreendido.

Palavras-chave:
Malévola; violência sexual; contos de fadas; Círculo de Bakhtin

ABSTRACT

This article aims to analyze the sexual violence representation focusing on the character Maleficent, in the homonymous live action produced by Disney (2014). Bakhtin’s philosophy of language is the basis for reflection, focusing on the conceptions of dialogue, subject, ideology and utterance. From the material constitution of the film (formed by the verbal, the vocal and the visual in an integrated way), the ideologies expressed in the enunciative architecture are considered, constituted by the author-creator’s project of saying, which semiotizes, with a given finish, the patriarchal social voice, via the construction of a sexist relationship, revealed by an act of sexual violence against women. This article is based on the dialectical-dialogical method for the analysis of the filmic work, performed in comparison with Sleeping Beauty (Grimm, 1812), Sleeping Beauty in the Woods (Perrault, 1697) and Sun, Moon and Talia (Basile, 1634). The reflection on how an aesthetic statement starts from the social ground and turns to it, in a responsive and ethical way, justifies the study undertaken.

Keywords:
Maleficent; sexual violence; fairy tales; Bakhtin circle

1. Introdução

Compreender os contos de fadas significa explorar os ciclos de iniciação propostos na construção das narrativas, cujas abordagens revelam mulheres-princesas, lugares proibidos, (re)nascimentos e mortes - também conhecidos como ciclos do sono profundo. As várias (re)leituras dos contos percorrem um caminho similar, assim como o é Malévola, um live-action produzido pela Walt Disney Pictures e Roth Films.

A fada-bruxa Malévola (assim denominada pela primeira vez em A bela Adormecida, 1959, da Walt Disney Pictures) retoma a ilustração arquetípica da feiticeira má - cujo papel é o de colocar obstáculos na vida da princesa-mulher, a fim de fazê-la passar pelo processo de amadurecimento - e o reformula, de modo a construir uma imagem ambivalente: ao mesmo tempo em que há o lado mau da personagem, ela também se constitui (como sujeito) pelo seu lado bom, tal qual a condição humana. Essa é a marca que diferencia a leitura feita pela Disney no live action de um conto tão tradicional.

O foco da nossa reflexão se volta à construção ambivalente da protagonista relacionada ao abuso sexual por ela sofrido no filme da Disney, em cotejo com os contos de fada. Nascido como expansão artística do seu contexto de produção, o gênero (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Editora 34.) conto se constitui como um novo produto social à época, focado em perpetuar valores morais e de comportamento. A construção dessas valorações por meio do sobrenatural e de criaturas dessa natureza - como são as fadas, as bruxas, os animais e os elementos falantes da natureza, os duendes, os elfos etc - consolida representações que tratam de aspectos referentes à imagem de um padrão estereotipado de sujeitos. No caso da Malévola, um padrão de ser-mulher, adjunto de simbologias e relações - no caso do foco de nossa pesquisa, sexuais.

A nossa hipótese é a de que no live action, a Disney humaniza a fada, entendida como bruxa nos contos e em sua própria animação, ao mudar o foco narrativo do enredo, contado pela Aurora, que relativiza os atos de Malévola a partir de seu ponto de vista, de alguém que é, ao mesmo tempo, filha do rei e foi, a vida toda, cuidada pela fada-bruxa e vê, com um olhar exotópico (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da Criação Verbal. Martins Fontes.), os atos (Bakhtin, 2010Bakhtin, M. (2010). Para uma filosofia do ato responsável. Pedro e João.) do pai como homem, como pai e como rei, tanto como os atos de Malévola como resposta ao tratamento violento recebido por ele. Com essa narração, desse ponto de vista, um olhar sobre a fada-bruxa a coloca em outro lugar de fala (Ribeiro, 2019Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. Pólen.) - de algoz a vítima. Esse olhar não trata de polos extremos (bem e mal, por exemplo), mas tenta compreender a humanização da criatura fada-bruxa que intitula o filme (outra mudança, pois tira o centro de Aurora ao não se voltar, especificamente, ao enredo da princesa adormecida, mas sim ao embate entre Malévola e o rei, com foco na fada-bruxa, em outros enunciados visibilizada apenas em alguns momentos específicos, com atos sem grandes explicações, investidos como argumentos de constituição de sua vilania). Daí, a ambivalência da composição de sua simbologia arquetípica.

Com a finalidade de refletir sobre essa ambivalência, além de nos voltarmos ao filme, trazemos três contos para cotejo: Sol, Lua e Talia, de Giambattista Basile (1634), A bela adormecida no bosque, de Charles Perrault (1697) e A bela adormecida, dos Irmãos Grimm (1815), dado o elo na cadeia discursiva (Volóchinov, 2013Volochínov, V. (2013). A Construção da enunciação e outros ensaios. Pedro e João. e 2017Volochínov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Editora 34.) constitutivo do filme, pois apenas no diálogo com esses outros enunciados é que conseguiremos pensar sobre a constituição da Malévola no live action, objeto de nossa análise. Assim, a partir de Malévola, em cotejo com os três contos, analisamos a construção da representação (que compreendemos como imagem) de feminino nas três obras e de que forma elas contribuem para a construção da mulher fada-bruxa, tendo em vista o abuso (a violência) sexual que sofre e que suscita as respostas que norteiam vários de seus atos.

Neste artigo, procuramos compreender esse enunciado fílmico, fundamentadas na perspectiva bakhtiniana dialógica de linguagem, entendida por Paula (2017Paula, L. de. (2017). O enunciado verbivocovisual de animação: a valoração do “amor verdadeiro” Disney - uma análise de Frozen. In Jr, A. Fernandes, & G. B. Stafuzza (Eds), Discursividades contemporâneas: política, corpo, diálogo (pp. 287-314). Mercado de Letras) e Paula e Luciano (2020aPaula, L. de, & Luciano, J. A. R. (2020a). A tridimensionalidade verbivocovisual da linguagem bakhtiniana. Linha D’Água, 33(3), 105-134. https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v33i3p105-134.
https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242....
, 2020bPaula, L. de, & Luciano, J. A. R. (2020b). Filosofia da linguagem bakhtiniana: concepção verbivocovisual. Revista Diálogos - RevDia, 8(3), 132-151. https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia/article/view/10039.
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
, 2020cPaula, L. de, & Luciano, J. A. R. (2020c). Dialogismo verbivocovisual: uma proposta bakhtiniana. Polifonia, 27(49), 15-46. https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/11366.
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
, 2021Paula, L. de, & Luciano, J. A. R. (2021). The Verbivocovisual Architectonic of the Stage La Conversione Di Un Cavallo. Global Journal of Human Social Sciences-A, 21(13), 01-13. https://globaljournals.org/GJHSS_Volume21/EJournal_GJHSS_(A)_Vol_21_Issue_13.pdf.
https://globaljournals.org/GJHSS_Volume2...
) como tridimensional. Pensar Malévola em sua configuração dialógica significa considerá-la como acontecimento social e refletir sobre os elos e a singularidade do enunciado fílmico; contribuir com os estudos do Círculo e com o viés social da temática sobre a mulher na relação arte e vida (Volóchinov, 2019Volóchinov, V. (2019). A palavra na vida e a palavra na poesia. Editora 34.).

Este artigo se estrutura de maneira dialogada (análise e teoria), pois iniciamos com a discussão sobre a imagem de mulher nos contos de fada mencionados para historicizar a fada-bruxa e, em seguida, adentramos na análise da protagonista no live action, fundamentadas no escopo teórico bakhtiniano, suscitado pelo objeto de análise. Esse percurso de escrita revela o caminho metodológico sociológico (como denominado por Volóchinov, 2019Volóchinov, V. (2019). A palavra na vida e a palavra na poesia. Editora 34.) subjacente à pesquisa analítica realizada, focada na materialidade sincrética enunciativa do filme.

2. No universo maravilhoso, representações de mulher

Conforme os pressupostos do Círculo, a linguagem, constitutiva da atividade humana, expressa sentidos na interação entre sujeitos. Isso decorre porque ela - a linguagem - constrói sentidos por meio dos elementos da organização econômica, sociopolítica e cultural da sociedade que a gerou. Esse processo ocorre devido à criação do signo. A linguagem expressa concretamente os sistemas ideológicos, resultados da sua condição de produto da vida social.

A cultura é realizada porque a humanidade é social e interativa. Ela é configurada pela materialização da linguagem, que reflete e refrata fenômenos sociais. Uma das concretizações dessas culturas constrói imagens de mulher. Dentre elas, como estereótipos social e institucionalmente impostos (pela superestrutura, de forma hegemônica, sustentada pelas forças centrípetas - Volóchinov, 2017Volochínov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Editora 34.), em circulação reiterada no “grande tempo” (Bakhtin, 2018Bakhtin, M. (2018). Teoria do Romance II: As formas do tempo e do cronotopo. Editora 34.) da história e da cultura, destacam-se “princesa”, “fada”, “bruxa” e “mãe”, em constante movimentação e acabamentos arquitetônicos enunciativos, a depender da configuração e do projeto de dizer do autor-criador, que utiliza diversas e variadas manifestações genéricas de linguagem - dentre elas, o conto de fadas.

As fadas, pertencentes ao folclore da Europa Ocidental, são apresentadas como mulheres providas de grande beleza física e poderes sobrenaturais. Contudo, quando esses poderes são utilizados para aquilo que é considerado fora do usual permitido socialmente, elas se transformam em “pecadoras”/bruxas. Esse processo reforça uma dicotomia arquetípica (Jung, 2000Jung, C. G. (2000). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vozes.) atribuída à mulher: boa e má, heroína e vilã, santa e pecadora, entre outras.

Os arquétipos, segundo Jung, não são determinados como elementos meramente inconscientes, focados na ideia (o conteúdo temático enunciativo e genérico, como chamado por Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Editora 34.), mas sim na forma (a forma composicional, como denominado pelo filósofo russo), pois, conforme o autor, os arquétipos

[...] são determinados apenas quanto à forma e não quanto ao conteúdo, e no primeiro caso, de um modo muito limitado. [...] O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma de sua representação. O que é herdado não são as ideias, mas as formas, as quais sob esse aspecto particular correspondem aos instintos igualmente determinados por sua forma. (2000, p.91, grifos do autor)

Compreendemos o arquétipo juguiano como um princípio de núcleo variável, determinante de sua aparência, mas nunca de forma fixa, imutável, uma vez que o modo pelo qual se manifesta não pode ser deduzido, pois é situado e, por isso, precisamos considerar o contexto de produção em que está inserido (produção e revitalização).

As mulheres-princesas são comumente associadas ao papel de heroína dentro das narrativas da literatura maravilhosa. A bruxa, como ser poderoso e entendido como perverso reflete e refrata, no imaginário, uma versão controversa, ainda que também estereotipada, no universo feminino. A imagem controversa se constrói pela ambivalência entre a sabedoria, o poder, a vida e as ações não convencionais, considerados “maléficos” ou, ao menos, “fora do padrão”. A noção de bruxa, diferente das mulheres sábias da Idade Média, transformadas em bruxas por seu conhecimento e queimadas na fogueira, como exemplos a não serem seguidos (Kramer; Sprenger, 2015Kramer, H., & Srenger, J. (2015). Malleus Maleficarum - O martelo das feiticeiras. BestBolso.); mas encarna no inconsciente coletivo como ser monstruoso. Assim Malévola é construída (não denominada nos contos utilizados aqui para cotejo), cuja figura, nos contos de fada, distancia-se da de Aurora, em que, por contraposição, a princesa é posicionada no eixo oposto ao da bruxa, positivamente.

À guisa de ilustração, no conto dos Irmãos Grimm, a Bela Adormecida é apresentada da seguinte maneira: “Quanto à menina, todos os desejos proferidos pelas feiticeiras se realizaram, pois ela era tão bonita, bondosa, encantadora e ajuizada que não havia um que nela pusesse os olhos e não passasse a amá-la.” (2010 [1815], p.122). E, no conto do Perrault:

O batizado foi uma festa linda, ímpar. A princesa teve por madrinhas todas as fadas da região (encontraram-se sete), para que, por meio de cada dom concedido por elas, como era o costume das fadas naqueles tempos, a princesinha tivesse todas as perfeições imagináveis. (2015, p.21).

Na relação hierárquica, as princesas são as mulheres do reino, protegidas pelas fadas e atacadas pelas bruxas. Assim, fadas e bruxas se igualam na pirâmide social do mundo maravilhoso. Uma, a fada, valorada como a madrinha “boa” e a outra, a bruxa, adjetivada como aquela temida por todos, excluída do reino por ser considerada perigosa e “má”.

A concepção de ideologia, para o Círculo, está calcada nos pressupostos marxistas (do materialismo histórico-dialético). Para Volóchinov (2017Volochínov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Editora 34.), a palavra (2013), em seu sentido amplo, materializa-se nos enunciados, de diversas materialidades (verbal, vocal/sonoro, visual ou sincrético e multimodal), em que os vários fios ideológicos perpassam nos signos, em interação. A linguagem expressa as mudanças sociais constituídas em sistemas ideológicos organizados, que podem ser compreendidos como sistemas culturais.

A construção da imagem de princesa-mulher nos contos de fadas, como visualizamos nos trechos destacados acima, está atrelada a uma moralidade ideal para certa voz social (patriarcal) acerca do que deve ser ou se tornar padrão quanto a ser-mulher. Essa padronização idealizada se constrói num mundo maravilhoso, com acabamento estético literário que reflete e refrata um modus vivendi social, ao mesmo tempo em que incute, no solo social de onde parte, certo modelo de mulher a ser seguido: o de princesa, boa, bela, ingênua, comportada etc, o que é expresso por meio das descrições de comportamento e aparência que, por sua vez, semiotizam uma estética de “beleza”, almejada na vida por mulheres e homens que buscam ser ou se relacionar com sujeitos que correspondam a essas imagens.

A partir dessa relação ético-estética, uma verdade pravda (Bakhtin, 2010Bakhtin, M. (2010). Para uma filosofia do ato responsável. Pedro e João.) é produzida pelos e nos atos (de /dizer/ e de /fazer/) dos sujeitos, um ethos sociocultural se estabelece no pequeno tempo e é ressignificado em cada ato singular que, em elo discursivo, re-produz padrões de comportamento no grande tempo da história - e, assim, os arquétipos se formam, fortalecem e são alterados. Ao considerarmos esse processo, percebemos que a construção de uma imagem de mulher é uma produção histórica e ideológica, ligada a um contexto sociocultural e a um (pequeno e grande) tempo(s).

Ao nos voltarmos aos trechos dos contos, percebemos o quanto a questão da beleza é elemento constitutivo do sujeito-mulher. A compleição física não é um atributo exclusivo da caracterização de princesas. Wolf (2020Wolf, N. (2020). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rosa dos Tempos.) destaca que a beleza é uma construção social usada, historicamente, como arma contra a mulher por meio do encerramento de seu ser a traços sociais valorados positivamente como “belos”. Nesse sentido, o mito da beleza seria uma forma elaborada de controle de mulheres na sociedade patriarcal que, entendendo a beleza como uma qualidade essencial (talvez, a maior ou ainda a única, a depender do grupo, do local e da época), estimula a competição entre elas, as enfraquece, uma vez que relaciona magreza/gordura como traço de beleza e, com isso, estimula toda uma produção (nutricional, farmacêutica, médica, de moda, entre outras) que leva a dietas, mutilações cirúrgicas e demais procedimentos que sustentam toda uma indústria e um sistema de dominação (patriarcal). Conforme a autora (Wolf, 2020Wolf, N. (2020). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rosa dos Tempos., p. 378): “O mito da beleza foi projetado artificialmente para lançar as gerações das mulheres umas contra as outras. Nosso fortalecimento consciente desses vínculos devolve ao nosso ciclo vital a integridade que o mito da beleza desejaria impedir que descobríssemos”.

De acordo com a autora, a beleza ideal é construída como um mito de controle eficaz mordaz da mulher. Ideal porque inatingível (cada vez que se chega próximo de uma meta, o objetivo muda para um patamar ainda mais extremo) e porque há uma criação pré-estabelecida como um padrão físico, social, cultural e habitual. Afinal, “O mito da beleza, na realidade, sempre determina o comportamento, não a aparência. [...]. E o que é mais instigante, a nossa identidade deve ter como base a nossa ‘beleza’, de tal forma que permaneçamos vulneráveis à aprovação externa” (Wolf, 2020Wolf, N. (2020). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rosa dos Tempos., p. 17). Sob esse prisma, a beleza é um dispositivo ideológico de controle do patriarcado para subjugar a mulher, pois

A sociedade, de fato, não se importa com a aparência das mulheres per se. O que realmente importa é mantê-las dispostas a permitir que outros lhes digam o que podem e o que não podem ter. Em outras palavras: as mulheres são vigiadas, não para que se tenha certeza de como se comportarão, mas para se ter certeza de que elas saibam que estão sendo vigiadas. (Wolf, 2020Wolf, N. (2020). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rosa dos Tempos., p. 130)

Como afirmam Bakhtin (2011Bakhtin, M. (2011). Estética da Criação Verbal. Martins Fontes.), Medviédev (2012Medvíedev, P. (2012). O Método formal nos estudos literários. Contexto.) e Volóchinov (2019Volóchinov, V. (2019). A palavra na vida e a palavra na poesia. Editora 34.), a arte reflete e refrata a vida. Ao partir do solo social, a arte o semiotiza com determinado acabamento estético. No caso do universo maravilhoso dos contos de fada, esse acabamento ocorre pela presença das criaturas mágicas, pelo ambiente espaço-temporal encantado.

O movimento dialético-dialógico (Paula L., Figueiredo, Paula S., 2011Paula, L. de, Figueiredo, M. H. De, & Paula, S. L. de. (2011). O marxismo no/do Círculo de Bakhtin. In G. B. Stafuzza, (Ed.), Slovo (pp. 79-98). Appris) oposto também ocorre: os discursos estéticos (e, no caso do live action, também midiático) re-velam comportamentos, assim como os estimula, confirma, confronta, relativiza, atualiza etc.

A relação arte e vida não é direta, ela ocorre por meio da linguagem - melhor, do trabalho com a linguagem e esse trabalho arquiteta, com dada forma composicional, o conteúdo temático abordado, marcado pelo estilo autoral e genérico enunciativo. Daí, a importância de estudarmos os sentidos construídos pela arte: ela flagra e também incute valores que podem ou não servirem como modelo ou anti-modelo no solo social. No caso aqui analisado, padrões de mulheres tipificadas de modo estereotipado.

As imagens de princesa, fada e bruxa, por um lado, são produzidas como reflexo e refração sociocultural de mulheres existentes; por outro, ao mesmo tempo, criam fetiche, nos termos de Marx (2007Marx, K. (2007). Trabalho alienado. Manuscritos Econômico-Filosóficos. HTML. Disponível em Disponível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/index.htm . (Acesso em 27 set. 2020).
https://www.marxists.org/portugues/marx/...
), de como devem ser - o que remete a determinado comportamento, corpo e estilo de vida. No caso, a beleza, o recato, a ingenuidade, a fragilidade e a insegurança, em conjunto, são valores centrais mobilizados como características descritas e narradas na construção de mulher. Essas axiologias tipificam e distinguem princesa, fada e bruxa, incutindo, inclusive, dada índole emotivo-volitiva a esses arquétipos.

As mulheres-princesas tradicionais tinham (ainda têm) uma elaboração que corrobora com a propagação de uma valoração social de mulher veiculada pela Igreja e pelo Estado (agora, na contemporaneidade, também pela mídia), principalmente, por meio da conduta familiar. Segundo Bettelheim (2014), boa parte dos contos de fadas se originou em períodos nos quais a religião era de grande importância para a construção de uma sociedade enquanto tal e, consequentemente, para a construção de uma identidade de mulher que, hoje, tem sido nomeada por grupos religiosos, políticos e midiáticos ou mesmo por certos grupos de mulheres (como ocorreu em reportagem da Veja, tem sido recorrente na Igreja Universal do Reino de Deus ou ainda por grupos de mulheres organizados que se autodesignam “Tradwives”) de “bela, recatada e do lar”, considerada “bem comportada”, à espera de um “príncipe” (um homem) provedor, que a salva, sustenta e se casa com ela para constituírem juntos uma família e para que ela possa ser mãe - sua função religiosa primordial, calcada em Maria, a virgem que, abnegada, aceita um “chamado de Deus” para ser a mãe de Cristo (como tem sido pregado em determinados grupos católicos, chamados “Irmãs de Maria”, hoje em dia, em pleno século XXI, em que as mulheres são ensinadas a serem submissas e a aceitarem suas “funções divinas”, dada a sua “natureza biológica” - argumento canônico do patriarcado, muito usado na Idade Média pela Inquisição, que distinguia mulheres cristãs e “bruxas”, tal qual descrevem Kraemer e Sprenger (2015) ao explanarem sobre as estratégias e os tratamentos simbólicos e físicos que utilizavam para torturar e, com violências de todas as ordens, dominar as mulheres. Argumento combatido por Beauvoir (2020Beauvoir, S. de. (2020). O segundo sexo. Ed. Comemorativa 1949-2019. Nova Fronteira.) e ainda tão efetivo).

Conforme Volóchínov (2017), as avaliações ideológicas (falso, verdadeiro, correto, mau, bom etc) são categorias que podem ser aplicadas a qualquer signo. Assim, ao nos depararmos com a descrição “[...] bonita, bondosa, encantadora e ajuizada que não havia um que nela pusesse os olhos e não passasse a amá-la.” (Grimm, J.; Grimm, W., 2010, p.122), o que nos é informado pelo narrador não é uma mera caracterização da personagem-princesa recém-nascida, mas valorações axiológicas que a tipificam arquetipicamente, uma vez que, conforme afirma Volóchinov, onde há signo, há ideologia e o que comunicamos são juízos de valor sobre algo/alguém (no caso citado dos Grim, a mulher-princesa “bela adormecida”).

Como mencionamos, nos contos, a imagem de mulher-princesa reflete e refrata um modelo de beleza, comportamento e moral: uma mulher bela que espera pela figura masculina, a fim de ser despertada social e sexualmente. Essa construção também é replicada como modelo seguido e perpetuado, tanto em contos e em suas (re)criações de gêneros diversos (como é o fílmico, caso de Malévola), quanto na vida, da qual parte e à qual se volta. Daí, quando um bebê do sexo feminino nasce, certa parte da sociedade chamá-lo de “princesa”. O uso do lexema, mais que a atualização de um signo, recria a valoração que o constitui: o de mulher bela (e, por beleza, os padrões vigentes no tempo-espaço social que vigoram. No caso, hoje, o de magreza, por exemplo, como assevera Wolf, 2020Wolf, N. (2020). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rosa dos Tempos.), bem comportada (o que significa ser obediente, ingênua, “pura”/virgem e reprimida), de determinada classe social (abastada), raça (em geral, branca), faixa etária (jovem), à disposição de uma figura masculina (primeiro o pai e, depois, o “príncipe”-marido, que a prepara, guia, inicia, engravida) e de cumprir com o que lhe for ofertado (o cuidado da casa e a procriação que leva à continuidade da vida - com a maternidade - , da família - que leva o nome do pai - , e a esses valores patriarcais). Considerando o que é socialmente esperado e aceito, quando uma mulher se distancia do padrão estabelecido, é retratada como vilã, caracterizada como “má”.

Conforme Medviédev (2012Medvíedev, P. (2012). O Método formal nos estudos literários. Contexto.), a criação ideológica é sempre social e histórica. Por isso, trouxemos as versões literárias de A bela adormecida dos Grimm e do Perrault em diálogo com a leitura fílmica de Malévola - por seu intercâmbio sociocultural, com sua axiologia, calcada no pensamento judaico-cristão (base para a construção dos contos de fadas no Ocidente, os quais estão pautados nos conflitos éticos do ser humano). Segundo Franz, as extremidades arquetípicas da princesa, da fada e da bruxa constituem “[...] o refinamento da resposta ética produzido por nosso sistema religioso.” (1985Franz, M.-L. V. (1985). A sombra e o mal nos contos de fadas. Paulinas. , p.41).

O sujeito-feiticeira é dividido em bruxa (feiticeira “má”) e fada (feiticeira “boa”) dos contos. No caso de Malévola, considerada, tradicionalmente, como bruxa (a exceção do live action, em que é designada como fada exatamente porque a recriação tenta humanizá-la ao relativizar essas categorias como opostas e não interligáveis), ela é relacionada ao axiologicamente considerado “mau”, (in)justificado como reação/resposta à falta de convite para o batizado da princesa, excluída pelos pais (rei e rainha do local), como destacado em:

[...] Quando chegou a vez da fada velha, esta disse, balançando a cabeça mais por despeito do que por velhice, que a princesa espetaria a mão no fuso de uma roca de fiar e que disso morreria.

Essa terrível predição fez todos tremerem, e não houve quem não chorasse. (Perrault, 2015, p. 22).

[...] No exato momento em que a décima primeira mulher estava concedendo sua dádiva, a décima terceira do grupo surgiu. Não fora convidada e agora desejava se vingar. Sem olhar para ninguém ou dizer uma palavra a quem quer que fosse, gritou bem alto: “Quando a filha do rei fizer quinze anos, espetará o dedo num fuso e cairá morta.” E, sem mais uma palavra, virou as costas a todos e deixou o salão. (Grimm, 2010, p.122).

O mesmo acontece em Malévola. A seguir, a transcrição da maldição proferida pela protagonista com a sequência de fotogramas e a extração de cores (Figura 1) que constituem, verbivocovisualmente, a cena no enunciado fílmico:

[...] ao pôr-do-sol do seu décimo sexto aniversário ela espetará o dedo no fuso de uma roca de fiar e então cairá no sono da morte. [...] A princesa vai poder acordar do seu sono profundo, mas somente por um beijo de amor. Esta maldição durará para sempre e nenhum poder na Terra pode mudá-la.5 5 A maldição é entoada em tom grave pela protagonista, posicionada de maneira altiva (cabeça erguida, em pé e de braços abertos). A iluminação esfumaçada, escura e verde completa a cena da maldição, com uma tomada de câmera de meio corpo, com Malévola ao centro e em primeiro plano. (Transcrição feita pelas autoras)

Figura 1
Maldição de Malévola

Tanto no primeiro (Perrault) quanto no segundo (Grimm) trechos destacados, temos a primeira aparição da feiticeira-bruxa, já amaldiçoando a princesa. No enunciado fílmico, essa não é a primeira aparição de Malévola. Há todo um percurso da personagem, desde a infância, desconsiderado nos contos de fadas e considerado no live action que constrói diferenças composicionais na caracterização da protagonista. Utilizamos, metodologicamente, um recorte de cena correspondente ao momento narrado nos contos para analisarmos regularidades e singularidades discursivas nas e das obras. A materialização do bem e do mal na composição da personagem se expressa pela voz do/a narrador/a, mas também pela elaboração arquitetônica do autor-criador, que configura a cena, seleciona lexemas e estruturas linguísticas e corporais (gestualidade, expressões corporal e facial etc) das personagens, entre outros elementos que revelam as valorações de cada enunciado e gênero (contos e filme).

Ao fazer a evocação da cena da maldição, a Disney resgata uma elaboração estética comum às suas produções ao fazer a referência à vilania. Assim como pode ser visto em outros filmes, inclusive na versão animada de A bela adormecida, ao invocar sua maldição do sono, Malévola é cercada por chamas verdes escuras com a presença de alguns resquícios em dourado. Nesse enunciado, o verde, unido às roupas negras da fada-bruxa, produz um sentido ligado à maldade e à destruição, associada ao psicológico humano. Heller explica que o verde

[...] é a cor mais “inumana”. Um ser com pele verde não pode ser humano; tampouco pode ser um mamífero, por não haver nenhum mamífero verde. Uma pele verde nos faz pensar em serpentes e lagartos, animais repulsivos para muitos, ou em dragões e criaturas mitológicas, que infundem medo. Inclusive, o rei dos sapos do conto é repulsivo. Também são verdes as criaturas de ficção mais moderna. [...]

O diabo tem sido representado, com frequência, como um híbrido de serpente e dragão. Um dos diabos mais criativamente representados na pintura é “verde veneno”, e tem um rosto desenhado no traseiro. Quando o diabo aparece com figura humana, o faz vestido de verde, como um caçador, pois é um caçador de almas. Em nossa fantasia, os seres demoníacos têm olhos verdes. (Heller, 2013Heller, E. (2013). A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. Gustabo Gili. , p. 114).

A imagem de Malévola na cena destacada (Figura 1) revela a ênfase à imagem vilanesca da fada-bruxa, dada a paleta de cores usada em seu acabamento estético (conforme extração demonstrada, do verde vivo ao preto, trabalhada de forma monocromática, com tom sombrio). A partir das colocações de Heller (2013Heller, E. (2013). A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. Gustabo Gili. ), podemos pensar numa tradição das produções ocidentais imagéticas (na Disney, um padrão de produção7 7 Na maior parte das animações da Disney, a vilania está envolta nessa coloração verde, com o mesmo tom sombrio, trabalhado de forma análoga. Um exemplo é a cor dos olhos do Scar, tio falso que arquiteta a morte de Mufasa e dá um golpe de Estado, na trama de Rei Leão. Mas, essa significação não se restringe às produções da Disney. Na saga Harry Potter, a luz que sai das varinhas dos comensais da morte e de Voldemort, vilão maior do protagonista, também tem a mesma coloração, no mesmo tom de verde; entre outros tantos exemplos. ), que une a cor preta a alguma outra (geralmente verde, mas, em alguns casos, vermelho ou azul), a fim de se inverter as valorações e dar a essa segunda cor um significado de conotação ruim, dado o uso de filtro de sombras. O verde como símbolo do poder de Malévola revela sua essência, especialmente por surgir no momento em que a fada-bruxa amaldiçoa Aurora.

Todavia, em Malévola, há uma diferença entre a maldição narrada nos contos e no filme. A fada-bruxa, no live action, ao mesmo tempo que roga o feitiço, também o ameniza, dada a ambivalência desse sujeito, que amaldiçoa e rompe com a maldição. Essa complexidade também norteia a concepção de amor verdadeiro, ligado a essa maldição. Esses traços ressignificam Malévola a partir de seus atos responsivos, justificados pela violência sexual sofrida e omitida nos contos, mas principal cena do enunciado fílmico, pois gatilho de sua ira e de sua dor - elemento que trans-forma a manifestação de sua essência, mas não seu ser em si, que, no fundo, ainda quer ser aceito e não compreende a traição da confiança, expressa por toda a violência sofrida, cometida justamente por aquele em quem confiou.

3. A violência sexual em Malévola

Compreender a constituição ambivalente fada-bruxa de Malévola requer considerar as condições a que foi submetida. Diferente das narrativas populares, nas quais o cunho moralizante e dicotômico se faz presente, Malévola, apesar das forças centralizadoras (centrípetas) que ligam o filme com os contos tradicionais, caracteriza-se também por forças centrífugas, abertas às dispersões. A personagem humanizada que ressignifica a figura canônica de outrora não abandona toda a cadeia à qual se liga.

A temática da vilania, tão cara às produções Disney, é a base da constituição de Malévola, sem deixar os elementos presentes no imaginário coletivo da sociedade em que os contos de origem surgiram. O que ocorre é que uma nova perspectiva é usada para o desenvolvimento ambivalente da personagem e um dos aspectos componentes desse processo de humanização da fada-bruxa está pautado por questões de poder.

No enunciado fílmico, a questão do poder é fator decisivo para o surgimento do vilão (um conselheiro do rei), cuja maldade está pautada na ganância por uma posição social elevada (tornar-se rei). Malévola, no live action, dada a sua condição mitológica, já é respeitada como a fada mais poderosa dos Moors8 8 Reino fictício, lugar onde Malévola mora, junto com outras criaturas mágicas. . Ao terem contato como representantes de seus mundos, em acordo, e se tornarem amigos, Malévola é honesta, mas a ambição de Stéfan o torna um traidor da protagonista, que o ama; e a mentira, o ato sexual não consentido (estupro) e o corte de suas asas, despertam a vilania na/da fada-bruxa, conforme a narradora (Aurora), que, desde o início, traça diferenças entre os reinos mágico e humano:

[...] em um deles, viviam pessoas comuns, mas havia um rei vaidoso e ganancioso. Estavam sempre descontentes e invejavam a riqueza e a beleza de seus vizinhos. Já no outro reino, o dos Moors, vivia todo tipo de criaturas estranhas e maravilhosas. Não tinham reis e rainhas, pois confiavam uns nos outros (Malévola, 2014Malévola. (2014). Direção: Robert Stromberg. Produção: Walt Disney Pictures e Roth Films, 2014, 97 min, cor., 00:00:53-00:01:07).

Uma diferença fundamental entre as sociedades é enfatizada: a dos humanos é regida pelo modelo patriarcal monárquico, consolidado há milênios, com a figura de um rei (homem) “vaidoso e ganancioso”, que representa o modelo de poder; enquanto o reino dos Moors é regido pelo nivelamento entre as criaturas, calcado na confiança e no respeito mútuos. Mesmo assim, ao terem sua sociedade atacada pelo rei dos humanos, as criaturas têm, em Malévola (uma mulher-feiticeira com poderes mágicos), sua principal figura de poder, uma vez que ela se coloca na linha de frente para proteger todos e os comanda, a fim de cuidarem do reino.

Na sua constituição de homem branco, inserido em um solo social patriarcal de dominação (de terras, sobre outros homens, de outra classe social e sobre as mulheres), Stéfan escolhe, por ambição, o poder a Malévola:

[...] Stéfan deu a Malévola um presente, disse que era um beijo de amor verdadeiro. Mas, na verdade, não era. Com o tempo, a ambição de Stéfan o afastou de Malévola e o aproximou das tentações do reino dos humanos. (Malévola, 2014Malévola. (2014). Direção: Robert Stromberg. Produção: Walt Disney Pictures e Roth Films, 2014, 97 min, cor., 00:07:58:-00:08:26).

Malévola (...) nunca compreendeu a ganância e a inveja dos homens, mas iria compreender, porque o rei dos humanos soube da ascensão dos Moors e jurou destruí-los. (Malévola, 00:09:23-00:09:33).

O rei, despeitado com o poder dos moors, impõe uma ordem ao povo que comanda: aquele capaz de matar Malévola e de provar seu feito, seria recompensado com sua (do rei) propriedade, ou seja, a mão de sua filha que, pelo casamento, passa a representar o reino dos humanos, pois, seu genro se tornaria seu sucessor. Stéfan aceita a empreitada, levado por sua ganância social e econômica. Incapaz, contudo, de matar Malévola, ele a faz adormecer com um medicamento (lhe dá um “Boa noite, Malévola” - daí, o título deste artigo, em alusão a um ato que, ainda hoje e, talvez, mais que nunca, ocorre com certa frequência, realizado por homens sobre mulheres, em encontros amorosos) e corta suas asas (ato simbólico de aprisionamento pela mutilação às desobedientes que, com sua liberdade, voam sem se curvarem às vontades dos homens. Cortar as asas de alguém significa “dobrá-la” à força a realizar algo que não quer ou sequer foi consultada a fazer. Assim, ao eliminar as asas de Malévola, Stéfan aniquila sua liberdade - seu maior poder - e a subjuga, forçosamente, pela violência, simbólica e também sexual que representa a ruptura com sua autonomia):

Figura 2
Stéfan droga Malévola9 9 Minutagem: 00:17:00; 00:17:02; 00:17:06. Criação das autoras.

Para compreendermos o processo de traição e violência, dialogamos o filme com alguns trechos dos contos. Primeiramente, a versão dos Irmãos Grimm:

Finalmente chegou à torre e abriu a porta do quartinho em que a Rosa da Urze dormia. Lá estava a princesa deitada, tão bonita que ele não conseguia tirar os olhos dela. Então, curvou-se e beijou-a.

Mal o príncipe lhe roçara os lábios, a Rosa de Urze despertou, abriu os olhos e sorriu docemente para ele. (Grimm, 2010, p. 127).

Em sequência, a versão de Charles Perrault:

[...] entra num quarto todo dourado, e vê numa cama, de cortinas entreabertas, o mais belo quadro que ele jamais vira: uma princesa que parecia ter quinze ou dezesseis anos, e cujo brilho resplandecente tinha algo de luminoso e divino. Aproximou-se, trêmulo e admirado, e ajoelhou-se aos seus pés.

Então, findo o encanto, a princesa despertou; e olhando para ele com os olhos mais ternos do que ver uma pessoa pela primeira vez parece permitir, disse:

É você, meu príncipe? Eu o esperei tanto! (Perrault, 2015, p.26).

Por fim, a de Giambattista Basile10 10 Tradução integral do conto disponível em: http://volobuef.tripod.com/op_basile_sol_lua_talia_kvolobuef.pdf (Acesso em: 05 out 2020). :

[...] o rei, tendo mandado buscar uma escada de um vinhateiro, quis subir pessoalmente à casa e ver o que acontecia lá dentro. Após subir e entrar, ficou pasmado ao não encontrar viva alma; e, por fim, chegou à câmera onde jazia Tália, como que encantada.

O rei, acreditando que ela dormia, chamou-a. Mas, como ela não voltava a si por mais que fizesse e gritasse, e, ao mesmo tempo, tendo ficado excitado por aquela beleza, carregou-a para um leito e colheu dela os frutos do amor, e, deixando-a estendida, voltou ao seu reino, onde por um longo tempo não se recordou mais daquele assunto. (Basile, s/d p.1).

Apesar da proposta de ressignificação de uma fada-bruxa humanizada, os estúdios Disney recuperam, no filme, uma valoração do ser-mulher presente em diversas sociedades, desde os mais tenros tempos, pois, ao mesmo tempo, resgatam personagens arquetípicas em uma nova forma narrativa e constroem um outro modo de ver Malévola na contemporaneidade, ao apresentarem a sua história. Concomitantemente, alguns aspectos axiológicos são reiterados com outro acabamento, o que relativiza valores voltados às construções de imagens de mulher na sociedade. Ao observarmos os três trechos destacados em seus séculos de distância de produção11 11 Irmãos Grimm, início do séc. XIX; Charles Perrault, fins do séc. XVII; e Bastille, primeiro terço do séc. XVII. , um traço temático e composicional atravessa todas as narrativas: um homem tem contatos íntimos com uma mulher, sem seu consentimento. É comum nos contos de fadas haver princesas adormecidas (caso de Branca de Neve, além de Bela Adormecida, por exemplo), que recebem um beijo - não consentido - para serem despertadas. O mesmo ato ocorre em Malévola: a figura 2 mostra um vilão que provoca o sono na fada-bruxa (não na princesa, como nos contos citados) e abusa dela sexualmente, num ato de dominação à força (invasão e mutilação do corpo como forma de instauração hierárquica de poder. Esse tipo de ato também é usualmente narrado em histórias de guerra, em que os homens abusam sexualmente das mulheres dos países conquistados como forma de “semear” a nova terra, povoando - com sua “semente” de poder - a cultura, por meio da gravidez indesejada e não consentida da mulher. O estupro aparece, nesses casos, como força do homem e poder fálico, típico do arquétipo bélico-militar, o que se expressa, inclusive, nas representações das patentes de poder em uniformes, bandeiras e demais indumentárias).

Nas três versões literárias aqui citadas de A bela adormecida, o príncipe-homem aparece de maneira não proposital, mas, em todos os casos, a beleza da princesa é a causa do ato violento narrado como amoroso (o beijo), aceito por Aurora ao acordar. O não consentimento sequer é marcado, pois a beleza como sedução causal é pressuposta como valor “dado” (que, sabemos, é construído).

No primeiro excerto (Grimm, 2010), a construção desse trecho narrativo é feita, linguisticamente, a partir de uma oração subordinada adverbial consecutiva, que expressa uma consequência determinada pela informação da oração principal. No caso, a princesa, por ser bonita (logo, a beleza como causa), tem como consequência a atenção (violenta, pois não consentida) do príncipe-homem que, por sua vez, “não consegue” resistir (é seduzido pela causa-beleza da mulher-princesa). Essa configuração linguística revela um sentido sociocultural: a vitimização do homem-vilão e a culpabilização da mulher-vítima, construídas pela sintaxe discursiva da narrativa enunciada.

No caso de Perrault, a mulher-princesa é descrita como objeto divino e contemplativo. A partir do uso de um superlativo relativo, a imagem adormecida (muda, estática, morta) ganha vida e encanta o homem-príncipe. O autor não descreve o contato físico (beijo), mas a mera presença de um homem (desconhecido e invasor) é suficiente para despertar a princesa-mulher. O seu estado inerte é enfatizado, a ponto de a Aurora ser relacionada a uma imagem divina/santificada. Segundo Volóchinov, avaliações axiológicas se encontram nos aspectos verbais de um enunciado, mas não somente:

O sentido e o significado que o enunciado tem na vida (independente de como sejam) não coincidem com a sua posição puramente verbal. As palavras ditas são repletas de subentendido e do não dito. Aquilo que é chamado de “compreensão” e de “avaliação” do enunciado (a concordância ou a discordância) sempre abarca, além da palavra, também a situação extraverbal da vida. (2019, p. 129).

Para o autor russo, o enunciado não é influenciado pela vida de fora dele, mas é impregnado por dentro, enquanto unidade e comunidade da existência que circunda os falantes. As obras citadas neste artigo materializam valores socioculturais por meio do trabalho estético-linguístico. A escolha de Perrault pelo superlativo relativo revela a apreciação de uma imagem de mulher estática, sem reação de resistência e relacionada à divindade. Afinal, o signo ideológico, fenômeno do mundo externo, só é compreendido na relação com outros signos, em interação discursiva, histórica e sociocultural.

Em Basile, a utilização de uma conjunção adversativa num primeiro tópico ressalta um esforço do homem-príncipe em acordar a mulher-princesa. Em seguida, a excitação desse sujeito-homem-príncipe ao ver Talia (novamente, uma mulher numa situação de vulnerabilidade e fragilidade, estática, à espera e à mercê de um homem-salvador - que, na verdade, comporta-se como abusador). O resultado da somatória do esforço e da excitação do homem-príncipe com uma imagem considerada canônica/arquetípica da mulher-princesa é a violência sexual romantizada (“colheu dela os frutos do amor”) e o abandono como ato naturalizado, que caracteriza a violência como banal (“e, deixando-a estendida, voltou ao seu reino, onde por um longo tempo não se recordou mais daquele assunto”).

Ao discorrer sobre a literatura e sua relação com o meio ideológico, Medviédev faz apontamentos de como “(...) a literatura, em seu ‘conteúdo’, reflete e refrata as reflexões e as refrações de outras esferas ideológicas (ética, cognitiva, doutrinas políticas, religião, e assim por diante)” (2012, p. 60). Por meio do conteúdo é que a literatura semiotiza o horizonte ideológico do qual faz parte. Esses conteúdos éticos recebem acabamento estético específico e marcas estilísticas autorais e genéricas que re-velam o projeto de dizer arquitetado. Dessa forma, a literatura (e a arte de modo ampliado) expressa o universal humano. A vida se realiza como semiose ética em ato estético-literário, ambientada num meio ideológico. Dessa forma é que as estruturas das narrativas populares materializam os valores ideológicos de maneira posicionada. Assim, analisar a construção narrativa dos contos de fada vai além de sua estruturação interna, pois nos leva a compreender as valorações ideológicas não artísticas (o machismo estrutural, produto do patriarcado, por exemplo), como é o caso aqui.

Feitas essas breves considerações sobre os trechos de Basile, Perrault e dos Irmãos Grimm, destacamos: I) a beleza da mulher-princesa como causa do desejo do homem-príncipe que, em consequência, a toca/violenta, mesmo sem consentimento; II) a característica de divindade (castidade, imobilidade, submissão) como elemento intrínseco à beleza admirável/modelar da mulher-princesa; e III) a suavização do abuso e a romantização do estupro. Esses traços ressaltam algumas valorações arquetípicas relacionadas a um sistema sociocultural (o patriarcal) e a um modelo ideal de mulher, socialmente aceito, estimulado e almejado. O filme Malévola (Figura 2) ressignifica essas valorações, em embate entre a versão da animação e as versões literárias.

No filme, Malévola é drogada e posta para dormir por Stéfan. Por isso, posteriormente, seu ato de maldição sobre a filha do rei ser, de certa forma, a “repetição” do que Stéfan fez com ela, na tentativa de fazê-lo sentir na pele a dor pela qual passou - a ideia de fazer com que ele “tome do próprio veneno”: colocar Aurora para dormir até que seja beijada por um “amor verdadeiro”, na crença de que isso seja impossível porque, desde que foi enganada por Stéfan, Malévola deixou de acreditar em amor, sem se dar conta de que há modalidades plurais de relações e que não é preciso haver uma relação afetivo-amorosa para haver amor, como o filme também demonstra com a relação entre a fada-bruxa e Aurora.

Em Marxismo e filosofia da linguagem, Volóchinov (2017Volochínov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Editora 34.) trata da importância de considerarmos que cada campo possui seu material ideológico e, portanto, possui, em sua forma, seus próprios signos (verbais, vocais/sonoros, visuais ou sincréticos). Esses signos expressam uma ideologia específica, indissociável da concretude enunciativa.

A construção do adormecer nos contos de fadas está associada a mudança, passagem, transição, a um amadurecimento que resulta no despertar de um sujeito outro. Em relação às mulheres, essa ligação faz referência ao despertar da e para a vida sexual, nas narrativas maravilhosas, de uma relação heteronormativa. O despertar comumente é vinculado ao homem-príncipe, uma vez que, nos discursos tradicionais, cabe a ele a responsabilidade por essa introdução (forçada) da mulher-princesa à vida sexual. Dessa forma, o adormecer possui uma função ideológica nos contos de fada, de mergulho transicional da infância à vida adulta.

No caso de Malévola, esse processo é semiotizado na cena destacada na Figura 2. Nesse momento do filme, a escolha de Stéfan é imposta e os valores patriarcais são reforçados, relacionados ao arquétipo do sono como transe para mudança de fase. Para alcançar o poder máximo político-econômico-social desejado de se tornar rei, Stéfan destrói Malévola ao trair sua confiança, sedá-la, violentá-la e mutilá-la. E essa subjugação é, para ela, pior que a morte, pois uma condenação de morte em vida. A partir desse evento e desses atos, a fada, machucada, incorpora a bruxa e amaldiçoa Aurora porque passa a ter, como objetivo de vida, fazer o rei sentir como ela se sente, passar pelo que ela passou - perdendo suas asas (liberdade e independência), figurativizada com Aurora, sua filha (de uma mulher a outra, em embate de gênero - mulher - e não entre gêneros - mulher e homem. O homem continua isento, acima “do bem”/princesa e “do mal”/bruxa).

Ao termos acesso a esse evento, compreendemos o comportamento de Malévola, que deixa de ser meramente má, pois, de nosso lugar de espectadores exotópicos, identificamo-nos com sua complexidade ambivalente, com sua humanidade e associamos a ascensão masculina à humilhação e ao rebaixamento da mulher, por meio de violência (simbólica e física) e a resistência da mulher como sua arma de luta.

Desse ponto de vista, a maldição deixa de ser um ato maligno (até porque transforma a protagonista, na relação que ela desenvolve com a princesa-narradora, de mãe-fada(-bruxa)-madrinha) e passa a ser entendido como ato reativo. Se, nas produções anteriores, rejeitamos Malévola, no live action torcemos por ela.

Na Figura 2, depois de dopada, Malévola cai em uma posição horizontal, bastante semelhante às belas adormecidas dos contos tradicionais, submetida, por igual, à maldição do sono e só desperta (nasce de outra forma) ao amanhecer (nascer do sol de outro dia, outra vida, outro sujeito), com as asas cortadas por Stéfan, como demonstra a Figura 3.

Figura 3
Malévola desperta sem as asas

Nas versões literárias de Perrault e Basile, além do beijo não consentido que, figurativamente, romantiza as várias formas de abuso sexual, as histórias são concluídas com o estupro das mulheres-princesas (sempre abusadas enquanto estavam adormecidas/mortas), seguido de filhos e um casamento, inserido nos contos de fadas como sinônimo de final feliz (“E foram felizes para sempre”). Ao pensarmos nesses enunciados em embate com a versão fílmica da Disney, observamos o resgate das relações entre homens e mulheres, de forma ressignificada: o ato do estupro, semiotizado pelo corte das asas de Malévola (uma vez que elas simbolizam poder e liberdade), cria a vilania nessa recontagem de A bela adormecida.

A Figura 3 destaca o momento em que Malévola desperta e toma consciência da falta de suas asas. Ao verificar o que lhe aconteceu, chora e se irrita. A falta das asas lhe tira o equilíbrio para andar (a ponto de ela criar um cedro como sua terceira perna, para ampará-la), o que a fragiliza e a acorrenta ao chão, limitando seus movimentos e campo de atuação.

A paleta de cores utilizada na Figura 3, semelhante à da Figura 2, permanece em tom esverdeado-azulado-acinzentado (análogo e sombrio). Essa mistura cromática remete ao processo de robotização e morte, bem como marca e tonalidade estilística do enunciado, construído pela narração de memória de Aurora (a partir de seu ponto de vista presente sobre um passado acabado que constitui a sua história com e da Malévola). Essa paleta ressignifica a concepção de nascimento, pois o vincula à morte. O amanhecer (claro, quente e brilhante), associado à vida, é construído com filtro sombrio e metálico que remete à morte e à artificialidade. Ao despertar em meio às cores frias e escuras, sozinha/abandonada e sem suas asas, a fada-Malévola independente, autônoma, inatingível e poderosa “morre” para dar lugar à fada-bruxa oprimida, magoada, mutilada, dominada, enfim, violentada em diversos sentidos, a ponto de se tornar dependente de um corvo13 13 No filme, o corvo é transformado em um homem por Malévola, o que ressalta o apoio em uma figura masculina, tal qual nos contos, em que os beijos de “amor verdadeiro” materializam a transição de uma mulher, do domínio de uma figura masculina paterna para outra (marido). Malévola acaba por depender de Diaval, o corvo, depois da violência sexual sofrida. Com a traição do rei, ela matou a possibilidade de relação afetivo-amorosa com um homem e a substituiu por uma relação servil, com um homem-animal encantado, sob seu poder. , que assume o papel de suas asas, seus olhos, seu conselheiro e porto-seguro.

Com essa produção, em embate com as demais, podemos observar a constante movimentação do horizonte ideológico constitutivo da linguagem e compreender a (des)construção do sujeito por meio da alteridade, o que caracteriza a dialética-dialógica da vida. Ao colocar esses signos em embate, podemos refletir acerca da realidade cultural que circunda o humano e a configuração social do enunciado, constituído por sua estrutura linguística, imagética e sonora, seu contexto histórico, em ato.

4. Considerações Finais

Com a análise dialogada das versões literárias de A bela adormecida de Basile, Perrault e Grimm e do filme Malévola (2014Malévola. (2014). Direção: Robert Stromberg. Produção: Walt Disney Pictures e Roth Films, 2014, 97 min, cor.), refletimos sobre a ambivalência humana na constituição de representações de mulher, tendo em vista a concepção arquetípica de princesa e feiticeira (fada e bruxa), caracterizadas por aspectos de continuidade e ruptura ao que se refere ao heroísmo e à vilania da fada-bruxa Malévola.

Calcadas nos estudos bakhtinianos, refletimos sobre as manifestações de linguagem em seu horizonte ético-estético, como interação discursiva situada. Analisamos, por meio de alguns excertos, a configuração da tridimensionalidade verbivocovisual do enunciado fílmico, com a finalidade de pensar sobre o abuso sexual em Malévola, em cotejo com contos de fadas. Assim, o objetivo foi atingido, com nossa hipótese confirmada.

A alteração no foco narrativo do filme (contado por Aurora, num tempo ulterior), com uma alteração no conteúdo temático (a história de Malévola), na forma composicional (mudança, inclusive, de gênero discursivo - de contos para filmes) e a assinatura autoral das indústrias Disney, o live action humanizou a vilania, ao tratar a complexidade das concepções de Bem e Mal como ambivalentes por meio do sujeito fada-bruxa Malévola e ainda refletiu e refratou, com o acabamento estético do universo maravilhoso, acerca da romantização do abuso sexual, da dominação patriarcal e da opressão da mulher. A partir da traição de um homem, o estupro inicia a constituição sígnica (ideológica) do sujeito fada-bruxa e remete a imagens e comportamentos do e no solo social, eticamente.

Por meio de um evento singular estético, relatado de maneira fictícia no pequeno tempo, a obra fílmica aborda, eticamente, uma questão existencial universal, do grande tempo da cultura, com relação aos atos afetivo-amorosos e de poder entre homens e mulheres.

Cada produção discursiva semiotiza a realidade social e material que circunda o homem, de maneira refletida e refratada, a partir de um ponto de vista e essa é a importância de pensarmos a relação arte e vida, indissociável e, ao mesmo tempo, não idêntica, dadas as configurações enunciativas arquitetônicas de expressão (/dizer/) e vivência (/fazer/). A arte não é a vida, mas dela parte e sobre ela trata, com suas singularidades. Tratar da semiotização da arte historicamente constituída significa refletir sobre as estruturas socioculturais vividas e, a partir disso, agir no mundo, sem amparo em objetos e criaturas, sem romantizar nem aceitar abusos de que tipos forem. Com nossas asas (trans)linguísticas abertas, alçar voos livres na e pela linguagem, com nosso estilo e posição no mundo.

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  • Paula, L. de, & Luciano, J. A. R. (2020c). Dialogismo verbivocovisual: uma proposta bakhtiniana. Polifonia, 27(49), 15-46. https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/11366
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  • Paula, L. de, & Luciano, J. A. R. (2021). The Verbivocovisual Architectonic of the Stage La Conversione Di Un Cavallo. Global Journal of Human Social Sciences-A, 21(13), 01-13. https://globaljournals.org/GJHSS_Volume21/EJournal_GJHSS_(A)_Vol_21_Issue_13.pdf
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  • Perrault, Grimm, Andersen & Outros. (2010). Contos de fadas. Zahar.
  • Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. Pólen.
  • Volochínov, V. (2013). A Construção da enunciação e outros ensaios. Pedro e João.
  • Volochínov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Editora 34.
  • Volóchinov, V. (2019). A palavra na vida e a palavra na poesia. Editora 34.
  • Wolf, N. (2020). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rosa dos Tempos.
  • 5
    A maldição é entoada em tom grave pela protagonista, posicionada de maneira altiva (cabeça erguida, em pé e de braços abertos). A iluminação esfumaçada, escura e verde completa a cena da maldição, com uma tomada de câmera de meio corpo, com Malévola ao centro e em primeiro plano.
  • 6
    Minutagem: 00:31:41; 02:31:42; 00:31:43. Criação das autoras, feita com o Adobe Color. Para a interpretação, fundamentamo-nos em Goethe (2013Goethe, J. W. (2013). Doutrina das Cores. Nova Alexandria.), Guimarães (2001Guimarães, L. (2001). A cor como informação: a construção biofísica, linguística e cultural da simbologia das cores. Annablume.), Haynes (2008Haynes, D. J. (2008). Bakhtin and the visual arts. Cambridge.), Heller (2013Heller, E. (2013). A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. Gustabo Gili. ) e Kandinsky (1970Kandinsky, W. (1970). Ponto, Linha, Plano - contribuição para análise dos elementos picturais. Edições 70.).
  • 7
    Na maior parte das animações da Disney, a vilania está envolta nessa coloração verde, com o mesmo tom sombrio, trabalhado de forma análoga. Um exemplo é a cor dos olhos do Scar, tio falso que arquiteta a morte de Mufasa e dá um golpe de Estado, na trama de Rei Leão. Mas, essa significação não se restringe às produções da Disney. Na saga Harry Potter, a luz que sai das varinhas dos comensais da morte e de Voldemort, vilão maior do protagonista, também tem a mesma coloração, no mesmo tom de verde; entre outros tantos exemplos.
  • 8
    Reino fictício, lugar onde Malévola mora, junto com outras criaturas mágicas.
  • 9
    Minutagem: 00:17:00; 00:17:02; 00:17:06. Criação das autoras.
  • 10
    Tradução integral do conto disponível em: http://volobuef.tripod.com/op_basile_sol_lua_talia_kvolobuef.pdf (Acesso em: 05 out 2020).
  • 11
    Irmãos Grimm, início do séc. XIX; Charles Perrault, fins do séc. XVII; e Bastille, primeiro terço do séc. XVII.
  • 12
    Minutagem: 00:18:24; 00:18:31; 00:18:42. Criação das autoras.
  • 13
    No filme, o corvo é transformado em um homem por Malévola, o que ressalta o apoio em uma figura masculina, tal qual nos contos, em que os beijos de “amor verdadeiro” materializam a transição de uma mulher, do domínio de uma figura masculina paterna para outra (marido). Malévola acaba por depender de Diaval, o corvo, depois da violência sexual sofrida. Com a traição do rei, ela matou a possibilidade de relação afetivo-amorosa com um homem e a substituiu por uma relação servil, com um homem-animal encantado, sob seu poder.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2021
  • Aceito
    11 Out 2022
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