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“Eu também posso escrever!”: narrando a produção de material didático de Português como Segunda Língua para Surdos em uma perspectiva decolonial e translíngue

“I can also write!”: narrating the production of a Portuguese as a Second Language to Deaf People teaching material from a postcolonial and translingual perspective

RESUMO

Embora o contexto de educação de surdos conte com legislação que reconhece a importância de se garantir o ensino do português como segunda língua, ainda são poucas as pesquisas que focalizam estratégias para esse ensino e poucos os materiais didáticos desenvolvidos considerando-se essas estratégias. Neste artigo, focalizamos o processo de elaboração de um material didático de Português como Segunda Língua para Surdos (PL2/Surdos) produzido no âmbito da disciplina Estágio Supervisionado em Português como Segunda Língua/Língua Estrangeira, que faz parte do currículo da licenciatura em Português Segunda Língua/Língua Estrangeira, oferecida no Instituto de Estudos da Linguagem, na Universidade Estadual de Campinas. Considerando o diálogo entre a prática e a meta-reflexão de fundamental importância tanto para a formação de pesquisadores quanto de professores, interessa-nos, mais especificamente, discutir como professoras em formação compreendem a operacionalização desse material didático a partir de uma perspectiva poscolonial e translíngue. Alinhadas à vertente crítica e indisciplinar da Linguística Aplicada (Moita Lopes, 2006Moita-Lopes, L. P. (2006). Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 13-44). São Paulo: Parábola.), que tem no aparato da pesquisa qualitativo-interpretativa de viés etnográfico um de seus pilares, consideramos um corpus que, além de dados documentais, buscou focalizar as vozes das licenciandas, já que é nosso objetivo, aqui, iluminar questões relacionadas à formação de professores. Fazem parte desse corpus: (i) o programa de leitura da disciplina Estágio Supervisionado em PL2/LE oferecida no segundo semestre de 2021; (ii) trechos do material didático elaborado; (iii) excertos dos relatórios de estágio produzidos pelas licenciandas; (iv) excertos de uma das aulas teóricas da disciplina Estágio Supervisionado em PL2/LE. As reflexões realizadas pelas licenciandas apontam para a necessidade de (re)pensar a educação bilíngue de surdos a partir de projetos mais sensíveis à pluralidade cultural, social e linguística do mundo atual, tendo em vista o potencial heteroglóssico das práticas sociais de linguagem.

Palavras-chave:
Português como segunda língua para surdos; Material didático; Formação de professores

ABSTRACT

Although legislation recognizes the importance of guaranteeing the teaching of Portuguese as a Second Language in the context of deaf education, there are still few studies that focus on strategies for this teaching context and few teaching materials developed considering these strategies. In this article, we focus on the process of elaborating a teaching material for Portuguese as a Second Language to Deaf people produced within the scope of the Portuguese as a Second Language/Foreign Language (PSL/PFL) Pre-Service course. This course is part of the degree in Portuguese as a Second Language/Foreign Language offered at the Institute of Language Studies at the State University of Campinas. Considering the dialogue between practice and meta-reflection of fundamental importance for both the training of researchers and teachers, we are more specifically interested in discussing how teachers in pre-service period understand the operationalization of this teaching material from a postcolonial and translingual perspective. In line with the critical and interdisciplinary aspect of Applied Linguistics (Moita Lopes, 2006Moita-Lopes, L. P. (2006). Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 13-44). São Paulo: Parábola.), which has the apparatus of qualitative-interpretative research with an ethnographic perspective as one of its pillars, we consider a corpus that, in addition to documentary data, sought to focus on the voices of the undergraduates, since our objective here is to illuminate issues related to teacher education. The following are part of the corpus: (i) the reading list for the PSL/PFL pre-service course offered in the second semester of 2021; (ii) excerpts from the didactic material that was prepared; (iii) excerpts from pre-service training reports produced by students; (iv) excerpts from one PSL/PFL pre-service course theoretical class. The reflections carried out by the undergraduates point to the need to (re)think bilingual education for deaf people departing from projects that are more sensitive to the cultural, social and linguistic plurality of today’s world, considering the heteroglossic potential of social language practices.

Keywords:
Portuguese as a second language to deaf people; Text-book; Teacher education

1. Introdução

Sem dúvida, as mudanças ocorridas nas últimas décadas em sociedade contribuíram para o aumento de cenários cada vez mais plurilíngues e multiculturais (Blommaert & Rampton, 2011Blommaert, J., & Rampton, B. (2011). Language and superdiversity. Diversities, 13(2). Recuperado de https://newdiversities.mmg.mpg.de/fileadmin/user_upload/2011_13-02_art1.pdf
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). Tais mudanças afetam, de forma direta, a vida da escola, que passou a receber um contingente diferente de estudantes, se comparado com aquele com o qual sempre trabalhou. Essa diversidade é também reflexo das demandas surgidas ao longo dos anos, oriundas de grupos específicos, tais como o de surdos - ou seja, daqueles que, historicamente, eram considerados deficientes, e que, mais recentemente, por direito, por força de lei, foram autorizados a estudar com os ditos “normais”.

A escola, no entanto, vem repercutindo com dificuldade os fenômenos que, na contemporaneidade, atingem intensamente as diferentes sociedades: os processos de globalização, o avanço das tecnologias, a complexa geopolítica traçada por países centrais e os novos fluxos migratórios. Processos que tornam mais visível esse “mundo de mobilidades, de redes digitais, de fronteiras esmaecidas dos estados-nação, de insegurança, de ambiguidades, de desestabilizações identitárias e linguísticas, de superdiversidade” (Moita-Lopes, 2006Moita-Lopes, L. P. (2006). Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 13-44). São Paulo: Parábola., p. 19), forçando maior conexão entre o local e o global (Blommaert & Rampton, 2011Blommaert, J., & Rampton, B. (2011). Language and superdiversity. Diversities, 13(2). Recuperado de https://newdiversities.mmg.mpg.de/fileadmin/user_upload/2011_13-02_art1.pdf
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).

Por essas razões, o fenômeno da globalização é percebido como sendo inexorável ou mesmo considerado, conforme pontua Milton Santos (2000/2008Santos, M. (2008). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record. Originalmente publicado em 2000.), uma “experiência perversa”, especialmente quando se trata de grupos sociais minoritários e/ou minoritarizados (Cavalcanti, 1999Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15(spe), 385-417. https://doi.org/10.1590/S0102-44501999000300015
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). O teórico explica que cada época é dominada pela unicidade de uma determinada técnica, e, na modernidade recente, a tecnologia da informação e da mobilidade estão no centro do gerenciamento global. Em um contexto neoliberal, “quando um determinado ator não tem as condições para mobilizar as técnicas consideradas mais avançadas, torna-se, por isso mesmo, um ator de menor importância no período atual” (Santos, 2000/2008Santos, M. (2008). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record. Originalmente publicado em 2000., p. 25). Nesse processo, a experiência de vida de muitos tende a ser precarizada.

De uma perspectiva pós-estruturalista, poscolonial e performativa (Deleuze & Guattari, 1972/2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo. Editora 34. Originalmente publicado em 1972.; Butler, 1990/2010Butler, J. (2010). Problemas de gênero. Civilização Brasileira. Originalmente publicado em 1990.; Bhabha, 1998/2007Bhabha, H. K. (2007). O local da cultura. Editora UFMG. Originalmente publicado em 1998.; Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica das Ciências Sociais, 63, 237-280. https://doi.org/10.4000/rccs.1285
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; Moita-Lopes, 2006Moita-Lopes, L. P. (2006). Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 13-44). São Paulo: Parábola.; Cavalcanti, 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita-Lopes (org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 233-252). Parábola.) de compreensão do mundo, temos de considerar, no entanto, que nenhum fenômeno é acabado, sendo possível performar agências que desestabilizem o que é sedimentado, desenhando outras possibilidades para aquilo que é narrado e imposto como único. O próprio Milton Santos (2000/2008Santos, M. (2008). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record. Originalmente publicado em 2000.) vai dizer que essas possibilidades podem ou não se concretizar a depender do “uso político” que fazemos do sistema.

Tendo isso em mente, retomemos o contexto da educação de surdos no Brasil. É inegável que, a partir da Constituição de 1988, houve avanços significativos. De acordo com o previsto pelo Artigo 205, o qual afirma que todos têm direito à educação, “preferencialmente” na rede regular3 3 Antes da Constituição de 1988, não era facultado aos surdos o direito de estarem na rede regular de ensino, mas estes tinham matrícula garantida nas escolas especiais, onde a realidade era mais amena por transformar um ano letivo escolar em dois. Isso implicava ter o conteúdo escolar ensinado mais lentamente, como forma de garantir que esse grupo aprendesse com os mesmos materiais e estratégias utilizados no ensino comum, ou seja, como se fossem alunos ouvintes. Nesse período, a partir de um discurso ideológico dominante pautado no oralismo, o surdo era visto apenas em sua dimensão clínica e terapêutica, havendo uma cristalização do aspecto patológico, em detrimento do reconhecimento político da surdez como diferença. Imperava a crença na falta da capacidade do surdo para a aprendizagem, entendendo-se a linguagem apenas como o desenvolvimento da fala. de ensino, os estudantes surdos puderam, finalmente, frequentar escolas regulares em todo o Brasil. Nesse momento histórico, pesquisadores ouvintes e surdos foram os responsáveis por promover discussões sobre as questões linguísticas do surdo, de forma a mostrar que, em vez de deficientes, como determinava a clínica4 4 No âmbito da visão clínico-terapêutica, a surdez é representada como uma patologia que precisa ser tratada e corrigida com terapias de fala. A educação destinada aos indivíduos surdos, a partir dessa perspectiva, baseia-se primordialmente no treino da linguagem oral, na tentativa de se aproveitar os resíduos auditivos por meio do uso de aparelhos de amplificação sonora e/ou implantes cocleares, com o intuito de ensinar o surdo a falar e, dessa forma, igualar-se aos ouvintes. até então, as pessoas surdas pertenciam a grupos de minorias linguísticas, assim como os imigrantes, os indígenas e outros. Tais grupos ganharam força e espaço de luta no Brasil, e suas necessidades e seus direitos sociais passaram a ter maior visibilidade - embora esta seja uma condição variável, sempre atrelada a questões de poder e perspectivas ideológicas assumidas por governos (desde o âmbito federal até o municipal) em diferentes momentos sócio-históricos.

Os avanços no campo legislativo continuaram com a aprovação da Lei n. 10436, de 24 de abril de 2002, posteriormente sancionada pelo Decreto n. 5626, em 2005. Dentre vários ganhos significativos para a educação de surdos trazidos por esse documento, destacam-se a inclusão obrigatória da disciplina de Libras - Língua Brasileira de Sinais5 5 A Libras é uma língua visual-espacial realizada no corpo do sinalizante, por meio das mãos, da face e do tronco como articuladores para a composição dos sinais e das proposições. A gramática dessa língua se constitui a partir do corpo e no espaço de sinalização. Ou seja, por serem línguas espaços-visuais, sua realização não se estabelece por meio dos canais oral-auditivo, como nas línguas orais. A diferença na modalidade vai determinar, também, mecanismos linguísticos distintos daqueles das línguas orais. O espaço é um aspecto importante na Libras. Tem uma função altamente complexa na gramática dessa língua, compondo a fonologia, a morfologia, a sintaxe, a semântica e a pragmática, e estabelecendo os sentidos do discurso na Libras (Quadros & Karnopp, 2004). nos cursos de formação de professores, a presença de tradutores/intérpretes nas salas de aulas que tenham estudantes surdos matriculados, e a proposição de mecanismos de avaliação e de correção de provas escritas coerentes com o aprendizado de segunda língua, salientando-se a importância de se valorizar mais os aspectos semânticos e de reconhecer a singularidade da escrita de alunos surdos manifestada no aspecto formal da língua portuguesa escrita (BRASIL, 2005Decreto n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005. (2005). Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm
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).

Sabemos, contudo, que há considerável distância entre o teor das leis e a consolidação do que propõem. Apesar de a Libras ter conquistado mais visibilidade no Brasil a partir da década de 1990, sobretudo nos espaços educacionais, seu lugar como língua curricular de fato ainda está por se estabelecer. Mesmo usufruindo do status de uma língua, a partir da comprovação legitimada por vários pesquisadores e pelo já citado Decreto 5626/2005, as línguas de sinais permanecem como sistemas linguísticos periféricos ou apenas auxiliares na maioria dos contextos educacionais da denominada escola inclusiva. Nas instituições só para surdos, que, em geral, contam com professores surdos e professores ouvintes bilíngues em Libras/Português, as línguas de sinais estão mais presentes, contudo, essas escolas são minoria em todo o território nacional. Dependendo do projeto educacional e do grau de proficiência dos professores em Libras, nesses espaços, as línguas em jogo assumem diferentes papéis. E este é um ponto crucial, pois, para a maioria dos surdos, a Libras, além de ser importante traço identitário, é a língua que lhes permite acessar e compartilhar informações de modo significativo.

Conforme nos ensina Maher (2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.), leis favoráveis não significam consolidação de direitos6 6 Em sua discussão, Maher (2007) se refere especialmente - mas não apenas - aos direitos linguísticos de comunidades indígenas. , sendo necessário haver organicidade entre a existência dessas leis, a politização de grupos minoritarizados e a sensibilização de outras populações em relação às diferenças, necessidades e direitos das minorias, por meio do que a autora denomina educação do entorno para as diferenças, a interculturalidade e o plurilinguismo. No caso da educação de surdos, podemos dizer que as leis estão a favor, a politização da “comunidade” surda vem se ampliando, mas a sensibilização do entorno para as necessidades e os direitos sociais e linguísticos do indivíduo surdo ainda precisa avançar muito, tendo de se configurar como um programa de extensão continuada. Tal sensibilização, a nosso ver, tem relação direta com a necessidade de fazer a lei atingir realmente a escola e todos os outros espaços sociais. Ou seja, tem relação com um uso político (M. Santos, 2008/2000Santos, M. (2008). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record. Originalmente publicado em 2000.) que vá ao encontro da legislação, criando mecanismos efetivos para torná-la um corpo social vivo. Sem um planejamento efetivo, estrutural e continuado de uma política linguística multiescalar - federal, em conexão com estados e municípios - para a educação de surdos, dificilmente as palavras sairão do papel.

Seria o caso, então, de gestores públicos firmarem compromisso ético com as leis e com a implementação de políticas blindadas à descontinuidade. Se em tempos de governos comprometidos com o social tais preceitos já se configuram como desafio - para não dizer utopia -, em tempos de reafirmação de propósitos neoliberais e autoritários, vemos aflorar a inação e a descontinuidade como parte do método de (des)governar. É assim que, nos últimos anos, temos presenciado importantes retrocessos relativos à disponibilização e adequação de políticas públicas voltadas a minorias, tornando essas populações ainda mais vulnerabilizadas.

Fazendo frente a esse cenário, a Licenciatura em Português como Segunda Língua/Língua Estrangeira (PL2/LE) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desde sua implementação, em 2017, vem procurando promover a formação de professores e pesquisadores nos termos de uma educação linguística ampliada, como advogado por Cavalcanti (2013Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação de professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani (pp. 211-226). Parábola.). Um projeto educacional que, em bases poscoloniais (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica das Ciências Sociais, 63, 237-280. https://doi.org/10.4000/rccs.1285
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; Cavalcanti, 2006Cavalcanti, M. C. (2006). Um olhar metateórico e metametodológico em pesquisa em linguística aplicada: implicações éticas e políticas. In L. P. Moita-Lopes (org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 233-252). Parábola.) e translíngues (Canagarajah, 2013Canagarajah, S. (2013). Translingual practice: global Englishes and cosmopolitan relations. Routledge.; Garcia, 2020García, O. (2020). Foreword: co-labor and re-performances. In E. Moore, J. Bradley & J. Simpson (Eds.), Translanguaging as transformation: the collaborative construction of new linguistic realities (pp. xvii-xxii). Multilingual Matters.; Cavalcanti e Silva, 2016Cavalcanti, M. C., & Silva, I. R. (2016). Transidiomatic practices in a deaf-hearing scenario and language ideologies. Revista da ANPOLL, 1(40), 33-45. https://doi.org/10.18309/anp.v1i40.1013
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), para além de munir futuros professores com conhecimento linguístico, volte-se para uma “formação complexa que focaliz[e] a educação linguística de modo sócio-histórico e culturalmente situado” (Cavalcanti, 2013Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação de professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani (pp. 211-226). Parábola., p. 212), o que é crucial para a configuração do Português como Segunda Língua/Estrangeira/Adicional como uma área responsiva às demandas sociais contemporâneas (Bizon & Diniz, 2018).

No contexto de ensino do Português como Segunda Língua para Surdos (doravante PL2/Surdos), o diálogo da Licenciatura com o Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S. Porto” (Cepre), vinculado à Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, tem sido de fundamental relevância. Essa parceria tem proporcionado o desenvolvimento de projetos que buscam aproximar os licenciandos da complexidade do contexto em questão, sensibilizando-os para a urgência de pesquisas e políticas públicas que possam desestabilizar narrativas que apagam a população surda e seus direitos.

Considerando a importância de se visibilizar e discutir a formação de professores para atuação no contexto em tela, focalizamos, neste artigo, a experiência da disciplina Estágio Supervisionado em Português como Segunda Língua/Língua Estrangeira, incluída no currículo da Licenciatura em PL2/LE, e que, em seu oferecimento no segundo semestre de 2021, teve como objetivo central produzir uma oficina e um material didático para o ensino de PL2/Surdos. Sendo imprescindível o diálogo entre prática docente e meta-reflexão na formação de professores e pesquisadores, interessa-nos discutir, mais especificamente, como quatro licenciandas operacionalizam preceitos da perspectiva poscolonial e translíngue - que embasa o programa da disciplina - na produção do material didático, e como narram essa operacionalização e a própria formação docente. Esperamos que as narrativas aqui iluminadas possam atuar como catalisadoras de reflexões (Signorini, 2006Signorini, I. (2006). O gênero relato reflexivo produzido por professores da escola pública em formação continuada. In I. Signorini (Org.), Gêneros catalisadores: letramento e formação de professores (pp. 53-70). Parábola.), de modo a ressignificar os conflitos e as dúvidas que permeiam a formação docente nesse contexto.

Além desta introdução e das considerações finais, o artigo se organiza em 3 seções. Inicialmente, descrevemos o cenário da pesquisa, a saber, a Licenciatura em PL2/LE do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, e o Cepre. Em seguida, discutimos os principais preceitos poscoloniais e translíngues na elaboração de materiais didáticos de língua adicional, e apresentamos o funcionamento da disciplina Estágio Supervisionado em PL2/LE. Por fim, focalizamos o processo de construção de material didático específico para estudantes surdos, visibilizando as vozes das licenciandas, a fim de problematizar questões relacionadas à educação bilingue de minorias e às atitudes linguísticas associadas às línguas presentes no contexto escolar. Por fim, discutimos as implicações desses pontos para a educação intercultural de grupos minoritários e para a formação de professores.

2. Licenciatura em PL2/LE e Cepre como cenário de pesquisa sobre formação de professores

Como anteriormente explicitado, o cenário de desenvolvimento desta pesquisa, que focaliza a formação de professores, envolve a Licenciatura em PL2/LE do IEL e o Cepre, ambos em funcionamento na Unicamp.

A Licenciatura tem, em seu currículo, duas disciplinas semestrais de Estágio Supervisionado - LA281-Estágio Supervisionado em Português como Segunda Língua/Língua Estrangeira I e II -, com carga didática de 120h, divididas em 30 horas de aulas teóricas com o professor orientador e 90 horas de atividades7 7 As 90 horas de atividades podem incluir observação e planejamento de aulas, produção de materiais didáticos, e docência, sob orientação do professor responsável pela disciplina de Estágio e supervisão do professor responsável pela sala de aula observada. . Desde o início de seu funcionamento, a primeira autora deste artigo é uma das responsáveis pelo oferecimento dessas disciplinas, em cujos programas se encontram estabelecidas as seguintes metas para as 90 horas de atividades: (i) construção de um projeto colaborativo de observação-ação de/em um determinado contexto de ensino (docente-orientador, docente/supervisor, responsável por uma sala de aula de Português como Língua Estrangeira ou como Segunda Língua, e licenciandos); (ii) docência na sala de aula do contexto de ensino em questão; (iii) planejamento e elaboração de recursos didáticos a serem utilizados na prática docente, de modo a fomentar a reflexão sobre o ensino e a aprendizagem.

Mencionamos também que, no oferecimento da disciplina focalizado neste artigo, um dos contextos contemplados foi o de ensino de PL2/Surdos, no Cepre/Unicamp. Conforme consta no descritivo presente em seu site8 8 Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/centros/centro-de-estudos-e-pesquisas-em-reabilitacao-Cepre. Acesso em: 10 out. 2022. ,

O Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S. Porto” (Cepre) iniciou as suas atividades de atendimento às pessoas com deficiência visual e auditiva em 1973. Ao longo dos anos ocorreu a ampliação das atividades também para o ensino e pesquisa, passando a contar com uma equipe multiprofissional, o que permitiu intensificar a oferta de cursos de formação na área da deficiência visual e surdez, em nível de extensão e especialização.

Na última década passou a atuar também na formação de alunos de graduação em fonoaudiologia e, mais recentemente ainda, na formação de alunos de pós-graduação e especialização. Com isso, ampliou-se a gama de atuação com uma visão interdisciplinar e integrada dos processos de desenvolvimento humano e suas alterações, no que se refere às deficiências, à comunicação humana, à linguagem e à reabilitação.

A população atendida é oriunda principalmente da região metropolitana de Campinas; também tem recebido usuários de outras regiões do estado e eventualmente de outros estados. São atendidos no Cepre usuários com deficiência visual, surdez e alterações de linguagem nas diversas faixas etárias.

O Centro não é uma escola, mas está estruturado em programas de atendimento a surdos de várias instituições públicas de ensino, que buscam, nos programas bilíngues da instituição, melhor compreensão dos conteúdos escolares. Esses programas atendem desde crianças pequenas, de 0 a 5 anos, até jovens surdos que frequentam o Ensino Médio em escolas públicas de Campinas e região. Por meio da segunda autora deste artigo, docente do Curso de Fonoaudiologia e pesquisadora do Centro, a Licenciatura em PL2/LE tem podido participar desse espaço privilegiado para o desenvolvimento de pesquisa e de políticas públicas para a população surda de Campinas e região.

Ainda em situação de pandemia e com o ensino na modalidade online, não foi possível a presença, nas salas de aula do Cepre, das 4 licenciandas matriculadas no Estágio Supervisionado no período em foco neste trabalho, tendo sido necessário ajustar suas metas para o semestre em questão - o que foi feito juntamente com as estudantes. Nesse ajuste, buscou-se manter a possibilidade de adentrarem o contexto da educação de surdos e de ensino do português por meio do planejamento e acompanhamento da implementação de uma oficina de português para adolescentes surdos frequentadores do Cepre9 9 O Programa Escolaridade e Surdez do Cepre recebe jovens surdos do Ensino Médio que frequentam escolas inclusivas de Campinas e região para um trabalho de/com linguagem. A proposta é ressignificar a linguagem escrita por meio de práticas de linguagem reflexivas, valorizando a língua do aluno. O Programa tem professores ouvintes e surdos proficientes em Libras. Consta de seus objetivos o oferecimento de subsídios para os estudantes surdos lidarem com a língua portuguesa escrita, por meio de atividades que, enfatizando a pluralidade cultural e a multiplicidade semiótica dos textos, contribuam para que façam sentido de seus mundos. , o que incluiu a elaboração de um material didático10 10 No final do primeiro semestre de 2022, foi iniciada a aplicação do material didático pelos licenciandos da disciplina de Estágio Supervisionado II em Português como Segunda Língua/Língua Estrangeira. A receptividade dos estudantes surdos ao material foi positiva, havendo alto engajamento dos estudantes nas atividades apresentadas. .

Tomando o Estágio Supervisionado em PL2/LE como lócus de formação de professores e de reflexão sobre essa formação, para a discussão que promovemos neste artigo, mobilizamos dados advindos de registros gerados ao longo do segundo semestre de 2021. Alinhadas à vertente Crítica e Indisciplinar da Linguística Aplicada (Moita Lopes, 2006Moita-Lopes, L. P. (2006). Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 13-44). São Paulo: Parábola.), que tem no aparato da pesquisa qualitativo-interpretativista de viés etnográfico um de seus pilares, consideramos um corpus que, além de dados documentais, buscou focalizar as vozes das licenciandas, já que é nosso objetivo, aqui, iluminar questões relacionadas à formação de professores. Fazem parte desse corpus: (i) o programa de leitura da disciplina Estágio Supervisionado em PL2/LE oferecida no segundo semestre de 2021; (ii) trechos do material didático elaborado; (iii) excertos dos relatórios de estágio produzidos pelas licenciandas; (iv) excertos de uma das aulas teóricas da disciplina Estágio Supervisionado em PL2/LE.

3. Por que uma perspectiva poscolonial e translíngue na elaboração de materiais didáticos para o ensino de PL2/Surdos?

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica das Ciências Sociais, 63, 237-280. https://doi.org/10.4000/rccs.1285
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), a compreensão do mundo se dá em dois movimentos distintos, que se constituem no que o autor postula como sociologia das ausências e das emergências. No campo do primeiro movimento, assentadas em relações de colonialidade (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 117-142). Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.) próprias de uma razão denominada indolente - preguiçosa e negligente -, vigoram, em diferentes espaços sociais, narrativas que apresentam populações minoritárias e/ou minoritarizadas como ausências. Ou seja, essas vidas estão ali, mas são ignoradas, notadamente por políticas públicas, o que significa lhes roubar a possibilidade de um presente de inserção, o qual é continuamente postergado para um futuro que nunca chega. Impõem-se a essas pessoas experiências de vida residual, justamente por não serem disponibilizadas condições de efetivá-las em suas potencialidades. Nessa lógica, convivemos com o desperdício das diferenças e multiplicidades, não reconhecidas como possibilidades de concretização da vida social. Operando pelo mecanismo das ausências, a vida social fica, cada vez mais, sujeita a uma cartilha hegemônica alicerçada na normatividade ocidental branca, patriarcal, heteronormativa e neoliberal. O segundo movimento, das emergências, pautado em uma razão nomeada como cosmopolita - afeita à abertura e ao múltiplo - consiste em fazer frente a essa normatividade, buscando caminhos contra-hegemônicos para fazer emergir as presenças narradas como ausências, mas, além disso, reconhecê-las e autorizá-las como fontes legítimas de produção de conhecimento e vida. Assim, enquanto a sociologia das ausências contrai o presente, escondendo as diferenças, e dilata o futuro, adiando existências, a sociologia das emergências consiste em dilatar o presente, a fim de que vivências negligenciadas sejam vistas, e em contrair o futuro, tornando-o o próprio presente.

No que diz respeito ao contexto do ensino de PL2/Surdos, é perceptível a ingerência da razão indolente. Como já mencionado, não há, no Brasil, um programa nacional voltado à formação adequada de professores e à disponibilização de um aparato técnico e didático condizente com as necessidades do contexto, de modo a criar/ampliar as chances de efetiva inclusão dos indivíduos surdos na escola. Dessa forma, mesmo “incluídos” nas escolas regulares em todo o território nacional, o estudante surdo é ainda um forasteiro dentro do sistema de ensino, onde não há pares para sua convivência, e a interação e os materiais de ensino representam apenas o grupo estabelecido - quer dizer, os ouvintes cuja língua materna é o português oral ou escrito. Há inúmeras dificuldades de entender, no espaço escolar, a dimensão de o surdo ser um sujeito bilíngue. Dificuldade ainda maior de tomar esse contexto (assim como outros contextos de minorias) como sendo bi/multilíngue e não apenas bilíngue, o que implica conferir o devido status às línguas faladas por essa comunidade, dado que uma língua sempre traz, em seu interior, muitas outras (Gesser, 2006Gesser, A. (2006). “Um olho no professor surdo e outro na caneta”: ouvintes aprendendo a Língua Brasileira de Sinais [tese de doutorado]. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; César & Cavalcanti, 2007César, A. L., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. C. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Orgs), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66). Mercado das Letras.).

Mesmo após significativos avanços no campo jurídico e acadêmico, ainda convivemos com práticas de ensino claramente atravessadas pelo mito do monolinguismo (Cavalcanti, 1999Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngue e escolarização em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA, 15(spe), 385-417. https://doi.org/10.1590/S0102-44501999000300015
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), que empurra as línguas das minorias para a clandestinidade e para o esquecimento, e por uma lógica essencialista de cultura e identidades, que persiste na busca da homogeneidade e na aceitação de um padrão idealizado de língua. Uma lógica de fabricação de ausências, enfim, que invisibiliza aqueles que não conseguem “dominar” o sistema da escrita - em geral as minorias e maiorias tratadas como minorias (Cavalcanti & Silva, 2007Cavalcanti, M. C., & Silva, I. R. (2007). “Já que ele não fala, podia ao menos escrever...”: o grafocentrismo naturalizado que insiste em normalizar o surdo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 219-242). Mercado de Letras.) -, escamoteando as práticas de linguagem híbridas trazidas por esse grupo.

É evidente que a escola ainda não se dá conta de que as experiências sociais e de linguagem dos estudantes surdos variam muito, e, dependendo do discurso circulante em seu grupo social, a representação (Hall, 1997Hall, S. (Ed.). (1997). Representation: cultural representations and signifying practices. Sage.) sobre o estudante surdo pode, por um lado, estar respaldada no discurso da diferença ou, por outro, da deficiência (Silva, 2005Silva, I. R. (2005). As representações do surdo na escola e na família: entre a (in)visibilização da diferença e da “deficiência” [tese de doutorado]. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.). Discursos estes que ressoam nas orientações práticas dos profissionais de diferentes áreas (médica, educacional, fonoaudiológica, psicológica etc.). Em grande parte das escolas, ainda vigora a perspectiva da deficiência -nomeada por Lane (2000Lane, H. (2000). A máscara da benevolência: a comunidade surda amordaçada. Instituto Piaget.) como audismo -, em que a representação do surdo, amparada na ideia da falta, fixa-o como uma pessoa doente, confundindo-se, assim, o processo educacional com o processo terapêutico. Como falta significa inferioridade, a relação do surdo com a(s) línguas(s) tende a ser interpretada como eminentemente frágil, insuficiente, precária.

Acreditamos que a operacionalização do ensino de português efetivamente voltado a surdos precisa se pautar, justamente, no compromisso de descolonizar o pensamento hegemônico. Concordando com Bizon e Diniz (2019Bizon, A. C. C., & Diniz, L. R. A. (2019). Uma proposta poscolonial para a produção de materiais didáticos de português como língua adicional. Línguas e Instrumentos Linguísticos, (43), 155-191. https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.8658345
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, p. 159),

compreendemos o agenciamento que guia o uso político do sistema, na argumentação de Milton Santos, ou a sociologia das ausências e das emergências, na visão de Boaventura de Sousa Santos, como base de uma perspectiva poscolonial, cujos preceitos epistemológicos podem sustentar políticas que objetivem desestabilizar o pensamento central, buscando diálogo com “saberes, práticas e agentes, de modo a ampliar e conhecer tendências de futuro e definir princípios de ação que promovam a realização dessas tendências” (Bizon & Cavalcanti, 2015Bizon, A. C. C., & Cavalcanti, M. C. (2015). Globalização e internacionalização: democracia vertical de um convênio estudantil brasileiro? In B. S. Santos & T. Cunha (Orgs.), Actas Colóquio Internacional Epistemologias do Sul: aprendizagens globais Sul-Sul, Sul-Norte e Norte-Sul (pp. 459-476). Universidade de Coimbra., p. 464).

Faz parte dessa perspectiva reconhecer que as interações entre falantes de diferentes línguas, tanto em nível global quanto local, constituem práticas sociais de linguagem complexas. Interações que são responsáveis pelo desenvolvimento de formas híbridas de comunicação, uma vez que sujeitos de contextos étnico-culturais diversos interagem por meio da imbricação de diferentes recursos linguísticos e semióticos - o que coloca em xeque as fronteiras ora impostas às línguas pela ideologia monoglóssica de perspectivas modernas e coloniais (Makoni & Pennycook, 2007Makoni, S., & Pennycook, A. (Eds.) (2007). Disinventing and reconstituting languages. Multilingual Matters.; Pennycook & Makoni, 2020).

Apesar de modos híbridos de língua(gem) sempre terem existido no mundo, a popularização do fenômeno denominado pelo termo translinguagem se deu, segundo Scholl (2020Scholl, A. P. (2020). O conceito de translinguagem e suas implicações para os estudos sobre bilinguismo e multilinguismo. Revista da ABRALIN, 19(2), 1-5. https://10.25189/rabralin.v19i2.1641
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), na década de 2010, com os estudos de Garcia (2009García, O. (2009). Bilingual education in the 21st Century: a global perspective. Wiley-Blackwell.), para quem a translinguagem se refere às múltiplas práticas discursivas que os bilíngues usam para dar sentido aos seus mundos bilíngues. Com o intuito de nomear essas novas maneiras de os bilíngues usarem suas línguas para produzir significações11 11 García e Cole (2016, p. 48) enfatizam a maneira diferenciada de os bilíngues, de forma geral, utilizarem traços das línguas com as quais convivem como “uso completo do repertório linguístico do bilíngue”. As autoras entendem que, a partir de uma perspectiva social, tal repertório, composto por mudanças de códigos ou misturas de línguas, não pode ser estigmatizado, devendo ser tratado como um uso “fluido” da língua (que nomeiam como translinguagem). - consideradas antes práticas estigmatizadas, e por isso mesmo escamoteadas como sem valor, principalmente no contexto educacional -, alguns autores, como, por exemplo, Garcia (2009), Canagarajah (2013Canagarajah, S. (2013). Translingual practice: global Englishes and cosmopolitan relations. Routledge.) e Garcia e Leiva (2014García, O., & Leiva, C. (2014). Theorizing and enacting translanguaging for social justice. In A. Blackledge & A. Creese (Eds.), Heteroglossia as practice and pedagogy (pp. 199-216). Springer.), começaram a enxergar nessas novas práticas uma alternativa mais justa, que liberava as vozes dos estudantes para letramentos(s) capazes de enfrentar visões monolíticas e racionalistas acerca da linguagem, do sujeito e da cultura. Assim, como bem resumem Rocha e Tanzi Neto (2020Rocha, C. H., & Tanzi Neto, A. (2020) Translinguagens: discurso, políticas e pedagogias. Revista X, 15(1), 1-6. https://doi.org/10.5380/rvx.v15i1.73182
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, p. 1):

a translinguagem mostra-se como uma ruptura paradigmática no campo dos Estudos da Linguagem, expandindo a noção de comunicação para além das palavras e línguas individuais ou nominadas, em favor de processos e práticas de construção de sentidos, ideológica e historicamente situados e ecologicamente constituídos.

Nessa ruptura em direção ao modo como se comportam os falantes nas situações reais de comunicação, reivindica-se que a língua(gem) humana seja vista não mais como um sistema fixo e homogêneo, mas como algo heterogêneo e complexo, dinamicamente construído pelas pessoas em suas interações locais, por meio de práticas de negociação que possibilitam compreender melhor como ocorrem os processos subjacentes comuns e as estratégias utilizadas para negociar inteligibilidades na (co)construção de diálogos poliglotas. Essa perspectiva realça, então, o modo particular como as pessoas praticam a língua(gem), afastando-se dos conceitos hegemônicos, por estarem estes últimos associados à ideologia de que há somente uma língua nos espaços geográficos dos Estados-Nação: as línguas nomeadas.

Endossando os preceitos poscoloniais e translíngues aqui discutidos, recorremos novamente ao trabalho de Bizon e Diniz (2019Bizon, A. C. C., & Diniz, L. R. A. (2019). Uma proposta poscolonial para a produção de materiais didáticos de português como língua adicional. Línguas e Instrumentos Linguísticos, (43), 155-191. https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.8658345
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, p. 180-182) para indicarmos o que, segundo os autores, são as principais diretrizes para a elaboração de um material didático em uma perspectiva poscolonial12 12 Salientamos que nenhum material didático per se é capaz de garantir a operacionalização dos preceitos teóricos que o embasam. Tal operacionalização vai sempre depender dos sentidos atribuídos pelo professor na utilização desse material. E isso, em última análise, vai depender igualmente do compromisso desse professor com o arcabouço teórico em questão. :

  1. Em harmonia com o que propõe Bakhtin (2004), o ponto de partida de um determinado material didático em uma perspectiva poscolonial não pode ser um determinado conjunto de formas da língua, ou uma situação comunicativa, na superfície do aqui/agora, como seria típico, respectivamente, de uma abordagem gramatical e comunicativa. Tampouco pode ser, enfatizamos, o gênero textual em si, concebido, em uma certa vertente, como “famílias de textos” passíveis de serem “reconhecidas por suas similaridades”, da qual Rojo (2005, p. 192) se afasta. Conforme argumenta Bakhtin (2004, p. 124), [...] a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser a seguinte: “1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica, que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual”.

  2. Um material didático poscolonial deve “transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (SOUSA SANTOS, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica das Ciências Sociais, 63, 237-280. https://doi.org/10.4000/rccs.1285
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    , p. 246), visibilizando outras vozes que não apenas as do Norte. Para tanto, é necessário diversificar as fontes dos textos selecionados para o trabalho pedagógico e contemplar produções de grupos minoritarizados - e não apenas sobre tais grupos -, de forma a colocar, no âmago do material, a heterogeneidade discursiva. É preciso, ainda, valorizar as vozes dos alunos como possíveis disparadores para atividades e para a (re)construção de conhecimentos. [...]

  3. Uma perspectiva poscolonial na produção de materiais didáticos não pode prescindir de um investimento pedagógico na materialidade linguística, que leve os estudantes a reconhecerem o funcionamento sempre ideológico da(s) língua(s) aprendida(s). Sem esse investimento, os processos dialógicos serão apagados, e os estudantes, privados de importantes oportunidades para compreender relações de poder que se estruturam na e pela linguagem, em suas diferentes materialidades. [...]

  4. Considerando que uma importante forma de apagamento do Outro é, justamente, o silenciamento de sua(s) língua(s), uma proposta poscolonial deve procurar o distanciamento dos efeitos de processos de colonização linguística (MARIANI, 2004) [...], abri[ndo] espaço para que o próprio ensino da língua-alvo contribua para a visibilização e valorização de outras línguas, sejam as dos alunos, sejam as faladas nos espaços onde a língua ensinada pode ser a hegemônica.

  5. Uma proposta poscolonial necessita favorecer deslocamentos rumo à destotalização do outro e à aceitação de seu caráter mutável, como apontado por Maher (2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.). Para isso, ainda de acordo com a autora, a sensibilização para as diferenças não só inter, mas também intraculturais, pode ser particularmente importante.

Essas diretrizes são mobilizadas na análise dos dados, em que buscamos discutir como as licenciandas compreendem o processo de elaboração de um material didático na perspectiva teórica pretendida, assim como sua própria formação docente.

4. Estágio Supervisionado em PL2/LE: breve desenho da disciplina

Conforme já esclarecido, além das horas práticas, a disciplina Estágio Supervisionado em PL2/LE conta com 30 horas/aula teóricas. No oferecimento em foco nesta pesquisa, essas 30 horas foram desenvolvidas em 15 encontros, online e síncronos, entre a docente-orientadora e as licenciandas, com duração de 2 horas, que seguiram o seguinte planejamento:

  • Aula 1: Encontro das alunas com a docente-orientadora (primeira autora deste artigo) e docente-supervisora (segunda autora deste artigo), convidada especialmente para a primeira aula, com os seguintes objetivos: (i) conhecer o Cepre e seu programa de ensino bilíngue de PL2/surdos; (ii) conhecer o perfil dos estudantes surdos participantes do programa naquele semestre; (iii) definir os objetivos específicos do estágio no referido semestre.

Convém explicar que, em disciplinas da Licenciatura já cursadas pelas estudantes13 13 Na disciplina LA 910 - Introdução aos Estudos do Português como Segunda Língua e Língua Estrangeira, os estudantes têm um panorama de todos os contextos de PL2/LE, na LA 911 - A Sala de Aula de Português como Segunda Língua e Língua Estrangeira, refletem sobre pressupostos teóricos e metodológicos que amparam esses contextos de ensino, e, na LA 912 - Produção e Avaliação de Materiais para o Ensino de Português como L2/LE, analisam e produzem materiais didáticos para alguns desses contextos. Para maiores detalhes sobre a Licenciatura em PL2/LE do IEL/Unicamp, ver Scaramucci e Bizon (2020) e Bizon e Scaramucci (2021). Ver também o site da Licenciatura: https://www2.iel.unicamp.br/lic_ple/ , alguns aspectos do contexto de ensino de PL2/Surdos já haviam sido abordados. Certamente, as leituras e discussões promovidas em outras disciplinas subsidiaram a conversa inicial com a docente do Cepre.

Ao final do encontro, ficou decidido que, ao longo do semestre, seria desenvolvido um material didático para uma oficina de PL2/Surdos com carga didática de 8h, a ser ministrada pela segunda autora deste artigo aos estudantes surdos. As aulas seriam gravadas e visionadas pelas licenciandas, sob supervisão das duas docentes envolvidas no Estágio.

  • Aulas 2 a 5: Subsídios para a compreensão do contexto em foco e suas demandas, e consequente definição do tipo de material didático a ser elaborado.

Nessas aulas, foram realizadas discussões a partir de leituras teóricas com especial ênfase em dois tópicos: (i) concepção de ensino de língua adicional/segunda língua em uma perspectiva poscolonial e translíngue; e (ii) elaboração de materiais didáticos e proposição de estratégias metodológicas para o ensino de PL2/Surdos.

Embora tenhamos disponibilizado uma ampla coletânea de artigos, destacamos, no quadro a seguir, os materiais que foram discutidos nas aulas síncronas ou por meio de atividades assíncronas.

Quadro 1
Bibliografia utilizada

Aulas 6 e 7: Definição da temática e da estrutura da oficina de PL2/Surdos e do material didático a ser elaborado.

Nesta parte do curso, contamos com a interlocução de um doutorando do DLA, IEL, que apresentou sua experiência de elaboração e oferecimento de uma oficina para estudantes surdos no âmbito do projeto Ciência e Arte nas Férias (CAF)14 14 O projeto Ciências e Artes nas Férias (CAF) está ligado à Pró-reitoria de Pesquisa da Unicamp e existe desde o ano de 2000, sendo realizado nas férias escolares de janeiro, durante 4 semanas, atendendo estudantes da rede pública de Campinas inseridos no Ensino Médio. A cada ano, o projeto traz mais de 150 alunos da escola pública para os diversos Institutos da Unicamp. Durante um mês, eles acompanham o cotidiano de ensino e pesquisa da universidade, participando de atividades em oficinas coletivas que reúnem, em grupos, cerca de 30 alunos em torno de alguma atividade. Um exemplo é a Oficina do Sorvete, realizada no Instituto de Química, na qual os estudantes observam os processos químicos na preparação de sorvetes e depois degustam. O Cepre, em parceria com o IEL, oferece oficinas de trabalho com o desenvolvimento do português escrito. Vale sublinhar a importância da participação de estudantes surdos no CAF, que tem provocado a modificação da ‘paisagem linguística’ da universidade, aproximando sujeitos ouvintes de sujeitos surdos, e mostrando a esses ouvintes haver outros códigos para comunicação além do oral. , na Unicamp. Intitulado Histórias Invisíveis, o projeto, que explorou o gênero discursivo entrevista, contou com duas fases. Em um primeiro momento, os estudantes surdos puderam conhecer histórias de pessoas que vivem à margem da sociedade, por meio de leituras e vídeos, e, em seguida, propôs-se a realização de entrevistas com pessoas do entorno desses estudantes, que eles considerassem personagens que mereciam ser visibilizados.

Ter contato com a experiência do pesquisador e com o planejamento da sua oficina para um contexto similar ao que se colocava para as licenciandas possibilitou que algumas decisões fossem tomadas. A primeira se deu em torno da temática do material didático. Buscávamos focalizar um tema que envolvesse os alunos, chamando-os à agência por meio da leitura e da escrita do português juntamente com todos os recursos comunicativos (Rymes, 2013Rymes, B. (2013). Communicating beyond language: everyday encounters with diversity. Routledge.) que estão ao seu alcance, além da Libras, tais como o uso das imagens, da fala e das vocalizações15 15 É preciso ter em mente que, ao interagir com o mundo a sua volta, o surdo lança mão não apenas das línguas nomeadas, o português e a Libras, mas de vários outros elementos de estruturação simbólica provenientes de seu meio social, como, por exemplo, gestos sociais, expressões faciais, movimentos do corpo, soletrações manuais, entre outros recursos, com o intuito de se inserir e produzir significações. Alguns autores denominam essa forma criativa de agenciar a linguagem como línguas de sinais caseiras (Gesser, 2006; Silva, 2008; Kumada, 2012). De acordo com Kusters, Spotti, Swanwick e Tapio (2017), tal fenômeno bem caracteriza o limite fluido entre as línguas que permeiam as interações de surdos, seja com ouvintes, seja com outros surdos, possibilitando o surgimento, nesses espaços, do uso simultâneo de diferentes modalidades (vocalizações ou oralização e sinalizações ao mesmo tempo). Por essa razão, segundo esses autores, é necessário que as práticas de linguagem nesses contextos sejam vistas como multilíngues e multimodais, deslocando o foco de análise das línguas stricto sensu para a construção conjunta de sentidos, como advogam autores comprometidos com o conceito de língua de forma ampliada (García, 2009; Cavalcanti, 2011; Canagarajah, 2013). .

Foi consenso, a partir de leituras realizadas e da conversa com o doutorando, que celulares e redes sociais eram recursos muito utilizados por adolescentes surdos - constatação presente também em leituras teóricas discutidas em aulas anteriores. Assim, aventou-se a possibilidade de o material didático ter como tema principal o Instagram. A segunda decisão relacionou-se com a necessidade de elaboração de um questionário para melhor conhecer os alunos, suas faixas etárias, seus interesses, suas relações com a utilização do celular e das redes sociais, especialmente do Instagram.

Nos trechos dos relatórios de estágio transcritos a seguir, C. e S.16 16 Para garantir o anonimato das participantes de pesquisa, optamos por nomeá-las por meio de letras aleatórias. justificam a opção pelo tema da oficina e do material didático (grifos nossos):

C: Como tema principal, tivemos a ideia de elaborar um material que propusesse a criação de uma conta no Instagram para o Cepre. A nossa motivação para essa escolha partiu do fato de nós mesmos não conhecermos anteriormente o Cepre, de acharmos que ele ainda é pouco divulgado e conhecido pela comunidade universitária e de Campinas, e de que, por ser de extrema relevância social, deveria ser reconhecido. Além disso, a intenção é que os alunos e alunas - assim como os que já passaram pelo Centro e os que ainda vão passar - possam ter um espaço em que divulguem o que aprendem no Cepre. E que também possam falar sobre outros assuntos que lhes interessam e que, se assim desejarem, possam ir além da temática da surdez. Para isso, nos valemos principalmente do artigo e trabalho feito porNogueira (2020Nogueira, A. S. (2020). Práticas translíngues na educação linguística de surdos mediada por tecnologias digitais. Diacrítica, 34(1), 291-310. https://doi.org/10.21814/diacritica.337
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), que aplicou uma unidade didática de escrita do português para estudantes surdos, em que os estudantes criaram postagens para o Facebook. Por ser um trabalho parecido com a nossa atuação no estágio, o artigo muito serviu como inspiração para as instruções de algumas atividades.

S: A primeira etapa do trabalho foi definir os objetivos do nosso material para que tivéssemos uma forma de nortear nossas escolhas e as atividades propostas. Então, foi sugerido por uma das estagiárias que fizéssemos algo voltado para redes sociais, sendo que, segundoNogueira (2020Nogueira, A. S. (2020). Práticas translíngues na educação linguística de surdos mediada por tecnologias digitais. Diacrítica, 34(1), 291-310. https://doi.org/10.21814/diacritica.337
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), o nosso mundo está cada vez mais globalizado e digitalizado, de modo que as novas tecnologias assumem um papel muito importante na educação de surdos. Esse trabalho se faz importante uma vez que “interagir e produzir conteúdos nos espaços digitais requer lidar com usos de língua(gem) que se dão pela mistura criativa de recursos linguísticos e semióticos” (Nogueira, 2020Nogueira, A. S. (2020). Práticas translíngues na educação linguística de surdos mediada por tecnologias digitais. Diacrítica, 34(1), 291-310. https://doi.org/10.21814/diacritica.337
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, p. 292). Além disso, “entendemos que a heterogeneidade e a multiplicidade de recursos linguísticos e semióticos que caracterizam a linguagem nos espaços digitais online refletem bem a realidade comunicativa de indivíduos bi/multilíngues, como o caso de pessoas surdas” (Nogueira, 2020Nogueira, A. S. (2020). Práticas translíngues na educação linguística de surdos mediada por tecnologias digitais. Diacrítica, 34(1), 291-310. https://doi.org/10.21814/diacritica.337
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, p. 292), por isso quisemos trazer essa realidade digital para a sala de aula.

Vale ressaltar como o tema - uma conta no Instagram para o Cepre - vai ao encontro de uma perspectiva que procura transformar ausências construídas socialmente em presenças. Segundo narram as licenciandas, o tema oportunizou, a um só tempo, mostrar o Cepre e sua atuação para a sociedade em geral, conferir protagonismo aos estudantes surdos, cuja produção em português alimentaria o conteúdo da conta do Centro no Instagram, e, ainda, reafirmar a perspectiva translíngue, ao explorar, no ensino do português, “a heterogeneidade e a multiplicidade de recursos linguísticos e semióticos” presentes fortemente em plataformas online.

Observe-se também que essas narrativas são registros do movimento promovido no ambiente de formação docente. Lançando mão da bibliografia estudada, C. e S. ressaltam a importância de se garantir um espaço para a cultura visual dos estudantes surdos, o que vai ao encontro de uma “pedagogia culturalmente sensível” (Erickson, 1987Erickson, F. (1987). Transformation and school success: the politics and culture of educational achievement. Anthropology and Education Quarterly, 18(4), 335-356. https://doi.org/10.1525/aeq.1987.18.4.04x0023w
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) prevista na efetivação de uma “educação linguística ampliada” (Cavalcanti, 2013Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação de professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani (pp. 211-226). Parábola.). Por isso mesmo, como veremos na próxima seção, as atividades de leitura propostas no material didático elaborado, apesar de estarem em português escrito, preveem o uso da língua do aluno para serem realizadas.

  • Aulas: 8 a 13: elaboração do material didático e discussão com especialistas da área.

Decidiu-se, com a docente-supervisora, que a oficina deveria ser estruturada em seis aulas com duração de uma hora e meia. De modo a dinamizar o trabalho, as licenciandas se dividiram em duplas, que ficaram responsáveis pelo desenvolvimento de determinadas partes do material. O Google Drive foi utilizado como plataforma para o trabalho colaborativo e, nos encontros síncronos com a docente-orientadora, a produção semanal era focalizada.

Nesta fase, dois encontros foram destinados a discutir o material com especialistas da área: em um deles com a própria docente-supervisora e, no outro, com uma professora e pesquisadora do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES)/RJ17 17 Situado na cidade do Rio de Janeiro, “O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) é reconhecido, na estrutura do MEC, como centro de referência nacional na área da surdez, exercendo os papéis de subsidiar a formulação de políticas públicas e de apoiar a sua implementação pelas esferas subnacionais de Governo. Como instituto de educação, atende estudantes desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, além de apoiar a pesquisa de novas metodologias para serem aplicadas no ensino da pessoa surda e atender a comunidade e os alunos nas áreas de fonoaudiologia, psicologia e assistência social. O Instituto ainda ajuda a inserir o surdo no mercado de trabalho por meio de ensino profissionalizante e estágios”. Disponível em: https://www.gov.br/ines/pt-br/acesso-a-informacao-1/institucional/conheca-o-ines. Acesso em: 2 abril 2022. , que, à época, desenvolvia seu doutorado no DLA, IEL, sobre estratégias de ensino de PL2/Surdos.

A interlocução proporcionada por esses encontros, como indica uma das licenciandas em seu relatório de estágio, foi fundamental para que se compreendesse quais recursos de linguagem e metodológicos poderiam funcionar melhor na elaboração das atividades do material.

S: (...) é necessário registrar aqui a contribuição da doutoranda que também participou de uma das aulas como convidada, e analisou todo nosso material junto conosco, comentando e dando suas contribuições. Essa troca foi muito importante porque pudemos refletir sobre nossos acertos e melhorar o que não estava tão bom, sob o olhar crítico e atento de uma pessoa que tem experiência com o contexto da surdez.

A nosso ver, o comentário de S. é ndicativo da importância de se trazer para a formação de professores experiências exitosas existentes em escolas só para surdos como o INES. Nesses espaços, onde o uso de metodologias diferenciadas para o ensino de surdos é ainda mais urgente, há a possibilidade de encontrar, também, maior reflexão sobre a construção de materiais didáticos que privilegiem as construções culturais e identitárias desse grupo de estudantes.

Na próxima seção, em que focalizamos o material didático, explicitamos alguns dos apontamentos feitos pela docente do INES para “melhorar o que não estava tão bom”, bem como as reflexões e decisões tomadas pelas licenciandas a partir desses apontamentos.

  • Aulas 14 e 15: reelaboração e finalização do material didático e do relatório de estágio.

As últimas aulas foram reservadas para a finalização do material. Muito motivada com a experiência do Estágio, uma das licenciandas, que já tinha certo conhecimento de programas de diagramação, propôs-se a dar um acabamento especial ao trabalho.

5. Elaboração de material didático para o ensino de PL2/Surdos: a experiência de formação nas vozes das licenciandas

Antes de apresentarmos o material didático elaborado para a oficina de PL2/Surdos, abrimos esta seção com as vozes das licenciandas. Nos trechos de relatórios em destaque a seguir, indica-se o que foi, talvez, o maior desafio na disciplina de Estágio Supervisionado:

C: Antes desse estágio, eu nunca tinha entrado em contato com o trabalho do Cepre e não sabia que esse espaço tão importante, que promove uma integração entre a sociedade e a universidade, existia tão perto de mim.

S.: É importante destacar aqui que esse contexto era bastante novo para mim, pois o único contato que tive na graduação com as questões da surdez foram as aulas de Libras, porém, o objetivo do curso era muito diferente. Sendo assim, foi bem desafiador encarar a realidade de sala de aula para surdos, tendo o português como língua adicional.

G.: Optei por atuar no contexto do Cepre, uma vez que pensar como diminuir a marginalização de brasileiros que não têm acesso à língua portuguesa é um dos meus interesses particulares quando me inscrevo no lugar de professora de PL2.

Nas narrativas das licenciandas, fica nítida a pouca atenção dada ao contexto da educação de surdos em sua formação. Sabemos que, na maioria das licenciaturas em Letras-Português Língua Materna, pouco se fala sobre a educação de grupos minoritários e/ou minoritarizados, o que se comprova no depoimento de C, a partir do qual se depreende que o Cepre, assim como questões que envolvem o contexto da surdez e, mais especificamente, o ensino de PL2/Surdos, não fizeram parte de disciplinas da sua primeira licenciatura. Esse espaço tampouco se concretizou nas aulas da disciplina de Libras, como indicado por S.: “o objetivo do curso era muito diferente”.

Aproveitando o comentário da licencianda, é preciso reconhecer que a disciplina de Libras entra (a partir de 2016) no currículo dos cursos de Letras com o intuito de sensibilizar os futuros professores sobre a existência do aluno surdo nas escolas e da própria Libras, não estando voltada ao estudo de estratégias e metodologias para o ensino o ensino de português como segunda língua. No entanto, é preciso reconhecer também que, embora a inserção dessa disciplina venha ajudando a visibilizar o aluno surdo, a tarefa de ensinar o português escrito, atribuição desse professor em formação, continua não sendo contemplada na licenciatura em Letras-Língua Materna.

Podemos dizer que esse cenário, em que a distância narrada em relação ao contexto da educação de surdos é minimizada apenas por meio de disciplina(s) da licenciatura em PL2/LE, faz com que S. considere “bem desafiador encarar a realidade de sala de aula para surdos”. Contudo, vemos também que o desafio imposto por esse complexo contexto educacional não se configura como pretexto para abandoná-lo. Antes, quando efetivamente visibilizado, acaba por constituir fortemente os projetos das licenciandas, sendo visto como uma atuação politicamente engajada, como nos diz G:“pensar como diminuir a marginalização de brasileiros que não têm acesso à língua portuguesa é um dos meus interesses particulares”. São narrativas que, sem dúvida, reforçam a necessidade de disciplinas voltadas à reflexão sobre o ensino de PL2/Surdos, ou, pelo menos, a inserção desse tópico em disciplinas já presentes nos currículos dos cursos de Letras. Esses depoimentos, enfim, sinalizam que a representação que esses professores em formação estão construindo em relação aos estudantes surdos é positiva, uma vez que o ensino para pessoas surdas é percebido como um desafio, mas não como um problema, como, em geral, acontece na escola inclusiva (Hoffmeister, 2009Hoffmeister, R. J. (2009). Famílias, crianças surdas, o mundo dos surdos e os profissionais da audiologia. In C. Skliar (Org.), Atualidade da educação bilíngue para surdos (3ª ed., v. 2, pp. 113-130). Mediação.).

6. “Eu também posso escrever!”: a perspectiva das licenciandas-autoras

Inicialmente, chamamos a atenção para o nome bastante significativo escolhido para o material: “Eu também posso escrever!”. Poderíamos dizer que esse título representa a voz do estudante surdo, enunciando a todos, de maneira exclamativa - e, portanto, em alto tom - sua capacidade de aprender e usar o português. Uma capacidade, como sabemos, frequentemente negada aos estudantes surdos, geralmente narrados como aqueles que não conseguem lidar com assuntos ditos mais complexos e nem avançar para níveis de proficiência mais altos em português. O próprio título funcionaria, portanto, como um grito clamando pela emergência e pelo protagonismo do indivíduo surdo.

Podemos dizer, ainda, que esse título ajuda a posicionar o aluno surdo como um indivíduo com potencialidades, e sinaliza o agenciamento das licenciandas na proposta de um material que desloque o papel desse estudante na escola: de passivo para ativo, de incapaz para capaz de ler e escrever.

Vejamos, agora, como se estruturam as primeiras páginas do material, reproduzidas a seguir (grifos nossos):

Este material é para você!

Nosso objetivo com o conteúdo a seguir é proporcionar a você, aluno(a), uma experiência de aprendizagem que promova a colaboração e a integração entre os seus companheiros de sala. Desejamos que ao término deste material vocês sejam capazes de entender melhor o funcionamento da língua como um recurso que atravessa todas as nossas relações humanas.

E para fazer isso, vamos explorar uma ferramenta digital que está presente no nosso dia a dia: o Instagram! Queremos que você se veja como um agente de transformação social, capaz de expor suas opiniões e se comunicar com o mundo, tanto dentro quanto fora da sala de aula.

Sendo assim, sua participação será essencial para a construção do conhecimento que esse material se propõe a produzir! Por isso, esperamos que você enriqueça suas experiências de leitura e escrita e se sinta motivado a concretizar esse projeto junto com a gente!

Atividade 1

Vamos fazer um Instagram para o Cepre?

Nós sabemos que um perfil em uma rede social não surge do nada, não é mesmo? Então seguiremos algumas etapas, como um passo a passo, para criarmos essa página juntos!

Vamos começar com algumas perguntas para você discutir, em Libras, com os colegas:

a. Você acha que a plataforma do Instagram influencia a vida das pessoas?

b. Você se sente influenciado pelo Instagram? Se sim, explique como.

c. Qual a importância de criarmos uma página de Instagram para o CEPRE?

O Instagram é uma plataforma extremamente acessada no Brasil e no mundo. Com a página do Cepre, além de divulgar o trabalho realizado pelo Centro, aproximando a Universidade da sociedade, você e seus colegas poderão publicar sobre o que sentirem vontade. A página também pode ser um lugar para que ex, atuais e futuros alunos postem sobre seus interesses e paixões, formando uma comunidade online do Cepre.

A primeira seção - Este material é para você! - configura-se como uma apresentação do material para os estudantes, com um título que anuncia se tratar de um material feito especialmente para o contexto de PL2/Surdos. Isso, a nosso ver, contribui para produzir o efeito de um acolhimento diferente para os surdos, que vai sendo reafirmado nos vários convites feitos aos estudantes-interlocutores ao longo do texto. Neles, reitera-se o português e sua aprendizagem como possibilidade de ação e de inserção no mundo: “Desejamos que ao término deste material vocês sejam capazes de entender melhor o funcionamento da língua como um recurso que atravessa todas as nossas relações humanas”; “Queremos que você se veja como um agente de transformação social, capaz de expor suas opiniões e se comunicar com o mundo,”.

Nessa dinâmica, o trabalho coletivo é muito relevante. Logo no texto de apresentação, enuncia-se o propósito de um trabalho que “promova a colaboração e a integração” entre os alunos, engajando o estudante como parte do projeto proposto (“se sinta motivado a concretizar esse projeto junto com a gente!”; “sua participação será essencial para a construção do conhecimento que esse material se propõe a produzir!”). E tal premissa se estende por todo o material, como, por exemplo, na Atividade 1, que se apresenta como um convite - Vamos fazer um Instagram para o Cepre? - para uma dinâmica de produção conjunta, a qual segue sendo reforçada nos enunciados das atividades, como este, que fala em “etapas” “passo a passo” e criação da “página juntos”: “Então, seguiremos algumas etapas, como um passo a passo para criarmos essa página juntos!”. Vários autores, dentre eles Oliveira-Silva e Figueiredo (2019Oliveira-Silva, C. M., & Figueiredo, J. Q. (2019). A colaboração na aprendizagem de inglês instrumental: um estudo com alunos surdos do curso de Letras/Libras da UFG. In D. M. Jesus & L. S. Furlaneto (Orgs.), Educação inclusiva: ensino e formação de professores de língua (pp. 149-174). Pontes.), ressaltam que o fazer coletivo abre possibilidades de reflexão sobre a língua, sendo potencialmente capaz de tornar a compreensão e a produção de textos mais efetivas no contexto da educação de surdos. A palavra inicial ao estudante surdo, portanto, reafirma a importância do fazer com o Outro e não do fazer para o Outro - o que é um dos preceitos fundantes da perspectiva poscolonial.

Abrimos aqui um parêntese para esclarecer que, na primeira versão produzida do material didático aqui focalizado, o texto de apresentação era oferecido ao aluno apenas em português escrito, e, no enunciado da Atividade 1, não se mencionava que a discussão deveria ser feita em Libras. Como já explicitado, algumas decisões para o refinamento do material decorreram da interação com a docente do INES, como demonstra o excerto de aula transcrito a seguir:

Docente INES: Essa discussão vai ser em Libras?

G: Aí é com a professora, né? [rindo]. A gente tem que colocar isso no material do professor, né?

Docente INES: Assim, para mim, não tem o menor sentido/porque já vai começar uma barreira aí, porque discutir não é só responder no papel por escrito, então, pra mim, essa discussão inicial deveria ser em Libras. Mas, tem razão, professor tem autonomia, né, mas eu acho que no material poderia ter uma indicação, caso vocês acharem que a discussão tem que ser em Libras, ter algum sinalzinho das mãos em Libras. Como por exemplo quando a gente tem um livro para ouvintes, né por exemplo de português para estrangeiros, aí o áudio, não tem um ícone de áudio? Colocar um ícone da Libras, ali do lado!

G: Ah, legal, a gente não tinha pensado nisso!

C: Então, tem vários momentos de discussão em sala de aula, e a Ivani disse que eles utilizam a Libras em sala de aula, né, então acho que a gente nem pensou em colocar o ícone, mas todas as discussões que são mais de conversa é pra ser em Libras, porque ficar produzindo, escrevendo vai até desmotivar.

Docente INES: É porque vocês já conhecem a realidade do Cepre, né, mas pensando assim, pra fora do Cepre, isso não é claro pra todos os professores, tá?! Se vocês estão escrevendo também para fora dessa realidade...

Docente supervisora: Sim, é esta a ideia! Que este material possa ir para além do Cepre...

Docente INES:Porque tem professor que não tem formação para dar aula pra surdos, né. Muitos vão pegar a atividade e vão falar assim, mas... é em Libras? Ou eles vão escrever? Então, assim, não tá posto! Então, se o objetivo é que a discussão seja em Libras, coloca o ícone ali!

S: Hum... a gente não tinha pensado nisso... é mesmo...

Docente supervisora:E você acha que vale a pena colocar no enunciado. Vamos discutir em Libras...

Docente INES: Ah, eu acho!

Docente supervisora: Porque é o que eu sempre discuto com eles, tem que estar no enunciado, no material! Tem que dar todos os comandos para o aluno, e infere-se que o professor esteja lendo aquilo como uma indicação para ele também.

Docente supervisora:Sim, discuta, converse com seu colega em Libras, pergunte para seu amigo em Libras, e o iconezinho do lado.

(Aula Estágio Supervisionado em PL2/LE, 27/10/2021)

Note-se que o comentário “A gente não tinha pensado nisso”, que se repete na fala de G. e de S., e se desdobra na fala de C. (“a gente nem pensou em colocar o ícone”), sinaliza o quão significativa, na formação docente, pode ser a oportunidade de interagir com profissionais experientes no contexto educacional contemplado no estágio. Vê-se que, inicialmente, o que a docente do INES aponta como procedimentos cruciais na elaboração da atividade foi considerado como detalhes desnecessários pelas licenciandas. Ao relembrá-las que “tem professor que não tem formação para dar aula pra surdos”, e o que se deseja que seja feito nas atividades “não tá posto!”, a docente está também marcando a necessidade de elaboração de enunciados claros e que realmente operacionalizem os preceitos de uma dada perspectiva teórica. Foi assim que, após essa aula de visionamento do material, decidiu-se disponibilizar o texto de apresentação também por meio de um vídeo em Libras, e, ainda, deixar explícito nos enunciados quando a atividade deveria/poderia ser realizada em Libras e por meio de outros recursos de linguagem.

É relevante salientar que a inserção do símbolo da língua do surdo em diferentes seções - duas mãos em gesto de sinalização - altera a paisagem do material didático, conferindo a essa língua um lugar de coprodutora de sentidos. As atividades propostas, embora tenham seus enunciados em português escrito, preveem o uso da língua do aluno para serem realizadas, como se vê na Atividade 1: “Vamos começar com algumas perguntas para você discutir, em Libras, com os colegas”. Assim, valorizando-se a Libras como língua de mediação e interação em sala de aula, abre-se aos alunos a oportunidade de usar sua língua forte (Hamel, 2004Hamel, R. E., Brumm, M., Carrillo Avelar, A., Loncon, E., Nieto, R., & Silva Castellón, E. (2004). ¿Qué hacemos con la castilla?: Ll enseñanza del español como segunda lengua em um currículo intercultural bilingüe de educación indígena. Revista Mexicana de Investigación Educativa, 9(20), 83-107. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=14002006
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
) para expressar significações. Entendemos que essa atitude pode contribuir para a quebra de barreiras atitudinais em relação às línguas envolvidas nesse contexto. A Libras, assim, pode, de fato, ser a língua de instrução e interação, ampliando as fronteiras para além das línguas nomeadas, isto é, do português e da Libras. Isso desafia o status quo vigente, que privilegia a língua oral como língua de instrução, abrindo também espaço para que “o próprio ensino da língua-alvo contribua para a visibilização e valorização de outras línguas, sejam as dos alunos, sejam as faladas nos espaços onde a língua ensinada pode ser a hegemônica” (Bizon & Diniz, 2019Bizon, A. C. C., & Diniz, L. R. A. (2019). Uma proposta poscolonial para a produção de materiais didáticos de português como língua adicional. Línguas e Instrumentos Linguísticos, (43), 155-191. https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.8658345
https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.86583...
, p. 182).

Após essa primeira atividade que introduz o tema do projeto a ser realizado durante as aulas da oficina, encontram-se atividades cujos objetivos centram-se na ampliação do repertório comunicativo do estudante sobre o universo do Instagram. Na Atividade 2, sob o título Vamos nos aprofundar na plataforma?, são trabalhadas informações sobre essa rede social e os principais tipos de perfis de contas - pessoais, temáticos e comerciais -, considerando-se que suas características não são estanques e permitem diferentes tipos de postagens. Solicita-se, então, que os estudantes classifiquem, sob essas categorias, o perfil do Cepre a ser criado no Instagram, e, após examinarem postagens em diferentes contas do Instagram, indiquem os tipos de postagens que poderiam ser divulgados pelo perfil do Centro. Na Atividade 3, a partir da página inicial de uma conta do Instagram, são focalizadas as funções de ferramentas disponíveis na plataforma - feed, stories, like, comentar, compartilhar, salvar -, bem como as imagens que as representam. Em seguida, são propostas estas atividades (grifos nossos):

Atividade 4

Agora, vamos testar os seus conhecimentos sobre as ferramentas e suas funções com um jogo.

Instruções: No anexo, você encontrará as imagens das 6 ferramentas para recortar. Um dos alunos da turma deve recortá-las e sortear uma para cada estudante, que não deve mostrar sua ferramenta para ninguém.

Como jogar: Fique com a sua carta em mãos. Utilizando Libras e outros recursos que desejarem, seus colegas lhe farão perguntas sobre a ferramenta, e você poderá responder somente com SIM ou NÃO. Você também fará perguntas para seus colegas, com o mesmo objetivo: acertar a carta dos outros. Cada ferramenta que você acertar, ganha um ponto. No final, ganha quem tiver mais pontos.

Atividade 5

Observe os perfis abaixo e leia as descrições. Em seguida, indique se o perfil é pessoal, temático ou comercial.

Atividade 6

a. No laboratório de informática, acesse cada um dos perfis que vimos na Atividade 5 e responda:

- As descrições estão adequadas para os respectivos perfis? Por quê?

- Depois de ver as postagens, você mudaria a classificação que deu para algum perfil, na Atividade 5? Se sim, para qual ou quais?

b. Nas descrições, é possível perceber que os autores utilizam várias formas de linguagem, e não apenas o português escrito. Utilizam, por exemplo, emojis e links. Pensando nisso, responda:

- Qual é a função desses elementos em cada uma das descrições?

- Na sua opinião, por que o primeiro perfil não utiliza emojis?

c. Vimos que as descrições são utilizadas para apresentar, em poucas palavras, um perfil para o visitante, para que seja possível conhecer um pouco sobre os tipos de publicações que serão postadas.

- Depois de observar o feed dos perfis acima, o que você acha que poderia ser mudado nas descrições? Sinta-se livre para usar emojis, citações, links ou pequenas frases.

Atividade 7

Agora é a sua vez!

Pensando no que foi discutido até aqui e nas suas ideias para o Instagram do Cepre, vamos construir, coletivamente, uma descrição para o perfil. Essa descrição será uma breve apresentação do Cepre. Lembre-se de contextualizar o usuário, fazendo com que ele/ela queira saber mais sobre o projeto, visitando as publicações.

- Escreva suas primeiras ideias no celular ou em um papel.

- Utilizando Libras e outros recursos que desejar, discuta com os colegas sobre o que vocês escreveram e juntem as melhores ideias em uma só para criarmos a descrição.

Inicialmente, chamamos a atenção para a estruturação desse conjunto de atividades (1 a 7). Longe de partirem de “um determinado conjunto de formas da língua, ou uma situação comunicativa, na superfície do aqui/agora, como seria típico, respectivamente, de uma abordagem gramatical e comunicativa” ou de enfatizarem simplesmente “o gênero textual em si, concebido, em uma certa vertente, como “famílias de textos” passíveis de serem “reconhecidas por suas similaridades” (Bizon & Diniz, 2019Bizon, A. C. C., & Diniz, L. R. A. (2019). Uma proposta poscolonial para a produção de materiais didáticos de português como língua adicional. Línguas e Instrumentos Linguísticos, (43), 155-191. https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.8658345
https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.86583...
, p. 180), fica nítida a preocupação em operacionalizar um diálogo com o aluno.

Nesse diálogo, as atividades não se apresentam de maneira estanque ou totalmente independentes, constituindo-se por meio de enunciados narrativos que vão criando a história de produzir uma conta de Instagram para o Cepre: objetivo final da oficina e do material didático.

Nessa dinâmica, o que foi conhecido e produzido na atividade anterior é, de alguma forma, retomado nas atividades seguintes. Vê-se, por exemplo, que as Atividades 2, 3 e 4, ao tematizarem o (re)conhecimento da linguagem e das ferramentas do Instagram, visam preparar os alunos para a realização de outras etapas incluídas na “criação de uma conta de Instagram para o Cepre”. Vale destacar, além disso, que a sistematização de aspectos linguístico-gramaticais surge de textos presentes em atividades com o objetivo de subsidiar a realização de outras atividades voltadas ao uso da língua, o que implica explorar condições concretas de interação, sempre vinculadas ao contexto social mais amplo. A Atividade 1, por exemplo, que introduz a temática do material, apresenta o Instagram convidando o estudante a pensar nos efeitos de seu uso: “a. Você acha que a plataforma do Instagram influencia a vida das pessoas? b. Você se sente influenciado pelo Instagram? Se sim, explique como. c. Qual a importância de criarmos uma página de Instagram para o CEPRE?”

No que diz respeito à Atividade 4, é relevante comentar a opção por um jogo. Assim como acontece em exercícios presentes nas atividades anteriormente descritas, o recurso visual (cartas) é novamente explorado. Parece-nos que o jogo - um procedimento metodológico frequente no ensino de línguas adicionais -, possibilita uma dinâmica com potencial para tornar mais concreta a experiência com as informações novas a serem aprendidas. Ressaltamos que, em se tratando do aluno surdo, tais procedimentos podem ser ainda mais significativos, dado que as materialidades que emergem de diferentes semioses, sem dúvida, podem funcionar como importantes andaimes (Vygotsky, 2005Vygotsky, L. S. (2005). Pensamento e linguagem. Martins Fontes.) para a aprendizagem.

As Atividades 5 e 6, estando estreitamente conectadas, continuam se estruturando por meio da exploração de materialidades semióticas (fotografias, símbolos, números, desenhos, cores, formatos) presentes no Instagram, bem como por meio das relações que podem ser estabelecidas a partir da plataforma. Na Atividade 5, temos um exercício de leitura com pouco texto, em que o estudante, acionando conhecimentos trabalhados anteriormente, deve classificar perfis do Instagram. A Atividade 6, por seu turno, traz uma série de chamados à reflexão, que pressupõem novamente a observação de, e a interação com, materialidades dessas linguagens (exercícios b e c), mas também desafiam o estudante a ampliar a prática de leitura (exercício a).

Vê-se, então, da atividade 4 para a 7, um movimento que vai de práticas com a língua portuguesa escrita bastante apoiadas em multissemioses, com pouco texto e atividades construídas em parceria (como o jogo), para chegar em atividades que exigem maior autonomia do estudante. Um aparato fundamental para que o estudante possa ir se apropriando dos recursos comunicativos necessários para a realização das diferentes atividades que vão se seguindo. Vale ressaltar como as atividades pressupõem a agência dos estudantes, os quais devem analisar o conteúdo dos perfis lidos e se posicionarem sobre eles. Um posicionamento que os ajudará a estruturar, mais adiante, o perfil do Instagram para o Cepre, bem como as escolhas sobre o conteúdo que produzirão para ele.

O primeiro conteúdo para o perfil, como propõe a Atividade 7, é a descrição da conta do Cepre no Instagram: “Pensando no que foi discutido até aqui e nas suas ideias para o Instagram do Cepre, vamos construir, coletivamente, uma descrição para o perfil.” Na perspectiva de construção do conhecimento enunciada, as licenciandas-autoras vislumbram o trabalho com a escrita como uma situação comunicativa que “não deve se diferenciar de outras situações da vida social, por envolver uma atividade coletiva, com vários participantes que têm diferentes saberes e os mobilizam (em geral cooperativamente) segundo interesses, intenções e objetivos individuais e metas comuns” (Kleiman, 2007Kleiman, A. B. (2007). Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo, 32(53), 1-25. https://doi.org/10.17058/signo.v32i53.242
https://doi.org/10.17058/signo.v32i53.24...
, p. 5). Vale salientar que, com esse enquadre, as manifestações dos estudantes surdos em relação à ortografia ou à sintaxe do português escrito e outros fenômenos linguísticos, oriundos dessas atividades, poderão ser acolhidos e tratados como construções coletivas envolvendo processos de (re)significações, colaboração, cooperação, trocas e reflexões mediadas pela linguagem. E os “desvios”, por sua vez, podem ser vistos como processos comuns de aprendizagem de segunda língua, proporcionando aos aprendizes oportunidades de estabelecer relações interlinguísticas e interculturais positivas. É preciso sempre ter em mente, conforme discutem García e Leiva (2014García, O., & Leiva, C. (2014). Theorizing and enacting translanguaging for social justice. In A. Blackledge & A. Creese (Eds.), Heteroglossia as practice and pedagogy (pp. 199-216). Springer.), que a hibridização é, sempre, um modo de viver em meio bilíngue, e que os bilíngues não têm competência linguística em duas línguas separadas, como esperam os leigos. Pelo contrário, selecionam seus recursos a partir de um repertório linguístico único que lhes é próprio, ajustando-se às situações comunicativas em seus mundos complexos e dinâmicos.

Passemos, agora, à Atividade 8, que objetiva preparar os estudantes para a produção dos primeiros textos a serem postados na conta do Instagram do Cepre (os grifos nas atividades são nossos).

Atividade 8

Vamos elaborar as primeiras postagens de nossa página?

Leia a descrição abaixo, retirada do site da Faculdade Ciências Médicas da Unicamp e faça o que se pede.

O Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Dr. Gabriel O. S. Porto (Cepre) iniciou as suas atividades de atendimento às pessoas com deficiência visual e auditiva em 1973. Ao longo dos anos ocorreu a ampliação das atividades também para o ensino e pesquisa, passando a contar com uma equipe multiprofissional, o que permitiu intensificar a oferta de cursos de formação na área da deficiência visual e surdez, em nível de extensão e especialização.

Na última década passou a atuar também na formação de alunos de graduação em fonoaudiologia e, mais recentemente ainda, na formação de alunos de pós-graduação e especialização. Com isso, ampliou-se a gama de atuação com uma visão interdisciplinar e integrada dos processos de desenvolvimento humano e suas alterações, no que se refere às deficiências, à comunicação humana, à linguagem e à reabilitação.

a. Você observou que a maioria dos verbos do texto está no passado? Encontre no texto o passado dos seguintes verbos: iniciar, ocorrer, permitir, passar, ampliar.

b. Você entendeu o significado de todas essas palavras? Para termos certeza, vamos escrever frases usando cada uma delas.

c. Marque a alternativa correta: Por que, no texto, a maioria dos verbos está no tempo passado?

( ) Porque é um texto que fala sobre o que o Cepre ainda não fez.

( ) Porque é um texto que fala sobre a história do Cepre durante um período de tempo.

d. Retire do texto expressões que utilizamos para designar “um período de tempo”. Em seguida, escreva frases utilizando essas expressões e compartilhe com seu(sua) professor(a) e colegas.

e. Agora, na lousa, vamos escrever a conjugação de cada um desses verbos no passado e no presente também. Em todas as pessoas!

Ex: eu inicio, você/ele/ela inicia, nós iniciamos...

f. Vamos ler mais uma vez o texto. Enquanto lemos, selecione as informações que você considera mais importantes para descrever o Cepre.

g. O que você acha que poderia ser mudado nessa descrição? Que informações estão faltando? Quais não precisam estar no Instagram do Cepre?

h. Você acha adequado o uso do termo “deficiente auditivo” para se referir a pessoas surdas no texto? Por quê? Discuta com a sua turma.

Significativo apontar como as licenciandas-autoras operacionalizam um dos preceitos apontados por Bizon e Diniz (2019Bizon, A. C. C., & Diniz, L. R. A. (2019). Uma proposta poscolonial para a produção de materiais didáticos de português como língua adicional. Línguas e Instrumentos Linguísticos, (43), 155-191. https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.8658345
https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.86583...
) para a elaboração de materiais em uma perspectiva poscolonial, a saber, a ordem metodológica bakhtiniana para o estudo da língua. Note-se que a sistematização de tempos verbais (no caso, pretérito e presente) não aparece como ponto de partida de uma seção ou atividade do material, mas procura ser explorada na leitura do texto de apresentação do Cepre, de modo a levar o estudante a metarrefletir sobre a função dessas estruturas na produção de sentidos. Uma metarreflexão que também aborda o próprio processo da leitura e da (re)escrita, voltando-se para outro preceito-base da elaboração de materiais didáticos poscoloniais: “o investimento pedagógico na materialidade linguística, que leve os estudantes a reconhecerem o funcionamento sempre ideológico da(s) língua(s) aprendida(s)” (Bizon & Diniz, 2019Bizon, A. C. C., & Diniz, L. R. A. (2019). Uma proposta poscolonial para a produção de materiais didáticos de português como língua adicional. Línguas e Instrumentos Linguísticos, (43), 155-191. https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.8658345
https://doi.org/10.20396/lil.v0i43.86583...
, p. 181). Isso se dá, por exemplo, no item h, em que se propõe a problematização do termo “deficiente auditivo”, utilizado no texto para fazer referência a indivíduos surdos.

Julgamos importante reconhecer, na produção do material didático em foco, o esforço de operacionalização de um ensino que, privilegiando relações discursivas, procura criar oportunidades para que os estudantes compreendam e se atentem para aspectos específicos da materialidade linguística, descrevendo-os, interpretando-os e posicionando-se diante dos efeitos de sentido observados e das relações de poder que se estruturam na e pela linguagem. Uma dinâmica que vai ao encontro de um letramento crítico, em que a ampliação de recursos de linguagem deve servir não apenas à inserção funcional do indivíduo na sociedade, mas principalmente a sua emancipação social.

Por fim, consideremos a Atividade 9, que solicita a elaboração de textos para as primeiras postagens na conta a ser criada para o Cepre no Instagram (os grifos nas atividades são nossos).

Atividade 9

Primeira postagem: Apresentação do Cepre

Para começarmos a elaboração do perfil, vamos fazer uma apresentação mais detalhada do Cepre. Junto com a sua turma e com seu(sua) professora, vamos escrever a publicação em português.

Atenção para algumas orientações:

a) Planejem o conteúdo do texto, considerando: A apresentação terá um histórico do Cepre? Se sim, vamos reescrever o histórico lido na Atividade 8?

b) Algumas perguntas norteadoras podem ajudar na elaboração do texto: O que é o Cepre? Onde são as aulas? Quem é a professora? Que público frequenta as aulas? O que você aprende no Cepre?

c) Você e seus colegas podem usar emojis na publicação também, se quiserem!

d) Depois de escreverem o texto, escolham uma ou várias fotos para compor a primeira postagem. Podem ser fotos dos espaços físicos do Cepre, de toda turma, do logo do projeto... Vocês decidem!

Segunda postagem: Apresentação dos alunos

Agora é a sua vez de se apresentar na página do Cepre! Esse post será feito em formato de vídeo. Você deve sinalizar em Libras e depois legendar seu vídeo em português.

Assista ao vídeo abaixo como exemplo de apresentação nas redes sociais, no caso, na plataforma do Tiktok: https://drive.google.com/drive/folders/13B9vxMbX3wCJPfVeR9C4cPrHMJuW32V0?usp=sharing

Algumas dicas para você fazer seu vídeo: a) Apresente-se, diga seu nome e quantos anos você tem; b) Conte sobre seu cotidiano, gostos, atividades de lazer, sonhos; c) Fale sobre a sua língua, a Libras; d) Fale sobre sua presença no Cepre e sobre o que mais gosta no Centro.

Obs: Essas dicas são apenas sugestões para te auxiliar na produção do seu conteúdo, mas você pode acrescentar outras informações que considerar adequadas.

Em relação à produção para a primeira postagem - um texto de apresentação do Cepre -, é relevante apontar como os estudantes são convocados a resgatar conhecimentos e reflexões produzidos na Atividade 8, exigindo-se deles a tomada de decisões, como sugerido, por exemplo, no item a) das orientações: “a) Planejem o conteúdo do texto, considerando: A apresentação terá um histórico do Cepre? Se sim, vamos reescrever o histórico lido na Atividade 8?)”. Uma estratégia, frisamos, que favorece a posição de autoria dos alunos, aproximando-os de práticas de escrita significativas.

Essa posição de autoria, a nosso ver, amplifica-se na segunda produção escrita, a qual oportuniza que o próprio surdo se narre. Se bem orientada, a produção dessa atividade pode abrir a possibilidade de o estudante produzir textos que contribuam tanto para destotalizar representações estereotipadas e precarizadoras sobre a pessoa surda, quanto para visibilizá-la em suas potencialidades. Karnopp e Klein (2016Karnopp, L. B., & Klein, M. (2016). Narrativas e diferenças em língua brasileira de sinais. Em Aberto, 29(95), 95-108. https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.29i95.2737
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, p. 96) explicam que, nas narrativas criadas pelas pessoas surdas, observa-se a tendência a valorizar a diferença surda, seja pelo uso da língua de sinais que marca a experiência visual do surdo e o pertencimento a uma comunidade minoritária, seja por pontuar essa experiência linguística bilíngue como algo pleno e não como um modo parcial de viver no mundo. Ainda nessa direção, as autoras complementam que os surdos narram histórias que dão sentido ao seu mundo social, mas também trazem histórias que os ajudam a dar sentido ao mundo que os cerca, “evidenciando traduções de si e dos outros”.

Assim, considerando-se que o material didático prevê a criação de uma conta no Instagram para o Cepre e a postagem dos textos produzidos pelos alunos, essa atividade pode contribuir também para o que Maher (2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.) define como educação do entorno (Maher, 2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.) para a interculturalidade, no caso, em relação à comunidade surda. Ou seja, ao circularem efetivamente por meio de uma conta no Instagram, os vídeos de auto apresentação produzidos em Libras com legendas em português pelos estudantes podem ajudar a desconstruir narrativas e representações sedimentadas sobre os surdos, sua(s) língua(s), seu(s) conhecimentos, suas possibilidades de ser no mundo.

Fechamos esta análise mencionando que o material conta com mais atividades, as quais exploram a produção de outros textos, em diferentes gêneros, de modo a alimentar outras postagens na conta do Cepre. Contudo, por limitações de espaço, deixaremos essa reflexão para outras discussões.

7. Considerações finais

Iniciamos nossas considerações finais reiterando que, apesar do sucesso de alguns projetos situados em contextos de educação de surdos que contam com professores bilíngues e professores surdos para o ensino das línguas - o que é um indicativo do reconhecimento do surdo como sujeito bilíngue -, constata-se, ainda, uma enorme lacuna nas escolas inclusivas. Nestas, o estudante surdo ocupa um lugar periférico, e seus professores enfrentam sérias dificuldades para conduzir um processo de ensino voltado para a segunda língua, seja por não terem formação adequada, seja por não contarem com estrutura necessária, como o imprescindível auxílio de intérpretes e monitores/professores surdos. Nessas condições, costuma haver, no “espaço inclusivo”, o que Góes e Tartuci (2015Góes, M.C. R., & Tartuci, D. (2015). Alunos surdos e experiências de letramento. In A. C. Lodi, A. D. B. Melo & E. Fernandes (Orgs), Letramento, bilinguismo e educação de surdos (pp. 289-301). Mediação.) denominaram de “simulação da aprendizagem”, ou seja, o uso da cópia e da memorização, rituais a que o aprendiz surdo se rende como forma de sobrevivência “motivada pela ausência de um território linguístico compartilhado no contexto escolar” (Fernandes, 2006Fernandes, S. C. (2006). Práticas de letramentos na educação bilíngue para surdos. Secretaria de Estado da Educação do Paraná., p. 3).

Neste ponto, recorremos a um trecho do relatório de estágio da licencianda G.:

G: Elaboramos um material didático que tinha por objetivo fazer com que os estudantes se colocassem no lugar de produtores de texto em língua portuguesa, usando-a como ferramenta comunicativa para se colocarem no mundo como brasileiros bilíngues que são. Assim, planejamos seis aulas com duração de uma hora e meia, que consistiam na criação de um perfil do Instagram para o Cepre, usando esse lugar de produção e compartilhamento de informações como um espaço não apenas para divulgar o importante trabalho deste Centro, mas também como um lugar de construção de identidade, que pudesse ser um passo para que os aprendizes se vissem como potentes produtores de texto em português e em Libras (com propostas de produção em ambas as línguas). Mais que isso, a ideia seria criar um lugar de empoderamento duradouro, que fosse fomentado, em longo prazo, pelas turmas que passassem pelo curso de PL2/Surdos do Cepre, servindo também como um espaço de registro do histórico da proposta ímpar de ensino-aprendizagem do Centro (grifo nosso).

As reflexões produzidas por G., assim como reflexões presentes em outros depoimentos trazidos à luz neste artigo, apontam para a necessidade de se (re)pensar a educação bilíngue de surdos a partir de projetos mais sensíveis à pluralidade cultural, social e linguística do mundo atual, considerando-se o potencial heteroglóssico das práticas sociais de linguagem. Reiteram também que para se alcançar êxito na educação de minorias, é necessário educar o entorno (Maher, 2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.) para compreender e respeitar as diferenças linguísticas e culturais desses grupos.

Os excertos de relatórios das alunas igualmente indicaram ser possível iniciar essa transformação por meio de disciplinas de Estágio Supervisionado como a apresentada neste artigo, em que se pode iniciar ou fortalecer as bases para a compreensão da complexidade dos contextos bilíngues de minorias como espaços translíngues (Wei, 2011Wei, L. (2011). Moment analysis and translanguaging space: discursive construction of identities by multilingual Chinese youth in Britain. Journal of Pragmatics, 43(5), 1222-1235. https://doi.org/10.1016/j.pragma.2010.07.035
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) centrados não na diversidade, mas na diferença. Uma postura crucial para a desnaturalização das velhas noções de língua baseadas em essencialismos e homogeneidades (Cesar & Cavalcanti, 2007César, A. L., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. C. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Orgs), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66). Mercado das Letras.) - reforçadas pela sociedade como um todo, mas fortalecidas na escola -, dando-se lugar a um professor que desvela suas inquietações, suas angústias e suas estratégias ao mostrarem possibilidades de lidar com a interculturalidade na sala de aula. Essa não costuma ser a realidade nos diferentes cursos de formação em pedagogia, como também não o é em grande parte das licenciaturas, em que os contextos de minorias continuam não sendo contemplados.

Tal disposição das licenciandas, em parte, deriva das leituras e discussões realizadas na disciplina, apontando que a educação intercultural precisa promover os direitos do surdo, operacionalizando, de fato, uma educação de qualidade, em que haja o reconhecimento e a valorização das diferentes línguas com as quais a pessoa surda se constrói como sujeito, mesmo que a convivência entre elas não seja fácil no cotidiano da sala de aula.

Ao fazer isso, as licenciandas desnaturalizam velhos preceitos e propõem novas formas de pensar com ética e responsabilidade (Pennycook, 2006Pennycook, A. (2006). Uma linguística aplicada transgressiva. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Por uma linguística aplicada indisciplinar (pp. 67-84). Parábola.) o ensino de português como segunda língua para surdos e visualizam outras maneiras por meio das quais os surdos podem aprender. Vê-se que, em vez de os posicionar como outsiders (Silva, 2005Silva, I. R. (2005). As representações do surdo na escola e na família: entre a (in)visibilização da diferença e da “deficiência” [tese de doutorado]. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Favorito, 2006Favorito, W. (2006). “O difícil são as palavras”: representações de/sobre estabelecidos e outsiders na escolarização de jovens e adultos surdos [tese de doutorado]. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Oliveira-Silva & Figueiredo, 2019Oliveira-Silva, C. M., & Figueiredo, J. Q. (2019). A colaboração na aprendizagem de inglês instrumental: um estudo com alunos surdos do curso de Letras/Libras da UFG. In D. M. Jesus & L. S. Furlaneto (Orgs.), Educação inclusiva: ensino e formação de professores de língua (pp. 149-174). Pontes.) - o que tradicionalmente é feito pela/na escola -, as licenciandas apostam na desnaturalização dessa imagem criada historicamente em relação ao surdo e à surdez, frutos das grandes narrativas, buscando outros significados a partir de uma perspectiva plurilíngue e transcultural (Cavalcanti, 2013Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação de professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita-Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani (pp. 211-226). Parábola.; Maher, 2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.). Recusando-se a assumir as fronteiras excludentes em que o outro surdo é sempre classificado a partir de um ponto de vista binário, as professoras em formação se amparam em bases pluralistas, democratizadoras e humanizadoras (Rocha & Maciel, 2015Rocha, C. H., & Maciel, R. F. (2015). Ensino de língua estrangeira como prática translíngue: articulações com teorias bakhtinianas. DELTA, 31(2), 411-445. https://doi.org/10.1590/0102-4450437081883001191
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), potencializando o reconhecimento de identidades e culturas de todos os envolvidos no processo educacional e de seus repertórios linguístico-culturais.

Sustentamos que as reflexões produzidas pelas licenciandas, e colocadas em tela neste artigo, são parte de um agenciamento potencialmente capaz de fazer frente à “simulação de aprendizagem” (Góes & Tartuci, 2015Góes, M.C. R., & Tartuci, D. (2015). Alunos surdos e experiências de letramento. In A. C. Lodi, A. D. B. Melo & E. Fernandes (Orgs), Letramento, bilinguismo e educação de surdos (pp. 289-301). Mediação.). Oferecendo alternativas, este agenciamento pode, a um só tempo, contribuir para dilatar o presente dos estudantes surdos, tirando-os do espaço de ausência que a sociedade e a própria escola lhes designam, e contrair o futuro, para que não tenham mais de esperar para se verem como “potentes produtores de texto em Português e em Libras”, podendo, enfim, dizer “Eu também posso escrever!”.

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    Antes da Constituição de 1988, não era facultado aos surdos o direito de estarem na rede regular de ensino, mas estes tinham matrícula garantida nas escolas especiais, onde a realidade era mais amena por transformar um ano letivo escolar em dois. Isso implicava ter o conteúdo escolar ensinado mais lentamente, como forma de garantir que esse grupo aprendesse com os mesmos materiais e estratégias utilizados no ensino comum, ou seja, como se fossem alunos ouvintes. Nesse período, a partir de um discurso ideológico dominante pautado no oralismo, o surdo era visto apenas em sua dimensão clínica e terapêutica, havendo uma cristalização do aspecto patológico, em detrimento do reconhecimento político da surdez como diferença. Imperava a crença na falta da capacidade do surdo para a aprendizagem, entendendo-se a linguagem apenas como o desenvolvimento da fala.
  • 4
    No âmbito da visão clínico-terapêutica, a surdez é representada como uma patologia que precisa ser tratada e corrigida com terapias de fala. A educação destinada aos indivíduos surdos, a partir dessa perspectiva, baseia-se primordialmente no treino da linguagem oral, na tentativa de se aproveitar os resíduos auditivos por meio do uso de aparelhos de amplificação sonora e/ou implantes cocleares, com o intuito de ensinar o surdo a falar e, dessa forma, igualar-se aos ouvintes.
  • 5
    A Libras é uma língua visual-espacial realizada no corpo do sinalizante, por meio das mãos, da face e do tronco como articuladores para a composição dos sinais e das proposições. A gramática dessa língua se constitui a partir do corpo e no espaço de sinalização. Ou seja, por serem línguas espaços-visuais, sua realização não se estabelece por meio dos canais oral-auditivo, como nas línguas orais. A diferença na modalidade vai determinar, também, mecanismos linguísticos distintos daqueles das línguas orais. O espaço é um aspecto importante na Libras. Tem uma função altamente complexa na gramática dessa língua, compondo a fonologia, a morfologia, a sintaxe, a semântica e a pragmática, e estabelecendo os sentidos do discurso na Libras (Quadros & Karnopp, 2004Quadros, R. M., & Karnopp, L. B. (2004). Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Artmed.).
  • 6
    Em sua discussão, Maher (2007Maher, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 255-270). Mercado de Letras.) se refere especialmente - mas não apenas - aos direitos linguísticos de comunidades indígenas.
  • 7
    As 90 horas de atividades podem incluir observação e planejamento de aulas, produção de materiais didáticos, e docência, sob orientação do professor responsável pela disciplina de Estágio e supervisão do professor responsável pela sala de aula observada.
  • 8
  • 9
    O Programa Escolaridade e Surdez do Cepre recebe jovens surdos do Ensino Médio que frequentam escolas inclusivas de Campinas e região para um trabalho de/com linguagem. A proposta é ressignificar a linguagem escrita por meio de práticas de linguagem reflexivas, valorizando a língua do aluno. O Programa tem professores ouvintes e surdos proficientes em Libras. Consta de seus objetivos o oferecimento de subsídios para os estudantes surdos lidarem com a língua portuguesa escrita, por meio de atividades que, enfatizando a pluralidade cultural e a multiplicidade semiótica dos textos, contribuam para que façam sentido de seus mundos.
  • 10
    No final do primeiro semestre de 2022, foi iniciada a aplicação do material didático pelos licenciandos da disciplina de Estágio Supervisionado II em Português como Segunda Língua/Língua Estrangeira. A receptividade dos estudantes surdos ao material foi positiva, havendo alto engajamento dos estudantes nas atividades apresentadas.
  • 11
    García e Cole (2016García, O., & Cole, D. (2016). Lo que los sordos le enseñaron a los oyentes: deconstruyendo la lengua, el bilingüismo y la educación bilingüe. In Anais do Congresso Internacional, Seminário de Educação Bilíngue para Surdos (v. 1, pp. 34-57). Universidade do Estado da Bahia., p. 48) enfatizam a maneira diferenciada de os bilíngues, de forma geral, utilizarem traços das línguas com as quais convivem como “uso completo do repertório linguístico do bilíngue”. As autoras entendem que, a partir de uma perspectiva social, tal repertório, composto por mudanças de códigos ou misturas de línguas, não pode ser estigmatizado, devendo ser tratado como um uso “fluido” da língua (que nomeiam como translinguagem).
  • 12
    Salientamos que nenhum material didático per se é capaz de garantir a operacionalização dos preceitos teóricos que o embasam. Tal operacionalização vai sempre depender dos sentidos atribuídos pelo professor na utilização desse material. E isso, em última análise, vai depender igualmente do compromisso desse professor com o arcabouço teórico em questão.
  • 13
    Na disciplina LA 910 - Introdução aos Estudos do Português como Segunda Língua e Língua Estrangeira, os estudantes têm um panorama de todos os contextos de PL2/LE, na LA 911 - A Sala de Aula de Português como Segunda Língua e Língua Estrangeira, refletem sobre pressupostos teóricos e metodológicos que amparam esses contextos de ensino, e, na LA 912 - Produção e Avaliação de Materiais para o Ensino de Português como L2/LE, analisam e produzem materiais didáticos para alguns desses contextos. Para maiores detalhes sobre a Licenciatura em PL2/LE do IEL/Unicamp, ver Scaramucci e Bizon (2020Scaramucci, M. V. R., & Bizon, A. C. C. (2020). O PLE na Unicamp: da implantação da área à formação de professores. In M. V. R. Scaramucci & A. C. C. Bizon (Orgs.), Formação inicial e continuada de professores de português língua estrangeira/segunda língua no Brasil (pp. 79-112). Letraria.) e Bizon e Scaramucci (2021Bizon, A. C. C., & Scaramucci, M. V. R. (2021). A área de PLE/L2 na Unicamp: pesquisa em diálogo com ensino e extensão. In: E. Lima (Org.), Linguística aplicada na Unicamp: travessias e perspectivas (pp. 89-115). Canal 6.). Ver também o site da Licenciatura: https://www2.iel.unicamp.br/lic_ple/
  • 14
    O projeto Ciências e Artes nas Férias (CAF) está ligado à Pró-reitoria de Pesquisa da Unicamp e existe desde o ano de 2000, sendo realizado nas férias escolares de janeiro, durante 4 semanas, atendendo estudantes da rede pública de Campinas inseridos no Ensino Médio. A cada ano, o projeto traz mais de 150 alunos da escola pública para os diversos Institutos da Unicamp. Durante um mês, eles acompanham o cotidiano de ensino e pesquisa da universidade, participando de atividades em oficinas coletivas que reúnem, em grupos, cerca de 30 alunos em torno de alguma atividade. Um exemplo é a Oficina do Sorvete, realizada no Instituto de Química, na qual os estudantes observam os processos químicos na preparação de sorvetes e depois degustam. O Cepre, em parceria com o IEL, oferece oficinas de trabalho com o desenvolvimento do português escrito. Vale sublinhar a importância da participação de estudantes surdos no CAF, que tem provocado a modificação da ‘paisagem linguística’ da universidade, aproximando sujeitos ouvintes de sujeitos surdos, e mostrando a esses ouvintes haver outros códigos para comunicação além do oral.
  • 15
    É preciso ter em mente que, ao interagir com o mundo a sua volta, o surdo lança mão não apenas das línguas nomeadas, o português e a Libras, mas de vários outros elementos de estruturação simbólica provenientes de seu meio social, como, por exemplo, gestos sociais, expressões faciais, movimentos do corpo, soletrações manuais, entre outros recursos, com o intuito de se inserir e produzir significações. Alguns autores denominam essa forma criativa de agenciar a linguagem como línguas de sinais caseiras (Gesser, 2006Gesser, A. (2006). “Um olho no professor surdo e outro na caneta”: ouvintes aprendendo a Língua Brasileira de Sinais [tese de doutorado]. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Silva, 2008Silva, I. R. (2008). Quando ele fica bravo, o português sai direitinho; fora disso a gente não entende nada: contexto multilíngue da surdez e o reconhecimento das línguas no seu entorno. Trabalhos em Linguística Aplicada, 47(2), 393-407. https://doi.org/10.1590/S0103-18132008000200008
    https://doi.org/10.1590/S0103-1813200800...
    ; Kumada, 2012Kumada, K. M. O. (2012). “No começo ele não tem língua nenhuma, ele não fala, ele não tem LIBRAS, né?”: representações sobre línguas de sinais caseiras [dissertação de mestrado]. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.). De acordo com Kusters, Spotti, Swanwick e Tapio (2017Kusters, A., Spotti, M., Swanwick, R., & Tapio, E. (2017). Beyond languages, beyond modalities: transforming the study of semiotic repertoires. International Journal of Multilingualism, 14(3), 219-232. https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1321651
    https://doi.org/10.1080/14790718.2017.13...
    ), tal fenômeno bem caracteriza o limite fluido entre as línguas que permeiam as interações de surdos, seja com ouvintes, seja com outros surdos, possibilitando o surgimento, nesses espaços, do uso simultâneo de diferentes modalidades (vocalizações ou oralização e sinalizações ao mesmo tempo). Por essa razão, segundo esses autores, é necessário que as práticas de linguagem nesses contextos sejam vistas como multilíngues e multimodais, deslocando o foco de análise das línguas stricto sensu para a construção conjunta de sentidos, como advogam autores comprometidos com o conceito de língua de forma ampliada (García, 2009García, O. (2009). Bilingual education in the 21st Century: a global perspective. Wiley-Blackwell.; Cavalcanti, 2011Cavalcanti, M. C. (2011). Bi/multilinguismo, escolarização e o (re)conhecimento de contextos minoritários, minoritarizados e invisibilizados. In M. C. C. Magalhães, S. S. Fidalgo & A. S. Shimoura (Orgs.), A formação no contexto escolar: uma perspectiva crítico-colaborativa (pp. 171-185). Mercado de Letras.; Canagarajah, 2013Canagarajah, S. (2013). Translingual practice: global Englishes and cosmopolitan relations. Routledge.).
  • 16
    Para garantir o anonimato das participantes de pesquisa, optamos por nomeá-las por meio de letras aleatórias.
  • 17
    Situado na cidade do Rio de Janeiro, “O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) é reconhecido, na estrutura do MEC, como centro de referência nacional na área da surdez, exercendo os papéis de subsidiar a formulação de políticas públicas e de apoiar a sua implementação pelas esferas subnacionais de Governo. Como instituto de educação, atende estudantes desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, além de apoiar a pesquisa de novas metodologias para serem aplicadas no ensino da pessoa surda e atender a comunidade e os alunos nas áreas de fonoaudiologia, psicologia e assistência social. O Instituto ainda ajuda a inserir o surdo no mercado de trabalho por meio de ensino profissionalizante e estágios”. Disponível em: https://www.gov.br/ines/pt-br/acesso-a-informacao-1/institucional/conheca-o-ines. Acesso em: 2 abril 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
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