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A preparação para o ENEM em pré-universitários populares: conhecimentos exigidos pelas provas de espanhol

ENEM preparation in popular preparatory courses for university entry examinations: the knowledge required for the Spanish exam

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar provas de espanhol do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de modo a qualificar o planejamento e a produção de materiais didáticos para as aulas de Espanhol em Pré-Universitários Populares, espaços educativos que têm como finalidade principal a democratização do acesso ao ensino superior. A reflexão sobre tal contexto de ensino apoiou-se nos pressupostos freirianos referentes à Educação Popular (Freire, 2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.), relacionando-os ao conceito bakhtiniano de dialogismo e a relação intrínseca entre língua e vida. Como aporte teórico para a análise das provas de espanhol, também utilizamos os pressupostos teórico-metodológicos relacionados às capacidades de linguagem (Dolz; Schneuwly, 1998Dolz, J., & Schneuwly, B. (1998). Les capacités orales de apprenants. In J. Dolz & B. Schneuwly (Org.), Pour un enseignement de l´oral: initiation aux genres formels à l´école (pp. 75-89). EFS Editéur.; 2010Dolz, J., Schneuwly, B., Sales, G., & Rojo, R. (2010). Gêneros orais e escritos na escola. Mercado de Letras.), refletidos nos procedimentos metodológicos adotados. Os resultados evidenciaram a necessidade de preparar um material voltado para a formação consciente e cidadã dos estudantes e para a formação de leitores capazes de mobilizar conhecimentos de mundo e de compreender os contextos de produção dos textos, uma vez que a capacidade de ação é um dos conhecimentos mais mobilizados para a solução das questões dos exames.

Palavras-chave:
pré-universitários populares; língua espanhola; ENEM

ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze Spanish exams for the National High School Examinations (ENEM) to improve the planning and production of pedagogical materials for Spanish classes at Popular Preparatory Courses for University Entry Examinations. Such courses aim to enable students from all walks of life to access higher education. The reflection presented in this paper on Popular Preparatory Courses for University Entry Examinations was based on the Freirian assumptions regarding Popular Education (Freire, 2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.). These assumptions were then related to the Bakhtinian concept of dialogism and the intrinsic relations that exist between language and life. The theoretical pedagogical assumptions related to language capacities (Dolz; Schneuwly, 2004), were used as a theoretical basis and a methodological framework for the analysis of the Spanish exams. The results suggested a need for elaborating teaching materials that aim to raise awareness to social and civil duties as well as to prepare students to become readers that can both use their world knowledge in and understand the context of production of the texts they are reading. After all, readers that can put their world knowledge into action and have a better understanding of the locus of the texts they read are more successful in answering exam questions.

Keywords:
popular preparatory courses for university entry examinations; Spanish language; ENEM (National High School Examination)

1. Introdução: começando a conversa

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ainda é uma das principais formas de acesso dos brasileiros ao ensino superior. Uma avaliação de larga escala que surgiu com a proposta de englobar a grande diversidade cultural, histórica e educacional deste país geograficamente tão extenso. No entanto, o acesso às universidades no Brasil segue sendo desigual e excludente, o que faz emergir a iniciativa dos pré-universitários populares (PUP’s). Os PUP’s são organizações que tencionam democratizar o ingresso no mundo universitário, oferecendo oportunidades de estudo viáveis para estudantes em situação de vulnerabilidade e pertencentes a minorias sociais. Para que se possa elaborar uma preparação adequada dos materiais didáticos e das aulas, é necessário que se compreenda como se estrutura tal avaliação, quais são os conhecimentos exigidos por esse exame e a forma como eles são abordados nas questões. Isso posto, neste trabalho procuramos evidenciar que tipo de conhecimento a prova de Língua Espanhola do ENEM afere e, por conseguinte, que tipo de leitor precisamos preparar no contexto dos PUP’s da cidade de Porto Alegre/RS, que são o nosso recorte. Para tratar de todas essas questões, iniciamos nosso artigo com uma breve contextualização sobre a Educação Popular pré-universitária, destacando a importância de, como diria Fiori (apud Freire, 2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra., p. 17), “aprender a dizer a sua palavra” nesse cenário.

Considerando que as provas do ENEM têm como base questões interpretativas elaboradas a partir da leitura de diferentes gêneros de texto, na seção seguinte, explicitamos as questões atinentes ao campo da Linguística Aplicada, como a definição da nossa concepção de linguagem e demais pontos vinculados ao estudo dos gêneros textuais, das esferas da atividade humana, dos temas transversais e das capacidades de linguagem exigidas dos candidatos. Para a investigação utilizamos aportes teóricos que, ao nosso ver, se complementam: (1) de Freire (2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.), apoiamo-nos nas definições e nos objetivos da Educação Popular, público-alvo de nosso estudo; (2) de Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização e tradução de Paulo Bezerra. Editora 34.), utilizamos a definição de gênero e a relação defendida por esse autor entre língua e vida, ou ainda, como uma forma de ser e estar no mundo por meio da linguagem; (3) de Dolz e Schneuwly (1998Dolz, J., & Schneuwly, B. (1998). Les capacités orales de apprenants. In J. Dolz & B. Schneuwly (Org.), Pour un enseignement de l´oral: initiation aux genres formels à l´école (pp. 75-89). EFS Editéur.; 2010Dolz, J., Schneuwly, B., Sales, G., & Rojo, R. (2010). Gêneros orais e escritos na escola. Mercado de Letras.) e de outros autores do interacionismo sociodiscursivo, utilizamos o conceito de capacidades de linguagem para compreender o tipo de conhecimento exigidos pelas questões. Consideramos, ainda, o fato de que as provas do ENEM são elaboradas a partir de diretrizes relacionadas aos documentos oficiais brasileiros para a educação, em nosso caso específico os relacionados ao ensino de língua estrangeira, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (Brasil, 1998Brasil (1998). Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_estrangeira.pdf (acessado em 13 de dezembro, 2019).
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) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) (Brasil, 2006Brasil (2006). Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM). Vol. 1. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf (acessado em 13 de dezembro, 2019).
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).

Na sequência, apresentaremos nossa metodologia de análise e o detalhamento do corpus. Para o presente artigo, analisamos um conjunto de questões de Língua Espanhola das provas do ENEM, aplicadas entre os anos de 2015 e 2017, com o objetivo de oferecer subsídio aos educadores populares para a qualificação e o direcionamento do planejamento e da produção de materiais didáticos para as aulas. Com esse intuito, objetivamos verificar a diversidade de temáticas e de gêneros textuais apresentados no exame, assim como as capacidades de linguagem exigidas na resolução das questões, gerando um acúmulo de dados quantitativos e qualitativos da presença e da frequência destas características.

Quanto aos resultados, apresentaremos dados quantitativos e qualitativos que dão indícios de pouca variabilidade quanto à esfera da atividade humana, com ênfase no campo jornalístico, porém de grande diversidade quanto aos gêneros textuais presentes nas provas analisadas. Ademais, observa-se, quanto aos temas transversais, um foco temático na pluralidade cultural, tanto relacionada à diversidade linguística quanto à multiculturalidade latino-americana. Por fim, apresentaremos detalhes dos tipos de capacidades de linguagem que são exigidas dos estudantes e realizaremos uma discussão de como esses dados podem auxiliar na elaboração e/ou readequação de materiais didáticos destinados à preparação dos alunos no contexto dos PUP´s.

2. Contextualizando quem são nossos educandos: a educação popular pré-universitária

O espaço central de desenvolvimento de nossa pesquisa é o contexto pré-universitário cujos pilares assentam-se na Educação Popular. Tais instituições não-formais de ensino buscam especificamente a democratização do acesso ao ensino superior, o que sem dúvida faz parte do movimento de libertação almejado por educadores e educandos. Por esse motivo, esses lugares quase sempre estão organizados por estudantes já inseridos no sistema superior, que se colocam no lugar de educadores em busca de proporcionar, a novos educandos oprimidos, a possibilidade de alcançar um lugar privilegiado na nossa sociedade letrada. Como afirma Porciúncula (2019Porciúncula, V. R. (2019). Qual olhar se lança sobre os pré-universitários populares: abordagem nos trabalhos acadêmicos dos PPG’s da UFRGS entre os anos 2000-2018 [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/202049 (acessado em 10 de abril, 2019).
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, p.61),

questões como cidadania e democracia são recorrentes em tais iniciativas. Assumindo um caráter político, a principal característica dos PUPs é o objetivo de ir além do ingresso individual ao ensino superior. Assim, não é raro que as disciplinas dos PUPs abordem conteúdos, por vezes, inexistentes nos exames seletivos, como estratégia para iniciar um debate em sala de aula. Debate este que visa a problematização de uma situação que afeta toda a sociedade, como racismo, machismo, homofobia, diferenças de classe, a fim de que os estudantes se tornem sujeitos ativos, autônomos. Trata-se, portanto, da transformação social partindo das experiências individuais e coletivas, em que o estudante não é um mero consumidor, como quer o modelo de sociedade dominante.

Pensando especificamente no acesso ao ensino superior, as provas tidas como alvo principal nesses preparatórios populares são o vestibular da UFRGS e o ENEM, já que são portas de acesso à universidade. Neste trabalho, o nosso foco recai sobre o ENEM, exame que almeja avaliar a qualidade do Ensino Médio das escolas de todo o território brasileiro, e que, desde o ano de 2009, também é utilizado através de diversos programas governamentais como meio de ingresso às universidades públicas e privadas do país, como o Sistema de Seleção Unificada (SISU), o Programa Universidade para todos (PROUNI) e o Financiamento Estudantil (FIES).

Como o contexto principal do qual parte esta análise são os cursos pré-universitários populares da cidade de Porto Alegre/RS, é preciso, primeiramente, definir o que se entende por Educação Popular e, em um segundo momento, indicar como se dá essa relação com a preparação para as provas que promovem o acesso ao ensino superior, neste caso, especificamente, o ENEM.

Antes de mais nada, o conceito de Educação Popular não é simples de definir. Como quaisquer outras organizações, aquelas que visam a Educação Popular também estão envoltas de ambiguidades e contradições políticas e metodológicas, tanto entre si, quanto internamente (Porciúncula, 2019Porciúncula, V. R. (2019). Qual olhar se lança sobre os pré-universitários populares: abordagem nos trabalhos acadêmicos dos PPG’s da UFRGS entre os anos 2000-2018 [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/202049 (acessado em 10 de abril, 2019).
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). Desta forma, não temos aqui a pretensão de abranger todas as particularidades dos, ao menos, 23 PUP’s existentes em Porto Alegre e nos centraremos, portanto, naqueles com os quais obtivemos uma convivência mais direta.

Tendo como foco as aulas de Língua Espanhola, nossa experiência deu-se através da atuação de uma das autoras como educadora popular em um PUP vinculado, como projeto de extensão, à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A partir dessa vivência, tem-se, invariavelmente, contato com um universo amplo, que envolve várias outras organizações da mesma natureza, já que de modo geral há certo diálogo entre os professores e professoras que atuam nos diferentes PUP´s. As instituições pré-universitárias populares das quais temos conhecimento em Porto Alegre baseiam sua concepção naquela trazida por Paulo Freire (2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.) sobre a construção de um ensino conjunto e coletivo, que o autor desenvolve através do que denomina “pedagogia do oprimido”.

Para compreender melhor essa construção, é necessário evidenciar quem são os, aqui considerados, “oprimidos”: aqueles que estão em oposição à classe dominante, os trabalhadores, os pertencentes a grupos marginalizados pela sociedade, os pobres, os negros, as mulheres, os LGBTQIA+, e todos os que são constantemente diminuídos e silenciados, público predominante dos PUPs. O professor Ernani Maria Fiori (2017 [1967]), em “Aprender a dizer a sua palavra” prefácio à obra Pedagogia do Oprimido (Freire, 2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra.), estabelece essa oposição entre dominante e dominado (opressor e oprimido) através do domínio da palavra. Sendo assim, os dominados são aqueles que precisam lutar para obter a palavra, para terem direito a expressar-se e para libertar-se daqueles que “mistificam, massificam e dominam” (Freire, 2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra., p.30) por meio delas.

Caracterizada assim a dominação pelo monopólio da palavra, é também pela palavra que pode se dar a libertação. A partir disso, é possível pensar na “pedagogia do oprimido” e na necessidade de se construir o processo de ensino e aprendizagem sem um protagonismo exclusivo (e excludente) por parte do professor, mas como ação conjunta entre educadores e educandos. Nesse ponto, vale salientar o novo termo proposto por Freire (2017Freire, P. (2017). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra., p.95), “educador-educando com educando-educador”, que visa quebrar a oposição existente entre os termos inicialmente isolados, que limitam o papel do educador a ensinar e do educando a aprender, excluindo a possibilidade da construção mútua do aprendizado.

Não cabe ao educador sentir-se o libertador dos oprimidos, pois não o é, mas sim engajar-se e comprometer-se com o objetivo em comum de libertação dos educandos e de si próprio frente às situações de opressão; para tanto, não pode temer o verdadeiro contato com o outro, o diálogo, as divergências de opinião, o debate e o consequente crescimento mútuo. Nos PUP’s isso se concretiza quando os educadores populares empenham-se em planejar as aulas de modo que elas sejam, primeiramente, dialogadas. Em tal diálogo, os educandos são tidos como componente ativo e indispensável, cada um em sua individualidade e com a sua leitura de mundo. Assim, todos têm a possibilidade de interpelar a si mesmos e revisitar suas experiências, suas aprendizagens anteriores, a fim de construir um pensamento que seja crítico e consciente das condições desiguais impostas aos oprimidos. Nessas situações, o educador em um PUP não está ali como detentor de uma verdade, mas expressa sua opinião assim como os educandos, levando em consideração e explicitando a impossibilidade de defender-se um posicionamento neutro e buscando que o debate se desenvolva com base em argumentos. São nesses momentos que os educandos e educadores desenvolvem mutuamente a habilidade de “dizer sua palavra”, ao aprenderem a argumentar e ao terem a oportunidade de falar e serem verdadeiramente ouvidos.

Nas aulas de espanhol, no PUP do qual faz parte, a educadora busca desenvolver esses momentos trazendo temáticas como o feminicídio, o racismo, a imigração, a lgbtfobia, entre outras, confrontando a realidade dos países latino-americanos, principalmente entre o Brasil e os países de fala hispana. A introdução desses temas ocorre através de textos autênticos em espanhol, sejam eles notícias, canções, poesias, vídeos informativos, publicidades, entre outros, que são também explorados através de exercícios de interpretação textual, e/ou gramaticais se assim forem relevantes, na busca de também preparar os estudantes para as provas de seleção. Nos encontros já realizados, a educadora pode perceber o engajamento por parte dos estudantes ao defenderem seus pontos de vista e a descoberta de uma realidade histórica e social em comum com os países vizinhos, o que de certa maneira aparece também refletido nas próprias questões de Língua Espanhola da prova do ENEM, como explicitaremos na discussão e análise de nossos dados.

Nesse sentido, sobre a libertação em comunhão defendida por Freire e inevitavelmente relacionada à Educação Popular, é oportuna também a ressalva da relação existente entre os países da América Latina e o ensino da língua espanhola no Brasil. Como afirmam Schönardie e Gerhardt (2018Schönardie, P. A., & Gerhardt, M. C. (2018). A educação popular em tessitura com o pensamento freireano: o processo educativo como possibilidade de humanização. Didácticas Específicas, 18, 118-133. Disponível em: https://revistas.uam.es/didacticasespecificas/article/view/9146/9827
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, p.120), “alçada à concepção de educação, a educação popular, a partir de um processo histórico, está também construída e permeada por bases teórico-metodológicas, oriundas organicamente das vivências em uma conjuntura política e social latino-americana”. Nesse sentido, partindo dessa conjuntura latino-americana, da relação tão próxima de opressão sofrida por estes povos, a comunhão entre estes países latinos termina inexoravelmente fazendo-se necessária para a busca de uma libertação conjunta. Em vista disso, o ensino de espanhol e a tomada de consciência de uma realidade latino-americana compartilhada podem exercer um papel fundamental dentro dos pré-universitários populares, e não apenas por estarem presentes nas provas de seleção.

Desta forma, os PUP’s buscam se diferenciar dos contextos privados também no que tange a questões de aprendizagem, na tentativa de se afastar do que é definido por Freire como “prática bancária”, na qual o processo de ensino e aprendizagem ocorre - se ocorre - de forma que o professor é o “narrador” e os alunos apenas meros espectadores, sem participação verdadeiramente ativa em sala de aula.

Todas as questões fundamentais que balizam a atuação docente nos PUP´s precisam dialogar constantemente com uma preparação sólida para a realização das provas seletivas, para que se possa consolidar a democratização do acesso ao ensino superior. Conhecer as características dessas provas é uma ferramenta essencial para planejar adequadamente os materiais a serem utilizados, os temas a serem discutidos e os conteúdos a serem aprofundados. Na próxima seção, apresentaremos os fundamentos teóricos utilizados em nossas análises.

3. Fundamentando a análise das provas do ENEM

Ao termos como foco de análise as provas de espanhol no ENEM, temos como base uma avaliação voltada para a aferição de conhecimentos sobre essa língua por meio da leitura. Portanto, um acesso possível dos estudantes dos PUP´s às universidades depende de uma preparação voltada para o aprender a ler, leitura esta sempre mediada por um gênero de texto produzido no cerne de uma prática social e transposto para um instrumento avaliativo.

Para realizar a análise das provas, utilizamos a perspectiva teórico-metodológica do interacionismo sociodiscursivo (ISD), em especial o aparato conceitual das capacidades de linguagem (Dolz, Pasquier, & Bronckart, 1993Dolz, J., Pasquier, A., & Bronckart, J.-P. (1993). L´acquisition des discours: Emergence d´une competence ou apprentisage de capacities langagières diverses? Études de Linguistique Appliquée, 92, 23-37.; Schneuwly, 1994Schneuwly, B. (1994). Genres et types de discours: considerations psychologiques et ontogénétiques. Colloque de L´Université Charles-de-Gaulle III, 1, 155-173.; 2010Schneuwly, B. (2010). Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In B. Schneuwly & J. Dolz (Org.), Gêneros orais e escritos na escola. (pp. 21-39). Mercado de Letras.; Dolz, & Schneuwly, 1998Dolz, J., & Schneuwly, B. (1998). Les capacités orales de apprenants. In J. Dolz & B. Schneuwly (Org.), Pour un enseignement de l´oral: initiation aux genres formels à l´école (pp. 75-89). EFS Editéur.; 2010Dolz, J., Schneuwly, B., Sales, G., & Rojo, R. (2010). Gêneros orais e escritos na escola. Mercado de Letras.; Cristóvão, 2013), já que o foco em tais capacidades permite trabalhar as dimensões ensináveis de um gênero de texto. Além disso, Labella-Sánchez (2007Labella-Sánchez, N. (2007). As provas da UEL, da UEM e da UFPR: capacidades de linguagem e outros conhecimentos exigidos [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual de Londrina. Disponível em: Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000119781 (acessado em 17 de agosto, 2019).
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; 2008Labella-Sánchez, N. (2008). Capacidades de linguagem: um meio para avaliação da leitura em língua espanhola. In V.L.L Cristóvão (Org.), Estudos da Linguagem à luz do interacionismo sociodiscursivo (pp. 201-220). Editora da Universidade Estadual de Londrina.) desenvolveu uma metodologia de análise de provas de leitura em língua espanhola utilizando o conceito de capacidades de linguagem, realizando diferentes associações entre elas para compreender que tipo de leitor as questões de provas de vestibular exigiam dos candidatos.

A definição de gênero de texto no ISD passa, necessariamente, pelos conceitos bakhtinianos, já que a escolha entre diferentes gêneros textuais disponíveis no repertório social permite a comunicação em diferentes esferas de atividade humana, adaptando o seu enunciado ao contexto no qual está inserido. Para Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Organização e tradução de Paulo Bezerra. Editora 34.), é através da língua que as pessoas se expressam dialogicamente no mundo e os gêneros são ferramentas construídas social e historicamente que permitem a comunicação e interação entre os indivíduos. A diversidade de formas e de naturezas caracteriza cada um dos gêneros a uma situação específica de uso.

O ISD também entende que gênero de texto é “aquilo que sabemos que existe nas práticas de linguagem de uma sociedade ou aquilo que sabemos que seus membros usuais consideram como objeto de suas práticas de linguagem” (Machado, 2005Machado, A. R. (2005) A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In J. L. Meurer, A. Bonini, & D. Motta-Roth. Gêneros: teorias, métodos, debates (pp. 237-259). Parábola Editorial., p. 242), e incluem - necessariamente - uma atividade de linguagem (com suas dimensões sociais e históricas) e uma ação de linguagem, materializando-se linguajeiramente no mundo por meio de um texto.

Ao abordar essa questão, Bronckart (2003Bronckart, J.-P. (2003). Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução Anna Raquel Machado & Péricles Cunha. Editora da PUC-SP.) entende que os textos, como unidade de uma produção verbal veiculadora de uma mensagem linguisticamente organizada, “são produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais: em função de seus objetivos, interesses e questões específicas, essas formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam características relativamente estáveis (justificando que sejam chamadas de gêneros de texto) e que ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados, para os contemporâneos e para as gerações posteriores.” (Bronckart, 2003Bronckart, J.-P. (2003). Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução Anna Raquel Machado & Péricles Cunha. Editora da PUC-SP., p. 137).

Levar em conta a questão dos gêneros de texto é relevante em nosso estudo, uma vez que os autores/elaboradores de provas como as do ENEM ou as de vestibulares selecionam, a priori, diferentes gêneros de texto para integrarem esses instrumentos avaliativos e é com base nesses textos que as questões são formuladas.

No que tange à análise que apresentaremos, cabe ressaltar ainda que o ISD “não toma os gêneros de texto como sua unidade de análise” (Machado, 2005Machado, A. R. (2005) A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In J. L. Meurer, A. Bonini, & D. Motta-Roth. Gêneros: teorias, métodos, debates (pp. 237-259). Parábola Editorial., p. 237). Dentro da perspectiva de que o gênero não é um objeto de ensino, mas quadros da atividade social em que as ações de linguagem se realizam, “o objeto real de ensino e aprendizagem seriam as operações de linguagem necessárias para essas ações, operações essas que dominadas constituem as capacidades de linguagem” (Machado, 2005Machado, A. R. (2005) A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In J. L. Meurer, A. Bonini, & D. Motta-Roth. Gêneros: teorias, métodos, debates (pp. 237-259). Parábola Editorial., p. 258).

Para que o agente realize as suas ações dentro da prática de linguagem em que está inserido - em nosso caso a leitura e compreensão de textos em provas do ENEM - ele utiliza a sua capacidade de linguagem. Como forma de analisar, observar e tornar as características das capacidades passíveis de serem ensinadas, Schneuwly e Dolz (2010Schneuwly, B. (2010). Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In B. Schneuwly & J. Dolz (Org.), Gêneros orais e escritos na escola. (pp. 21-39). Mercado de Letras.) propuseram a distinção de três ordens de capacidades de linguagem requeridas para a realização de um texto numa situação de interação determinada: a capacidade de ação (CA), a capacidade discursiva (CD) e a capacidade linguístico-discursiva (CLD). Isso é importante de destacar, uma vez que a análise das provas de espanhol do ENEM pauta-se na compreensão das capacidades de linguagem exigidas pelas questões, no intuito de revelar o tipo de leitor exigido.

Sobre as características de cada uma das capacidades de linguagem, tomando por base Dolz e Schneuwly (1998Dolz, J., & Schneuwly, B. (1998). Les capacités orales de apprenants. In J. Dolz & B. Schneuwly (Org.), Pour un enseignement de l´oral: initiation aux genres formels à l´école (pp. 75-89). EFS Editéur.; 2010Dolz, J., Schneuwly, B., Sales, G., & Rojo, R. (2010). Gêneros orais e escritos na escola. Mercado de Letras.), destacamos que a capacidade de ação refere-se à capacidade de adaptação das características do contexto e de seu conteúdo referencial. Envolve as situações de interação pela linguagem no contexto compartilhado pelos falantes, permitindo que eles adaptem a sua produção de linguagem às situações de comunicação e às características do contexto (compreensão das representações relativas ao meio físico onde se realiza a ação, à interação comunicativa, conhecimentos de mundo armazenados na memória). A capacidade discursiva está relacionada à escolha da infraestrutura geral de um texto, já que cada gênero é constituído de variantes discursivas e de sequências textuais encaixadas ou justapostas, o que permite a contínua escolha e elaboração dos conteúdos. A capacidade linguístico-discursiva está relacionada à arquitetura interna do texto, referindo-se mais precisamente às operações linguísticas que estão implicadas na produção de um texto, sendo elas: (a) operações de textualização (operações de conexão entre as partes do texto, de coesão nominal, de coesão verbal), (b) as vozes enunciativas presentes no texto; (c) as operações de construção de enunciado de acordo com as nuances do contexto de produção; e (d) escolhas lexicais.

Embora o conceito de capacidades de linguagem tenha sido elaborado, originalmente, com o propósito de sistematizar o ensino de características de gêneros de texto em atividades organizadas em sequências didáticas, ele também pode ser utilizado como instrumento de análise e avaliação com objetivos diversos, conforme explicitado por Labella-Sánchez (2008Labella-Sánchez, N. (2008). Capacidades de linguagem: um meio para avaliação da leitura em língua espanhola. In V.L.L Cristóvão (Org.), Estudos da Linguagem à luz do interacionismo sociodiscursivo (pp. 201-220). Editora da Universidade Estadual de Londrina.; 2016).3 3 Labella-Sánchez (2016) apresenta um levantamento detalhado da utilização que pesquisadores brasileiros fizeram do conceito de capacidades de linguagem em análises e avaliações de diversos tipos (avaliação de sequência didática, avaliação de experiências didáticas e desenvolvimento de capacidades de linguagem, avaliação e produção de material didático, análises de provas de vestibular, entre outros).

Na próxima seção, dedicada à metodologia, apresentaremos como utilizamos o conceito de capacidades de linguagem como meio de realizar a análise das provas de espanhol do ENEM.

4. Explicitando o método de análise das provas de espanhol no ENEM

Para definir o corpus da presente pesquisa, iniciada no ano de 2018 e finalizada em 2019, decidimos utilizar as aplicações do ENEM feitas nos três anos anteriores (2015 a 2017), compreendendo que as informações obtidas na análise revelariam os tipos de conhecimentos exigidos dos candidatos. No período analisado, foram aplicadas pelo governo federal um total de sete provas, sendo que a prova de Língua Espanhola contou sempre com cinco questões em cada edição, totalizando 35 questões.

O exame de Espanhol no ENEM é definido como uma prova de múltipla escolha, sendo composto por questões objetivas que apresentam em sua estrutura um texto, um enunciado e cinco alternativas de resposta (a, b, c, d, e), das quais apenas uma é considerada plenamente correta. Diferentemente do que se costuma observar em provas de seleção como as dos vestibulares, por exemplo, em que há várias questões avaliativas a partir de um único texto, nas provas aqui analisadas o que se observa é a elaboração de uma única questão para cada texto incluído na avaliação. Conforme podemos ver na Tabela 1, foram analisadas 35 questões avaliativas acompanhadas dos respectivos textos que serviram de base para a elaboração de cada uma delas.

Tabela 1
Número de questões analisadas

Conforme apresentamos na seção anterior, os procedimentos de análise tiveram como base a análise das capacidades de linguagem exigidas dos candidatos em cada questão, além de outros critérios propostos por Labella-Sánchez (2007Labella-Sánchez, N. (2007). As provas da UEL, da UEM e da UFPR: capacidades de linguagem e outros conhecimentos exigidos [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual de Londrina. Disponível em: Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000119781 (acessado em 17 de agosto, 2019).
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; 2008; 2016), de forma a obtermos também uma visão geral dos conhecimentos exigidos pelos candidatos.

No que concerne a uma visão geral dos textos selecionados para compor cada exame, analisamos e classificamos os textos dentro dos seguintes itens: (a) tema transversal, de acordo com os indicados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998Brasil (1998). Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_estrangeira.pdf (acessado em 13 de dezembro, 2019).
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), sendo eles ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural e trabalho e consumo; (b) país, fonte e suporte; (c) esfera da atividade humana; (d) gênero de texto. A identificação desses itens pode auxiliar o educador a compreender quais gêneros de texto e temáticas são mais comuns no exame, orientando-o na preparação das aulas e dos materiais didáticos. Além disso, levando-se em conta os preceitos da educação popular apresentados neste artigo, explorar temas como a cidadania, a consciência crítica em relação à linguagem e os aspectos sociopolíticos da aprendizagem do espanhol é uma das maneiras de compreender a experiência humana e o lugar de cada um no mundo (Brasil, 1998Brasil (1998). Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_estrangeira.pdf (acessado em 13 de dezembro, 2019).
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).

Quanto a uma análise mais específica dos conhecimentos exigidos em cada questão avaliativa, utilizamos a proposta de análise metodológica apresentada por Labella-Sánchez (2008Labella-Sánchez, N. (2008). Capacidades de linguagem: um meio para avaliação da leitura em língua espanhola. In V.L.L Cristóvão (Org.), Estudos da Linguagem à luz do interacionismo sociodiscursivo (pp. 201-220). Editora da Universidade Estadual de Londrina.; 2016) para a identificação das capacidades de linguagem exigidas dos candidatos, revelando, portanto, o tipo de leitor esperado. A proposta de análise baseia-se no referencial teórico-metodológico do interacionismo sociodiscursivo, explicitado na seção anterior. Na Tabela 2, apresentamos os critérios de análise utilizados como instrumento de avaliação de exames que testam a capacidade de leitura, sendo que CA refere-se à capacidade de ação, CD à capacidade discursiva e CLD à capacidade linguístico-discursiva.

Tabela 2
Capacidades de linguagem exigidas em questões que aferem leitura

Como nem sempre as questões aferem as capacidades de linguagem apresentadas na Tabela 2, Labella-Sánchez (2008Labella-Sánchez, N. (2008). Capacidades de linguagem: um meio para avaliação da leitura em língua espanhola. In V.L.L Cristóvão (Org.), Estudos da Linguagem à luz do interacionismo sociodiscursivo (pp. 201-220). Editora da Universidade Estadual de Londrina.) também elencou outros tipos de conhecimento que podem fazer parte dos conhecimentos exigidos em provas que avaliam a leitura, sendo elas: (a) conhecimentos de gramática teórico-normativa, caracterizados pela sua descontextualização e por aferir conhecimentos metalinguísticos; (b) leitura como processo de decodificação, ou seja, a simples busca e localização de informações explícitas no texto; (c) conhecimento lexical descontextualizado, caracterizado pela indicação de sinônimos ou antônimos; (d) tradução de palavras ou frases isoladas de seu contexto.

A compreensão dos tipos de conhecimentos exigidos nas questões de espanhol do ENEM pode indicar as possibilidades de como o educador pode trabalhar a compreensão de texto de forma efetiva em sala de aula, ensinando as estratégias de leitura mais adequadas para a realização da prova.

Na próxima seção, apresentaremos os resultados obtidos e pontuaremos algumas questões levando em conta o nosso contexto de atuação didático-pedagógico.

5. Analisando os dados obtidos

Ao apresentar a análise de nosso corpus, compreendemos que é possível observar qual tipo de leitura está sendo exigida pela prova de espanhol do ENEM, além de quais temáticas e gêneros estão sendo privilegiados na seleção de textos, indicando possíveis caminhos para a preparação dos estudantes dos PUP´s para essa avaliação e, portanto, aproximando-os do acesso ao Ensino Superior.

Em relação às temáticas abordadas pelos textos, classificados dentro dos temas transversais, os conteúdos relacionados à pluralidade cultural se destacaram, dominando 40% do total do corpus. Dentro desta temática, destacamos alguns assuntos recorrentes como a diversidade linguística e a valorização da cultura latino-americana.

Outro tema que apareceu com grande relevância, obtendo a segunda maior porcentagem neste aspecto, foi a ética, com 22,9% do total de questões, trazendo debates sobre migração, xenofobia, violência contra a mulher e perseguições políticas. O gráfico abaixo (Figura 1) demonstra também a classificação dos demais temas transversais, com Trabalho e Consumo alcançando 14,3%, Saúde 11,4% e Meio Ambiente 5,7%. O tópico Orientação Sexual apareceu uma única vez, assim como a junção dos pontos ética e trabalho.

Figura 1
Ocorrência dos temas transversais nas provas de espanhol do ENEM de 2015 a 2017

Os dados evidenciam a importância de abordar o componente cultural nas aulas de Língua Espanhola dentro dos pré-universitários, assim como também oferecem indicações ao próprio Ensino Médio. Se ponderarmos a tendência predominante de tratar a parte gramatical como elemento central em muitos cursinhos (sejam eles privados, sejam eles PUP´s) e a parte cultural como complementar, aqui temos um dado que comprova a pertinência da parte temática e cultural, não apenas para facilitar a resolução apropriada das questões da prova, mas também para desenvolver a formação cidadã do estudante, um dos pilares da Educação Popular, conforme apresentado anteriormente.

Quanto às esferas da atividade humana às quais os textos estavam vinculados, percebemos a predominância da esfera jornalística (54,3%), principalmente em seu suporte digital, provavelmente pela facilidade de acesso que se tem atualmente a gêneros textuais advindos dessa esfera. Já a esfera literária obteve uma ocorrência de 28,6%, um pouco mais de um quarto do conjunto de questões. Além das duas esferas principais, a institucional e a educacional também apareceram no exame, com uma menor frequência, em apenas sete questões, reunindo 11,4% e 5,7% respectivamente. A Figura 2 ilustra os dados aqui apresentados.

Figura 2
Ocorrência das esferas da atividade humana nas provas de espanhol do ENEM de 2015 a 2017

Tendo em vista as esferas de atividade humana mais presentes nas provas, bem como dos temas transversais predominantes, é possível focar na preparação de materiais e aulas dos PUP´s que tratem de questões de autoria, intencionalidade e direcionamento destas práticas de linguagem no mundo social.

Ainda pensando nos contextos de produção, no que concerne aos países de origem dos textos presentes nas provas, apenas dez dos 21 países de fala hispana estão representados, com uma maior frequência de textos publicados na Espanha (34,2%) e na Argentina (17,1%). Nesse sentido, é interessante pensar em como este dado contrasta com aquele já referido sobre os temas transversais. Ao mesmo tempo em que boa parte dos textos se refere à importância da multiculturalidade, a seleção destes não reflete plenamente tal diversidade, conferindo destaque primeiramente a um país europeu e, na América Latina, colocando o foco, mais destacadamente, em um único país forte economicamente. É de se considerar essa invisibilidade dada aos demais países hispano- falantes, tema que pode ser trabalhado e discutido em sala de aula.

Já no tocante aos gêneros, podemos verificar certa diversidade, ainda que limitada ao levar em conta o total de textos analisados. Entre os 35 textos que constituíram o corpus, identificamos 13 gêneros textuais diferentes. A presença do gênero notícia é a mais significativa numericamente, com seis casos que compõem aproximadamente 17% da totalidade do corpus e, ao considerarmos apenas a esfera jornalística, a notícia domina 31,5% dos excertos. Ainda em relação à totalidade do corpus, o segundo gênero textual mais presente nas provas analisadas foi o de divulgação científica (14,2%), seguido da publicidade institucional (11,4%), da canção, do conto e da charge - cada um dos três com 8,5% em relação ao total. Como é possível observar na Figura 3, os outros gêneros de texto identificados nas provas foram reportagem, artigo de opinião, texto informativo, poesia, texto expositivo, carta do leitor e ação poética.

Figura 3
Diversidade de gêneros de texto nas provas de espanhol do ENEM de 2015 a 2017

Ainda que possamos lançar um olhar crítico quanto à diversidade de gêneros apresentados nas provas analisadas, entendemos que houve uma variação razoável, trazendo inclusive gêneros significativamente novos como é o caso do Ação Poética4 4 O gênero Ação Poética surgiu no México, há cerca de 20 anos, pelas mãos do artista Armando Alanis Pulido. A partir deste momento, as frases pintadas em letra de forma, com tinta preta em muros brancos, características específicas deste gênero textual, se espalharam por toda América Latina através de pessoas inspiradas na obra deste artista; tornando o originalmente chamado “Acción Poética” um verdadeiro movimento artístico latino americano. Mais informações sobre a origem desse gênero acesse: http://www.nonada.com.br/2019/02/a-cidade-e-um-verso-conheca-a-origem-do-accion-poetica/. Retomado em: 18 de julho de 2020. . Além do mais, a seleção literária traz também contos, canções e poesias, gêneros que podem despertar o interesse dos educandos mais jovens e facilitar a construção de debates em aula em relação às temáticas, à autoria e a uma possível intencionalidade da obra. Outro gênero textual que aparece com certa frequência é a charge, com a qual é possível trabalhar elementos de extrema significância na atualidade como a linguagem visual e a ironia.

O último quesito de análise, que busca identificar o tipo de leitor exigido pelo ENEM, demonstra que a maior parte das questões (45,7%) está focada em avaliar a capacidade de ação (CA), ou seja, as questões exigem que o candidato realize inferências ou generalizações a partir do tema central, produza novos sentidos, considere o contexto de produção e/ou utilize o seu conhecimento de mundo para poder escolher a alternativa correta. Além disso, a capacidade de ação vinculada a outras capacidades de linguagem foi uma constante durante as análises, conforme podemos verificar no gráfico da Figura 4.

Figura 4
Conhecimentos exigidos nas provas de espanhol do ENEM de 2015 a 2017

No que tange à associação da capacidade de ação junto às outras capacidades, identificamos que a CA+CLD foi a segunda mais presente, somando 22,8%. Esse tipo de questão envolve um conhecimento linguístico-discursivo mais contextualizado, o que exige dos candidatos uma capacidade de analisar operações de conexão e segmentação, a presença e papel de vozes enunciativas e o significado das escolhas lexicais presentes no texto.

Chama a atenção também o número de questões que exigem as três capacidades de linguagem (CA+CD+CLD) funcionando de forma engrenada (14,3%), já que não é muito comum a presença de questões que mobilizem todas as capacidades de linguagem concomitantemente. Essas questões costumam ser as que exigem mais dos candidatos, uma vez que a resposta adequada só pode ser identificada com a mobilização de vários conhecimentos relacionados aos gêneros de texto (do contexto mais geral, passando pelo reconhecimento da infraestrutura do gênero e do papel que os elementos linguístico-discursivos representam dentro do texto).

Ainda considerando as capacidades de linguagem associadas, 8,6% das questões mobilizaram a CA+CD, tornando relevante a análise da infraestrutura geral do gênero e a forma como ela revela sentidos do texto verbal e/ou não-verbal.

Levando em conta os dados relacionados apenas às capacidades de linguagem, verificamos que 91,4% de todas as questões analisadas exigem um leitor crítico e interpretativo, capaz de interagir com o contexto e se posicionar diante do texto. São questões que não avaliam a partir de uma leitura como decodificação. Somente em três das 35 questões, portanto 8,6% de todas as questões analisadas, foi constatada a simples busca e localização de informações, caracterizada por questões com alternativas que parafraseiam e/ou relacionam informações explícitas do texto.

Esses resultados são relevantes por incidir sobre a necessidade de realização de um trabalho constante de compreensão crítica de texto em espanhol nos PUP´s e também nos demais contextos de ensino que focam na preparação para as provas do ENEM.

6. Considerações finais: encaminhando algumas conclusões

Como apresentamos, a Educação Popular de orientação freiriana tem pressupostos bem definidos: a conscientização por parte dos oprimidos da realidade opressora, a educação crítica e reflexiva e a construção da aprendizagem conjunta entre educadores e educandos. Dentro do contexto dos pré-universitários populares, há, além desses, ainda outro objetivo tão importante quanto: a democratização do acesso ao ensino superior.

Sensíveis a esses aspectos, diversos estudantes universitários e graduados realizam um importante trabalho docente no intento de proporcionar a oportunidade de sujeitos em situação de vulnerabilidade adentrarem ao ambiente universitário. A participação nesse espaço como educadora, por parte de uma das autoras, fez com que emergissem dúvidas de como conceber aulas e materiais didáticos adequados para a preparação desses estudantes para provas como o ENEM.

Para tanto, buscamos uma concepção de linguagem que se adequasse aos propósitos da Educação Popular. Encontramos no dialogismo bakhtiniano e na relação intrínseca e concreta exposta por ele entre língua e vida, ideias que convergem com a libertação por meio da palavra. Ademais, os conceitos de gênero de texto e capacidades de linguagem propostos por Dolz e Schneuwly foram fundamentais no desenvolvimento da análise das questões.

Desta forma, foi possível levantar dados referentes à tendência do exame quanto à presença e à frequência de diversas características que devem ser levadas em conta ao preparar o material didático (tipo de leitor exigido, temas transversais mais presentes, país de origem dos textos, fonte e suporte, esfera da atividade humana e gêneros de texto mais presentes). A clareza em relação a esses aspectos possibilita um melhor mapeamento da prova e consequentes indicações de como preparar o educando para solucioná-la.

Tais elementos demonstraram que a prova se mostra diversa quanto aos gêneros de texto, porém restrita quanto às esferas da atividade nas quais circulam, com grande enfoque para o campo jornalístico. Também é possível levantar discussões em sala de aula quanto à contradição entre a multiculturalidade proposta nas temáticas dos textos e os países nos quais eles foram veiculados originalmente, demonstrando um constante direcionamento às mídias dos países econômica e politicamente centrais no mundo hispano, como Espanha e Argentina. Com relação às capacidades de linguagem exigidas, percebemos a predominância da capacidade de ação como aquela necessária para alcançar a resolução adequada das questões, o que exige um leitor capaz de mobilizar conhecimentos de mundo e interpretar o contexto de produção dos textos.

Por fim, compreendemos e defendemos que os educadores populares podem conciliar a preparação para as provas com o debate de questões importantes vinculadas à realidade dos educandos. Isso é possível através da escolha de textos que, além de levar em conta as regularidades do exame, possam produzir discussões críticas e reflexivas que proporcionem ao grupo oportunidades de ampliação do seu conhecimento de mundo e aperfeiçoamento de suas habilidades interpretativas.

Referências

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  • 3
    Labella-Sánchez (2016Labella-Sánchez, N. (2016). Análise de necessidades e gêneros de texto para o planejamento de material didático de espanhol para fins específicos: o curso Técnico em Transações Imobiliárias [Tese de doutorado]. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Disponível em: Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/5247 (acessado em 30 de agosto, 2019).
    http://www.repositorio.jesuita.org.br/ha...
    ) apresenta um levantamento detalhado da utilização que pesquisadores brasileiros fizeram do conceito de capacidades de linguagem em análises e avaliações de diversos tipos (avaliação de sequência didática, avaliação de experiências didáticas e desenvolvimento de capacidades de linguagem, avaliação e produção de material didático, análises de provas de vestibular, entre outros).
  • 4
    O gênero Ação Poética surgiu no México, há cerca de 20 anos, pelas mãos do artista Armando Alanis Pulido. A partir deste momento, as frases pintadas em letra de forma, com tinta preta em muros brancos, características específicas deste gênero textual, se espalharam por toda América Latina através de pessoas inspiradas na obra deste artista; tornando o originalmente chamado “Acción Poética” um verdadeiro movimento artístico latino americano. Mais informações sobre a origem desse gênero acesse: http://www.nonada.com.br/2019/02/a-cidade-e-um-verso-conheca-a-origem-do-accion-poetica/. Retomado em: 18 de julho de 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2020
  • Aceito
    26 Out 2021
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