Accessibility / Report Error

Anhedonia”: um conto cubano em perspectiva multirrede-discursiva na formação de professores de espanhol

“Anhedonia”: a Cuban short story in a discursive-multinetwork perspective in Spanish teachers training

RESUMO

Partindo da compreensão da relação constitutiva entre língua e literatura e do poderoso papel da literatura na formação do sujeito, este trabalho pretende inserir-se nas discussões travadas por linguistas aplicados a respeito da inclusão da literatura em planejamentos curriculares na área de formação de professores de espanhol. Mobilizando a Proposta Multirrede-Discursiva (Serrani, 2010Serrani, S. (2010). Discurso e cultura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita. Pontes Editores. , 2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores.), este artigo apresenta o conto “Anhedonia”, da cubana Mylene Fernández Pintado (2013)Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., a partir de critérios multirrede-discursivos, e discute uma proposta de práticas de linguagens que permitam enfocar, de forma articulada, o tema sociocultural: a mulher (cubana) e sua representação em sociedade, e a heterogeneidade discursiva como tema de língua-discurso, materializada no discurso relatado, sempre visando à formação intercultural de professores de espanhol. Nas oficinas apresentadas estabeleceu-se uma rede semântica a partir de textos em gêneros discursivos diversos com posições diferentes sobre o tema sociocultural em debate, o que pode possibilitar uma melhor compreensão deste e contribuir com uma formação compromissada com a cidadania.

Palavras-chave:
formação de professores de espanhol; proposta multirrede-discursiva; mulher; heterogeneidade discursiva

ABSTRACT

The aim of this paper is to add to the discussions held by applied linguists and several pedagogical agents, regarding the inclusion of literature in curriculum planning in Spanish teachers training. The arguments presented here are based on the understanding of the constitutive relationship between language and literature as well as on the powerful role of literature in the formation of the subject. To that end it uses the discursive-multinetwork proposal (Serrani, 2010Serrani, S. (2010). Discurso e cultura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita. Pontes Editores. , 2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores.) and presents the short story “Anhedonia”, by the Cuban Mylene Fernández Pintado (2013)Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., following the discursive-multinetwork criteria. Then, it introduces a proposal of language practices that focuses mainly on the following sociocultural theme: the (Cuban) woman and their representation in society. A second focus is put on the discursive heterogeneity as a language-discourse theme, which is realized through reported discourse and aims to contribute to the intercultural training of Spanish teachers. In the workshops presented in this study, a semantic network was established from texts in different discursive genres with different positions on the sociocultural theme under debate, which may promote a better understanding of such theme and be conducive to an education committed to citizenship.

Keywords:
Spanish teachers training; discursive-multinetwork proposal; woman; discursive heterogeneity

1. Introdução

A realidade e pesquisas teórico-aplicadas de estudiosos da linguagem no âmbito da Linguística Aplicada têm mostrado que, em movimentos políticos e educacionais recentes, o espanhol tem perdido espaço curricular, a despeito de sua importância - ora por se tratar de uma das línguas mais faladas no mundo, ora pela consabida proximidade geográfica, histórica e afetiva com as nações vizinhas da América Latina. Entretanto, enérgicas ações pontuais em alguns Estados e Municípios têm garantido a oferta obrigatória desta língua, mantendo assim uma conquista de anos, fruto de movimentos políticos, mas também da paixão de nossos estudantes por essa língua, principalmente no ensino superior, em que fazem dela o objeto de seus percursos acadêmicos e profissionais.

Na grande área da Linguística Aplicada, uma de suas direções se volta para a reflexão sobre o papel da literatura no ensino-aprendizagem de línguas e se debruça também sobre alternativas possíveis para seu enfoque em sala de aula, pensando na formação do estudante como cidadão e compreendendo que “o valor educacional da aprendizagem de uma língua estrangeira vai muito além de meramente capacitar o aprendiz a usar uma determinada língua estrangeira para fins comunicativos” (Brasil, 2006Brasil. (2006). Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p.92).

Existem propostas, recolhidas em livros e números temáticos de revistas no Brasil, que se empenham no resgate da materialidade literária nas aulas de espanhol em diversos contextos de ensino. Nesse universo nos detemos aqui em uma proposta que consideramos sólida e promissora, a Proposta Multirrede-Discursiva (MR-D)2 2 Por motivos de espaço não será possível fazer uma apresentação detalhada da MR-D, por isso remeto o leitor a Serrani (2020). , desenvolvida e burilada durante anos por Silvana Serrani no Centro de Pesquisa em Estudos Hispano-americanos do Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp. E a entendemos assim porque a MR-D mobiliza, de maneira planejada e sistemática, dimensões culturais (de forma não banalizada) e de língua-discurso com especial atenção à enunciação em línguas e ao caráter processual da linguagem; algo que embora os professores se proponham trabalhar, infelizmente - por falta de uma formação específica ou pelas dificuldades que eles enfrentam no dia a dia da profissão - costuma não ter a atenção requerida na formação em línguas, principalmente em âmbito de espanhol. A Multirrede-Discursiva é resultado de profunda reflexão teórica em Estudos do Discurso, em pesquisas da Linguística Aplicada e em Estudos Literário-Culturais, bem como em experiências pedagógicas em sala de aula. Acreditamos no seu papel de bússola para o professor em sua relação com materiais didáticos e paradidáticos, pois lhe permite fazer um recorte planejado, cuidadoso e organizado de conteúdos, discursos e textos diante da abundância que costuma aparecer em livros didáticos de línguas.

Assim, apoiando-nos nessa proposta, trazemos para a discussão o conto “Anhedonia”, da narradora cubana Mylene Fernández Pintado (2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos.), com o objetivo de apresentar um planejamento de práticas de linguagens voltadas para a formação do professor de espanhol como um docente interculturalista; propostas estas pensadas para as disciplinas de formação em espanhol que requerem um conhecimento intermediário da língua, o que corresponde a um usuário independente3 3 Segundo os critérios estabelecidos no Marco Común Europeo de Referencia para las Lenguas (MCER), disponível em: https://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/marco/cvc_mer.pdf, este aprendiz consegue se comunicar de maneira fluida por meio de textos simples, coerentes e claros. . As práticas mais adiante discutidas serão na forma de oficinas e terão o intuito de propor o trabalho com o tema sociocultural, a mulher (cubana) e sua representação em sociedade, e o de língua-discurso, a heterogeneidade discursiva, mais especificamente o discurso relatado (DR)4 4 Que linguisticamente se materializa na forma de discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre e discurso direto livre. , de maneira sistemática e articulada. Portanto, salienta-se que este trabalho se situa no campo da pesquisa aplicada, pois trata-se de uma discussão sobre planejamento curricular ilustrada com a análise de um conto cubano e suas possibilidades de trabalho em sala de aula a partir da mobilização da Proposta Multirrede-Discursiva, tendo como público-alvo os professores e formadores de professores de espanhol.

2. A literatura na formação (intercultural) de professores de espanhol

A interculturalidade, como vem sendo compreendida desde os anos noventa na América Latina, perpassa o campo educativo. A interculturalidade crítica, nos alerta Walsh (2010, p. 78-79, o destaque é da autora), está ainda em construção e compreende-se “[...] como uma estratégia, ação e processo permanentes de relação e negociação entre, em condições de respeito, legitimidade, simetria, equidade e igualdade”. Como questionadora das ausências (Walsh, 2010, p. 91) no modelo social em que estamos atualmente inseridos, a interculturalidade crítica em sala de aula de língua, a nosso ver, tem um papel crucial na tomada de consciência das práticas - principalmente as discursivas - que mantém as estruturas de poder que subordinam e silenciam aqueles postos à margem historicamente na dinâmica social. E a literatura pode (e deveria) ter um papel relevante no esforço de transformação das subjetividades e estruturas sociais, numa perspectiva interculturalmente crítica de formação em línguas.

Essa materialidade, a literatura, tem tido seu lugar garantido em livros didáticos e práticas de sala de aula de espanhol no Brasil: às vezes periférico, às vezes central, em qualquer caso, presente. Em ocasiões, vista como um luxo ou abordada desde uma perspectiva engessada - limitada a dados históricos e movimentos literários -, a literatura tem deixado de ser explorada em um trabalho enunciativo-discursivo que permitiria não só observar processos de produção e compreensão de sentidos ou funcionamentos da linguagem que as obras oportunizam, mas olhar para a nossa existência e nos reconhecermos no outro: “A boa literatura, como sabemos, é crucial para aprofundar a compreensão de sutilezas da nossa condição humana e agudizar a nossa sensibilidade em relação à nossa existência, que é também, necessariamente, sociocultural”, aponta Serrani (2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores., p. 12). Pensar em um enfoque enunciativo-discursivo implica considerar a linguagem na sua dimensão processual; isto é, despertar a sensibilidade dos estudantes para os processos de sentidos, algo que não se ressume à intencionalidade dos interlocutores, mas que tem a impronta das memórias discursivas5 5 A memória discursiva, para a AD, é “o saber discursivo que torna possível todo dizer” (Orlandi, 2013, p. 31), disponibilizando significados já dados com os quais nos identificamos em momentos sócio-históricos determinados. É também conhecida como interdiscurso. . Tomar a palavra, é oportuno lembrar, não é simplesmente falar, mas pôr em funcionamento a língua(gem) enquanto assumimos uma posição6 6 Sob a influência de Orlandi (2013, p. 40), entendemos a posição, ou ainda, a posição-sujeito não como o papel desempenhado pelos sujeitos em sociedade, mas como a posição ocupada pelos sujeitos no discurso; posição essa decorrente das imagens por nós produzidas num dado contexto sócio-histórico. - projetada discursivamente no nosso imaginário -, afetados sempre pelo inconsciente e pela ideologia7 7 Filiamo-nos aqui ao conceito de ideologia de Pêcheux (2014, p. 139), segundo o qual é a ideologia que, “produzindo um tecido de evidências ‘subjetivas’” (grifos do autor), interpela o indivíduo em sujeito e o leva a se identificar com um sentido e não outro para significar; ou seja, é por um efeito ideológico que os sentidos nos parecem evidentes quando interpretamos a realidade que nos cerca e não os questionamos, mas nos assujeitamos a eles. . E a literatura, tal como aqui entendida, em consonância com Serrani (2013Serrani, S. (2013). Entrevista com Silvana Serrani. [Entrevista concedida a] Maite Celada e Jorge Rodrigues Souza Junior. Abehache, 1(1), 89-100. https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/view/102/101. (Acessado 3 de março, 2023).
https://revistaabehache.com/ojs/index.ph...
, p. 94), tem uma especificidade que lhe é própria “relativa ao não compromisso com o pragmatismo”, que além de mostrar a língua em funcionamento, mobiliza subjetivamente o aprendiz no encontro com a outra língua (o espanhol mais especificamente).

A despeito desse papel relevante na formação em línguas, sabemos, com base em pesquisas como as de Serrani (2010Serrani, S. (2010). Discurso e cultura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita. Pontes Editores. , 2014Serrani, S. (2014). La noción de cultura, la lengua y los Estudios Hispánicos: un enfoque discursivo-cultural de un poema de Benedetti. Intersecciones. Revista da APEESP, 2, 15-39. http://www.apeesp.com.br/wp-content/uploads/03_CONF_SILVANA.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
http://www.apeesp.com.br/wp-content/uplo...
) e Souza Júnior (2010Souza Júnior, J. R. (2010). A literatura no ensino de espanhol a brasileiros: o teatro como centro de uma prática multidimensional-discursiva [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual de Campinas. https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/775670 (Acessado 3 de março, 2023).
https://repositorio.unicamp.br/acervo/de...
), e a partir da nossa prática docente, que há uma certa relutância por parte de professores em trabalhar com o discurso literário, mas também por parte dos estudantes, e essa situação acaba por aprofundar a fratura entre língua e literatura que observamos na realidade educacional hoje (Brait, 2000Brait, B. (2000). Língua e literatura: uma falsa dicotomia. Revista ANPOLL, 8, 187-206. https://doi.org/10.18309/anp.v1i8.355
https://doi.org/10.18309/anp.v1i8.355...
, 2013Brait, B. (2013). Literatura e outras linguagens. Contexto.). No currículo da formação inicial em Letras-Espanhol na universidade onde trabalhamos, há disciplinas voltadas para o estudo das literaturas e outras, para o estudo da língua espanhola. Interessados em conhecer as percepções dos professores em formação acerca de um possível diálogo entre essas disciplinas, realizamos indagações informais8 8 Ocorrido em dois momentos: num debate propiciado na disciplina “Espanhol Peninsular e Espanhol de América” e na avaliação final da disciplina “Língua Espanhola”, em que os estudantes refletiram sobre suas competências em espanhol e as disciplinas da grade curricular. com alunos do 7º e do 8º semestres da licenciatura em 2015. Na época, constatamos a preocupação de alguns pelo fato de não contarem com mais disciplinas de estudo da língua espanhola ao longo da licenciatura, apenas nos primeiros semestres; assim como a percepção de que existe um desequilíbrio entre as disciplinas de língua e as de literatura, sendo estas últimas predominantes no currículo, além de desmotivadoras, pois os textos trabalhados geralmente são herméticos, difíceis de serem compreendidos, o que despoja as aulas do prazer de uma boa literatura em espanhol. Por fim, admitiram que não há nenhuma relação entre as disciplinas dos âmbitos linguístico e literário.

Essa situação, infelizmente, pode acabar moldando práticas numa formação em língua espanhola pautada em temas gramaticais que, como sabe-se, pouco interesse despertam nos estudantes e não propiciam espaços para reais possibilidades de aprendizados, para uma tomada da palavra na língua que se estuda e para a compreensão de temas socioculturais relevantes na formação do estudante a partir da posição que ele ocupa na sociedade. Assim, ao se priorizar apenas o linguístico, com ou sem a presença do texto literário, opera-se um apagamento das memórias e da alteridade9 9 Este conceito será abordado em maior detalhe na seção 4.2. que constituem a língua estudada, desaproveita-se uma linguagem que permite estabelecer uma ponte entre a língua e as memórias que constituem esse sujeito cultural que fala e se constitui na língua que tenta aprender. Por isso, destacamos aqui, junto com Souza Júnior, a relevância do discurso literário para o tratamento de temas e assuntos necessários a uma formação que se quer cidadã, que dê condições para que o estudante possa refletir sobre práticas discursivas que naturalizam estereótipos e visões redutoras do outro:

A especificidade do texto literário na aula de língua é uma materialidade significativa para discussão de temas culturais. Estabelecê-lo em práticas de ensino de língua estrangeira, nas quais o sujeito-aprendiz possa reconhecer o outro da língua estrangeira, na comparação consigo mesmo, é dar-lhe condições de submeter-se aos efeitos de sentidos que permeiam uma prática discursiva em língua estrangeira constituída sócio-historicamente em uma determinada territorialidade, envolvendo sujeitos submetidos a uma diversidade de hábitos, afazeres, práticas e realidades pouco abordadas em LDs (Souza Júnior, 2013bSouza Júnior, J. R. (2013b). O funcionamento discursivo de textos literários como processo de interpelação de sujeitos aprendizes de espanhol. Abehache, 4, 109-125. https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/view/108/107 (Acessado 3 de março, 2023).
https://revistaabehache.com/ojs/index.ph...
, p. 111).

Entendemos que o discurso literário é crucial na formação de um professor de espanhol. O perfil do profissional de Letras exige conhecimentos aprimorados no eixo língua-cultura-literatura objeto de estudos, segundo orientam as Diretrizes Curriculares para os cursos de Letras (Brasil, 2001Brasil. Parecer CNE/CES 492/2001, de 3 de abril de 2001. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
). Pensar numa possibilidade de formação intercultural do professor de espanhol no Brasil nos leva a seguir de perto a definição do professor interculturalista como proposta por Serrani (2010Serrani, S. (2010). Discurso e cultura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita. Pontes Editores. , p. 15): nas palavras da autora, esse perfil “corresponde ao de um docente - de língua materna ou estrangeira - apto para realizar práticas de mediação sócio-cultural, contemplando o tratamento de conflitos identitários e contradições sociais, na linguagem de sala de aula”.

Consideramos que adotar uma visão intercultural na educação em línguas vai além de reconhecer e respeitar o outro; trata-se de estar em estado de vigilância para a manifestação explícita e implícita das relações de poder nas práticas discursivas de sala de aula e fora dela. Assim, torna-se imprescindível uma formação docente que identifique, questione e proponha mudanças para vencer estereótipos, visões redutoras da(s) cultura(s) e práticas opressoras. Exige, ainda, uma mudança de postura na previsão e realização das práticas de sala de aula, nas quais o professor se torne um “articulador” das múltiplas vozes que nelas se expressam (Brasil, 2006Brasil. (2006). Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 136). Mas como isso será possível se em sua formação inicial nós, professores formadores, muitas vezes não nos comprometemos com um processo de ensino-aprendizagem que enfoque verdadeiramente a pluralidade e a heterogeneidade linguístico-cultural?

No intuito de dar resposta a essa demanda (ou ao menos tentar), apresentamos e discutimos aqui uma possibilidade de abordagem do discurso literário a partir de práticas que permitam trabalhar com a diversidade, com a pluralidade cultural e de posições sociais, e com o conflito inerente ao aprendizado de uma língua, neste caso o espanhol. E o fazemos baseando-nos na Proposta MR-D a partir do trabalho com o conto “Anhedonia”, ao que nos dedicaremos na próxima seção.

3. “Anhedonia”: um conto sempre atual

O conto objeto de nossa proposta pertence à coletânea Anhedonia, com a qual sua autora, Mylene Fernández Pintado (1963), ganhou em 1998 o prêmio cubano David de contos. Foi publicado um ano depois pela editora Unión e conta com uma nova edição por Ediciones Matanzas (2013), ambas cubanas. Foi contemplado também em duas coletâneas: Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas, de Helen Hernández Hormilla (La Habana, 2013); e, das escritoras e críticas literárias Mirta Yáñez e Marilyn Bobes, Estatuas de sal: cuentistas cubanas contemporáneas. Panorama crítico (1959-1995), publicado em 1996 e em 2008. Na internet pode ser lido10 10 Com o consentimento da autora, manifesto em conversa pessoal. em http://veronicagr.weebly.com/uploads/1/6/7/2/16729802/_anhedonia.pdf.

O termo anhedonia, segundo a enciclopediasalud11 11 https://www.enciclopediasalud.com/definiciones/anhedonia. e o Cambridge Dictionary12 12 https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/anhedonia. , é uma condição estudada no âmbito da Psicologia13 13 https://www.apsiquiatra.com.br/anedonia/. que diz respeito à incapacidade de desfrutar a vida e de vivenciar o prazer nas atividades que se realizam.

O conto narra o reencontro casual numa rua do bairro Vedado, em Havana, de duas mulheres, Sabina e Verónica, depois de anos sem se ver: “Cuando nos encontramos Sabina y yo al cabo de tantos años, mi viñeta era de las peores a imaginar. Como si yo tuviera un cuño estampado en la frente que me clasificara: mediocre, aburrida y resignada, una trilogía nada envidiable”14 14 Quando Sabina e eu nos encontramos depois de tantos anos, minha vinheta era das piores que se possa imaginar. Como se eu tivesse um carimbo estampado na testa que me classificasse: medíocre, chata e resignada, uma trilogia nada invejável. (Não havendo tradução do conto para o português, assumimos a autoria dos exemplos traduzidos em nota de rodapé assim como das citações em espanhol). (Fernández Pintado, 2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., p. 290), nos conta Verónica. As impressões de Sabina podemos conhecê-las no seguinte relato:

Cuando la encontré quería besarla, tocarle el pelo, decirle que estaba linda con un hijo al que yo podía querer como mío. […] Paré el auto o creo que él paró solo, tan asustado como yo. Me bajé, abrí la puerta y ella subió. La llevé hasta su casa. Volví a abrir la puerta y ella bajó. Un chofer obediente prestando un servicio obediente. Como si yo fuera el perrito de la RCA Víctor y ella la voz del amo ( Fernández Pintado, 2013 Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos. , p. 296) 15 15 Quando a achei queria beijá-la, tocar seu cabelo, dizer a ela que estava linda com um filho que eu podia querer como meu. [...] Parei o carro ou acho que ele parou sozinho, tão assustado quanto eu. Desci, abri a porta e ela entrou. Dei carona até sua casa. Abri a porta de novo e ela desceu. Um motorista obediente prestando um serviço obediente. Como se eu fosse o cachorrinho da RCA Víctor ela a voz do dono. .

Sabina dá carona para Verónica e no trajeto, marcado pelo silêncio, afloram memórias materializadas em dois extensos monólogos interiores que vêm constatar, para cada uma, a insatisfação com a própria vida e os papéis desempenhados. Ambas rememoram o passado e desejam, secretamente, a vida da outra. E questionam os papéis escolhidos: mãe, esposa, trabalhadora, presa a um casamento onde não tem (ou não quer ter) poder de decisão, ou empresária bem-sucedida, sem filhos, solteira e em solidão.

Embora Mylene Fernández tenha confessado que esse conto narra a sua realidade num dado momento de sua vida, muitas mulheres se identificam com a história (eis o papel da literatura!), como nos conta a autora no seguinte trecho:

Lembro de uma vez que encontrei uma italiana em um restaurante e alguém nos apresentou e disse que eu era a autora de “Anhedonia”. Pois bem, ela tinha lido o conto e me comentou: “Se você soubesse que quando li esse conto me surpreendeu muito, pois soube que não somos só as mulheres de Milano as que temos esses problemas”. E muita gente, não apenas mulheres, tem se visto refletida na história. A tradutora [de “Anhedonia”] para o italiano chorava quando o leu porque tinha uma amiga como Verónica nos tempos do Liceu [...] (Fernández Pintado, 2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., p. 266).

Os dilemas e contradições que o conto aborda e que são vivenciados pelas mulheres, nas diversas posições que elas ocupam, são raramente problematizados em livros didáticos (LD) - que sabemos costumam ter um lugar privilegiado no discurso e na prática pedagógicos - ou quando aparecem, em muitas ocasiões são enfocados de forma que se reforçam estereótipos e leituras que legitimam um único sentido, dado como evidente, enquanto se silenciam outros (Souza Júnior, 2013aSouza Júnior, J. R. (2013a). Literatura em ensino de línguas - materialidade discursivo-cultural em aulas de espanhol como língua estrangeira. Intersecciones - Revista da APEESP, 1, 65-87. http://www.apeesp.com.br/wp-content/uploads/65_87.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
http://www.apeesp.com.br/wp-content/uplo...
). Mas é importante dizer que nos últimos anos a área de educação em língua espanhola tem se beneficiado com as coleções mais recentes aprovadas pelo PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático): livros como o Cercanía Joven (2013)Coimbra, L., Chaves, L. S., & Barcia, P. L. (2013). Cercanía joven: espanhol, 2º ano. SM. e o Confluencia (2016)Pinheiro-Côrrea, P., & Lagares, X. (2016). Confluencia. Moderna. 16 16 Uma análise dessas coleções em relação ao recorte de vozes tradicionalmente subalternizadas numa perspectiva decolonial pode ser encontrada em Silva Júnior e Matos (2019). representam avanços consideráveis no que tange à representação da pluralidade cultural e linguística, a partir da inclusão de identidades (como a de gênero) tradicionalmente silenciadas, que convivem em sala de aula e fora dela.

Apesar desses avanços, julgamos necessário ainda trazer para a discussão as representações do(s) sujeito(s) mulher(es) materializadas em textos reais, que, além de mostrar a língua em seu funcionamento, permitem o acesso a uma pluralidade de sentidos e à diversidade cultural, histórica e social que lhes é inerente. Na nossa percepção, os textos trabalhados nas oficinas discutidas na sequência possibilitam uma identificação do sujeito com os assuntos e situações explorados e podem contribuir com uma formação de professores de espanhol acorde com a conjuntura vivida.

4. Proposta Multirrede-Discursiva (MR-D): seus parâmetros e ilustração com o conto

A Proposta MR-D “é a sistematização de um conjunto de parâmetros relativos aos domínios cultural, linguístico-discursivo e didático, que orienta a seleção, complementação e abordagem de conteúdos, para a formação na área de língua(s) pela via da discursividade” (Serrani, 2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores., p. 29); isto é, nela a compreensão da linguagem como processo é fundamental, pois a língua sempre ocorre em discursos e são os discursos circulando os que nos constituem como sujeitos e pelos quais damos sentido ao mundo em que vivemos.

Na MR-D a noção de contexto sociocultural, com destaque para o território, é fundamental: recorrendo ao geógrafo brasileiro Milton Santos (2014Santos, M. (2014). Metamorfoses do espaço habitado. Fundamentos teóricos e metodológicos de geografia. EdUsp.), a autora entende o território como espaço físico, socioeconômico, histórico e cultural (Serrani, 2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores., p. 33). Em um dado território, numa esfera social e no interior de uma determinada instituição, as práticas serão de um tipo específico e não de outro; isto nos leva a outro conceito que embasa a Proposta MR-D: o de gênero discursivo de tradição bakhtiniana, que não se prende às caraterísticas formais, mas que se constitui como elo entre o sujeito e os campos da atividade humana.

A Multirrede-Discursiva, vale destacar, não estaciona na complementação de livro didático, ela permite pensar o desenho curricular de cursos, planejar atividades a serem desenvolvidas em sala de aula (que é o que faremos aqui) assim como analisar criteriosamente livros e outros materiais didáticos e paradidáticos. Trata-se, como observa Serrani (2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores., p. 11), da integração de “aprendizagens linguísticas e culturais, de forma organizada e previamente planejada” (destaque da autora). Em síntese, pode se dizer que na MR-D dá-se relevo aos conteúdos socioculturais de partida e de chegada e aos conteúdos de língua-discurso de maneira imbricada em práticas de leitura, produção escrita, produção oral, compreensão auditiva e tradução. A MR-D compreende três componentes interdependentes, que explicaremos/ilustraremos nas próximas subseções:

O componente intercultural multirrede-discursivo: para situar culturalmente o conto “Anhedonia”

Este componente permite considerar a diversidade sociocultural no âmbito de línguas diferentes, mas também no interior de uma mesma língua. O prefixo inter- se justifica porque se leva em consideração sempre a cultura de partida do aluno-professor em formação (neste caso, a cultura brasileira) e não apenas a cultura alvo. Assim, quando no momento do planejamento nos propomos analisar o livro didático com que trabalhamos ou pensar em outros materiais, podemos nos perguntar (e identificar): quais territórios, espaços, grupos sociais e legados culturais aparecem representados ou mencionados no texto em análise para, assim, ser explorados no planejamento de aulas? São esses os elementos dos três eixos temáticos que integram o componente intercultural (que ilustraremos com o conto escolhido) e que podem nos guiar neste momento pré-pedagógico (Moirand, 1979Moirand, S. (1979). Situations d’écrit: compréhension, production en français, langue étrangère. CLE international.):

  • Territórios e espaços: o espaço físico em que transcorre a história é a rua 17 em Vedado, Havana, Cuba, na região do Caribe, mas tem-se também um espaço não físico, que é o espaço da mente, da dimensão imaginária, em que as protagonistas projetam suas lembranças, anseios e frustações;

  • Pessoa e grupos sociais17 17 As oficinas mais adiante apresentadas se concentram no trabalho nesse eixo. : aqui destacam-se as protagonistas do conto: Verónica, esposa, mãe, trabalhadora assalariada, presa às imposições de gênero e aos desejos de autonomia e realização pessoal e profissional; esses desejos os vê realizados em Sabina, empresária bem-sucedida, sem filhos, solteira, e que no final da história percebemos que cobiça a vida de Verónica. Tem-se então duas mulheres (representativas de um grupo social específico), tomadas por contradições que resultam da sujeição a expectativas socioculturais convencionais e do desejo de transgressão de uma estrutura patriarcal cada vez mais posta em xeque pelas sociedades pós-modernas.

  • Legados culturais: dentre as realizações e produtos culturais apontamos neste eixo a obra narrativa de Mylene Fernández Pintado, muito premiada e incluída em antologias e que conta com publicações e traduções em Cuba e fora dela.

O componente de língua-discurso e gêneros discursivos: a heterogeneidade de vozes no conto

Trata-se de um componente que permite definir quais temas de língua-discurso, materializados em gêneros discursivos, estarão em foco. E vai além, pois nele se reconhece a relação interdependente entre a materialidade linguística (conteúdos fono-morfo-sintáticos) e os processos discursivos (Serrani, 2010Serrani, S. (2010). Discurso e cultura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita. Pontes Editores. , p. 34); ou seja, um pressupõe o outro, pois os conteúdos de língua são abordados em função dos sentidos.

Há um exterior, uma alteridade que constitui o sujeito e o seu dizer. Esse exterior toma o nome de interdiscurso (já definido antes) para a Análise do Discurso (apoio teórico neste trabalho), e de inconsciente para a Psicanálise (que produz um sujeito cindido). Uma das contribuições da primeira dessas ciências é a compreensão de que todo dizer é constitutivamente heterogêneo: “‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro lugar e independentemente’ [...]”, observa Pêcheux (2014Pêcheux, M. (2014). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, & Silvana Mabel Serrani. Editora da Unicamp. (Les Vérités de la Palice, 1975), p. 149) (grifos do autor). Com o nome de dialogismo, Bakhtin (2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal. Editora WMF Martins Fontes. , p. 293-297) refere esse exterior como: “As palavras da língua não são de ninguém [...] ou “Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados” [...]. O dizer não é apenas afetado pelo inconsciente, mas profundamente atravessado por outras vozes, outros discursos já ditos e esquecidos que fazem possível o dizer. Esse funcionamento da linguagem corresponde ao nível interdiscursivo, ou seja, às redes de discursos já ditos que ressoam na cadeia verbal. Mas não nos referimos aqui, como conteúdo de língua-discurso enfocado, a esse discurso outro, a essa memória discursiva que constitui o dizer, mas à voz do outro inscrita no efetivamente formulado pelo falante: particularmente, ao discurso relatado. Este mecanismo, é bom frisar, diz respeito ao nível intradiscursivo, que corresponde ao efetivamente formulado no “fio do discurso” (Pêcheux, 2014Pêcheux, M. (2014). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, & Silvana Mabel Serrani. Editora da Unicamp. (Les Vérités de la Palice, 1975), p. 153), ou seja, o dito na cadeia verbal, que guarda relação com o dito que lhe antecede e com o que será dito depois.

Para compreender essa heterogeneidade discursiva seguimos de perto as proposições teóricas de Authier-Revuz. A linguista francesa observa que há sempre uma negociação com o outro (o inconsciente, os discursos outros e dos outros) na constituição do sujeito e no seu discurso, o que ela chama de “heterogeneidade constitutiva”, que irrompe no discurso de maneira “não marcada” (mascarada) ou de maneira “marcada”. A autora distingue, entre as formas marcadas (“aquelas que mostram o lugar do outro de forma unívoca”), o discurso direto (DD) e o discurso indireto (DI); e como formas não marcadas (que exigem um trabalho interpretativo para reconhecer o outro e suas palavras na formulação), o discurso indireto livre (DIL) e o discurso direto livre (DDL) (Authier-Revuz, 1990Authier-Revuz, J. (1990). Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução Celene M. Cruz & João Wanderley Geraldi. Caderno de Estudos Linguísticos, 19, 25-42. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824/4545 (Acessado 3 de março, 2023).
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 36). No conto de que nos ocupamos, o interessante jogo de vozes das protagonistas sobre o que se constrói a história, materializado em extensos monólogos interiores que nos submergem nas subjetividades, anseios e frustrações das protagonistas, permite o enfoque da alteridade18 18 Entende-se aqui como o outro, as palavras do outro atravessando o nosso discurso. discursiva a partir das marcas do DR, um tema frequentemente enfocado em língua espanhola, desde uma perspectiva não enunciativa, como estilo indirecto, estilo directo e estilo indirecto libre.

Essa heterogeneidade de vozes (Sabina, Verónica, Sérgio-esposo de Verónica, narrador) é uma das singularidades de “Anhedonia” em termos de estratégia narrativa: na construção da história o narrador assume a perspectiva das protagonistas, que contam em primeira pessoa mediante a técnica do monólogo anterior, e este narrador só recupera a voz fugazmente na metade do conto para marcar a mudança de perspectiva: se na primeira parte a história é contada por Verónica, depois dessa intervenção para marcar a passagem para a voz de Sabina, conhecemos outra visão do narrado pela lente desta personagem; e é pela lente de ambas as protagonistas que Sergio entra na história. A partir dessa alternância de vozes o leitor tem acesso à subjetividade das protagonistas e ao efeito surpresa do conto. Até aqui destacamos, com base em critérios multirrede-discursivos, o que num movimento prévio do professor poderia ser salientado em termos de escolha de material paradidático para complementação em sala de aula e sua análise. Passemos ao seguinte componente.

O componente de Práticas de Linguagem(ns) em Oficinas Multirrede-Discursivas: articulando a temática cultural e o conteúdo de língua-discurso em textos em rede

O componente Práticas de Linguagem(ns) em Oficinas Multirrede-Discursivas, que incorpora de forma estreita os componentes anteriores, está constituído pela previsão/discussão de práticas de leitura (L), produção escrita (PE), produção oral (PO), compreensão auditiva (CA) e tradução (T), correntes em sala de aula de língua estrangeira que todo professor conhece e pratica. No processo pré-pedagógico, que, como definido pela professora Sophie Moirand (1979Moirand, S. (1979). Situations d’écrit: compréhension, production en français, langue étrangère. CLE international.), se refere à preparação previa e planejamento do professor das maneiras possíveis e adequadas em que os textos podem ser abordados nas práticas de sala de aula, é crucial que o professor selecione textos nos quais os temas culturais e de língua-discurso em foco no processo educativo sejam recorrentes, estejam em consonância com os objetivos formativos, apareçam em textos que permitam mostrar diversas posições de sentido desde perspectivas diferentes (o que permite trabalhar a heterogeneidade cultural e reflete o caráter multirrede da MR-D) e possibilitem uma tomada de posição do estudante em movimentos de construção de sentidos e conhecimentos na/pela/sobre a outra língua. Assim, além do conto “Anhedonia”, incluímos outro material - uma tirinha da Mafalda - na previsão das oficinas para abordar os temas antes identificados; a saber: o tema sociocultural - a mulher [cubana] e sua representação em discursos que circulam em sociedade, o que coincide com o eixo Pessoa e grupos sociais do componente intercultural - e o de língua-discurso - o discurso relatado na forma de DD, DI, DDL, DIL, explicitado no componente de língua-discurso e gêneros discursivos.

Por fim, cabe destacar o formato oficina como prática educacional privilegiada na MR-D: o intuito é propiciar um espaço de trabalho em que professor e estudantes compartilhem responsabilidades e aprendizados; dizendo em outras palavras: que o professor atue como mediador e não como detentor do saber, e que o estudante, por sua vez, seja autônomo e responsável pela sua aprendizagem. A proposta de oficinas é detalhada a seguir.

Oficina 1

Discussão de um planejamento de atividades (relações entre L-PO-CA): após a(s) leitura(s) do conto, propõe-se a discussão ou debate oral sobre sentidos para o conto “Anhedonia”, propiciado a partir de perguntas orientadas para esse fim em grupos de discussão. Referimo-nos a um trabalho de compreensão a nível global, a partir de questões voltadas para implícitos recuperáveis ou para informações explícitas no texto, por exemplo:

  • ¿Quiénes son las protagonistas de la historia?

  • ¿Qué relación hay entre ambas?

  • ¿En qué territorio/espacio transcurre la historia?

  • ¿Cómo está formada la familia construida por las protagonistas?

  • ¿Cómo podría describirse la vida de cada protagonista? 19 19 Quem são as protagonistas da história? Que relação há entre elas? Em que território/espaço se desenvolve a história? Como está formada a família construída pelas protagonistas? Como poderia descrever-se a vida delas?

Mas esse trabalho de construção de sentidos considerando a dimensão implícita e envolvendo o tema cultural em foco e o título do conto poderia ser propiciado por questionamentos como:

  • ¿Cuál es la temática abordada en el cuento? ¿Qué se narra en él?

  • ¿Qué significa anhedonia? ¿Tiene alguna relación con la historia que se cuenta?

  • ¿Las protagonistas vivencian alguna problemática o conflicto? Comenta.

  • ¿Se sienten (in)satisfechas con la vida que viven?

  • ¿Qué papel(es) las protagonistas desempeñan en sociedad, a partir de lo relatado en el cuento? ¿Qué opinan (os estudantes) de ese(os) papel(es)? ¿Hay algo en común con los papeles desempeñados en sociedad por las mujeres en la realidad de los participantes (Brasil, neste caso)?

  • ¿Cómo aparecen representadas las protagonistas Sabina y Verónica? ¿Es de forma estereotipada o no? ¿Por qué? 20 20 Qual é a temática abordada no conto? Que fatos se narram nele? O que significa anhedonia? Tem alguma relação com a história contada? As protagonistas vivenciam alguma problemática ou conflito? Comenta. Elas se sentem (in)satisfeitas com a vida que levam? Segundo o relatado no conto, que papel(éis) as protagonistas desempenham na sociedade? O que acham desse(s) papel(éis)? Há algo em comum com os papéis desempenhados pelas mulheres brasileiras? Como aparecem representadas as protagonistas Sabina e Verónica? É de forma estereotipada ou não? Por quê?

Dizemos acima “poderia” porque trata-se de perguntas meramente sugestivas. Entendemos que essa opção de motivar o debate por perguntas tem, em algum sentido, a intenção de controlar o processo de ensino-aprendizagem. Como nos alerta Coracini (1999Coracini, M. J. R. F. (1999). O Livro Didático dos Discursos da Linguística Aplicada e da Sala de Aula. In M. J. R. F. Coracini (Ed.), Interpretação, autoria e legitimação do livro didático: língua materna e língua estrangeira (pp. 17-26). Pontes., p. 22), o processo de ensino e de aprendizagem de línguas é tanto racional (do nível da cognição) quanto inconsciente, ou seja, foge ao nosso controle, pois os sentidos podem ser sempre outros, os sujeitos e a linguagem são opacos e ambos os processos são determinados “pelo modo de ver e de viver dos sujeitos”. Portanto, trata-se apenas de sugestão de questionamentos que podem ser explorados inicialmente para motivar o debate ou que podem ser explorados conforme as necessidades da prática de leitura-compreensão.

É importante destacar que a concepção de leitura que nos orienta aqui é a de leitura não como decodificação, mas como interação (Kleiman, 1989Kleiman, A. (1989). Leitura: ensino e pesquisa. Pontes.), como processo interpretativo afetado por determinadas condições: as condições de produção da leitura de estudantes e professor e as condições em que o texto foi produzido e nas que circula. O objetivo é trabalhar com a pluralidade de sentidos possíveis surgidos na relação dos estudantes com o texto, tendo sempre presente que a completude dos sentidos é uma ilusão do sujeito, pois os sentidos não são evidentes: ideologia e inconsciente têm um papel na constituição dos sujeitos e dos sentidos (Orlandi, 2013Orlandi, E. P. (2013). Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Pontes Editores.).

Para a discussão anteriormente proposta em grupos, pode ser oportuna a orientação prévia de leituras de materiais sobre o tema sociocultural em discussão ou os estudantes podem ficar livres para pesquisarem na internet textos que possam auxiliá-los para o debate ou ambas as estratégias podem complementar-se. Os materiais de leitura que poderiam ser propostos encontram-se elencados abaixo.

Neste artigo, a psicóloga volta seu olhar para os papéis e espaços tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres e a transgressão que supõe a inserção das últimas no âmbito público.

Oficina 2

Discussão de um planejamento de atividade 1 (relações entre L-PO-CA): em “Anhedonia” o coro de vozes (Sabina, Verónica, narrador, Sergio) que se faz escutar na narração se articula graças ao DR, que adota as formas de discurso direto, discurso direto livre, discurso indireto e discurso indireto livre. Seria oportuno um trabalho de reconhecimento dessas vozes e seu peso na história assim como observar as marcas que possibilitam identificá-las ou se aparecem diluídas no fio discursivo. Para tanto se faz necessária uma prática de sistematização dessas estratégias que permitem incluir o outro no discurso, como propomos na atividade seguinte.

Discussão de um planejamento de atividade 2 (relações entre L-PE): sistematizar de forma teórico-prática o DR (especificamente o DD, DI, DIL e o DDL), com auxílio de trabalhos com uma visão discursiva, como os de Authier-Revuz (1998Authier-Revuz, J. (1998). Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Editora da Unicamp.) e de Maingueneau (2013Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação. Cortez.) e numa perspectiva contrastiva no eixo espanhol-português, como os de Olga Regueira e Carlos R. Luis (2014Regueira, O., Luis, Carlos R. (2014). A frase imperativa citada. In A. P. Fanjul & N. M. González (Eds.), Espanhol e português: estudos comparados. (pp. 185-198). Parábola Editorial.) e de Fanjul (2011Fanjul, A. P. (Ed.) (2011). Gramática y Práctica de Español para brasileños. Moderna.). Como já foi dito antes, na perspectiva multirrede os conteúdos linguísticos são enfocados em função dos sentidos, com ênfase nos seus funcionamentos discursivos; o que não quer dizer que não haja um espaço para as regras e regularidades da língua, principalmente tratando-se da formação de professores, mas ela não constitui o centro dessa formação nas práticas previstas aqui.

Além de atividades escritas focadas nestes mecanismos pelos quais se mostra a heterogeneidade discursiva, pode ser interessante a orientação de fichamentos de textos sobre esse tópico da linguagem (pensando na formação de professores de espanhol em contexto universitário). Seria oportuno, nesse processo, observar que em gramáticas e livros didáticos o tratamento dado ao DR não tem sido muito satisfatório, não apenas pela omissão da presença do outro na constituição do discurso e do sujeito, mas porque exploram-se atividades restritas ao nível gramatical, nas quais se enfoca o DR como simples transmissão de mensagem, sem se observarem as circunstâncias da enunciação. Assim, pode ser pertinente apontar que o DR tem sempre a impronta da subjetividade que caracteriza a interpretação da situação e do ato enunciativo relatado: o discurso relatado passa sempre pelo crivo do enunciador (Authier-Revuz, 1998Authier-Revuz, J. (1998). Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Editora da Unicamp., p. 149), pois o “funcionamento do discurso”, nos lembra Orlandi (2013Orlandi, E. P. (2013). Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Pontes Editores., p. 40), se assenta na dimensão imaginária. Seria proveitoso, por fim, examinar esses mecanismos desde uma perspectiva contrastiva no eixo espanhol-português.

Discussão de um planejamento de atividade 3 (relações entre L-PE-PO-CA): reconhecer a presença do outro e circular pelas diversas formas que pode adotar seu discurso:

Observa los siguientes enunciados abajo tomados del cuento “Anhedonia”. ¿Quién o quiénes hablan en esos enunciados? ¿Aparecen marcas de discurso directo, indirecto, indirecto libre o directo libre que facilitan el reconocimiento de esas voces? 21 21 Observa os seguintes enunciados retirados do conto “Anhedonia”. Quem fala nesses enunciados? Aparecem marcas de discurso direto, indireto, indireto livre ou direto livre que facilitem o reconhecimento dessas vozes?

  1. Estaba imitando a todos con considerable éxito en el estrado del aula y cuando llegó a mí dijo: no, tú no, eres demasiado corriente22 22 Imitava a todos com sucesso na plataforma da sala e quando chegou a vez de me imitar, me disse: não, você não, você é muito comum. (Fernández Pintado, 2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., p. 286).

  2. Todavía no puedo ubicar bien en qué momento Sergio dejó de enamorarme para adoptarme. Debe haber sido lentamente, sin darme cuenta […] Él sabe todo, lo que me conviene a mí, a Víctor, a la casa, a mi trabajo, mi familia, amigos, hobbies. A veces (para ser sincera son las menos) discutimos; cuando digo discutir no hablo de exponer cada uno de nosotros puntos de vista diferentes y enfrentarlos con raciocinio, sino de ataques de histeria provocados por tantas cosas acumuladas sin salida, lo cual hace que yo le deje de hablar tres días porque demoró en contestar el teléfono. Solo yo sé que esa reacción es una respuesta concentrada a mis inconformidades de hace tres meses. Pero como no se lo digo, Sergio vive convencido de que soy una neurótica con respuestas descomunales para cosas insignificantes en las que además nunca tengo la razón. Pero la mayoría de las veces estoy muy cansada para discutir, entonces lo dejo vivir por los dos23 23 Ainda não consigo situar em que momento Sergio deixou de me cortejar para me adotar. Deve ter sido devagar, sem eu perceber [...] Ele sabe tudo, o que convém a mim, ao Víctor, à casa, ao meu trabalho, família, amigos, hobbies. Às vezes (para ser sincera são poucas) discutimos; quando falo discutir não me refiro a cada um expor nossos pontos de vista diferentes e enfrentá-los de maneira lógica, mas a ataques de histeria provocados por muitas coisas acumuladas, o que faz com que eu deixe de falar com ele por três dias porque demorou em atender o telefone. Só eu sei que essa reação é uma resposta concentrada às minhas inconformidades acumuladas três meses atrás. Mas como não digo nada para ele, Sergio vive convencido de que sou uma neurótica com respostas descomunais para coisas insignificantes nas quais, aliás, nunca tenho a razão. Mas a maioria das vezes estou muito cansada para discutir, então deixo que ele viva por nós dois. (Fernández Pintado, 2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., p. 289).

  3. Me dijo que sigue trabajando donde siempre. A decir verdad Verónica es inteligente, lógica e intuitiva, tiene la sensibilidad y las angustias de los artistas y los genios; pero eso solo lo sabemos nosotras24 24 Disse que continua trabalhando no mesmo lugar. Para falar a verdade Verónica é inteligente, lógica e intuitiva, tem a sensibilidade e as angústias dos artistas e dos gênios; mas isso só o sabemos nós duas. (Fernández Pintado, 2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos., p. 295).

Reescribe los ejemplos de manera que el relato aparezca en la voz de otro personaje: por ejemplo, que lo dicho por Sabina aparezca relatado por Verónica. Recuerda hacer las reformulaciones necesarias a partir de lo estudiado y teniendo en cuenta los modos de enunciar de las protagonistas y las posiciones que ellas ocupan en el relato 25 25 Reescreve os exemplos de maneira que o relato apareça na voz de outro personagem: por exemplo, que o dito por Sabina apareça na voz de Verónica. Lembra fazer as reformulações necessárias a partir do que foi estudado e levando em consideração os modos de enunciar das protagonistas e as posições que elas ocupam no relato. .

Por exemplo, em c) temos uma voz (Sabina) que fala em 3ª pessoa para relatar o dito por Verónica a ela (visível no verbo dijo e no objeto indireto me) e verbalizar a imagem que tem da amiga (Verónica es inteligente, por exemplo); também tem-se um sujeito coletivo (sabemos) que inclui ambas as protagonistas na 1ª pessoa do plural. No caso de “Me dijo que sigue trabajando donde siempre”, as marcas de língua (verbo dicendi dijo e pronome relativo que para introduzir as palavras do outro) apontam para a presença do discurso indireto. Há também um marcador discursivo, a decir verdad, que funciona como um modalizador ao indicar uma valoração subjetiva do falante e o compromisso deste com a verdade (Briz et al, 2008Briz, A., Pons, S., & Portolés, J. (Coords.). (2008). Diccionario de partículas discursivas del español. http://www.dpde.es/#/ (Acessado 3 de março, 2023).
http://www.dpde.es/#/...
). Observa-se, nessa modalização das palavras de Sabina, uma preocupação com o outro que lê, com as possíveis inferências que ele possa vir a fazer e com a percepção que ele possa ter do argumento de verdade posto pela protagonista para construir a imagem da Verónica. Outros marcadores que cumprem papel similar a “a decir verdad” são: en honor a la verdad, en verdad, francamente, hablando en plata, la verdad, para qué nos vamos a engañar, sinceramente, dentre outros (Holgado Lage, 2017Holgado Lage, A. (2017). Diccionario de Marcadores Discursivos para estudiantes de español como segunda lengua. Peter Lang., p. 4).

Ao modificarmos c) de maneira que quem fale seja Verónica, poderia ficar assim:

Le dije que sigo trabajando donde siempre, donde no hago más que lo que me piden, aunque todos piensen que me esfuerzo. En verdad, Sabina cree que soy inteligente, lógica e intuitiva, que tengo la sensibilidad y las angustias de los artistas y los genios; la imaginación, recurso que los otros tienen para disfrazar nuestra ridícula cotidianidad.

Podemos observar que, para dar voz à protagonista Verónica, é necessário mudar o objeto indireto para indicar quem escuta o dito (me por le) e a conjugação dos verbos segundo a pessoa: decir (dijo por dije) e seguir (sigue por sigo). Na sequência o que temos é uma projeção imaginária que ocorre por antecipação. Como sabemos com Pêcheux (2010Pêcheux, M. (2010). Análise automática do discurso (AAD-69). In F. Gadet & T. Hak (Eds.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução Bethania S. Mariani et al. (pp. 59-106). Editora da Unicamp. , p. 82-83), todo processo discursivo descansa em formações imaginárias, isto é: os interlocutores se representam imaginariamente a si e ao outro (as posições ocupadas) bem como o objeto de seu discurso. Mas os interlocutores podem ainda antecipar essas representações imaginárias, quando se colocam no lugar do outro. É o que acontece em “Sabina cree que soy inteligente, lógica e intuitiva, que tengo la sensibilidad y las angustias de los artistas y los genios”, onde Verónica relata algo que é fruto da imagem que ela acredita que Sabina tem de Verónica, que resume em “mediocre, aburrida y resignada, una trilogía nada envidiable”. É como si ela estivesse se enxergando pelos olhos da Sabina, o que pode ou não coincidir com a imagem que esta tem dela, atravessada também pela sua autoimagem, materializada em: aunque todos piensen que me esfuerzo e la imaginación, recurso que los otros tienen para disfrazar nuestra ridícula cotidianidad. No discurso relatado, lembramos, o dito passa sempre pela subjetividade e interpretação de quem enuncia. Nesse jogo imaginário foi uma escolha utilizar o verbo de pensamento creer, mas se faz inevitável acrescentar o relativo que e mudar a conjugação dos verbos ser e tener para a primeira pessoa do singular para inscrever o enunciado no DI. Por fim, foi necessário utilizar outra expressão modalizadora (neste caso, o marcador discursivo en verdad) para manter o compromisso da protagonista com a verdade de suas palavras.

Por fim, uma última oficina para ilustrar a rede de textos que permitem o trabalho do mesmo tema sociocultural a partir de diversos posicionamentos enfocaria outro gênero discursivo em outro suporte, por exemplo, o gráfico, ilustrado com uma tirinha de Mafalda, cuja escolha se justifica pela coincidência temática com “Anhedonia”. A tirinha pertence a Quino, reconhecido cartunista argentino falecido em 2020. As Histórias em Quadrinho (HQ) da Mafalda se inserem num contexto de efervescência política, principalmente em relação às ditaduras na América Latina e, a nível mundial, na luta pelos direitos das mulheres no âmbito dos movimentos feministas, que tiveram seu auge precisamente nas décadas de 60 e 70, quando as histórias da Mafalda foram veiculadas na imprensa argentina, segundo dados apresentados em Silva (2012Silva, C. L. M. (2012). A emancipação feminina em Mafalda: uma análise discursiva de tiras. Tabuleiro de Letras. Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, 4. http://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/article/view/160 (Acessado 3 de março, 2023).
http://www.revistas.uneb.br/index.php/ta...
, p. 4). Carregadas de uma determinada ideologia, as HQ de Quino costumam pôr em xeque, pelo viés humorístico, pelo equívoco e pela ironia, uma série de assuntos que continuam tendo vigência na atualidade, como a opressão da América Latina, o consumismo, a manipulação da propaganda, a corrupção, a (in)felicidade, a democracia, os dilemas das mulheres, dentre outros. A tirinha é a seguinte:

Figura 1
Tirinha de Mafalda

Na configuração dos personagens de Quino, Susanita é sempre representada pelo estereótipo da mulher frívola, superficial, e Mafalda, uma enfant terrible (Gociol, 2001Gociol, J. (2001). Cronología. In J. Salvador Lavado (Quino), Toda Mafalda. (pp. 655-656). Ediciones de la Flor., p. 656) que aparece sempre como a contestadora, engajada politicamente e defensora dos direitos das mulheres. Se em “Anhedonia” Verónica questiona o estereótipo de gênero que atribui como papel das mulheres a dedicação exclusiva à reprodução e ao cuidado dos outros (casamento e filhos) e Sabina, o estereótipo da mulher moderna, cuja aspiração de sucesso profissional num mundo trabalhista pautado por normas “masculinas” lhe acarreta um severo desgaste emocional - dado pelas contradições decorrentes da renúncia à maternidade, ao casamento e a uma feminidade histórica e culturalmente inculcada -, a tirinha permite indagar sobre a mesma problemática, porém, a partir de deslocamentos de sentido. Aqui, como Fernández Pintado em “Anhedonia”, Quino opõe duas personagens ideologicamente contrárias no que tange à emancipação das mulheres e ao seu papel na sociedade; entretanto, na tirinha há uma crítica velada por parte de Mafalda, recuperável no discurso de Susanita, à escolha desta última que, aferrada a um sentido historicamente legitimado do signo mulher, opta pelo confinamento ao espaço privado e aos afazeres domésticos como principal e única ocupação. Para Mafalda, a realização da mulher viria pelo estudo e o acesso a uma profissão de prestígio. Se nesse ponto da tirinha podemos dizer que o lugar da mulher é exatamente aquele que ela escolher, entretanto, no confronto entre ambas, o discurso de Susanita de não sujeição às exigências de Mafalda rui pelo equívoco entre feminista e “afeminado” e sobrevive a desvalorização do espaço doméstico diante de um futuro profissional como único caminho possível para a mulher. Esta proposta de oficina é descrita a seguir.

Oficina 3

Discussão de um planejamento de atividade 1 (relações entre PO-CA-L): leitura e discussão oral da tirinha de Mafalda, centrada primeiramente nos efeitos de sentido e, posteriormente, no diálogo possível entre “Anhedonia” e a HQ, podendo esse diálogo abarcar as representações das posições-sujeito ocupadas por Sabina, Verónica, Mafalda e Susanita, assim como os pontos de contato ou distanciamento evidentes nas contradições e críticas que os papéis desempenhados e/ou cobiçados provocam nas personagens.

Discussão de um planejamento de atividade 2 (relações entre L-PE): aqui poderia propor-se uma produção escrita que pode consistir num breve ensaio ou texto narrativo/relato em formato e-mail de algo vivido sobre o tema cultural abordado na Oficina 1 e nesta (3). O objetivo é que os estudantes se posicionem a respeito do(s) papel(éis) desempenhado(s) (e exigidos) pelas mulheres em sociedade, articulando as discussões levantadas sobre “Anhedonia” e a tirinha de Mafalda, com ênfase na relação das protagonistas com o trabalho realizado e/ou esperado/exigido. Na orientação dessa produção escrita, poderia sugerir-se a inclusão da situação das mulheres na cultura de partida (Brasil) ou na cultura dos estudantes participantes das oficinas. Essa produção deveria percorrer necessárias etapas de reformulações para se chegar à versão final e os resultados finais poderiam ser lidos em voz alta no intuito de os participantes perceberem (e compartilharem) diversas tomadas de posição sobre o tema trabalhado ao longo dos encontros.

Discussão de um planejamento de atividade 3 (relações entre L-PE): realizando as modificações pertinentes, de acordo com o contexto específico da tirinha e a perspectiva em que se posicionem os aprendizes, poderia relatar-se o dito por Susanita a Mafalda utilizando o DD, o DI, o DDL ou o DIL, trabalhados anteriormente na outra oficina. O foco estaria na sistematização deste conteúdo de língua-discurso em exemplos contextualizados, retirados da tirinha de Quino. A modo de exemplo, se nos colocarmos na posição de Mafalda, esta, entrando na história, poderia relatar o dito por Susanita conforme a Figura 2.

Figura 2
Relato da fala de Susanita26 26 Susanita me disse que estou louca e depois se esgoelou: Eu fazer faculdade? Não conseguimos chegar a um acordo.

Nessa possibilidade de relato da personagem observam-se duas modalidades de DR, o discurso indireto (no uso do verbo dijo e do relativo que) e o discurso direto (materializado no verbo desgañitarse, para introduzir de maneira mais expressiva o dito por Susanita, e no uso dos dois pontos), além de alterações nas pessoas em que aparecem conjugados os verbos em negrito. Consideramos essencial, nesta atividade, expor os estudantes a várias vinhetas ou HQ da Mafalda. O professor pode encontrar materiais clicando nos links 1e 2.

Tal exposição promove a familiarização com seu modo de enunciar, de se relacionar com os outros personagens e de se posicionar perante determinados assuntos. Outra finalidade desta proposta seria promover a criatividade dos alunos. Fruto dessa junção (entre manter um comportamento já sedimentado da Mafalda e a ruptura, o novo) é o uso do verbo desgañitarse (‘esgoelar-se’) e a frase acrescentada à tirinha: No nos ponemos de acuerdo (entre muitas outras possibilidades), que mostra a percepcão de Mafalda da tomada explosiva da palavra por Susanita, sua avaliação da situação relatada e a não concordância com o posicionamento da amiga.

Discussão de um planejamento de atividade 4 (relações entre L-PE): como atividade de encerramento da oficina, poderia orientar-se a criação de uma história em quadrinho sobre “Anhedonia”, em que os aprendizes pudessem escolher uma cena do conto e ilustrá-la numa tirinha ou elaborá-la criativamente a partir de suas interpretações do conto.

5. Algumas considerações finais

Língua e literatura “formam uma parceria inquestionável, nata”, apesar de que “muitas vezes opera-se uma dicotomia, por força de contingências institucionais, que dissimula a natureza dessa confluência incontornável” (Brait, 2013Brait, B. (2013). Literatura e outras linguagens. Contexto., p. 15). Não temos dúvida disso. Retomando essa relação, iniciamos este trabalho refletindo sobre a formação intercultural de professores de espanhol, com especial consideração do papel da literatura nesse processo. Para ilustrar de forma concreta essa possibilidade formativa em nível de ensino superior, trouxemos para análise o conto “Anhedonia”, da narradora cubana Mylene Fernández Pintado (2013Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos.), abordado na perspectiva da Proposta Multirrede-Discursiva de Silvana Serrani (2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores.).

É necessário destacar que o nosso objetivo foi apresentar uma discussão teórico-metodológica, voltada para professores e formadores de professores de espanhol, de lineamentos que ilustram uma possibilidade - entre tantas - de trabalho do tema sociocultural: a mulher (a cubana, especificamente) e sua representação em sociedade, tão necessário no nosso cotidiano, e do de língua-discurso: o discurso relatado, de forma imbricada, pela via da literatura. Trata-se, portanto, de apenas um caminho para pensar numa formação que articule conhecimentos interculturais a saberes linguístico-discursivos, de modo que mobilizem subjetivamente os aprendizes no sempre imprevisível e tenso encontro com uma língua estrangeira, em especial, o espanhol para o brasileiro.

Assim, no planejamento das práticas, em forma de oficinas, procuramos estabelecer uma rede de textos - conto e história em quadrinho - na qual a literatura não fosse pretexto, mas materialidade significante na constituição de um professor que se forma em espanhol e de seu acesso aos sentidos e discursos que circulam no mundo. Acreditamos que uma aprendizagem realmente significativa, contextualizada, no âmbito da formação de um professor, trará ganhos positivos para sua prática profissional futura, na qual possa mobilizar saberes e ferramentas oportunas na formação de aprendizes cientes de seu papel em sociedade e capazes de ler em profundidade os discursos que circulam no mundo.

Agradecimentos

Agradecemos profundamente a leitura atenta da professora Silvana Serrani e as instigantes discussões sobre as reflexões e oficinas aqui propostas.

Referências

  • Authier-Revuz, J. (1990). Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução Celene M. Cruz & João Wanderley Geraldi. Caderno de Estudos Linguísticos, 19, 25-42. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824/4545 (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824/4545
  • Authier-Revuz, J. (1998). Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Editora da Unicamp.
  • Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal. Editora WMF Martins Fontes.
  • Biroli, F. (2014). O público e o privado. In L. F. Miguel & F. Biroli, Feminismo e política: uma introdução (pp. 31-46). Boitempo.
  • Brait, B. (2000). Língua e literatura: uma falsa dicotomia. Revista ANPOLL, 8, 187-206. https://doi.org/10.18309/anp.v1i8.355
    » https://doi.org/10.18309/anp.v1i8.355
  • Brait, B. (2013). Literatura e outras linguagens. Contexto.
  • Brasil. (2006). Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
    » http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf
  • Brasil. Parecer CNE/CES 492/2001, de 3 de abril de 2001. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
    » http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf
  • Briz, A., Pons, S., & Portolés, J. (Coords.). (2008). Diccionario de partículas discursivas del español. http://www.dpde.es/#/ (Acessado 3 de março, 2023).
    » http://www.dpde.es/#/
  • Clarín Digital. (2016). Esas mil maneras de ser mujer. https://www.clarin.com/genero/nace-mujer-llega-serlo-dia_0_H1fGBhKwmx.html (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://www.clarin.com/genero/nace-mujer-llega-serlo-dia_0_H1fGBhKwmx.html
  • Coimbra, L., Chaves, L. S., & Barcia, P. L. (2013). Cercanía joven: espanhol, 2º ano. SM.
  • Coracini, M. J. R. F. (1999). O Livro Didático dos Discursos da Linguística Aplicada e da Sala de Aula. In M. J. R. F. Coracini (Ed.), Interpretação, autoria e legitimação do livro didático: língua materna e língua estrangeira (pp. 17-26). Pontes.
  • Fanjul, A. P. (Ed.) (2011). Gramática y Práctica de Español para brasileños. Moderna.
  • Fernández Pintado, M. (2013). Anhedonia. In H. Hernández Hormilla, Palabras sin velo: entrevistas y cuentos de narradoras cubanas (pp. 286-297). Editorial Caminos.
  • Fernández Rius, L. (2000). Roles de género y mujeres académicas. Ciencias Sociales, 88, 63-75. https://investigacion.cephcis.unam.mx/generoyrsociales/wpcontent/uploads/2015/01/Roles-de-genero-y-mujeres academicas.compressed.compressed-1.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://investigacion.cephcis.unam.mx/generoyrsociales/wpcontent/uploads/2015/01/Roles-de-genero-y-mujeres academicas.compressed.compressed-1.pdf
  • Gociol, J. (2001). Cronología. In J. Salvador Lavado (Quino), Toda Mafalda. (pp. 655-656). Ediciones de la Flor.
  • Holgado Lage, A. (2017). Diccionario de Marcadores Discursivos para estudiantes de español como segunda lengua. Peter Lang.
  • Kleiman, A. (1989). Leitura: ensino e pesquisa. Pontes.
  • Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação. Cortez.
  • Moirand, S. (1979). Situations d’écrit: compréhension, production en français, langue étrangère. CLE international.
  • Orlandi, E. P. (2013). Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Pontes Editores.
  • Pêcheux, M. (2010). Análise automática do discurso (AAD-69). In F. Gadet & T. Hak (Eds.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução Bethania S. Mariani et al. (pp. 59-106). Editora da Unicamp.
  • Pêcheux, M. (2014). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, & Silvana Mabel Serrani. Editora da Unicamp. (Les Vérités de la Palice, 1975)
  • Pinheiro-Côrrea, P., & Lagares, X. (2016). Confluencia. Moderna.
  • Regueira, O., Luis, Carlos R. (2014). A frase imperativa citada. In A. P. Fanjul & N. M. González (Eds.), Espanhol e português: estudos comparados. (pp. 185-198). Parábola Editorial.
  • Salvador Lavado (Quino), J. (2001). Toda Mafalda. Ediciones de la Flor.
  • Santos, M. (2014). Metamorfoses do espaço habitado. Fundamentos teóricos e metodológicos de geografia. EdUsp.
  • Serrani, S. (2010). Discurso e cultura na aula de língua. Currículo, leitura, escrita. Pontes Editores.
  • Serrani, S. (2013). Entrevista com Silvana Serrani. [Entrevista concedida a] Maite Celada e Jorge Rodrigues Souza Junior. Abehache, 1(1), 89-100. https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/view/102/101 (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/view/102/101
  • Serrani, S. (2014). La noción de cultura, la lengua y los Estudios Hispánicos: un enfoque discursivo-cultural de un poema de Benedetti. Intersecciones. Revista da APEESP, 2, 15-39. http://www.apeesp.com.br/wp-content/uploads/03_CONF_SILVANA.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
    » http://www.apeesp.com.br/wp-content/uploads/03_CONF_SILVANA.pdf
  • Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores.
  • Silva, C. L. M. (2012). A emancipação feminina em Mafalda: uma análise discursiva de tiras. Tabuleiro de Letras. Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, 4. http://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/article/view/160 (Acessado 3 de março, 2023).
    » http://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/article/view/160
  • Silva Júnior, A. C., & Doris Cristina V. S. M. (2019). Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista interdisciplinar Sulear, 2, 101-116. https://revista.uemg.br/index.php/sulear/article/view/4154/2227 (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://revista.uemg.br/index.php/sulear/article/view/4154/2227
  • Souza Júnior, J. R. (2010). A literatura no ensino de espanhol a brasileiros: o teatro como centro de uma prática multidimensional-discursiva [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual de Campinas. https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/775670 (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/775670
  • Souza Júnior, J. R. (2013a). Literatura em ensino de línguas - materialidade discursivo-cultural em aulas de espanhol como língua estrangeira. Intersecciones - Revista da APEESP, 1, 65-87. http://www.apeesp.com.br/wp-content/uploads/65_87.pdf (Acessado 3 de março, 2023).
    » http://www.apeesp.com.br/wp-content/uploads/65_87.pdf
  • Souza Júnior, J. R. (2013b). O funcionamento discursivo de textos literários como processo de interpelação de sujeitos aprendizes de espanhol. Abehache, 4, 109-125. https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/view/108/107 (Acessado 3 de março, 2023).
    » https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/view/108/107
  • 2
    Por motivos de espaço não será possível fazer uma apresentação detalhada da MR-D, por isso remeto o leitor a Serrani (2020Serrani, S. (2020). A proposta multirrede-discursiva: antecedentes, descrição geral e exemplos. Em S. Serrani (Ed.), Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso (pp. 29-63). Pontes Editores.).
  • 3
    Segundo os critérios estabelecidos no Marco Común Europeo de Referencia para las Lenguas (MCER), disponível em: https://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/marco/cvc_mer.pdf, este aprendiz consegue se comunicar de maneira fluida por meio de textos simples, coerentes e claros.
  • 4
    Que linguisticamente se materializa na forma de discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre e discurso direto livre.
  • 5
    A memória discursiva, para a AD, é “o saber discursivo que torna possível todo dizer” (Orlandi, 2013Orlandi, E. P. (2013). Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Pontes Editores., p. 31), disponibilizando significados já dados com os quais nos identificamos em momentos sócio-históricos determinados. É também conhecida como interdiscurso.
  • 6
    Sob a influência de Orlandi (2013Orlandi, E. P. (2013). Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Pontes Editores., p. 40), entendemos a posição, ou ainda, a posição-sujeito não como o papel desempenhado pelos sujeitos em sociedade, mas como a posição ocupada pelos sujeitos no discurso; posição essa decorrente das imagens por nós produzidas num dado contexto sócio-histórico.
  • 7
    Filiamo-nos aqui ao conceito de ideologia de Pêcheux (2014Pêcheux, M. (2014). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, & Silvana Mabel Serrani. Editora da Unicamp. (Les Vérités de la Palice, 1975), p. 139), segundo o qual é a ideologia que, “produzindo um tecido de evidências ‘subjetivas’” (grifos do autor), interpela o indivíduo em sujeito e o leva a se identificar com um sentido e não outro para significar; ou seja, é por um efeito ideológico que os sentidos nos parecem evidentes quando interpretamos a realidade que nos cerca e não os questionamos, mas nos assujeitamos a eles.
  • 8
    Ocorrido em dois momentos: num debate propiciado na disciplina “Espanhol Peninsular e Espanhol de América” e na avaliação final da disciplina “Língua Espanhola”, em que os estudantes refletiram sobre suas competências em espanhol e as disciplinas da grade curricular.
  • 9
    Este conceito será abordado em maior detalhe na seção 4.2.
  • 10
    Com o consentimento da autora, manifesto em conversa pessoal.
  • 11
  • 12
  • 13
  • 14
    Quando Sabina e eu nos encontramos depois de tantos anos, minha vinheta era das piores que se possa imaginar. Como se eu tivesse um carimbo estampado na testa que me classificasse: medíocre, chata e resignada, uma trilogia nada invejável. (Não havendo tradução do conto para o português, assumimos a autoria dos exemplos traduzidos em nota de rodapé assim como das citações em espanhol).
  • 15
    Quando a achei queria beijá-la, tocar seu cabelo, dizer a ela que estava linda com um filho que eu podia querer como meu. [...] Parei o carro ou acho que ele parou sozinho, tão assustado quanto eu. Desci, abri a porta e ela entrou. Dei carona até sua casa. Abri a porta de novo e ela desceu. Um motorista obediente prestando um serviço obediente. Como se eu fosse o cachorrinho da RCA Víctor ela a voz do dono.
  • 16
    Uma análise dessas coleções em relação ao recorte de vozes tradicionalmente subalternizadas numa perspectiva decolonial pode ser encontrada em Silva Júnior e Matos (2019Silva Júnior, A. C., & Doris Cristina V. S. M. (2019). Linguística Aplicada e o SULear: práticas decoloniais na educação linguística em espanhol. Revista interdisciplinar Sulear, 2, 101-116. https://revista.uemg.br/index.php/sulear/article/view/4154/2227 (Acessado 3 de março, 2023).
    https://revista.uemg.br/index.php/sulear...
    ).
  • 17
    As oficinas mais adiante apresentadas se concentram no trabalho nesse eixo.
  • 18
    Entende-se aqui como o outro, as palavras do outro atravessando o nosso discurso.
  • 19
    Quem são as protagonistas da história? Que relação há entre elas? Em que território/espaço se desenvolve a história? Como está formada a família construída pelas protagonistas? Como poderia descrever-se a vida delas?
  • 20
    Qual é a temática abordada no conto? Que fatos se narram nele? O que significa anhedonia? Tem alguma relação com a história contada? As protagonistas vivenciam alguma problemática ou conflito? Comenta. Elas se sentem (in)satisfeitas com a vida que levam? Segundo o relatado no conto, que papel(éis) as protagonistas desempenham na sociedade? O que acham desse(s) papel(éis)? Há algo em comum com os papéis desempenhados pelas mulheres brasileiras? Como aparecem representadas as protagonistas Sabina e Verónica? É de forma estereotipada ou não? Por quê?
  • 21
    Observa os seguintes enunciados retirados do conto “Anhedonia”. Quem fala nesses enunciados? Aparecem marcas de discurso direto, indireto, indireto livre ou direto livre que facilitem o reconhecimento dessas vozes?
  • 22
    Imitava a todos com sucesso na plataforma da sala e quando chegou a vez de me imitar, me disse: não, você não, você é muito comum.
  • 23
    Ainda não consigo situar em que momento Sergio deixou de me cortejar para me adotar. Deve ter sido devagar, sem eu perceber [...] Ele sabe tudo, o que convém a mim, ao Víctor, à casa, ao meu trabalho, família, amigos, hobbies. Às vezes (para ser sincera são poucas) discutimos; quando falo discutir não me refiro a cada um expor nossos pontos de vista diferentes e enfrentá-los de maneira lógica, mas a ataques de histeria provocados por muitas coisas acumuladas, o que faz com que eu deixe de falar com ele por três dias porque demorou em atender o telefone. Só eu sei que essa reação é uma resposta concentrada às minhas inconformidades acumuladas três meses atrás. Mas como não digo nada para ele, Sergio vive convencido de que sou uma neurótica com respostas descomunais para coisas insignificantes nas quais, aliás, nunca tenho a razão. Mas a maioria das vezes estou muito cansada para discutir, então deixo que ele viva por nós dois.
  • 24
    Disse que continua trabalhando no mesmo lugar. Para falar a verdade Verónica é inteligente, lógica e intuitiva, tem a sensibilidade e as angústias dos artistas e dos gênios; mas isso só o sabemos nós duas.
  • 25
    Reescreve os exemplos de maneira que o relato apareça na voz de outro personagem: por exemplo, que o dito por Sabina apareça na voz de Verónica. Lembra fazer as reformulações necessárias a partir do que foi estudado e levando em consideração os modos de enunciar das protagonistas e as posições que elas ocupam no relato.
  • 26
    Susanita me disse que estou louca e depois se esgoelou: Eu fazer faculdade? Não conseguimos chegar a um acordo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2021
  • Aceito
    25 Fev 2022
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br