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Educação Bilíngue para alunos surdos: notas sobre a construção da linguagem argumentativa no aprendizado de Ciências

Bilingual education for deaf students: notes on the construction of argumentative language in science learning

RESUMO

Este artigo apresenta a experiência de uma turma de alunos surdos participando de práticas educativas sobre Ciências que foram desenvolvidas por seus professores regentes e por integrantes da Banca da Ciência, um programa formativo de uma universidade pública. Era objetivo da experiência que as atividades proporcionassem aos alunos surdos a construção de uma linguagem argumentativa por meio de uma postura investigativa e colaborativa na apropriação de saberes científicos. O estudo baseou-se na teoria histórico-cultural, especificamente no que se refere à construção da linguagem e numa aproximação com a perspectiva do ensino por investigação. A partir disso, são apresentadas e discutidas práticas que favoreceram a definição de questões-problema pelos alunos surdos e a busca pelas respostas. Esse processo de busca por respostas contou com a mobilização e planejamento de experimentos por parte de discentes do curso de Pedagogia e integrantes da Banca da Ciência, os quais foram materializados pela atuação dos dois professores regentes da turma, tendo a Libras como a língua da mediação pedagógica. A experiência mostrou que a apropriação dos saberes científicos por meio de um trabalho com investigação colaborativa mobilizou uma participação mais ativa dos alunos surdos nas situações de debates no processo de construção do conhecimento e descoberta de respostas.

Palavras-chave:
linguagem; educação de surdos; educação bilíngue; ensino de Ciências

ABSTRACT

This report presents the experience of a deaf students group who participated in educational practices about Science, that were developed by their teachers and by members of Banca da Ciência, a training program at a public university. The objective of the experience was to provide deaf students the construction of an argumentative language through an investigative and collaborative posture in the appropriation of scientific knowledge. The study was based on the cultural-historical theory, specifically with regard to the construction of language and an approximation with the perspective of teaching by investigation. After that, practices that favored the definition of problem questions by deaf students and the search for answers are presented and discussed. This process of searching for answers counted on the mobilization and planning of experiments by students of the Pedagogy course and members of Banca da Ciência, which were materialized by the work of the two regent teachers of the class, with Libras (Brazilian Sign Language) as the language of pedagogical mediation. The experience showed that the appropriation of scientific knowledge through a work with collaborative investigation mobilized a more active participation of deaf students in situations of debate in the process of building knowledge and discovering answers.

Keywords:
language; deaf education; bilingual education; science teaching

1. Introdução

A inclusão social eleva a necessidade de o professor assumir uma postura crítico-reflexiva sobre seu fazer didático de modo a preconizar uma escuta às diferenças e, aqui, destacamos as “diferenças surdas” (Skliar, 2017Skliar, C. (2017). As diferenças e as pessoas surdas. Fórum. 36, pp. 15-22., 2019Skliar, C. (2019). A escuta das diferenças. Mediação.)4 4 A adjetivação diferenças surdas deriva do respeito e valorização a uma língua de natureza visual-espacial - a Libras no caso de surdos brasileiros e de suas formas particulares de apreenderem o mundo, compreensão essa que emerge na educação bilíngue; temos assim que tais diferenças são linguísticas e culturais. , rumo ao objetivo de uma educação que contemple a todos.

O professor deve ser levado a refletir sobre a educação de alunos surdos com uma atenção em relação ao que se pode fazer coletivamente. Trata-se, segundo Skliar (2017Skliar, C. (2017). As diferenças e as pessoas surdas. Fórum. 36, pp. 15-22., p. 6), do “desafio de enxergar o outro, de estar com ele, de ouvir sua língua, receber seus gestos, estar e talvez sentir juntos” (Skliar, 2017Skliar, C. (2017). As diferenças e as pessoas surdas. Fórum. 36, pp. 15-22., p. 16). Nesse movimento de construções coletivas, o conhecimento, o respeito e a valorização das diferenças que compõem o chão da escola devem marcar forte presença.

A educação de alunos surdos evidencia a necessidade da organização de propostas educativas bilíngues e que, especificamente no caso de alunos matriculados até a primeira etapa do ensino fundamental, caracterizam-se pelo uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como a língua favorecedora da mediação, sendo o educador, portanto, um profissional bilíngue (Brasil, 2005Brasil. (2005). Decreto n. 5.626, de 23 de dezembro de 2005. Presidência da República.).

Essa necessidade gera o contexto em que até a primeira etapa do ensino fundamental, a oferta da educação bilíngue para alunos surdos assume diferentes contornos no Brasil: escolas bilíngues para surdos (São Paulo, 2011São Paulo. (2011). Decreto nº 52.785, de 10 de novembro de 2011. Cria as Escolas Municipais de Educação Bilíngue para Surdos - EMEBS na Rede Municipal de Ensino. Diário Oficial da Cidade de São Paulo.), salas bilíngues para surdos (Lacerda, et al., 2016Lacerda, C. B. F. de. et al. (2016). Educação inclusiva bilíngue para alunos surdos: pesquisa e ação em uma rede pública. In C. B. F. Lacerda, L. F. Santos, & V. R. O. Martins (Org.). Escola e diferença: caminhos para a educação bilíngue de surdos (pp. 13-28). Edufscar.; Guarulhos, 2019Guarulhos. (2019). Lei nº 7.795, de 20 de Dezembro de 2019. Dispõe sobre criação de Classes de Educação Bilíngue para Surdos na Rede Municipal de Ensino.) e salas bilíngues para surdos e ouvintes mediadas por professores fluentes na Libras (Merselian & Vitaliano, 2011Merselian, K. T., & Vitaliano, C. R. (2011). Análise das condições organizadas em uma escola para promover a inclusão de alunos surdos. Revista Lusófona de Educação, 19, pp. 85-101.) ou professores não fluentes, mas que contam com a mediação linguística de intérpretes (Soares, 2015Soares, F M. R. O. (2015). Ser surdo em escola regular: um estudo sobre a construção da identidade. In A. C. B. Lodi, A. D. B. Mélo, & E. Fernandes (Orgs.). Letramento, bilinguismo e educação de surdos (pp. 105-112). Mediação.).

Dentre essas propostas, destacamos contextos que tenham a Libras como a língua da mediação direta do professor com seus alunos em turmas formadas por estudantes surdos e das interações diretas com seus pares coetâneos. A criança surda imersa nesses espaços encontra na Libras uma língua para se comunicar, internalizar e produzir significados, lembrar-se de acontecimentos, imaginar, criar e posicionar-se culturalmente, de modo a ir se constituindo como “ser surdo” (Lopes & Veiga-Neto, 2010Lopes, M. C., & Veiga-Neto, A. (2010). Marcadores culturais surdos. In L. M. da C. Vieira-Machado, & M. C. Lopes (Org.). Educação de surdos: políticas, língua de sinais, comunidade e cultura surda (pp. 116-137). Edunisc., p. 116). De acordo com Humphries (2013Humphries, T. (2013). Schooling in American Sign Language: A Paradigm Shift from a Deficit Model to a Bilingual Model in Deaf Education. Berkeley Review of Education, vol. 4, n. 1, pp. 7-33.), alcançar interações efetivas e frequentes e de aprendizado e desenvolvimento social na língua de sinais pode representar o engajamento em atividades coletivas que promovem a construção articulada de comunidade linguística e de conhecimento.

Ademais, conforme o artigo n. 22 do Decreto Federal n. 5.626, de 23 de Dezembro de 2005, os alunos surdos requerem a garantia da comunicação em todos os níveis, etapas e modalidades da educação, tendo a Libras como língua de acesso ao currículo, o que, até os anos iniciais do ensino fundamental, deve se dar em classes e/ou escolas bilíngues, contando com a atuação de professores bilíngues, e a partir das séries finais do ensino fundamental pelo serviço de interpretação no seguinte par de línguas: Libras e Língua Portuguesa (Brasil, 2005Brasil. (2005). Decreto n. 5.626, de 23 de dezembro de 2005. Presidência da República., grifo nosso).

Ao professor bilíngue, cabe a responsabilidade pelo ensino da Libras, da escrita da Língua Portuguesa e de todas as disciplinas do currículo escolar. Já no que diz respeito ao ensino da Libras, o educador surdo tem preferência nesta instrução.

É nesse contexto que este artigo analisa a experiência de uma turma formada por alunos surdos, de uma escola polo-bilíngue de um município da região metropolitana de São Paulo que acolheu atividades propostas pela Banca da Ciência, uma iniciativa centrada na divulgação científica - o ensino de ciências e que envolve professores-pesquisadores de universidades públicas.

A construção de uma postura crítica-reflexiva, de uma linguagem argumentativa, era centralidade na experiência da parte de todos os envolvidos - professores, aprendizes da docência e alunos surdos. Os aprendizes da docência e integrantes da Banca da Ciência foram provocados em relação à proposição de experimentos que os levassem a perceber particularidades da mediação com crianças surdas. Os professores bilíngues que atuavam na turma que acolheu a Banca encontraram oportunidade para refletir, nessa experiência, sobre como favorecer mediações pedagógicas que priorizassem a construção de uma postura investigativa nos alunos, dando indícios da construção do início de uma “linguagem argumentativa” no ensino de ciências (Carvalho, 2013Carvalho, A. M. P. de. (2013). O ensino de Ciências e a proposição de sequências de ensino investigativas. In A. M. P. Carvalho et al. Ensino de ciências por investigação: condições para implementação em sala de aula (pp. 1-20). Cengage Learning.; Sasseron, 2015Sasseron, L. H. (2015). Alfabetização científica, ensino por investigação e argumentação: relações entre ciências da natureza e escola. Revista Ensaio, Belo Horizonte, 17, pp. 49-67.). Os alunos surdos participavam muito ativamente de todo o processo - da elaboração de questões à problematização decorrente dos experimentos, nem sempre exitosos aos seus olhos.

Este estudo objetiva investigar se as proposições didáticas da Banca da Ciência caminharam na perspectiva da construção de saberes aliadas ao desenvolvimento de uma postura investigativa e linguagem argumentativa entre os alunos surdos. Intenciona-se responder ao seguinte questionamento: tais ações educativas contribuíram para instar os alunos surdos a participarem de situações de indagação de saberes, trocas de saberes e construção de conhecimentos na área de Ciências?

2. Construção de linguagem e postura investigativa: aproximações a partir da teoria histórico-cultural

“Educação como experiência de assombro, encantamento, descoberta, inquietude e indagação” sobre os conhecimentos de mundo, definição de Ribeiro e Skliar (2020Ribeiro, T., & Skliar, C. (2020). Escolas, pandemia e conversação: notas sobre uma educação inútil. Série-Estudos: Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB, 25: 55, pp. 13-30., p. 20). A educação concebida como experiência é um dos embasamentos das ações pedagógicas, aqui, analisadas e que, em sua concepção, objetivaram instar os alunos surdos na construção de uma linguagem argumentativa e postura investigativa no estudo das Ciências.

Uma das questões de maior atenção no planejamento didático do professor que atua com alunos surdos em uma perspectiva bilíngue é o favorecimento de práticas que aliem a construção da linguagem por essas crianças, de saberes de sua comunidade cultural e da apropriação de saberes científicos no acesso ao currículo escolar.

Conforme a teoria histórico-cultural, o uso social dos sistemas simbólicos, dentre os quais a Libras, como favorecedora da linguagem, exerce papel central no desenvolvimento do sujeito surdo, é o que permitirá a representação da realidade e o domínio do aspecto cultural. De acordo com Vigotski (2008Vygotsky, L. S. (2008). Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. Martins Fontes.), a linguagem assume uma função comunicativa e permite que o sujeito planeje a solução de um problema antes de executar uma ação. A fala é tão importante quanto a ação para atingir um objetivo; ambas fazem parte de uma mesma função psicológica complexa, dirigida para a solução do problema.

Tendo em vista a função da fala no desenvolvimento dos sujeitos, relevam-se estratégias pedagógicas no âmbito da educação que proporcionem o exercício da comunicação e da função planejadora da linguagem às crianças. Na função de planejamento de suas ações, a fala acontece quando se desloca para o início da ação, precedendo-a. Vigotski complementa: “Quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior a importância que a fala adquire na operação como um todo” (2007Vygotsky, L. S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. Martins Fontes., p. 13). A fala se apresenta, em sua função organizadora das ações, como pensamento verbal.

Nesse contexto, o docente tem como desafio o planejamento de propostas que conduzam ao exercício de linguagem pelos alunos que, de acordo com Vigotski (2007Vygotsky, L. S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. Martins Fontes., p. 17-18), “habilita as crianças a providenciar instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superar a ação impulsiva, a planejar a solução para um problema antes de sua execução e a controlar o seu próprio comportamento”.

Nota-se, assim, a importância de práticas educativas na escola que potencializem a comunicação e as trocas na Libras entre alunos surdos, os questionamentos e a busca da resolução de situações-problema tal como priorizado na perspectiva do ensino por investigação (Carvalho, 2013Carvalho, A. M. P. de. (2013). O ensino de Ciências e a proposição de sequências de ensino investigativas. In A. M. P. Carvalho et al. Ensino de ciências por investigação: condições para implementação em sala de aula (pp. 1-20). Cengage Learning.; Sasseron, 2015Sasseron, L. H. (2015). Alfabetização científica, ensino por investigação e argumentação: relações entre ciências da natureza e escola. Revista Ensaio, Belo Horizonte, 17, pp. 49-67.).

Fundamentando-se em referencial teórico vigotskiano, as estratégias didáticas do ensino por investigação derivam de situações-problema e que viabilizam o exercício de atividade mediada coletiva e, especificamente da “linguagem argumentativa”, isto é, “linguagem científica” na construção de conceitos científicos (Carvalho, 2013Carvalho, A. M. P. de. (2013). O ensino de Ciências e a proposição de sequências de ensino investigativas. In A. M. P. Carvalho et al. Ensino de ciências por investigação: condições para implementação em sala de aula (pp. 1-20). Cengage Learning., p. 7). Sasseron (2015Sasseron, L. H. (2015). Alfabetização científica, ensino por investigação e argumentação: relações entre ciências da natureza e escola. Revista Ensaio, Belo Horizonte, 17, pp. 49-67.) complementa que essa forma de ensino denota a intenção do professor de fazer com que a turma tenha contato com fenômenos naturais, engajando-se em discussões originadas pela busca da resolução de situações que os inquietem, interessem e mobilizem, o que conduz ao exercício de ações e raciocínios de comparação, análise, avaliação e socialização e decisões coletivas.

As sequências didáticas investigativas podem se aproximar do que Ribeiro e Skliar (2020Ribeiro, T., & Skliar, C. (2020). Escolas, pandemia e conversação: notas sobre uma educação inútil. Série-Estudos: Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB, 25: 55, pp. 13-30., p. 20) denominam como “gestos didáticos potentes” Os autores esclarecem que tais gestos priorizam um “espaço-tempo de partilha e indagação de saberes, experiências, histórias, de expressar e expressar-se, de pensar com os outros, de sermos no coletivo”.

No espaço da liberdade de questionamento entre os alunos, a partir de seus saberes prévios e de seus interesses partilhados, eles abrem-se às curiosidades sobre o mundo, ao uso de uma linguagem argumentativa e de instrumentos que os auxiliem na busca por respostas aos seus questionamentos e, como consequência, na construção de suas formações conceituais.

3. Procedimentos do estudo

A Banca da Ciência e sua equipe

A Banca da Ciência se configura como um projeto - gerido por diferentes atores de diferentes universidades públicas brasileiras - de ações educacionais investigativas voltadas à aprendizagem e difusão da ciência para o público infantil e juvenil pertencentes tanto a espaços escolares, de educação formal, quanto a espaços não-escolares, de educação não-formal. Tem como uma de suas características a abordagem lúdica de temas científicos em conexão com questões sociais e manifestações artístico-culturais por meio de intervenções com o uso de filmes, exposições dialogadas, livros, jogos, dramatizações, dinâmicas, experimentos e montagens simples, entre outros (Amorim, Versolato & Izidoro, 2020Amorim, V., Versolato, M. S., & Izidoro, E. (2020). Divulgação científica pelo Programa Banca da Ciência no contexto da pedagogia no Campus Guarulhos da Unifesp, Revista do Edicc, 6. https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/edicc/article/view/6459.
https://revistas.iel.unicamp.br/index.ph...
).

Com a supervisão de professores de escolas parceiras e o planejamento conjunto com integrantes da Banca da Ciência, entre eles estão estudantes de pós-graduação, as intervenções são executadas por equipes de alunos de graduação em licenciatura em Ciências, Pedagogia e outras áreas pertinentes a essa modalidade de trabalho. Como desdobramento, propõe-se a avaliação e a caracterização da interação universidade-escola, em relação a contribuições no aperfeiçoamento da educação pública. Ademais, é oportuno registrar que o projeto já recebeu apoio de agências e instituições financiadoras de pesquisa como: CNPq, CAPES, FAPESP e PRCEU-USP.

Sendo assim, a equipe de trabalho envolvida no projeto, especificamente na classe bilíngue surdos referenciada neste artigo, era formada pelos seguintes integrantes: 2 docentes bilíngues de surdos (docentes concursados no município de atuação e com formações em nível de especialização na área da educação de surdos) e autores deste relato, 5 discentes de graduação do curso de Pedagogia da UNIFESP de Guarulhos, 1 discente de pós-graduação da UNIFESP de Guarulhos e 2 professores da UNIFESP de Guarulhos, sendo - um deles a autora deste trabalho.

Descrição da turma de alunos surdos

A turma era formada por 5 alunos surdos sinalizadores da Libras, com faixa etária entre 9 e 11 anos e matriculados em classe bilíngue para surdos organizada no formato de multisseriação, a saber: 4º (1 aluno) e 5º (4 alunos) anos do Ensino Fundamental.

A escolarização desses alunos se deu numa perspectiva bilíngue de educação de surdos, a qual institui e compreende a Libras como língua de instrução, mediação e construção dos conhecimentos e a Língua Portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua. Nesse contexto, a Libras logra centralidade, de modo que é por meio dela que o coletivo acessa o currículo formal.

Contexto do campo - educação bilíngue município de Guarulhos

As classes bilíngues de surdos estão inseridas em escolas regulares denominadas de polos bilíngues (Guarulhos, 2019Guarulhos. (2019). Lei nº 7.795, de 20 de Dezembro de 2019. Dispõe sobre criação de Classes de Educação Bilíngue para Surdos na Rede Municipal de Ensino.), os quais estão organizados em três escolas localizadas em bairros distintos e distantes entre si do município.

As chamadas classes bilíngues de surdos são destinadas às “crianças, jovens e adultos com surdez ou surdocegueira” (Guarulhos, 2019Guarulhos. (2019). Lei nº 7.795, de 20 de Dezembro de 2019. Dispõe sobre criação de Classes de Educação Bilíngue para Surdos na Rede Municipal de Ensino.) e que, além de respaldo da normativa legal municipal está em consonância com as principais normativas em nível nacional, como o decreto federal nº 5.626 (Brasil, 2005Brasil. (2005). Decreto n. 5.626, de 23 de dezembro de 2005. Presidência da República.), o Plano Nacional de Educação expresso na Lei Federal nº 13.005 (Brasil, 2014Brasil. (2014). Lei n. 13.005, de 25 de Junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências.), a Lei Federal nº 13.146 (Brasil, 2015Brasil. (2015). Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Presidência da República.) e a Lei Federal nº 14.191 (Brasil, 2021Brasil. (1996). Lei n. 14.191, de 3 de Agosto de 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos.) - que insere a Educação Bilíngue na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -, as quais apontam que a escolarização de alunos surdos seja organizada em espaços bilíngues (escolas de surdos ou classes bilíngues de surdos).

Além disso, e não menos importante, comunga com o respeitado documento intitulado de “A educação que, nós surdos, queremos” (Feneis, 1999Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos [FENEIS]. (1999). A educação que nós surdos queremos. Documento elaborado pela comunidade surda a partir do pré-congresso ao V Congresso latino-americano de Educação Bilíngue para Surdos, realizado em Porto Alegre/RS, no salão de atos da reitoria da UFRGS, nos dias 20 a 24 de abril de 1999.) elaborado pela comunidade surda a partir das discussões e mobilizações do pré-congresso ao V Congresso latino-americano de Educação Bilíngue para Surdos, realizado em Porto Alegre - RS, no salão de atos da reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, entre os dias 20 e 24 de abril de 1999.

Procedimentos de coleta de dados

A coleta de dados teve a duração de um semestre com registros em vídeos, anotações em diário de campo e composição de portfólio docente construído pelos professores bilíngues sobre a participação dos alunos em atividades propostas pela Banca da Ciência, que seguiram as etapas:

  1. Formulação e gravação em vídeos de questões feitas pelos alunos surdos;

  2. Recebimento pela equipe da banca das perguntas;

  3. Planejamento dos experimentos e intervenções didático-pedagógicas pela equipe da Banca, com aplicação na turma de alunos surdos, o que aconteceu por meio da mediação em Libras pelos professores bilíngues; e

  4. Continuidade da exploração dos assuntos em sala de aula, a depender de necessidades da turma.

Para fins deste estudo, de um total de 6 perguntas, será analisada a participação dos alunos surdos na construção de uma pergunta e, respectiva, busca por respondê-la.

4. Resultados e discussão

Ao longo da História, o homem sempre fez perguntas e foi em busca de respostas para solução de conflitos externos e questionamentos e tensões internas. Num primeiro momento, mitos e lendas, simbolicamente, ocuparam esse lugar das respostas, na tentativa, por exemplo, de dar uma explicação a questionamentos clássicos, como “de onde viemos” e “para onde vamos”; e como uma alavanca no nível da linguagem, questionar-se e questionar sua realidade ao redor fez parte e faz parte de uma de suas capacidades, as quais lhe permitiu que descobrisse coisas e chegar até os tempos atuais.

Da mesma forma, no processo de ensino e aprendizagem, a elaboração de perguntas - resultantes de uma curiosidade pelo conhecimento - responde a uma possível estratégia didático-metodológica que encontra no ensino por investigação suas bases teóricas.

Ademais, esse ensino que incita, provoca e é propositivo na composição de perguntas e busca por respostas pela turma se vincula a uma concepção de linguagem como forma de interação, concebida como um lugar onde os sujeitos se constituem, numa perspectiva que vai além da transmissão de informações de um emissor a um receptor (Geraldi, 1984Geraldi, J. W. (1984). O texto na sala de aula. 2. ed. Assoeste.), porque constitui um espaço promotor das relações sociais entre sujeitos ativos que, dialogicamente, se constroem e são construídos (Koch & Elias, 2010Koch, I. V., & Elias, V. M. (2010). Ler e compreender: os sentidos do texto. 3. ed. Contexto.).

Dando destaque a tal processo de construção, a turma de alunos surdos foi informada pelos professores bilíngues que receberiam visitas da equipe da Banca da Ciência, a qual apresentaria diversos experimentos a partir de questões elaboradas pela turma surgidas no decorrer das aulas.

A partir desse momento, planejando o conteúdo dos experimentos e num diálogo com o contexto de saberes cotidianos, aqueles veiculados, por exemplo, em noticiários, e científicos, conteúdos previstos no currículo, os alunos foram incentivados a fazer questionamentos que seriam levados aos integrantes da Banca da Ciência.

Para a elaboração de questões, os professores bilíngues objetivavam que todos os alunos participassem dessa construção e de modo a priorizar seus interesses. Com esse objetivo, ao longo de uma semana, os alunos levantavam dúvidas que se centraram nos seguintes temas: a presença do ar e o insucesso da experiência envolvendo o cabide; a tragédia de Brumadinho; o choque depois de uma brincadeira; o nascimento, vida e morte de determinados animais (cachorros, gatos, baleias, baratas, pernilongos, salamandras e outros); a formação de tornados; a vida dos dinossauros; a vida na Lua; violência contra os animais entre outros.

Inicialmente, tais questões nem sempre eram explícitas e trazidas na forma de perguntas nas conversas, como implicação da linguagem em construção e da necessidade do maior estudo de sua primeira língua - a Libras - em curso. Era comum que os interesses fossem expressos em afirmativas em pequenas enunciações para serem, na sequência, transformados em perguntas. Nas conversas com a turma, os professores provocavam questões e apresentavam modelos de perguntas sinalizadas no intuito de ajudar os alunos em suas próprias composições dos enunciados das perguntas. Além dos professores, os próprios alunos ajudavam um ao outro na construção frasal da questão, se valendo das vivências e observações feitas inicialmente pelos docentes. Existiu, desse modo, um processo de mediação dos professores no sentido de que, a partir dos temas de interesse dos alunos, eles fossem levados a organizar e reelaborar seu pensamento a partir de suas dúvidas para, em seguida, elaborar as questões em Libras.

As questões produzidas ao longo de uma semana passaram por uma seleção da turma para saber quais seriam gravadas e enviadas para a Banca. Os critérios para a escolha das perguntas foram estabelecidos pelos próprios alunos a partir daquilo que lhes despertava, naquele momento, uma maior curiosidade, considerando que a única exigência dos professores foi a de que cada aluno formulasse uma questão. Ou seja, os interesses e dúvidas embora coletivos foram materializados em perguntas individuais.

As perguntas realizadas, sinalizadas e registradas em vídeos pelos alunos surdos foram transcritas conforme a seguir:

  • Pergunta 1: Fizemos aquela experiência de pegar um cabide e grudar de um lado uma bexiga vazia e do outro uma bexiga cheia, mas, não deu certo! A bexiga cheia não pareceu ser mais pesada do que a bexiga vazia. As duas ficaram no mesmo nível. Por que isso? Eu queria entender o porquê? Como assim?

  • Pergunta 2: Vendo aqui o jornal sobre o que aconteceu em Brumadinho, que triste! Que tragédia! Não foi certo! Prestassem mais a atenção nisso! Então, a barragem estava cheia de coisas, certo? O que tinha nela era lixo, sim ou não? A barragem não suportou e estourou, foi muito triste!

  • Pergunta 3: Aqui na escola, a gente vai sempre brincar num dos parquinhos, que é bem grande. Lá a gente brinca, sobe num brinquedo de um lado e desce pelo escorregador. Terminada a brincadeira, a gente sai e quando encontra um amigo surdo, ao tocar nele, a gente leva um choque. Por que a gente leva esse choque? O que é esse choque? Como ele acontece e por quê?

  • Pergunta 4: Como nascem os pernilongos?

  • Pergunta 5: E as baratas, como nascem?

  • Pergunta 6: Eu fiquei pensando na salamandra, vocês conhecem? Então, elas têm seus filhos que nascem do ovo ou nascem da barriga da mãe, como os cachorros?

Em todo esse processo de elaboração das questões e de execução dos experimentos - o que passaremos a descrever na sequência, encontram-se práticas que se aproximam do sentido de educação definido por Skliar (2019Skliar, C. (2019). A escuta das diferenças. Mediação., p. 14). Ele apresenta a educação como uma “forma de conversa - e de relação - do todo particular”, acerca do que fazer com o que nos inquieta neste mundo. As práticas pedagógicas que, neste em estudo, favoreceram muitas conversas, trocas entre alunos, permitiram que eles experimentassem a ação de colocar-se numa posição de escuta, de pensar junto com o outro, de com ele concordar, discordar e argumentar e, logo, com ele também construir conhecimento.

Tendo sido definidos os problemas pelos alunos surdos, um dos professores bilíngues, também integrante da equipe da Banca da Ciência, apresentou os vídeos contendo as questões sinalizadas pelos alunos em uma reunião com os estudantes da Banca. Na sequência, foram planejados minimamente um experimento por questão e que foram aplicados ao longo de um semestre, sendo realizado 1 experimento por mês, aproximadamente.

Dentre esses questionamentos, apresentamos e discutimos, em seguida, os encaminhamentos decorrentes da questão de n. 1, que foi escolhida para ser apresentada neste estudo porque foi o tema explorado em aulas de Ciências recentes que gerou dúvidas e até descontentamento entre os alunos pelo infortúnio de uma experiência envolvendo as bexigas.

Tal pergunta teve origem durante uma aula de Ciências, que tratava sobre o ar, sua presença, sua importância para os seres vivos e sua relação com o sistema respiratório do corpo humano. Nessa aula, os professores, como tarefa de casa, pediram para que os alunos reproduzissem um conhecido experimento, que tinha por objetivo provar a presença do ar pela observação e comparação de duas bexigas amarradas cada uma nas extremidades opostas de um cabide; uma vazia e a outra cheia. Via de regra, a bexiga cheia estaria “mais pesada” do que a outra, o que faria o cabide inclinar-se para baixo demonstrando assim o “peso” pela presença do ar numa das bexigas.

Contudo, no dia seguinte, todos os alunos relataram o insucesso do experimento, dizendo que ambos os lados permaneceram no mesmo nível, ou seja, não se observou a inclinação de nenhuma das bexigas, deixando a dúvida sobre a existência do ar e seus reais reflexos na bexiga cheia em comparação com a bexiga murcha. Estava estabelecido aí um problema científico, uma dúvida real a ser respondida.

Diante disso, os professores bilíngues começaram a gravar em vídeo essa e outras perguntas que foram surgindo no decorrer das aulas a fim de serem respondidas pelos alunos da Banca da Ciência.

Assim, em data oportuna, os integrantes da Banca, já tendo planejado experimentos a partir da questão proposta pelos alunos, compareceram à unidade escolar. Inicialmente, houve a apresentação de cada um: membros da Banca, alunos surdos e professores bilíngues. Alguns membros da Banca puderam, no mesmo dia, receber um sinal pessoal atribuído pelos alunos surdos - culturalmente, a concessão do sinal pessoal é um ritual bastante comum quando pessoas surdas ou ouvintes passam a ter contato com uma comunidade de surdos (Pereira, 2011Pereira, M. C. da C. (Org.). (2011). Libras: conhecimento além dos sinais. Pearson Prentice Hall.).

Em seguida, iniciou-se uma conversa entre os integrantes da Banca e os alunos surdos, mediada em Libras pelos professores bilíngues, tratando dos objetivos gerais daquela visita e retomando a pergunta feita pelos alunos. Nesse momento, o vídeo da pergunta foi projetado.

Os alunos da Banca começaram a perguntar para os alunos surdos o porquê que eles achavam que não havia dado certo a experiência, num movimento tácito de levantar os conhecimentos prévios dos alunos em relação aquele determinado assunto e a formulação de hipóteses diante do problema posto.

As colocações dos alunos surdos foram as mais diversas: a dúvida na existência do ar; a afirmação de que aquela experiência era pífia; a insinuação de ser um experimento leviano e impossível de se realizar.

A equipe da Banca reproduziu o mesmo experimento com o cabide e as bexigas, contudo, fizeram uso de um cabide feito de alumínio, fino e leve. Contudo, em cada extremidade foi amarrada uma bexiga cheia de ar.

O coletivo da Banca informou que iriam aproveitar aquele experimento para sanar a dúvida tanto da existência do ar quanto para mostrar que era possível o tal experimento. Foi perguntado o que tinha dentro de cada bexiga, de modo que, alguns alunos responderam “ar”, outros responderam “não sei” e um aluno respondeu “não sei” ao mesmo tempo que dizia “sei”, mas que não acreditava no que estava sendo apresentado, pois, segundo ele, já havia tentado fazer a experiência em casa e havia falhado.

Na continuidade da explicação, um dos balões foi estourado e, nesse momento, o lado do cabide com a bexiga cheia de ar pendeu para baixo enquanto que o lado da bexiga estourada - “sem ar” - inclinou-se para cima, demonstrando assim, a possibilidade da realização do experimento e da existência do ar presente na bexiga cheia e por consequência “mais pesado” que a bexiga estourada.

Acontecido isso, a reação dos alunos surdos foi de celebração e surpresa. Afinal, estavam desacreditados de algumas “verdades científicas”. Todos eles gritaram e ficaram muito contentes com o que viram. Interjeições como: “Nossa!”, “Ahhhh!”, “Perfeito!” e “Uhuuu!” foram enunciadas. Um dos alunos disse: “Isso é mágica! Uauuuu! Que legal!”; oportunamente, um dos integrantes da Banca respondeu: “Mágica, não! Isso é ciência! Por isso a gente estuda e pesquisa.”. Outro aluno pediu que se explicasse novamente e assim a Banca o fez; continuando a expressão de fascínio e maravilhamento por parte dos alunos a cada enunciação proferida.

Para reforçar a ideia dos assuntos e saberes envolvidos, a Banca apresentou uma outra experiência. Inicialmente, foi entregue aos alunos surdos uma garrafa pet pequena; em seu interior havia uma bexiga cuja boca estava presa na boca da garrafa.

De posse do objeto, os integrantes da Banca perguntaram o que achavam que era aquilo. Imediatamente, os alunos foram falando: “Uma garrafa!”, “Uma garrafa de refrigerante!”, “Uma garrafa de uma bebida muito gostosa, mas muito cara lá perto de casa!”, “Uma garrafa com uma bexiga dentro, para que isso?”, entre outros dizeres correlatos.

Depois pediram para que os alunos enchessem a bexiga, sem retirá-la da garrafa. Os alunos assim o fizeram. Contudo, passados alguns minutos e depois de muitas tentativas frustradas, pararam e disseram que não conseguiam. Um dos participantes da Banca, em tom amistoso, incitou-os perguntando: “Mas, vocês não me disseram que sabiam encher bexiga?”. Os alunos prontamente reagiram assegurando saberem encher uma bexiga: “Claro, que sim!”, “Lógico! É fácil!”, “Eu sou inteligente!”, “Eu sei encher bexiga, mas não sei como encher essa!” e outras afirmações similares.

A partir daí, os integrantes questionaram se realmente eles acreditavam que o ar existia, visto não estarem conseguindo encher a bexiga. Nesse momento, observou-se que os alunos pararam se entreolharam - atitudes bastante comuns ao longo de toda aula -, demonstrando uma rápida reflexão a partir do questionamento e responderam dizendo que sim, que o ar existia, mas que não sabiam explicar o porquê do não enchimento da bexiga.

Dando continuidade, a Banca entregou-lhes uma outra garrafa, do mesmo tamanho e com uma bexiga dentro, e pediram para que os alunos, mais uma vez, tentassem encher a bexiga. Com expressões de estranhamento, dúvida e de certa indignação, os alunos assim o fizeram e imediatamente se espantaram com a possibilidade de ver as bexigas se enchendo dentro da garrafa após assoprarem. Em meio a espantos e gargalhadas, um dos alunos, mais uma vez proclamou: “É mágica! É mágica, sim! Como assim?”. Foi então que um dos integrantes pediu para que os alunos comparassem minuciosamente as duas garrafas. Dois alunos encontraram um pequeno furo, na segunda garrafa entregue; e essa descoberta foi feita com brados de alegria, principalmente, no momento de compartilhamento com os colegas e com os integrantes da Banca. Os mesmos dois alunos questionaram o porquê da diferença, mais especificamente, porque conseguiram encher a bexiga da garrafa com o furo.

Os componentes da Banca explicaram que na garrafa sem furo, a bexiga não poderia ser inflada porque o ar existente na garrafa se comprime e exerce pressão sobre a bexiga, impedindo assim, seu enchimento. Por outro lado, na garrafa com furo esse impedimento não acontece porque, no momento, do assopro da bexiga, o ar que está no interior da garrafa escapa pelo furo, permitindo que a bexiga encha.

No entanto, apesar das explicações serem mediadas em língua de sinais, e mediante a provisória não compreensão dos alunos surdos, nesse instante, foi necessário o uso de imagem, que fora desenhada na lousa mostrando as duas garrafas e suas relações com ar: uma, com a impossibilidade de enchimento devido a presença do ar na garrafa, e a outra, com a possibilidade de enchimento devido a possibilidade de escape do ar pelo furo; a presença e o caminho do ar foi destacado e apontando várias vezes quando na explicação em língua de sinais.

À vista disso, foi observado que, em sua maioria, os alunos surdos compreenderam o que foi dito após a utilização dos signos visuais. O desenho complementou, trouxe mais informações ao observado no experimento, porque ele permitiu dar mais evidência ao que não era tão perceptível a olho nu. Reily (2012Reily, L. (2012). Escola inclusiva: linguagem e mediação. Papirus.) esclarece que o desenho linear ou esquemático é muito utilizado para a representação de informações científicas porque permite mostrar mais claramente relações estruturais de natureza mais conceitual e abstrata, o que não é tão efetivo nem mesmo por meio de uma representação mimética, fotografia, por exemplo. Nota-se que, quando a explicação se vincula a recursos visuais mais adequados ao contexto, o aluno se apoia nisso para apropriação do conceito, uma vez que, esse visual é necessário de tal modo que, tornando-se condição si ne qua non para aprender; ao passo que as coisas vão se descortinando, e tornando claro o que outrora era turvo ou embaçado.

É oportuno comentar que o uso da imagem não se deu numa perspectiva meramente ilustrativa ou ornamental do conteúdo, ao contrário, sua presença foi considerada como uma fonte sofisticada e esclarecedora durante toda explicação do conteúdo. Ademais, é importante sublinhar que não houve uma perda de espaço da palavra ou da sinalização pela imagem, mas apenas uma junção de recursos linguísticos quando na explanação conceitual.

Nesse bojo, o uso da imagem, juntamente à aclaração em língua de sinais, permitiu a evocação da construção de uma argumentatividade que, segundo Dantas e Almeida (2020Dantas, E. V. do N., & Almeida, W. G. (2020). Argumentatividade visual dos surdos: perspectiva do letramento. In W. V. de S. Sansão, C. das N. Vilela, & A. Cruz-Santos (Org.). Educação de surdos: olhares multidisciplinares (pp. 69-82). Dialética.), pode se manifestar de forma verbo-visual e visual, acionando saberes, provocando indagações e favorecendo a construção de conhecimentos.

Para os alunos que não compreenderam o experimento mesmo após a utilização da imagem, foi solicitado que outros colegas de classe explicassem do seu modo. Uma vez feito isso, observou-se a expressão de uma maior compreensão sobre o assunto por parte desses alunos. O fato de a classe ser constituída por alunos surdos sinalizadores permitiu que tal movimento acontecesse; possivelmente, um colega ouvinte não usuário da língua de sinais ou conhecedor apenas de alguns sinais e algumas enunciações não possibilitaria a mesma troca em termos linguísticos e com potenciais para o aprendizado de conceitos científicos.

Outro aspecto a ser sublinhado nessa explicação por alunos da turma e nos outros momentos de trocas entre pares se refere ao que Villela e Archangelo (2014Villela, F. C. B., & Archangelo, A. (2014). Fundamentos da escola significativa. 4. ed. Edições Loyola.) denominaram de sentimentos profundos dos alunos a partir de uma escola significativa, a saber: o acolhimento, o reconhecimento e o pertencimento, valores que, no contexto do grupo de alunos participantes deste estudo encontram terreno fértil em sua composição, ou seja, no fato de integrarem um grupo formado por pares surdos. Quadros (2019Quadros, R. M. (2019). Linguística aplicada e Libras. Parábola.) esclarece que até mesmo o nível de desempenho no uso de línguas tem relação com o sentimento de pertencimento e solidariedade que se constrói no ambiente de comunicação.

As trocas colaborativas sinalizadas, os olhares, o respeito e o clima estabelecido entre todos os presentes na aula, reafirmam a ideia da importância da existência e manutenção das classes bilíngues de surdos e da possibilidade da interface com coletivos e iniciativas educacionais, como a Banca da Ciência, desde que mediada pela Libras e atenta às concepções, princípios e singularidades de pessoas surdas as quais trarão direcionamentos particulares nas práticas educacionais.

Por fim das ações com os alunos, como forma de avaliação da aprendizagem, foi solicitado que os alunos surdos individualmente realizassem a explicação de suas descobertas a partir dos dois experimentos, bem como o registro em desenho e/ou escrita de cada um.

De modo geral, observamos que os experimentos, dentre os quais apresentamos um deles neste estudo, priorizaram a construção de textos visuais, conforme orientações do professor regente à equipe da Banca, o que foi destacado na reunião inicial e pode ser observado pela equipe a cada intervenção.

Nessa arena de encontros e de confrontos possibilitados pela parceria escola e universidade, por meio das ações da Banca da Ciência, as trocas entre alunos surdos se deram pela língua de sinais, o que permitiu e favoreceu a organização de pensamento, a exposição de comentários na ordem afirmativa, a reformulação de afirmações em perguntas, a construção de hipóteses, a concordância e discordâncias da fala de outrem (colegas, professores ou participantes da Banca) num movimento de tensão e “pressão da necessidade” (Vygotsky, 2011Vygotsky, L. S. (2011). A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Educação e Pesquisa, 37: 4, pp. 863-869.) para o desenvolvimento das formas superiores de pensamento.

E esse movimento de aprendizagem em direção a apropriação dos conceitos científicos também serviu de provocador para que os alunos assumissem uma postura crítica frente ao que lhes eram apresentados, realimentando assim novas curiosidades e novas perguntas.

5. Considerações Finais

O processo que deu origem ao planejamento dos experimentos pelos integrantes da Banca da Ciência, ou seja, a construção dos problemas pelos alunos surdos, e a execução dos experimentos que priorizou a dialogicidade com os alunos por meio da mediação em Libras dos professores regentes são indícios da efetividade de práticas educativas que desafiem os alunos em suas construções de conhecimento.

A participação ativa dos alunos revelou que, em cada experimento, com destaque para a sequência envolvendo “ar”, os mesmos foram mobilizados a aprender os conteúdos de ciências, por meio de uma manipulação e observação atenta durante os experimentos, por vezes até contestando evidências entre expressões, olhares e falas, e principalmente por meio da participação nas situações de conversas, trocas que eram frequentes.

Os alunos foram colocados na situação de protagonistas em cada ação pedagógica, tanto por parte dos professores regentes que decidiram levar para a Banca questões genuínas dos alunos e por meio da construção de enunciados junto ao grupo, como por parte dos integrantes da Banca que buscaram priorizar a seleção de experimentos que potencializassem os efeitos de pistas visuais e propor uma mediação durante os experimentos que conduzissem os alunos a uma observação atenta do que era apresentado e construído diante de seus olhos.

Das experiências da turma de alunos surdos com a Banca da Ciência, fazemos dois destaques como conclusões deste estudo em relação à construção de linguagem argumentativa:

  1. o diferencial de as ações da Banca e dos professores regentes da turma fundamentarem-se no ensino por investigação porque os saberes explorados, além de estarem articulados ao documento que orienta o currículo das escolas municipais de Guarulhos, derivaram de saberes atuais dos alunos e genuinamente de seus interesses e curiosidades; e

  2. o diferencial de os alunos estudarem em uma classe de surdos porque isso os levou a “sentirem-se pertencentes de um grupo” que, partilhando de visões e trajetórias próximas e objetivos e uma língua comum, sentiam-se na posição de auxiliar uns aos outros e cooperarem na construção de questões e participarem ativamente na busca das respostas durante os experimentos.

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  • 4
    A adjetivação diferenças surdas deriva do respeito e valorização a uma língua de natureza visual-espacial - a Libras no caso de surdos brasileiros e de suas formas particulares de apreenderem o mundo, compreensão essa que emerge na educação bilíngue; temos assim que tais diferenças são linguísticas e culturais.
  • ADENDO

    Este documento possui um adendo: http://dx.doi.org/10.1590/1678-460X202257175video

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2021
  • Aceito
    28 Nov 2021
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